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nota da editora
Essa era para ser uma edição felizinha, um refúgio ao final desse
ano tão difícil, A nossa Macondo. Mas na vida, assim como nas viagens
que você vai ler a seguir, nem tudo sai como planejado. Tem viagem que
termina em briga, tem mudança de destino de última hora, decepções
adolescentes, peregrinação, encontros marcantes e todo tipo de
imprevisto.
Esperamos que suas férias sejam mais calmas que as aqui relatadas
(ou não, se você gostar mesmo é da bagunça). E não esqueçam de
conferir o livro da nossa autora parceira, que foi sorteado para os
apoiadores da revista. Boa leitura e boas viagens!
Mariane Lima

som do tapa
Com sua escrita direta, envolvente, Carla Guerson coloca o dedo na
ferida e contempla medos e segredos comuns às mulheres. Solidão,
estupro, violência doméstica, perdas, maternidade, relacionamentos
abusivos, sobrecarga feminina, conflitos familiares, sexualidade,
autoimagem, dentre outros assuntos, são abordados com muita
intimidade. Suas personagens femininas são marcantes e abrangem
diferentes faixas etárias e classes sociais, apresentando uma seleção
muito rica de tipos femininos, sem nenhuma romantização, ao longo
dos 28 contos. Um verdadeiro apanhado sobre o que é ser mulher na
nossa sociedade.

Carla Guerson é escritora, feminista, geminiana, incomodada.


Capixaba, nascida e criada em Vitória/ES, onde reside. Escreve contos,
crônicas e poemas e tem textos publicados em diversas revistas
literárias, coletâneas e antologias. Em 2021, está lançando seu primeiro
livro: “O som do tapa” (Editora Patuá).

diário de bordo
Fazer as malas é tarefa impossível, diz a poeta Ana Martins Marques
no livro “Risque esta palavra”. Impossível porque os biquínis, óculos
escuros e meias da pessoa que vai partir são inadequados - quase
antiquados - para aquela que vai chegar. Uma viagem muda tudo. Seja
por diversão ou questão de sobrevivência. Seja planejada meses antes
ou propiciada pelo fogo vivo em seu encalço. Seja para Barcelona,
Macondo ou Iguaba Grande.
Não é fácil escrever sobre viagens quando passamos tempo demais
sem poder colocar o pé na estrada. Nos últimos dois anos, perdemos
tanto que parece insensível falar dos roteiros que não fizemos. Das
pessoas que deixamos de conhecer, das paisagens que vimos apenas
pela internet e das comidas que não provamos. Das descobertas sobre
nós mesmos que não fizemos e dos perrengues (tão diferentes dos de
agora) que não passamos. Parece mais justo lembrar dos que viajaram
sem querer viajar, dos que tiveram que se colocar em movimento para
sobreviver, quando o privilégio passou a ser ficar em casa.
Uma viagem pode ser tantas coisas, por vezes múltiplas, por vezes
opostas. A nossa sorte é que temos a literatura para nos contar sobre
todas elas, em qualquer tempo, despertando o quentinho de uma
lembrança boa ou o amargo do que não saiu como era esperado. E,
ainda mais importante, alimentando a consciência do tanto que não
conhecemos e a empatia por vidas tão diferentes das nossas. 

Nesta edição da Subtextos, vocês vão embarcar em algumas dessas


viagens, rumo a destinos inesperados. Vão subir a bordo de um barco de
refugiados, acompanhar Sebastião num Escort 1997 vermelho, se
embrenhar no labirinto paulista, perder a balsa que só sai até as
dezenove horas e cavalgar pela Bahia no lombo de Pipi. Ao som de
Gilberto Gil, vão se despedir da avó de Marília. Vão conversar com
desconhecidos na praia, ouvir as histórias de Marian e os conselhos de
Dona Anita. Como em “Até mais tarde”, arrumar a mala não será tarefa
fácil. 
O destaque desta edição, para mim, é a divertida viagem na van do
Tio Pedro em “Iguaba Grande”, com direito a brincar de roubou-pão-na-
casa-do-João e a uma parada no Mister Pizza. As menções honrosas vão
para “Francisco e o Fogo Vivo”, “Bom Jesus do Galho” e “Viagem ao
Labirinto do Minotauro”. 
Aperte os cintos e boa viagem, leitor!

Marina Navarro Lins

textos
a nossa Macondo Julia Zanotelli
às seis Michael Hübner
até mais tarde Lucia Pouchain
Bom Jesus do Galho Isabella de Andrade
excesso de convivência Cristiane Belize Bonezzi
na roda do mundo Pedro Rosario
os olhos do sertão mineiro Leandro Jabour Pazeli
refugiados Gabriela Peloso
todas as cartas de amor Marcelo Mendes
viagem ao labirinto do Paulo Luís Ferreira
Minotauro
Francisco e o fogo vivo Emerson Soliz
Iguaba Grande Saulo Guimarães
na praia Caroline Rodrigues

a nossa Macondo Julia Zanotelli

Foto: 502joe em Unsplash

a nossa Macondo
Chegamos. Dali, só esperávamos o descanso. Refúgio. Fugíamos,
nós dois, da realidade que assombrava nossa rotina.
Éramos dois jovens nos corpos de idosos trabalhadores. Ele
resolveu tirar um período sabático. Seus dedos já estavam atordoados
de digitar e os teimosos cabelos brancos nascidos do estresse o
incomodavam. Eu, diagnosticada com hiperatividade cerebral e sede de
mudança, fui tentar acalmar os pensamentos.
Navegamos além-mar para as terras de Macondo. Em uma
minuciosa busca pelo Google, achamos o que viria a ser a nossa
Macondo. Não, não era a mesma de Gabriel. Era, exclusivamente, nossa.
Inspirada, claro, por ele. Chamava-se, na verdade, Tintipán. Uma
pequena e paradisíaca ilha localizada também na Colômbia.
A nossa Macondo tinha águas tranquilas e transparentes. Era
rodeada por redes úmidas e cadeiras de balanço coloridas, que

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a nossa Macondo Julia Zanotelli

contrastavam com aquela natureza. O céu se encontrava com o mar, o


mar se banhava dos raios de sol e do luar. Era fácil escrever poesia, era
fácil se desligar.
Foram sete dias inteiros dedicados ao simples hábito de admirar o
tempo. Aquele que, normalmente, passava tão acelerado, tão sem
rodeios. O tempo que, naquele momento, resolveu cutucar nosso ombro
e dizer: “respira”.
Respiramos em nossas cabanas de palha sem janela. 
Respiramos nus na praia deserta. 
Respiramos esperando o temporal se afastar.
Respiramos até mesmo matando os mosquitos que insistiam em
nos rondar.
Respiramos jogando dominó com os pés na areia.
Respiramos e dançamos em um longo mergulho noturno no fundo
do mar. 
Ali, naquela escuridão, mesmo com a lente embaçada do snorkel,
foi possível ver um céu estrelado debaixo d'água. Parecia um mero
reflexo, mas os fitoplânctons tinham tirado o dia para, de fato, brilhar.
 Magicamente sábia, assim era a nossa Macondo.

Julia Zanotelli c
Publicitária e empreendedora que, logo cedo ou, de
madrugada, se afoga nas palavras. Ama escrever e viajar.
Inspirada pelo tema desta edição e pelo irmão Vitor, que já
foi aqui publicado, resolveu se arriscar com um breve conto
fora da sua bolha social.

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às seis Michael Hübner

Foto: Julian Hochgesang em Unsplash

às seis
Por enquanto não quero pensar que às seis nós nunca mais
dividiremos uma cama. Concentro-me na superfície branca que encaro;
finjo dormir desde quando, derrotados pela exaustão, nos restou
estender os corpos num mesmo lugar pela última vez, cada um virado
para uma face lívida das paredes do quarto penumbroso da pousada.
Aff! Eu deveria ter suspeitado que tudo iria por água abaixo ao me
cobrarem doze pratas por um coco na praia; sem contar o aluguel das
cadeiras com o diabo do guarda-sol. Sim, claro! O início da tragédia não
se resumiu apenas a dinheiro. Hum, um pouco. Mas e meus princípios?
Se penei para ser aprovado, aos 40 anos, num concurso público decente
e, enfim, podermos noivar, de jeito nenhum foi para ficarmos torrando
grana como esses arrivistas otários. Falta à Angelina o senso do ridículo,
astúcia para distinguir o valor das coisas. Ah, pai... Obrigado pelas lições.

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às seis Michael Hübner

Eu insisto e digo a ela, porém parece que entra num ouvido e sai no
outro. Onde já se viu um negócio desses? Veja só: deixar os putos dos
imigrantes argentinos sapatearem um tango na minha carteira. Preferiria
mil vezes sentar-me sobre uma canga na areia e levar nossa própria
bebida numa caixinha de isopor a ter que me submeter à vexaminosa
extorsão de uns “hermanos”. Raios! Isso que dá incumbir Angelina de
tomar decisões, durante o período em que eu me exercitava com uma
corrida pela ilha.
A propósito, será que ela está viva? Faz tempo que parou de gemer e
se debater, sequer escuto sua respiração. Devo conferir? Vixe; melhor
ficar quieto na minha cá de lado... Dane-se. Não bastou o quebra-quebra
final ter se perpetuado noite afora a começar por quando cheguei de
tardinha após nos separarmos na hora do almoço em razão da segunda
discussão. Negativo! Precisei ainda varar a madrugada limpando o
vômito rosado da criatura abstêmia que deu para engolir gim puro e, em
seguida, uma garrafa de vinho tinto à medida que íamos nos atacando
com insultos tão vulgares. Nossa! Olha ali meu relógio espatifado no
chão. O que deu em mim? Até pensei em reconciliação entre uma dose e
outra de tequila, lá no centro do vilarejo, junto aos nativos que haviam
encerrado o expediente. “Ok, Angelina tem seus pontos positivos e talvez
eu tenha exagerado um bocado na sequência dos malditos eventos”,
refletia ao retornar, mas nem finquei os pés na pousada e a flagro de
conversinha com o garotão da sunga vermelha perto da piscina. Estúpida
maneira de tentar chamar atenção! Minha futura esposa dando sopa por
aí? Fiquei possesso! O sorriso matreiro dela se achando com a bola toda

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às seis Michael Hübner

serviu para eu quase fazer uma besteira maior do que arrancar a aliança
do anelar direito e atirá-la contra a assanhada. Realmente, uma mulher
vingativa é capaz de levar um homem ao buraco. Por que Angelina teve
que me seguir ao nosso quarto justo naquele instante? Furioso, perco o
controle. Logo, o pavio já estava aceso. Pelo menos, não seremos alvo
dos olhares reprovadores dos demais hóspedes. Ao servirem o café da
manhã, estarei longe daqui. Ela que se vire sozinha! Depois das infâmias
cuspidas em mim, sem falar do tapão que me deu na fuça. Eu bem era
capaz de atravessar o mar rumo ao continente nadando. Deveria haver
balsas de prontidão vinte e quatro horas e não apenas até as dezenove...
É mesmo gozada a cachola humana. Macacos comunicantes, dizia
o seu Guido na época do grupo. Era esse o nome? Mmm... Deixa pra lá.
Atolados no frenesi urbano, mal sobram oportunidades para nos
curtirmos. Trabalho, engarrafamento, supermercado, reunião de
condomínio encolhem a vida à brevidade de um suspiro. Viemos
descansar treze dias neste paraíso e nem transcorrida razoável parcela
das férias aprontamos o quê? Um barraco! Tsc, tsc, tsc. De qualquer
modo, não sou o único culpado. A bruxa estava solta. O incidente na
praia de manhãzinha, apesar da zanga e do sabão dado por mim na
Angelina, jamais se compara ao escândalo no restaurante. Jesus Cristo;
impossível almoçar sentindo tanta raiva. E olha que o prato com frutos
do mar estava atraente, viu. Droga! Angelina desejava o quê? Que
permanecêssemos naquela mesa empesteada pela fumaça do charuto
do perdedor balofo, sentado colado na gente? De jeito nenhum! Tudo
bem, eu sei. O Aconchego do Estivador era nosso cantinho predileto,

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às seis Michael Hübner

refeição honesta e uma vista para a enseada de tirar o fôlego. Todavia,


isso justifica aturarmos tamanho ultraje de um desconhecido mamando
seu mata-rato? Levantei como me levantaria de novo! Se Angelina queria
o dissabor de comer a ponto de se sufocar, que ficasse calada onde
estava sem a necessidade de berrar para o deleite dos fregueses ao redor
que eu sou um neurótico, estraga-prazeres, egoísta... Que mais ela
esgoelou? Uf; cretino! Com tal provocação, fora de cogitação mudar de
mesa. Ficasse lá largada, adeus. Epa! Ela saiu da cama. Estátua: não vou
me mexer! Foi agora ao banheiro, decerto vai... Cruzes, feche a porta!
Quantas horas, hein? Está clareando. Onde escondi o celular? Isso, aqui
enfiado na fronha do travesseiro. Se ela o agarrasse, transformaria em
sucata.
Cinco e cinquenta e um! Disponho de alguns minutinhos. Ao sinal
do alarme, tomarei uma ducha fria, reunirei meus pertences
sobreviventes e darei o fora! Aliás, deixarei o aparelho onde estava;
questão de prudência. No retorno, precisarei dele. Pronto, está a salvo.
Ui! minha coluna! Hum, como é bom espreguiçar! Retraído nesta banda,
o esqueleto emperrou. Os passarinhos cantam, felizardos que gozaram o
privilégio do sono. Estivéssemos em paz, contemplaria o alvorecer,
sentindo o vento ameno do oceano. Entretanto, é mais jogo aguardar
enclausurado aqui para evitar qualquer bafafá adicional. Rápido, rápido:
aí vem ela. Em posição! Que barulho é esse? Tomara que ela não faça
nenhuma tolice.
Sossegou. Quais as chances da Angelina estar voltada para este
lado fitando minha nuca? Sensação horrível de vulnerabilidade. Sete

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às seis Michael Hübner

anos juntos, história repleta de altos e baixos. E o casamento? E nosso


plano de construirmos uma casa com um closet mastodôntico para
caber todos os troços dela? A um passeio de fim de semana, a louca
chega a levar duas malonas. Vaidosa ela é. Brigas épicas detonadas por
motivos que, pensando bem, não chegam a ser lá tão graves, mas deitam
por terra projetos tidos como sólidos, antes do temporal. Estou moído
pelo combate. Meu crânio arde. Desta vez, ultrapassamos o limite.
Vociferei e ouvi desaforos irremediáveis, ofensas cabeludas. Paciência.
Força! Nada de hesitar, seu banana, acabou e está acabado. AI! O que é
isso? Calma, relaxe. É a palma da mão dela tocando minha coluna. Eu,
hein. E agora? Caramba, o alarme...

Michael Hübner c
Se dedica a colecionar experiências. Agitado & curioso,
levanta a pedra, se for o caso, para verificar o que há por
baixo. Escreve narrativas, quando não está distraído demais
com os infinitos encantos da vida.

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até mais tarde Lucia Pouchain

Foto: Philip Myrtorp em Unsplash

até mais tarde


Já é madrugada. O avião sai às duas e quinze da tarde, check-in é ao
meio dia e quinze. Revejo tudo que escolhi levar para ter certeza de que
não faltou nada. Talvez tenha colocado algo desnecessário. Não sei
como algumas pessoas conseguem arrumar malas com rapidez. Não sou
assim. Gosto de ter tempo para pensar em cada item que levarei. Por
mais acostumada que esteja, durante todos esses anos, de arrumar
essas mesmas malas, com o mesmo destino, para fazermos as mesmas
coisas, não consigo me decidir facilmente sobre o que levar e o que
deixar. Dessa vez, a vontade de deixar é maior que a de levar, mas não
quero que você perceba e também não quero perceber. Não vou pensar
nisso agora.

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até mais tarde Lucia Pouchain

O casaco pesado sobre a maleta de mão me incomoda, me lembra


que deveria ter comprado outro. Sempre penso em comprar outro e
esqueço assim que retorno. Ato falho. Se minha vontade de chamar sua
casa de "nossa" fosse tão grande quanto a sua, talvez eu me lembrasse
do casaco ao voltar. Mas esqueço, sempre esqueço. Você não sabe disso
porque nunca comentei sobre este incômodo. Talvez você nunca o tenha
visto, deve observá-lo como a mim – olha sem ver, ou talvez veja sem dar
importância, ele não representa nada. Talvez eu também devesse pensar
assim: o que importa é estar com você, não o casaco. 
Grudo no espelho do banheiro um lembrete para que eu não
esqueça de colocar minha escova de dente na maleta depois do banho.
Em uma das muitas viagens que fiz, esqueci. Comprei outra e trouxe
comigo quando voltei. Você nem percebeu. Se tivesse dito para deixá-la e
assim não precisar mais me preocupar com ela, talvez eu tivesse te dado
ouvidos. Confesso que isso passou pela minha cabeça, mas não a deixei,
a minha estava velha, precisando ser trocada e não deixaria uma
novinha para trás.
Na última vez que estive aí, ficou o par de brinco de pérolas que não
gosto, dentro da gaveta da mesinha de cabeceira. Cada dia que passa
desde que voltei, penso nele. Sinto falta, tanta falta que não consegui
usar nenhum outro desde então. Quase acredito que, no fundo, eu goste
dele. Quase acredito que eu vá me arrepender do que estou prestes a
fazer. Quase. 
 

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até mais tarde Lucia Pouchain

São onze e vinte quando eu chamo o táxi. Até chegar ao aeroporto


serão onze e quarenta e cinco, se as vias estiverem livres, meio dia, se
pegar algum trânsito. Terei quinze minutos para ir ao banheiro antes de
fazer o check-in. Respiro fundo, dará tudo certo. O telefone toca. É você.
Quer saber se está tudo pronto, se já estou a caminho, me lembra de
pegar o casaco e diz que está ansioso para me ver, pergunta “e você?”.
Aviso que o táxi chegou para me esquivar do assunto apesar de
estar, de fato, ansiosa para vê-lo. Nossas ansiedades são de naturezas
distintas e eu não quero que você perceba. Não quero parecer hesitante.
Desde o dia em que decidi não fazer mais essa viagem, me tornei mais
hesitante. Pensei em mandar uma mensagem de texto avisando que não
voltaria. Não mandei. Preciso dizer pessoalmente, olho no olho, e repetir
se preciso for. Repetir até ver em seu rosto que fui compreendida. Repetir
até ver se formar entre seus olhos aquele vinco profundo que demonstra
sua contrariedade, sua dor, sua abnegação.
Durante o trajeto até o aeroporto vou revendo minhas falas
planejadas, como uma atriz decorando o texto antes da encenação.
Hesito. Não por duvidar de que assim será melhor, para você e para mim.
Você se acomodou nessa nossa vida, eu não. Você queria mais no início,
agora parece conformado com esse meu ir e vir, eu não. No início, você
acreditou que seria temporário, que eu, naturalmente, iria ficar de vez,
mas não aconteceu assim. Para mim, bastou ter a certeza de que você
me queria para que a vontade de ficar ao seu lado se esvaísse. Confuso
isso, eu sei, não me peça para explicar. O que mais me agradava era
arrumar as malas e embarcar. O que mais me desagradava era a rotina

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até mais tarde Lucia Pouchain

ao chegar: o mesmo abraço, o mesmo beijo, o mesmo carro, o mesmo


trajeto, o mesmo apartamento, a mesma desordem, o mesmo cheiro
abafado, o mesmo frio, o mesmo. Sempre o mesmo. 
O voo transcorreu com muita turbulência, por dentro e por fora.
Quando religuei o celular, ao desembarcar, recebi sua mensagem
avisando: “não conseguirei chegar, o carro enguiçou, pegue um táxi. Nos
encontramos mais tarde. Beijos, cheios de saudade”.
A frase ficou martelando em minha cabeça como uma promessa.
Queria me encontrar com você mais tarde para darmos beijos cheios de
saudades. Mais tarde. Não agora. Mais tarde, bem mais tarde. “Nos
encontraremos mais tarde... cheios de saudades”.
Troco minha passagem de volta e embarco imediatamente.
Nordeste. Calor. Destino incerto. Peregrinação. Novos ares. Sozinha.
Respiro fundo me enchendo de coragem. O casaco, eu deixo numa
poltrona qualquer do aeroporto.

Lucia Pouchain c o
Nascida em Niterói, Rio de Janeiro, passou metade de sua
vida em Brasília - onde se formou em Desenho Industrial
(Programação Visual) pela UnB - e a outra metade em
Salvador, Florianópolis e Nova Friburgo, onde vive
atualmente. Deixou um pouco de seu trabalho nas cidades
onde viveu e, em Nova Friburgo, além do design, passou a se
dedicar também a escrita. O design gráfico e a escrita
trabalhados com paixão, em duas vertentes: o uso da
imagem para transmitir uma mensagem e o uso da
mensagem para construir uma imagem. Autora da novela
"Até que consigas nadar".

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Bom Jesus do Galho Isabella de Andrade

Foto: Tim Hüfner em Unsplash

Bom Jesus do Galho


Eu comia a ausência enquanto minha avó desaparecia aos poucos
da fazenda. Um corpo que vai, sem pressa, se desabrigando de seus
espaços. E a vó diminuía de tamanho, como se no fim a gente finalmente
entendesse que sempre quis voltar para a infância.
Decidiram que eu não iria ao enterro. Minha mãe queria me poupar
de pegar a estrada e enfrentar o tempo para ver a morte mais de perto.
Nunca me perguntaram. E eu não soube reivindicar. E quem decide sobre
a dor do outro? Quem decide o quanto eu aguento saber? Gente
desconhecida circulava pela casa sempre aos sussurros com minha mãe.
Ninguém me dizia nada e eu pescava a morte assim, aos poucos e pelos
cantos, com muito espaço a inventar. É pior inventar a morte. Imaginar o
medo, o triste, o corpo no caixão. Quanto tempo levaria para descer na
terra? Qual o tamanho do buraco que cavam? Quanto de chão a terra
consegue ceder sem desmoronar?

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Bom Jesus do Galho Isabella de Andrade

E ninguém me dizia.
Uma falta de jeito. Tudo baixinho. A morte é o silêncio.
Evitei olhar nos olhos pra não pedir muita explicação. Como
queriam, eu me fingi poupada. Perdida entre uma coleção de bonecas
coloridas que me ajudavam a fingir brincar. Eu gostava de pintar o cabelo
delas. Linhas finas e compridas preenchidas por uma cor individual para
cada personalidade. O corpinho sempre igual. Os peitos redondos e
pontudos que não lembravam em nada os peitos meus ou os de minha
mãe. Em algumas histórias eu deitava as bonecas juntas. E os bonecos
fariam outra coisa qualquer do lado de fora.
Minha mãe viajou para o enterro e eu dormi na vizinha, que fez
cachorro-quente com muito molho pra me agradar. Rolei na cama a
noite toda. Aquele calor seco de verão sem água que nunca deixa a gente
suar. A vó me assombrou sem saber no quarto. Menos por maldade, mais
pra reivindicar minha ausência. Será que um corpo físico também
conseguiria escapar depois de mergulhar num buraco tão fundo? Vai ver
que é melhor largar o peso e virar assombração.
 A vó tava lá e, no outro dia, não tava. Nesse choque meio
inexplicável que nos pega quando interrompe a vida. Como se todas
aquelas imagens – a vó acenando da cerca, a cor verde da sandália de
trança, o cabelo sempre atrapalhado pelo vento – nunca tivessem
existido. E como a gente distingue a memória real da lembrança
inventada? Ninguém me dizia nada. E eu seguia pelo canto inventando a
morte, acho que minha mãe não sabia me dizer. O vô nunca mais
colocou uma cerca nova, nem na sede, muito menos no pasto. A mãe

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Bom Jesus do Galho Isabella de Andrade

disse que duas vacas fugiram por uma abertura velha. Elas também vão
fugir aos pouquinhos, todas elas. Mas a vida dos lugares não se
interrompe assim tão abrupta, ela escapa devagar, pingando pelo canto
da mão.
A barriga cheia pela comida engolida em ansiedade e uma vontade
doida de vomitar. O braço arranhado pelas próprias unhas, que buscam
na pele um espaço para não se sentirem tão só. Os rabiscos fazem mapa,
se embrenhando entre rios de estrias de um corpo que, na ausência,
cresceu rápido demais.
O cabelo repuxado pela ansiedade da espera, a mãe, imaginada, um
retrato perto da janela atrás do sofá. Os dentes faltando um pedaço de
tanto arrastarem a própria fúria. A blusa amassada pelas mãos suadas,
firmes, inquietas. Um pedaço de boca sangrando pela mordida do dente
trincado, que nunca ninguém arruma porque é caro demais pra qualquer
um pagar.
Um chumaço de cabelo cortado em tesoura sem ponta.
Os pés inchados de apertarem o próprio corpo no carpete antigo,
rasgado. O pescoço dolorido de tentar sustentar algum eixo vazio,
olhando pra cá, procurando de lá. A mão cansada de tanto esfregar a
própria perna. O estômago inchado de morder os biscoitos duros, a
goiabada mole, o pão macio, a fruta azeda, a língua amarga. A garganta
ardendo refluxo na rapidez de devorar um lugar vazio. A testa vermelha e
marcada em unhas sem lixa. As costas curvadas de aguentar a culpa. A
boca intacta.

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Bom Jesus do Galho Isabella de Andrade

O Cristo da Paz fica em Bom Jesus do Galho que, aliás, é um nome


de cidade muito mais apropriado para receber um Cristo assim, de
braços abertos. Eu descobri que o Cristo Redentor original tem uma
porção de versões espalhadas por aí e que Jesus parece não ter sido tão
bom naquela cidade no interior de Minas Gerais, que tinha muita terra,
muro velho e casas pequenininhas pra rodear uma estátua tão
majestosa. Era como um enfeite de ouro em uma estante de papel.
Nos pés do Cristo mineiro, que é rodeado por dois anjos tocando
trombetas e têm os braços meio curvados, eu soube que nenhum outro
Cristo poderia ser tão grande, tão imponente e tão bonito. Eu demorei
meia hora pra subir as escadarias ao lado da minha mãe, que precisava
recuperar o fôlego a cada seis ou sete degraus. Ao redor dos anjos tudo
virava montanha, porque o Cristo da Paz precisa de muito silêncio e não
pode ser rodeado por uma cidade grande.
Essa foi a primeira viagem que a gente fez sem ter que visitar
nenhum parente, a primeira viagem que eu fazia em anos para um lugar
que não fosse a fazenda e foi realmente um programa muito adulto me
juntar à minha mãe para pagar uma promessa. Ela confia mais em mim
depois que eu fiz dez anos, porque com dois dígitos a gente aumenta
muito a ideia de responsabilidade. Você agora já é capaz de entender
seus próprios atos, Marília. Por isso, fazer piada com o rosto sem
expressão do Cristo era pecado.
Depois do enterro minha mãe segurou minha mão com força e disse
que a gente cumpriria juntas a promessa que a vó fez de conhecer o
Cristo Redentor. Acontece que promessa feita durante a vida deve ser

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Bom Jesus do Galho Isabella de Andrade

cumprida por alguém, mesmo que a pessoa que prometeu


originalmente esteja morta. Tem que cumprir, minha filha, ou sua avó
não consegue ter o espírito livre. Eu não queria de jeito nenhum prender
o espírito da vó e prometi que ajudaria minha mãe a arrumar a viagem
toda para ver o Cristo de pertinho.
É muita promessa feita, talvez Deus já nem se importe mais com
essas que vêm de um lugar tão pequeno.
Eu descobri que viajar para o Rio de Janeiro era muito caro, ainda
mais no tempo de sol quando todo mundo quer passar o dia tomando
banho de mar em uma praia famosa. O Cristo Redentor deveria abrir os
braços em um lugar mais baratinho, assim todo mundo podia cumprir
promessa, pedir bênção e seguir passagem.
Minha mãe foi reclamar dos preços com a vizinha, que contou sobre
a descoberta emocionante do Cristo da Paz, igualzinho ao Redentor. Ela
viu esse Cristo viajando de carro em Minas e sentiu uma paz percorrendo
o carro todo. E assim a gente ganhou um novo destino: Bom Jesus do
Galho. É igualzinho, Marília, sua vó não vai se importar e Deus vai
perdoar o desvio pela boa intenção.
Era sempre aquele caminho de terra vermelha, muita poeira e
árvore torta no interior de Goiás. A árvore é torta nesses cantos perdidos
pra lembrar que quem caminha por ali é sempre um pouco torto
também.
A gente ia de carro até a fazenda, muito pertinho, e precisava
preparar só um sanduíche de queijo pra comer na viagem, mas Bom
Jesus do Galho era longe e a gente levaria dezesseis horas até a ponta da

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Bom Jesus do Galho Isabella de Andrade

cidade. Qualquer um precisa de muito lanche para aguentar esse


caminho todo e eu disse pra minha mãe que a gente deveria
providenciar um isopor para comida urgente ou a gente logo morreria de
fome e de tédio.
Eu nunca tive que ficar tanto tempo seguido ao lado dela, mas não
mudou nada, e a gente dividiu muito silêncio enquanto escutava alguns
pedaços de música e ruído no rádio. Ela chorou um pouquinho quando
começou a tocar Gilberto Gil, com uma letra de esperar na janela que
minha vó gostava muito. Eu nunca choro na frente de ninguém.
As estradas parecem todas muito iguais de dentro do carro e você
só consegue notar a diferença entre elas pela cor das árvores e pelo
tamanho das montanhas. Tem sempre um posto com homens de boné e
calça jeans no meio do caminho, gente vendendo queijo no quebra-
molas e muito mato. Andar de carro em Minas é bem parecido com andar
de carro em Goiás.
As cidades pequenas também se parecem muito se você não prestar
atenção. Uma igreja central, uma praça, muitas casas, lojas pequenas,
pessoas velhas sentadas em cadeiras encostadas nos muros, crianças
sem sapatos, um carro de som, um campinho de grama. Por isso a gente
precisa manter os olhos bem apurados, ou pensa que o tempo passa
igual em todo lugar.
O Cristo ficava na outra ponta da cidade, o que não significava
muita coisa, já que Bom Jesus do Galho parece ter o tamanho do meu
bairro. No caminho, um carro vendendo pamonha, uma loja de coisas
usadas para decorar a casa, uma escola infantil com duas freiras na porta

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Bom Jesus do Galho Isabella de Andrade

e crianças vestindo um uniforme todo azul. Uma praça com pés de


manga e bancos de cimento, um velho de chapéu preto e botas marrons,
dois homens jovens passando pela rua montados em cavalos, uma
senhora vendendo bolo quentinho. Compramos dois pedaços e minha
mãe me deixou escolher o sabor com calda de chocolate derretido, que
sujou nossa boca, as mãos e um pedaço do volante. Minha mãe não
brigou nada.
Era a melhor viagem de todas. 
Pra chegar até o monumento, o carro foi subindo uma estrada cheia
de curva e de terra, toda rodeada de montanhas. Ficamos na cidade
durante o fim de semana. Lá no topo, o Cristo abria os braços em cima de
uma construção que parecia mais uma igreja sem telhado e deixava a
gente se sentir bem pequenininha. Então eu me senti muito frágil e
delicada, uma garotinha, como se, por um instante, eu ocupasse o
mesmo corpo pequeno e suave da Gabriela. Era assim a sensação de paz
que a vizinha tinha sentido.

Isabela de Andrade cco


Jornalista e escritora, graduada em jornalismo e arte cênicas
pela UnB. Publicou, pela Editora Patuá, os livros: Veracidade
(2015) e Pelos olhos de ver o Mar (2019). É coordenadora
editorial da antologia Parapeitos, lançada em 2020 pelo Selo
do Burro. Como autora, tem textos publicados em diferentes
revistas e antologias, como: Máscaras, Patuscada 10 anos e
Casa do Desejo - Literaturas que Desejamos e, em breve,
Antologia de Contos Off Flip 2022. Participou do Curso de
Livre Preparação do Escritor (CLIPE), da Casa das Rosas, em
2020. É idealizadora do projeto @elasnaescrita.

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excesso de convivência Cristiane Belize Bonezzi

Foto: Forrest Cavale em Unsplash

excesso de convivência
Tomávamos café do lado de fora da van. Cada um com seu silêncio.
Ele observava os carros depois da esquina. Eu acariciava o cachorro,
sentada no degrau. A rua estava deserta, exceto por uma senhora parada
à beira da calçada, em frente a uma casa antiga, como que vigiando a
entrada à espera de alguém. O latido do cachorro rompeu os silêncios e
despertou a mulher:
— O dia está lindo para um piquenique, não é? Fazia dias que não
podia fazer minha caminhada, com tanta chuva. Vocês vivem mesmo aí
dentro? Devem ser muito unidos. Como eu e meu falecido marido.
Adorávamos passear juntos, éramos inseparáveis.
Eu observava meus próprios dedos roçando a asa da xícara, então
não posso afirmar qual foi a reação de Lúcio ao comentário dela, mas

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excesso de convivência Cristiane Belize Bonezzi

poderia apostar que ele baixou a cabeça e chutou um pedregulho da


calçada antes de responder:
— Estamos viajando há um mês. Está sendo ótimo. A senhora tem
razão, é preciso muita cumplicidade mesmo para conviver tanto tempo
num espaço tão restrito.
Contou que morava sozinha desde a morte do marido, quinze anos
antes. Caminhava todos os dias, exceto quando chovia forte. Fazia
sempre o mesmo trajeto: saía de casa, caminhava dois quarteirões,
virava à esquerda na rua principal e seguia até o fim da rua, passava em
frente à antiga casa dos pais do marido. Era onde estávamos. 
— Não posso ir morar com meus filhos, porque tenho que cuidar da
minha irmã. Eu tenho 95, ela é a mais velha, não tem mais idade para se
virar sozinha.
Marian não parecia triste, era bem falante, sorria. Era na respiração,
na postura dos ombros, que a melancolia se mostrava. Disse que
caminhava a passos rápidos para manter a saúde, não gostava de se
distrair no caminho falando com as pessoas, mas aquele dia era uma
exceção, não era sempre que forasteiros amanheciam no
estacionamento de uma cidadezinha pequena, bem no seu trajeto diário.
Hesitava em ir embora, perguntou quanto tempo ficaríamos na cidade e
nos convidou para visitar sua casa:
— É fácil, segue pela rua abaixo até uma casa rosa. Era para ser
vermelha, não gosto de rosa, mas quando chegamos, o pintor já havia
pintado, aí deixamos assim. — Só quando prometemos passar lá ela se
conformou em seguir o caminho de volta.

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excesso de convivência Cristiane Belize Bonezzi

Depois do café, dirigimos em busca da casa rosa. Havia umas três


casas antigas que se encaixavam na descrição.
— Sabia que devíamos ter pegado o endereço completo, nunca
vamos encontrar essa casa!
— Calma, se ela explicou assim e chegou até lá caminhando, não
pode ser tão difícil. Por que você tem sempre que ser tão impaciente?
— Impaciente, eu?
— Olha, ela está ali.
A porta se abriu. Uma casa logo em frente, à esquerda. De fato, era
rosa, não havia dúvida. Marian nos mostrou a casa com a excitação de
uma criança que mostra os brinquedos aos tios distantes que não vê há
um ano. A casa impecável, construída pelo próprio marido, reproduzia
um cenário dos anos 40. O toca-discos na sala ainda tinha uma pilha com
a coleção de LPs do casal. Dedilhou algumas capas, retirou uma bolacha
de vinil de dentro de um papelão, depositou no tocador e posicionou a
agulha na segunda faixa. Era sua música favorita, explicou, Again, de
Doris Day. Fechou os olhos enquanto contava dos tempos em que
dançavam nos bailes da cidade, pendendo o tronco para a direita e
esquerda, envolvendo o próprio braço no peito numa dança solitária.
— Dance com ela. — Cutuquei, mas ele só franziu o cenho, fazendo
que não.
Ela nos fez conhecer toda a casa. Passamos pela cozinha com
móveis em fórmica amarela desbotada. Os móveis, assim como a casa,
tinham sido construídos por ele. O balcão preenchido com potes e latas
de cereais e condimentos não deixava espaço vazio para novas

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excesso de convivência Cristiane Belize Bonezzi

lembranças. Uma cortina branca deixava transparecer um jardim do lado


de fora. Ficava ali quando sentia falta de ar dentro de casa, confidenciou
enquanto abria a porta dos fundos. Arbustos, folhagens, árvores
frutíferas, flores e gnomos. O jardim era a parte mais viva da casa. 
— Costumo sentar aqui — apontou para uma cadeira de madeira
encostada na parede. — Gosto de observar o movimento das plantas e
ouvir os pássaros cantarem.
— Parece ser bem tranquilo.
— Muito. Às vezes vejo um vizinho, mas é só me encolher um pouco
e ele não me vê, não sinto vontade de falar com ninguém. — Só com
estranhos de passagem pela cidade, pensei.
Marian insistiu para descermos até o porão. Lúcio e eu nos
entreolhamos, desconcertados. Era como entrar no segredo de um
estranho. Ela mantinha a pequena marcenaria do falecido marido, no
subsolo, como se ele tivesse interrompido o trabalho para tomar um
café. O serrote deitado sobre a bancada reluzia. Ela tirava o pó das
ferramentas como dos bibelôs da sala de estar. O formão permanecia
espetado em um pedaço de madeira, um projeto inacabado que ela não
ousava desmanchar. Como quem sai de um transe, de repente começou
a pegar os objetos produzidos pelo marido há mais de vinte anos e
colocar nas nossas mãos.
— Levem, por favor. Tem coisas demais aqui. Meus filhos querem
vender a casa, o mais velho quer que eu vá viver no asilo. Minha filha
quer que eu vá morar com ela. Quando venderem, não vou poder levar
tudo isso comigo. Escolham o que quiserem e levem com vocês.

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excesso de convivência Cristiane Belize Bonezzi

Era um ato desesperado, um pedido de socorro para se desprender


do passado. Aceitamos alguns objetos pequenos, apertando caixinhas e
cumbucas umas contra as outras e contra o peito, sem jeito. Senti
ternura e inveja por ela. 
Marian nos acompanhou até a porta. Acenamos na saída. Ela nos
acompanhou com o olhar até nos perdermos de vista. Depois da curva,
Lúcio virou-se para mim, estendeu o braço e puxou uma folha seca por
trás da minha orelha, acariciando muito suavemente minha nuca.
— Deve ter se prendido nos seus cabelos quando passamos pelo
jardim da Marian.
Seguimos viagem pelo norte.

Cristiane Belize Bonezzi f c


Escritora e professora de idiomas. Participou de coletâneas e
antologias e publica seus textos nas redes sociais. Está
concluindo seu primeiro livro de contos.

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na roda do mundo Pedro Rosario

Foto: Johannes Plenio em Unsplash

na roda do mundo

O Escort 1997 vermelho estava na estrada há dez minutos, mas


Sebastião sentia a eternidade passando de motocicleta. "Provavelmente
quando descer do carro já serei adulto". Ainda era criança, sete anos,
sentado no banco traseiro, bem no meio, com o braço flácido e cheio de
pintinhas de sua avó encostando de um lado e, do outro, as ancas
ossudas do avô espetando sua perna.
O carro ia em silêncio, os pais na frente, olhavam fixamente para o
caminho. Os avôs dormiam num leve roncar senil. Com as mãos
espalmadas unidas encaixadas entre as pernas, bracinhos estendidos,
sem movimentos de pescoço, apenas os olhos se moviam vivamente
engolindo o silêncio. O encosto do banco preto do papai com um rasgo, o
teto de tecido cinza com detalhes em vinho, a calça cinza desbotada com

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na roda do mundo Pedro Rosario

cinto preto do vô, a perna inchada, veinhas roxas à mostra da vó,


cotovelo branquinho da mamãe.
"Quantos dedos será que cabem dentro do rasgo no banco? Acho
que quatro bem apertados. Consigo contar sete veias grandes e cinco
pequenas na perna direita. Será que um Anquilossauro conseguiria
correr mais rápido que esse carro?" Cinto preto, cotovelo branquinho.
Com a cabeça inclinada, os olhos semicerrados, era possível ver as
espirais em vinho se contorcendo, girando como numa breve viagem
lisérgica. Cavalos-marinhos surfando por halos de dna.
O sol parecia ter diminuído, talvez nuvens se aproximassem, talvez
já fosse noite. "Quantos dias já devem ter se passado?" Sebastião soltou
um suspiro surdo que vibrou no teto e caiu, se misturando ao ronco do
motor. Tamborilou os dedos de uma mão na outra, esperava por um
movimento do cotovelo da mãe. Nada. A luz do sol voltou a brilhar e com
ela os cavalos-mar(v)inhos dos olhos semicerrados. Uma dança ritual de
ninar, o cair das pálpebras, um sonho em sépia paralisado. Dentro do
automóvel, cotovelos, pernas e cintos se misturavam numa pintura
cubista.
“Merda!”
A quebra do onírico num rompante de som e fúria. Os olhos se
arregalaram. O pai acabara de atropelar um sapo que atravessava a
pista. O cotovelo da mãe se moveu junto com a mão que recostou na
coxa invisível do pai. A anca ossuda deu um sacolejo e Sebastião
aproveitou para conquistar o novo território. O rasgo no banco, cotovelo
e mãos branquinhas, oito veias maiores, doze veias pequenas, cinto

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na roda do mundo Pedro Rosario

preto rachado, rasgo no banco, será que um Anquilossauro atropelaria


uma tropa de cavalos-marinhos terrestres? "Acho que vi uma estrela."
Sentiu a cabeça pesar, abaixou-a e cerrou os olhos. Tentou beber o
tempo. Lambeu os lábios, levantou o olhar. Voltou a olhar a calça do avô,
parecia mais desbotada de um cinza funesto, o cinto preto mais
apertado. As veias da perna da avó murcharam, as pintas, em
congregação, fizeram uma imensa mancha fuligem. No rasgo do banco,
já cabia um corpo inteiro. Não conseguia mais encontrar o cotovelo da
mãe. Via os pelos que brotavam em seus braços, um peso em seu
trapézio. Quando o carro parou, curvou-se para descer. Já era um
homem.

Pedro Rosário c
Formado em Letras e Teatro, trabalha como professor de
Literatura para adolescentes. Capixaba, mas já nem se
lembra mais da cor da água do mar. Hoje vive numa chácara
em Itapira, no interior paulista, com seus gatos, esposa,
enteado e filha. Escreve para ver se se perde. Acabou se
encontrando.

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os olhos do sertão mineiro Leandro Jabour Pazeli

Foto: Leo Foureaux em Unsplash

os olhos do sertão mineiro


No norte de Minas, em Capivari, distrito de Milho Verde, mora Dona
Anita Seus olhos são azuis e misteriosos e têm sua origem em algum
ponto na história do país desconhecido por ela. Ela sabe que seus pais
moravam nessa serra nos confins do mundo. Quando eles morreram ela
veio parar naquela casinha de taipa, com um fogão de lenha e dois
outros pequenos cômodos. Ela me chama para um café. Eu recusaria um
café normalmente, mas não no interior de Minas. Não da Dona Anita. 
Dentre os muitos acasos da vida de Dona Anita, ela teve a sorte de
morar na trilha de uma das cachoeiras mais bonitas de Minas.. Eu
pergunto se ela a visita com frequência. Uma pergunta inocente, de
gente da cidade. Ela me diz que visitava quando menina, agora não anda
mais tanto. Há um inchaço na perna de Dona Anita, roxo como a noite de

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os olhos do sertão mineiro Leandro Jabour Pazeli

Milho Verde. Picada de cobra, ela me diz, e, antes de entrarmos na casa,


ela me mostra o ponto no mato onde ela jura que a cobra está a espreitá-
la vilmente para sempre. Eu automaticamente descarto a história,
porque as cobras não têm rancores nem obsessões, mas seus olhos azuis
põe verdade na rivalidade entre a mulher e a cobra. Na cidade, há cobras
que mordem e vão embora, mas nós cismamos que elas nos estão
observando quando provavelmente não estão. Eu acredito na Dona
Anita. E então eu retorno da imaginação à ciência e pergunto a ela o que
ela fez quando foi mordida. A resposta é um gesto de quem arranca uma
cobra da perna e joga longe, e depois um simples "benzi". Eu admiro a
coragem e a fé. 
Nós vamos para dentro e ela põe sobre mim todo o azul dos seus
olhos. Ela me diz que sou bonito, e eu nunca recebi elogio tão sincero. Eu
digo que ela é bonita e nunca elogiei tão sinceramente. Ela faz café e me
conta casos de pessoas que matam as outras no sertão pelos motivos
mais vulgares. Eu penso que o sertão é um lugar violento, e Guimarães
Rosa sussurra na minha cabeça: "o sertão é o mundo". Dona Anita me
aconselha a arranjar uma namorada bem nova, e a nunca matar ela se
tivermos alguma desavença. Separar é uma solução melhor, ela
completa. Eu, que nunca me senti como um assassino em potencial, me
sinto ainda menos depois das suas palavras. "O mundo tá estranho. A
gente mata porco e galinha, não gente. Agora, o homem virou galinha." E
a metáfora me pega desprevenido. Como ela fala bem, como ela tem
sabedoria. Eu penso nos homens sábios da cidade e nas suas
pretensões. É tão distante no sertão, tão diluído nesses olhos azuis. Eu

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os olhos do sertão mineiro Leandro Jabour Pazeli

ouso perguntar se Dona Anita sabe que ela já foi capa de uma das
revistas mais importantes do mundo. Mas para ela, a National
Geographic não é tão importante, nem a sua própria imagem. Talvez por
vê-lo todo dia, ela não reconheça que seu rosto é o sertão. E o sertão é o
mundo. E o café é doce. Na cidade, açúcar faz mal. No sertão, a cidade
faz mal. A verdade me atinge como uma cachoeira. É forte, pesada,
refrescante e deliciosa. Tudo tem sido tão falso, e eu tenho estado tão
triste. Por que tristeza se a lenha queima no fogão, as paredes são tão
finas, o café é doce e Dona Anita vive? O que são meus sofrimentos? Me
dê a cura pra essa ferida, Dona Anita, ou apenas a benza. Mostre-me
como preencher esse vazio interminável. A plenitude está nessas
paredes de barro, a cura nesse café doce, e há uma resposta nos sulcos
da sua pele e uma verdade nos seus olhos que trazem lágrimas aos
meus. Esse vazio é a cidade. Porque o mundo é o sertão e apenas ele. Há
verdade no mundo e Dona Anita sabe. Ela me pede que eu volte um dia.
Fique, Dona Anita, eu estou voltando.

Leandro Jabour Pazeli fc


Mineiro e escritor são as duas coisas que mais se orgulha de
ser.

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refugiados Gabriela Peloso

Foto: Christopher Eden em Unsplash

refugiados

No meu país existe guerra. Guerra que não se vê na TV, guerra que
não tem nome próprio, guerra de submundo. Aqui tem fome, miséria,
desabrigo e a incerteza de sobreviver mais um mês, uma semana, ou até
amanhã. No meu país filhos perderam pais, mães perderam filhos,
maridos perderam esposas e nós todos perdemos liberdade. Aqui há
homens maus, que espalham terror, escravizam nossas filhas,
sequestram nossos filhos, cortam-lhes as cabeças e exibem-nas como
troféus. A troco de poder. A troco de liderança. Na minha terra não há
mais nada do que uma vez houve; não há mais praças e parquinhos, não
há mais prédios nem empregos. O chão está manchado de sangue, o céu
encoberto por fumaça, entulhos cobrem o caminho. Não há mais sonhos
para perseguir, só do que fugir. Explosão, caos, silêncio e luto. Nas ruas,

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refugiados Gabriela Peloso

ecoam choros de crianças perdidas e mães desesperadas. Todos


cobertos de poeira, sangue, pólvora. Não há mais nada para nós aqui
senão a dor. Devemos partir.
 
Nesse barco não tem espaço. Nesse bote não há segurança, não há
coletes, não há garantia de que chegaremos ao outro lado. Mas ficar na
terra ou se afogar, que diferença faz? Precisamos tentar. Aqui há pessoas
demais, as ondas são altas, a noite é escura, o vento é frio. Alguns
ficaram para trás. Mães que mandaram seus filhos. Homens que
mandaram suas esposas, suas mães, suas irmãs. Aqui não há conversa,
só silêncio. Pessoas encolhidas, com olhos arregalados de medo,
seguram rosários em busca de proteção. Não há luz, não há certeza, não
há comida. Que Dios nos proteja, que Allah nos guarde.
 
Nessa fronteira não há passagem. Nessa fronteira não há piedade.
Aqui só existe um muro cada vez mais alto. Cada vez maior. Alguns foram
arrastados pelas ondas. Alguns foram presos e tiveram seus filhos
detidos em gaiolas. Aqui há crianças sem pais, sem ter para onde ir, onde
dormir ou o que comer. Sem saber o que seus pais fizeram de errado.
Aqui há cartazes de ódio, adesivos que dizem “Vão pra casa!”. Não temos
casa para voltar. Nessa fronteira não há clemência, não há empatia, não
há amor. Prendem-nos como animais irracionais, julgam-nos vadios
querendo roubar-lhes o sustento, o espaço, o emprego. Só queremos
dignidade. Queremos servir em troca de um pão, de um trocado, de um

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refugiados Gabriela Peloso

teto. Não queremos tomar o que é seu, estamos satisfeitos com o que
sobrar. 
Não nos querem na nossa terra, não nos querem noutras terras. Não
temos lugar nesse mundo. Por que renega-nos um pedaço de chão,
Senhor?
S’il vous plait, Monsier Président, prego, Signor Presidente, please,
Mister President, deixe-nos entrar!

Gabriela Peloso c
Escritora de Taubaté, São Paulo, formada em Comunicação
Social. Nascida no ano de 95, aficionada por cultura pop,
cinema, televisão e livros. Trabalha com em escrita criativa,
artigos de opinião, crônicas e análises cinematográficas.

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todas as cartas de amor Marcelo Mendes

Foto: Ali Bakhtiari em Unsplash

todas as cartas de amor


O amor é uma carta, mais ou menos longa, escrita em papel velino, 
corte dourado, muito cheiroso e catita [...] 
- Machado de Assis, A mão e a luva

Querida Antía,
Foi por amor. Tudo. Foi tudo por amor. Você me pergunta o que eu
entendo por esse sentimento e eu respondo: tudo o que eu fiz, tudo o
que eu sou. É aprender a baixar a tampa do vaso. É ser decidido,
solidário, saber ouvir. É ser domesticado, é ser castrado. É morder sem as
presas. É morrer por você ou o impulso de me colocar entre você e o tiro.
É o espaço que se reduz entre mim e a minha máscara. Eu quase virei ela,
Antía, a máscara. E você vem me dizer que isso não é amor? Se não te
transforma, se não te faz renascer, aí sim, não é amor. Se não for vida ou

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todas as cartas de amor Marcelo Mendes

morte, aí sim, melhor nem sofrer. É sorrir, sem estar necessariamente


alegre. É sofrer no final, sem estar de todo triste. 
Eu sei o que é o amor, Antía. Eu sei. Se eu escrevo agora é,
também, por amor. Mas minha carta não tem poesia. Tem dor. Dói, Antía.
Dói. Não sei se dói mais o que fica ou o que não está. Mas eu sei que dói.
Dói lembrar que, da última vez que nos falamos, você me disse que eu
não sabia o que era amor. Eu dizia: te amo, te amo, sabendo cada uma
dessas palavras. Conhecendo o sentido íntimo de cada palavra. Sentindo
cada palavra. Na hora, me calei, engoli meu choro, minha dor e, sim,
Antía, todo o meu amor, que transbordava ali, por você. Depois, eu
pensei em mil maneiras de responder, repassando a cena na cabeça, mil
vezes. Mil formas de reagir me ocorreram, mas não na hora. Depois,
depois. Agora, quando escrevo para você. 
A verdade é que agora não sei se você merece minha resposta. 
Foram mais de dez anos, Antía. Mais de dez anos que acabaram
num dia. Agora uma só resposta não basta. As mil que pensei não
bastam. Por que é que teve que ser assim? Eu não vi, eu não vi o que ia
acontecer. Você deu a entender que sabíamos, que estávamos nos
enganando por muito tempo já e, bem, foi o que você disse. Mas não era
verdade, não para mim. Eu fui pego de surpresa, como se estivéssemos
vivendo outras histórias, uma só minha, uma só sua. De repente, eu era o
vilão da sua versão. Você acorda do transe e me vê pelo que sou. Melhor,
não pelo que sou, porque eu sei bem quem sou, mas pelo que você
queria que eu fosse. O monstro. Você me vê de uma maneira que te
justifica, que justifica a sua incoerência, o seu impulso. Impulso, sim,

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todas as cartas de amor Marcelo Mendes

Antía, porque você se jogou em um abismo na primeira hesitação e me


deixou aqui, sem uma história minha para justificar essa posição na qual
você me colocou, à beira do abismo. 
Foi aí que eu perdi a voz, aquela que eu tinha encontrado no vazio,
na sua ausência, Antía. Eu abro a boca e nada me vem. Eu sou um cantor
cujas serenatas mudas falam de amor. Ninguém escuta. Você não
consegue escutar. Por isso, o amor, o que eu entendo por amor e
aparentemente não sei traduzir. Eu perdi a voz. Mas escuta: agora eu
escrevo. Quero o silêncio dessas palavras deitadas aqui nessas páginas.
O silêncio cruel do meu discurso deliberado. Sabe que não tenho mais
lágrimas? Foi esse o tempo que levou para elas secarem, Antía, as
lágrimas. O tempo exato entre o golpe e a queda. Estou caído, Antía, mas
ainda tenho meus punhos e luto. Escrevo, te entrego o silêncio dessas
letras esmurradas no teclado e do tempo todo que tive para secar as
lágrimas e para pensar. Para pensar sobre nós dois. Sobre mim, Antía.
Sobre o que eu quero, a parte do que queremos. Ou queríamos.  
A história da nossa vida juntos, essa história você sabe bem. Talvez
não conheça a minha versão, aquela que agora tem tudo envenenado
pelo que você fez, pelo que você me fez passar. Tudo começa para mim
com o seu pedido: venha, mas não venha por mim. A verdade, Antía? Eu
fui por você. Por quem mais? Não havia outra pessoa, não havia outro
motivo, ainda que eu tenha inventado todo tipo de justificativa, todo
tipo de desculpa para tirar o peso dos seus ombros. Mas o peso não
deixou de existir. Foi nos meus ombros que ele ficou, principalmente
quando você me disse com aquela cara lavada o quanto havia feito por

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todas as cartas de amor Marcelo Mendes

mim. Isso já no final. Mas disse. E eu? Primeiro, e isso é muito


importante, eu fui por você. Mas você só fez os cálculos daquilo que você
imagina que sacrificou por mim. Se eu contar o que você de fato fez por
mim, sobrariam dedos. O contrário já não sei, eu por você. Perdi os
dedos, Antía. A começar pelo fato de que fui. Sim, fui. Por você. Larguei
meu emprego, comprei minhas passagens e fui. Com uma mão na frente
e outra atrás, sem dedos para contar, mas fui. E fui com tudo que tinha.
Não estou falando de coisas materiais, porque essas não te
interessavam. Fui com amor – o que eu sei que era amor –, com vontade.
No começo, você me acolheu, é verdade. Mas não demorou muito para
eu estar só. Não havia emprego, não havia um lugar. Você tinha seu
conforto, sua vida, sua família. Eu tinha uma busca que era minha,
porque você lavou as mãos quando disse como quem não quer nada,
venha, mas não venha por mim. Quando nos conhecemos, você queria
tudo, eu achei, estava disposta aos sacrifícios – que, convenhamos,
acabaram sendo meus sacrifícios. Quando eu cheguei, você já era outra e
eu me convenci de que era você mesma. Mas era uma forma de você que
já não tinha os ares de férias, de transitoriedade, em que nos
conhecemos e amamos e prometemos.

Mas eu fui, Antía. Desbravar o seu mundo. Eu me sentia o


colonizador, mas logo me percebi o colonizado. Meu coração, minha
alma, meu corpo, tudo se tornou seu território, seu reino. É por isso que
hoje estou aqui, me descobrindo terra abandonada. Eu sei que não
preciso dizer, você detesta que eu repita minhas histórias, mas eu vou

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todas as cartas de amor Marcelo Mendes

dizer assim mesmo, porque hoje sou um território livre, apesar de à beira
do abismo. Eu fui, cheguei, me perdi e fui forçado a me encontrar, a
encontrar meu próprio espaço. Você, como sempre, não quis se
comprometer. Tudo era minha responsabilidade, o que é justo, porque
deveríamos sempre ser indivíduos, apesar de um casal. Mas o problema
é que você também se tornou minha responsabilidade, principalmente
depois que você me disse que eu tinha que me encontrar para te dar, não
lembro a expressão que você usou, mas o que vem a mente é a palavra
"estabilidade". Eu tinha que me virar, sim, mas também tinha que me
virar por você. Eu acreditei que era isso que queria fazer. Afinal, isso era
amor. Perder-me, me encontrar, me transformar, ser o outro de mim.
Você quer detalhes, Antía? Ou você já conhece essa história? A que você
conhece é a sua versão ou a minha versão sob a sua égide. Ou sob sua
sombra. Detalhes:
2005, uma passagem de Brasília para Barcelona. Uma recepção
fria, que relevei (jetlag, distância, não sei, mas justifiquei de alguma
maneira). Uma conversa difícil, mais para você do que para mim: diga-
me que você veio porque quis, não por mim – você dizia. Eu prometi que
sim. Um hostel, recomendado por você. Um quarto sem janelas. Por que
não sua casa? Eu entendi: era por mim, para o meu bem. Por nós,
também. Fortalecidos individualmente, seríamos um casal melhor. Mas
foi aí que tudo desandou, porque você não estava disposta a fazer sua
parte, Antía. Você queria que eu construísse uma vida para mim apenas
para te acolher. Mas eu vejo a situação assim hoje. Antes, eu entendia
tudo isso como minha missão, meu papel. Era todo meu horizonte, criar

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todas as cartas de amor Marcelo Mendes

uma vida para você, do nada, sem a ajuda de ninguém. Seu orgulho,
você dizia, e eu era também responsável pelo seu orgulho. Tínhamos que
provar para sua família de milionários que não precisávamos deles, não
precisávamos de ninguém. Mas o ônus era todo meu. Se o projeto
falhasse, seu projeto, como falhou, você seria reintegrada à sua fortuna.
A filha pródiga. Eu, Antía, eu não teria, como não tive, onde cair morto.
Antes tivesse morrido, Antía. Mas eu sobrevivi. Estou aqui. Tenho
sobrevivido. Você, como era de se esperar, voltou para sua família,
depois de sua pequena aventura com o Latino Americano, com a pessoa
marrom e, sim, pobre. Eu lembro bem das conversas em que seus pais te
diziam para ter cuidado, e também da sua revolta liberal contra seus
pais, contra a vidinha limitada de sua família. O seu papinho a favor das
minorias, dos imigrantes, dos negros, de tudo, tudo que não era você. É
fácil, Antía. É fácil se não é você. É só discurso. O discurso certo. Viver
isso como uma turista deve ser lindo, eu imagino. Uma aventura. Um
aprendizado. Além de tudo, você ainda adquiriu a autoridade moral para
falar do assunto. Afinal, você dividia sua vida com um imigrante, é
casada, ou melhor, se juntou a um imigrante, brasileiro, “de cor”, como
vocês adoravam dizer naquela época. Todos os problemas com dinheiro,
com sua família, com tudo isso, enfim, construíram o seu caráter, Antía.
Mas foi às minhas custas. Era a minha vida.    
Eu precisava ter falado com você, ter falado sobre mim. O problema
é que eu sou uma folha em branco, pronto para ser preenchido por
ânsias, carências, desejos, sonhos alheios. Eu me deixo preencher.
Deixava-me. Eu deixei você me inundar com seu mundo, me deixei

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todas as cartas de amor Marcelo Mendes

transformar por seu desejo. Eu precisava ter dito quem sou, como sou.
Um minuto apenas e tudo seria diferente, eu acho. Eu sou assim, é o que
eu deveria ter falado. Mas não falei, até porque não sabia bem como eu
era, o que eu era. Talvez não fosse, naquela época. É verdade, só depois
de tudo é que deveríamos ter feito, o que somos ou éramos, quando é
tarde demais. Perspectiva, Antía. No meio da confusão, apenas me
deixei. Era confortável para mim também. Não dava medo ou trabalho.
Mas havia a sombra, sempre ela. A sombra. Ela crescia na medida em eu
dizia sim. Dizia sim e fazia avultar a sombra do que eu deveria ter sido.

Marcelo Mendes t o
Doutor em Literatura Comparada pela Universidade de
Auckland (NZ), com trabalho sobre Machado de Assis e Jorge
Luis Borges. Mora em Brasília, onde é pesquisador
independente, revisor e editor de texto e ainda isolado
social. Publicou o livro “Poesia Brasileira e Outras Histórias”
(Design, 2010), além de várias artigos em revistas
acadêmicas de todo mundo. Foi finalista do prêmio Luiz
Vilela de Literatura (MG) em 2004, além de ter sido
selecionado para o prêmio Elisabete Anderle de Literatura e
Cultura (SC) em 2009.

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viagem ao labirinto do Minotauro  Paulo Luís Ferreira

Foto: Lucas Marcomini em Unsplash

viagem ao labirinto do
Minotauro 
 Eram 9h17 de uma quinta-feira bastante nublada; temperatura, 18º
graus; qualidade do ar, regular. Estava meio friozinho, mas bom; o ar era
úmido, assim, mais ou menos pegajoso. Ele acabara de descer no
terminal rodoviário, Tietê de São Paulo. Numa mão, a fatídica mala,
daquelas de papelão duro, com fechadura, na outra, um papel com um
endereço escrito, era o endereço da Dona Lilica. Nas costas, a mochila
com seus teréns, atada pelos ombros. No coração, anseios mil, no chão
viu uma nota de cem reais, mas preferiu não se vexar, pois, como lhe
disseram lá no Nordeste, São Paulo é assim mesmo, dinheiro corre pelo
meio-fio das ruas. O conveniente seria acomodar-se primeiro, depois iria
à luta. 

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viagem ao labirinto do Minotauro  Paulo Luís Ferreira

Informaram-no que tomar o metrô até a Praça da Sé seria o


caminho mais fácil para se chegar ao Cambuci. No metrô, foi lendo as
estações que estavam escritas logo acima da porta. Lendo não,
soletrando, porque não havia aprendido a ler direito ainda. “Luz, Li-ber-
da-de... Pa-ra-í-so... Que bonitos nomes!” Era tudo o que desejava pra
ele: luz, liberdade, viver no paraíso, paz e muito trabalho. Regado a
dinheiro, claro!
E foi assim, matutando, que desceu do metrô, na Sé. Lugar de tanta
gente que só Deus pra contar. Deitou as bugigangas no chão e, sem
saber, recostou-se no marco zero de São Paulo. Um poste pequeno que,
pra ele, mais parecia um pirulito de pedra plantado no meio da praça.
Virou a cabeça para as torres da Catedral, fez o sinal da cruz; agradeceu a
Deus e a Nossa Senhora. Levantou-se meio encabulado porque as
pessoas já estavam olhando pra ele como que achando graça da sua falta
de jeito. Então falou para ele mesmo: “Riam, podem rir à vontade
magote de sem jeito, porque eu já ri muito”. Recolheu as tralhas. Deu
meia-volta no corpo e caminhou, ou melhor, trombou nas pessoas. 
Assistiu perplexo o lufa-lufa de gentes, os vai-e-vem do povo e a
mistifória de religiões e profissões. Eram evangélicos salvando almas,
entoando mensagens bíblicas, consagrando espírito; ciganos
adivinhando futuros, vendendo sorte; engraxates lustrando sapatos,
repentistas cantando versos, propagandistas vendendo remédios,
bilheteiros lotéricos gritando números, acrobatas, malabaristas; uns
comendo vidro, outros engolindo fogo, tocando sanfona, cantando forró,
contorcionistas, palhaços, equilibristas. Todos se equilibrando numa

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viagem ao labirinto do Minotauro  Paulo Luís Ferreira

corda bamba: na arte, no trabalho, na vida. Uns comprando o ter, outros


tentando ser. 
Na Praça da Liberdade, viu a estátua de Buda olhando para o
próprio umbigo, oferecendo paz, viajando em poeira cósmica. Estava
zonzo de tanta coisa que via; então resolveu sair dali. E se foi por entre os
camelôs a ruandar. Na Rua Direita ouviu gritos de esquerda, "Fecha!
Fecha tudo, estamos em greve. Pega ladrão. Pega ladrão! Abaixo a
corrupção!"
 Desceu para barafúndica Rua 25 de Março, depois seguiu para o
Bom Retiro. Não viu nenhum muro das lamentações, muito menos
mesquita de Alá. Porém, o cafarnaum de línguas o impressionara
demasiado. Uma verdadeira Torre de Babel. Uns falavam em árabe,
outros em armênio, alguns em turco, outros em hebraico, aramaico, até
em grego arcaico – isto sem falar na beleza de museu da nossa querida
Língua Portuguesa que o deixou cheio de assombro e estupefato,
derramando-se em lágrimas. Era demais mesmo, tanta beleza!
 "Por obséquio, quero chegar ao Cambuci. Olhe aqui, neste
endereço... É na pensão da Dona Lilica!", indagou ele a um passante,
esticando o braço, mostrando-lhe o bilhete já todo amarrotado.
Mandaram-no que tomasse o trem na Barra Funda e que descesse na
Mooca que estaria próximo. Passando pelo Brás não resistiu e, sem muita
delonga, apeou-se no Largo da Concórdia — outro lugar também cheio
de gente. Depois de esbarrar em fulanos e tropeçar em sicranos, não
resistiu à feira de mangalhos e aos rega-bofes. Comeu buchada,
sarapatel, caldo de mocotó, um punhado de farinha, uns bagos de jaca,

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viagem ao labirinto do Minotauro  Paulo Luís Ferreira

uma rodela de abacaxi, uma coalhada com pó de chocolate, um pedaço


de rapadura batida. Dançou um xaxado. Abundando-se à sombra de um
poste, refestelou-se. Lembrou da frondosa ingazeira à beira das águas do
Rio Capibaribe do seu querido Recife. Que boas reminiscências de sua
terra natal. E cantarolou:
“O que é que tu foi fazer no mato Maria Chiquinha?
Eu fui colher amora Genaro meu bem”

“Ê Chiquinha! Eu queria tanto que tu estivesses aqui pra gente ficar


juntos. Oh, meu Deus! Quanta lembrança boa.” Ficou de pé, aprumou o
tronco, porque o tempo não estava para molenga, não. 
"Eu quero chegar na pensão da Dona Lilica, como eu faço?",
perguntou de novo para um moço. "Tome o ônibus ali, na Avenida
Rangel Pestana, desça na Praça do Correio, pegue a Florêncio de Abreu e
siga em frente."
Da balaustrada da passarela Santa Efigênia, avistou o Viaduto do
Chá. Esticou o pescoço para cima, para baixo, conjeturou, meditou, fez
confissão, perguntou pra seus botões: “Que mundão de Deus é esse meu
Senhor! É beco sem saída? É meandro de rio? É labirinto assustador. É
reino do vai-não-volta?” Ficou tonto. Parou de pensar para não cair.
Passou as costas da mão na testa, tirou o suor. Apurou sua visão.
Percebeu a grandeza do Vale do Anhangabaú. O grande relógio marcava
15h27; temperatura, 33º graus; qualidade do ar, sufocante.
Ensimesmado disse para consigo: “Quente pra dedeu. Da mesma forma e
jeito das bandas de lá de casa. O ar seco como pó de estrada. A

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viagem ao labirinto do Minotauro  Paulo Luís Ferreira

caminhada é longa”, resmungou. “O coração é forte, os calos é que me


doem”, filosofou. De mão para mão trocava a maleta pelo amarfanhado
papel. Pela Florêncio de Abreu, caminhou e caminhou. Enfim, Largo do
Pari.  
"Não é aqui não, o Cambuci?", perguntou. "Não meu rapaz. Você
está totalmente equivocado. Vá até o Parque Dom Pedro, de lá siga para
as bandas do Ipiranga." "Onde deram o grito independência ou morte?"
"Isso, isso!"
Passando pelo mercadão central, respirou fundo. Comeu mil
sabores e odores: frutas, queijos, passas, bacalhau... Especiarias
diversas. "Delícia de cheiro." Comeu cheiro o tanto que pôde. Respirou
tão fundo, tão forte que quase rasga o pulmão. Em vão, perambulou.
Não encontrando, perdeu-se. Garoa, apagão, chuva, tempestade,
enxurrada. Aconchegou-se sob a marquise das Casas Bahia. A pensão da
Dona Lilica ainda não encontrara, mas estava próxima. No dia seguinte,
encontraria. Não iria perder uma viagem tão longa. Ficava no Ipiranga,
disseram-lhe. Sobre umas folhas de jornal de “notícias populares”
deitou-se e se cobriu, e dormiu resignado no imenso labirinto. Naquele
momento, não era nem homem nem touro, tampouco era um Teseu para
salvar-se ou matar Minotauros. 
São Paulo engolira seu ser momentâneo. Um eco ensurdecia seus
tímpanos. Acordou. Os dentes batiam uns nos outros como britadeira em
paralelepípedos de asfalto. “Ai meu Deus, vou virar picolé...”, lastimou-se.
Seus olhos lacrimejavam, a boca seca como um cascalho, o nariz

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viagem ao labirinto do Minotauro  Paulo Luís Ferreira

entupido. O coração mole. O luminoso do relógio das mortadelas


Perdigão, marcava 23h49; temperatura, 5º; qualidade do ar, ruim.

Paulo Luís Ferreira fc


Natural de Recife/PE. Fotógrafo de profissão. Graduado em
História e Geografia. Têm contos publicados em diversas
revistas impressas e virtuais; diversos contos em antologias
pelas editoras, Jogo de Palavras, Big Time Editora, Bunkyo
de Literatura e SF Editoração. Têm três livros: um romance,
“Um Suco de Laranja sem Açúcar com Hortelã” e dois de
contos, “Século XXI” disponíveis em Clube de Autores. E
“Acampamento das Almas”, pela Autografia Editora e Clube
de autores.

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Francisco e o fogo vivo Emerson Soliz

Foto: Wil Stewart em Unsplash

Francisco e o fogo vivo


Quando morava em Caravelas, Seu Francisco ainda não dominava
os onze pontos do facão, nem era conhecido como Seu. Isso foi só muito
tempo depois, quando já havia vivido muito mais do que pensou que
viveria — não que achasse que não ia viver tanto, mas que não ia viver
daquele jeito. Acontece que ele nasceu em ano bissexto, primogênito,
numa noite de lua vermelha e, se não bastasse tudo isso, no meio de
uma das maiores tempestades que a cidade já havia enfrentado numa
sexta feira. Juntando tudo isso não dá em nada, mas a mãe de Francisco
tinha uma memória muito boa e gostava de contar cada detalhe.
Nunca cresceu muito, tinha as pernas curtas, e desde novo trazia na

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Francisco e o fogo vivo Emerson Soliz

cintura o facão, que por não estar tão longe do chão passava pela areia
traçando uma risca onde diziam: “por aqui passou Francisco”. Tinha um
cavalo, que mais parecia um jumentinho, chamado Pipi. Francisco e Pipi,
a curiosa cavalaria de Caravelas, eram como Alexandre e Bucéfalo, com a
diferença de que Francisco não era assim tão grande, ao menos não na
estatura. 
Certa feita, voltava Francisco de uma caçada com dois tatus no
lombo de Pipi, havia sido um dia razoavelmente bom de caça. Pisavam
mansinho no chão da mata, quando reparam que acima de suas
cabeças, os micos corriam em desenfreada pelas árvores, pulando em
alvoroço, derrubando tudo quanto era tipo de folha, coquinho, o que
fosse, uma arruaça danada. Passados os micos veio logo um vento forte
assoprando as árvores com um bafo quente insuportável. Pois nessa
hora, Francisco olhou para trás e reparou que queimando tudo, e rápido
como um furacão, vinha um fogo. Não era uma tocha, mas uma bola viva
de fogo que vinha em sua direção. Sem pensar duas vezes, Francisco
montou em Pipi, esporeou o cavalo e saiu em disparada pelo meio da
mata rumo à praia, com o fogo em seu rastro.
Corriam os dois e o fogo seguia reto atrás deles. Ia levando árvore,
bicho, terra, mato, tudo que aparecesse em seu caminho. Francisco teve
a ideia de desviar, afinal de contas, o fogo devia apenas estar fazendo
seu trabalho seguindo em frente e ele que calhou de entrar no caminho
de quem não deveria. 
Qual não foi sua surpresa ao perceber que assim que cavalo e
cavaleiro viraram, o perseguidor tomou a mesma direção. A questão

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Francisco e o fogo vivo Emerson Soliz

devia ser pessoal. O fogo não comia a mata, mas comia a risca de seu
facão. Desesperado, conseguiu sair da mata, o fogo em seu encalço.
Francisco só queria se salvar e o outro, sabe-se lá qual era sua vontade. 
Na corrida desembestada, chegou a Caravelas. O povo todo saía das
janelas para olhar aquele espetáculo curioso. As mulheres se benziam e
os homens gritavam “Corre, Francisco, que o fogo vivo te pega”. O pároco
da cidade achou que esse era um castigo. Aquela cidade há muito vivia
em pecado e o céu escolheu o pior de seus pecadores para pagar pela
alma dos moradores de Caravela. 
Chegando à praia, pensou que o melhor era se jogar no mar. Pulou
do lombo de Pipi e se jogou nas águas, tendo seu fiel companheiro,
desesperado, seguindo seu caminho. Mergulhou e nadou por longos
metros achando que assim se livrava do Fogo Vivo. Mas como as forças
da natureza agem em conjunto, logo vieram ondas que levaram cavaleiro
e cavalo de volta para a terra, onde o fogo, paciente, aguardava pelos
dois. 
Mal tiveram tempo de recompor as forças, pois o perseguidor
implacável vinha no seu encalço. Os tatus, que continuavam no lombo
de Pipi, já estavam bem mais que assados. Com seu facão, Francisco
tirou uma parte e jogou no fogo, para tentar amansá-lo, mas nem isso
adiantou. Serviu foi como combustível e o pobre do Pipi teve que se
esforçar ainda mais para não perder seu rabo chamuscado pelo fogo. 
Correram tanto que saíram de Caravelas, viajaram por toda a costa
da Bahia com o fogo atrás deles. Passaram por Itapetinga, passaram por
Ilhéus, por Ipiaú e nada do fogo arrefecer. Dos telégrafos, os prefeitos

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Francisco e o fogo vivo Emerson Soliz

avisavam para o povo tomar cuidado que vinha passando, como cometa,
um homem num cavalo deixando uma risca de facão pra ser comida pela
bola de fogo que os seguia. 
Quando chegaram a Valença, grande era o cordão de moradores
esperando pelo espetáculo. Havia pipoca, e as crianças se divertiam
tomando suco e vendo aquela cena absurda que desde longe chamava
atenção. Homens da cidade se reuniam e apostavam até onde iam
aqueles dois e em que cidade o Fogo os alcançaria, se é que lhes
alcançaria. 
Já cansados de fugir pela costa, adentraram ambos Bahia adentro
e, sempre subindo, já chegavam na Caatinga. E foi Santo Amaro,
Candeias, Feira de Santana com o fogo no rastro. Francisco ia comendo
pedaço de tatu assado e dividindo com Pipi. Numa noite, quando nem o
fogo tinha mais forças para correr — afinal ninguém é de ferro, nem
mesmo o Fogo Vivo — passavam os três por um caminho escuro. Era a
fazenda onde morava Ana. 
Desde alguns dias, quando soubera da perseguição que um moço
sofria no lombo de seu cavalo, entrara em tremenda comoção. Acontece,
que quando ainda era bem pequena, antes de seus olhos amendoados
adquirirem o olhar de mulher, antes de seus cabelos castanhos
crescerem e se tornarem os mais bonitos de todo estado, uma luz veio
lhe dizer que um dia traria alguém especial. Ele seria como nos livros que
ela lia, teria um cavalo branco e uma espada, que por onde passasse
todos saberiam a quem pertencia. Ana juntou rapidamente os fatos e
percebeu que seu destino havia chegado. 

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Francisco e o fogo vivo Emerson Soliz

Esperou por dias junto à porteira da casa e quando no fundo do


caminho, um sinal brilhante apareceu, rodeado de poeira, sabia que era
ele. Segurou um lampião junto ao peito e esperou que se aproximassem.
Assim que o fogo ficou mais nítido, Ana levantou o lampião à altura dos
seus olhos e, sem titubear, apontando para a bola que vinha no encalço
de seu amado, gritou: 
  — Fogo vivo, olha fogo morto!
No mesmo momento a bola arrefeceu por completo. Francisco e
Pipi não podiam acreditar no que havia acontecido. Quando já
encomendavam a alma para os céus, aquela mulher de voz firme e olhar
sério acabara de salvar-lhes a vida. 
Francisco apeou do cavalo e se aproximou de Ana. Olhando nos
olhos dela e sentindo o chão que ela pisava, percebeu que estava em
casa. Não teve raiva nenhuma do Fogo que durante dias lhe perseguiu e
o fez viajar por quilômetros e mais quilômetros de distância. Ele havia
descoberto a vontade do fogo. Caminharam juntos rumo à fazenda onde
o fogo já era outro.

Emerson Soliz co
Natural de São Paulo, atualmente com  25 anos. Ama
realismo mágico e Vinicius de Moraes. Estudante de história
tentando se aventurar pela escrita.

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Iguaba Grande Saulo Guimarães

Foto: Kimson Doan em Unsplash

Iguaba Grande

A minha mãe sempre dizia não. Posso engolir Bubbaloo? Não. Posso
ouvir Mamonas no walkman? Não. Posso pilotar um Fokker 100? Não.
"Mas, mãe...", eu dizia e era inútil. O que me faltava de liberdade sobrava
nela de convicção.
Acontece que o Botafogo tinha vencido o Criciúma por 1 a 0, era Dia
das Crianças e, principalmente, ela gostava muito do Tio Pedro. "Se eu
não devolvê-lo inteirinho, pago um Palio à senhora", ele disse, ao
volante.
Quando a porta de correr da Topic azul-marinho fechou, ele baixou
os óculos escuros da testa e gritou: "E aí, Raça Negra ou Jovem Guarda?".

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Iguaba Grande Saulo Guimarães

"E o Beethoven?", perguntei. "Pô, hoje, só tem Bach", lamentou. "Então,


é Raça Negra mesmo". “Demorou”, sorriu ele e deu a partida.
Na 1ª parada, embarcaram Xuxa, Gremlin e Faustão, uns CDFs
parentes do ET de Varginha. Moravam perto do prédio da Carol, da Mari e
da Ju, as Spice Girls da Avenida Meriti. Ridículas. Os Gêmeos subiram em
Vicente de Carvalho, mas escondi o mini-game a tempo de não ser
roubado de novo. O Cabeça era de Irajá, mas jurava que era de Vista
Alegre. A Tina, da Vila da Penha. E a Lu do 3º ano, do Bairro Araújo.
A Lu do 3º ano tinha algumas peculiaridades que talvez mereçam
ser destacadas. Era dona de um sorriso tímido, de seios promissores e,
independente do clima, estava sempre de casaco. Só com muito calor
abria um ou dois dedos. Seu charme era agasalhado de mistério.
Eu tinha um tesão absurdo na Lu do 3º ano.
Seguimos pela Brasil até a Ponte. O meu estômago parecia um
aquário repleto de peixes betta. Para matar o tempo, Carol, Mari e Ju
começaram a brincar de roubou-pão-na-casa-do-joão. Ridículas. Aos
poucos, decidiram incluir os outros na brincadeira. Na minha vez, fiquei
nervoso e não soube responder ao “então quem foi?”. Aí, não teve jeito:
"Não sabe, não sabe, vai ter que aprender..." Naquele momento, senti
um ódio intenso e verdadeiro por todas aquelas pessoas.
 
Pegamos uma estrada de terra e, em 10 minutos, estávamos diante
do portão de madeira. Tio Pedro buzinou uma vez. Duas. Nada. "Merda",
reclamou. E desceu. Deu para ouvir a risada nervosa do Gêmeo Nº1 no
banco de trás quando ele saiu. Tentou abrir o cadeado com todas do

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Iguaba Grande Saulo Guimarães

molho. Até que suspirou vencido, xingou algo bem alto e voltou:
“Esqueci a chave na Penha”.
A comoção foi geral. Os Três Estranhos se entreolharam atônitos,
enquanto Carol, Ju e Mari se mostravam chocadas. Ridículas. Tina até
desviou os olhos do livro por um momento (e, logo depois, voltou). Já
Cabeça começou a contar da vez em que dirigiu o Toyota do avô de
Araruama a Niterói num fim de ano. Mais por pena do que por interesse,
a Lu do 3º ano ouvia ele atenta.
Ela se ajoelhou no banco da frente, se virou e me olhou nos olhos.
"Será que a gente consegue voltar antes de anoitecer?", me perguntou.
Era uma gracinha assim, assustada. "Com certeza", respondi seguro.
"Que bom", disse aliviada. "Tenho medo de estrada à noite", confessou.
Estava fascinado. “Pô, me amarro”, falei sem pensar. Por razões óbvias, a
conversa não seguiu adiante.
Tio Pedro parou num Mister Pizza e nos mandou descer. Os peixes
betta no meu estômago tinham virado uma manada de elefantes
africanos. A Carol comentou com a Ju que muçarela estava escrita com
cedilha e as duas riram feito as hienas do Rei Leão. Ridículas.
Quando Tio Pedro voltou do banheiro e viu a chave da casa em cima
da mesa, olhou para o Gêmeo Nº2, disse "filho da puta" e riu.
A calabresa estava demais. Xuxa e Gremlin devoravam famintos,
mas os gêmeos monitoravam mesmo as garfadas do Faustão. Quando
ele pegou o último pedaço, começaram a sussurrar "mil, mil, mil...". Aos
poucos, todos começamos a repetir “mil, mil, mil...”, batendo com os

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Iguaba Grande Saulo Guimarães

punhos na mesa. O Faustão só entendeu no fim da fatia, quando


arrebentamos numa comemoração prazeirosamente pusilânime.
 
A única pessoa além de mim na praia era a Lu do 3º ano. Ela sorria
ao me ver e começava a abrir o inextricável casaco. Escorregava sensual
o fechecler pelo zíper, revelando um colo coberto de gotinhas, feito num
comercial da Monange. E, quando eu estava prestes a ver o que queria,
Tio Pedro me despertou aos sacolejos: "Acorda que deu praia".
Chegamos à orla antes de eu acabar o lado A da fita do Skank no
walkman. A faixa de areia era estreita. A água, escura. Mas Carol, Mari e
Ju fizeram questão de escolher com critério o melhor lugar para
esticarem suas cangas.
"Ué, e a Lu do 3º ano?", perguntei ao chegarmos, já mais acordado.
"Está com cólica, deixa ela lá", devolveu Tio Pedro, guardando na
pochete a chave da Topic. Então, não seria hoje que eu desvendaria o
mistério. Paciência. Sem ela, deixei o Rider na areia e fui jogar 3 cortes
com a galera dentro d'água. Quando corri para o mar, a Carol me olhou
por cima das lentes dos óculos escuros. Ridícula.
O sol deixava Xuxa da cor de uma lata de Coca-Cola em segundos.
Ele começou o jogo e deu início à contagem. O Gêmeo Nº1 aparou e eu
cortei, mas Gremlin esquivou e correu até a areia para buscar a bola.
"Que nojo", a Ju disse sobre seus pelos. Ridícula. Ele fingiu não ouvir.
Recomeçamos. "Um, dois..." e o Cabeça tentou me cortar, mas escapei.
Veio uma onda e jogou a bola na areia de novo. Agora, ao lado de onde
Tina estava. Corri até o local para buscá-la. “Vê lá essa bola, hein”, ela

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Iguaba Grande Saulo Guimarães

disse. “Você nunca para de ler?”, perguntei. Seus olhos deixaram a


página um instante. “Não ler é bom às vezes”, provoquei. “É típico dos
ignorantes”, me respondeu. Eu não esperava por aquilo. “Não sou um
ignorante”, devolvi. “Eu também não disse isso”, ela debochou e voltou a
ler.
 
Quando entramos na Topic, parecia que todas as rádios noticiavam
a morte de Renato Russo. Carol, Mari e Ju choravam (ridículas), mas Tio
Pedro encontrou a solução: "Vamos fazer um luau, que nem a MTV",
disse. A Lu do 3º ano tomava sol de biquíni no quintal quando chegamos.
Eu olhei para ela e seus seios tinham evaporado. Talvez, tivessem ficado
no casaco. Foi horrível, uma decepção. Mas, depois da praia, minhas
atenções estavam voltadas para Tina. Ela era, até então, só a nerd com
cabelo de Radical Chic. Eu nunca tinha reparado, por exemplo, que sua
presença se impunha de uma forma única e atraente. Ou mesmo que ela
lia Laços de Família, da Clarice.
Ao contrário da Lu do 3º ano, Tina não tinha o mínimo sinal de
insegurança. Era estupidamente decidida.
 
Até a noite, cada um encontrou o que fazer. Os Três Estranhos
começaram um torneio de arrotos num quarto. No outro, as patricinhas
lixavam as unhas e liam Capricho. Na sala, Tio Pedro cochilava com um
jornal sobre sua imensa barriga, dando a deixa para que os gêmeos
descobrissem Cláudia Ohana, Vera Fischer e muito mais na coleção de
Playboys sob seu colchão na dispensa. Na varanda, Cabeça embaralhava

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Iguaba Grande Saulo Guimarães

as cartas à mesa com Tina. "Quer jogar?", perguntou. "É o quê?", quis
saber. "Blackjack", ela devolveu.
Do nada, estávamos em um salão de Las Vegas. Um letreiro de neon
na parede brilhava BLACKJACK e o Axl piscou para mim enquanto
tomava um Negroni com a Cher. Repousei meu Dry Martini sobre o
carpete verde, que contrastava com as luvas brancas e a piteira vermelha
de Tina. O jeito que o cigarro acendia e apagava em sua boca era sexy.
Não demorou mais que um segundo para que eu estivesse de volta
a mim. Quer dizer, à Iguaba Grande. Cabeça distribui as cartas e começa
o jogo. É uma figura repugnante. Além do exagero do atributo que o
apelida, está trocando de voz. O bigode ralo é mais evidente por conta
do aparelho nos dentes. Sem camisa, fica ainda mais magricela e tem o
que minha mãe costuma chamar de suor forte. Mesmo assim, jura que já
saiu com a Carol e a Ju. A Carol pode até ser, mas a Ju é impossível. Ela é
esnobe demais. Duvido.
Pega uma, duas, três cartas. Na quarta, bate com a mão aberta na
testa cheia de espinhas e diz “parei”. É a vez de Tina. Ela pega seu jogo
com a duas mãos e o segura em frente ao rosto. Vejo suas coxas grossas
por entre as frestas da mesa. “Passo”, diz com sua voz rouca de Camila
Pitanga.
Eu tenho um tesão absurdo nas coxas grossas da Tina.
BLACKJACK, brilha um neon dentro da minha cabeça. Tenho um
sete de paus, um três de copas e preciso de um ás. Tina crava em mim
seus olhos, que me queimam igual água-viva. Há grãos de sal nos seus

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Iguaba Grande Saulo Guimarães

ombros e o cabelo seco de vento e de mar está armado como o de uma


leoa. Ela quer ganhar de qualquer jeito. Tiro. Dois de espadas.
Ela sorri, vencedora.
 
"Essa deu sede", disse o Gêmeo Nº 2, ao fim de Faroeste Caboclo. Já
fazia alguns goles que todos tinham sacado que o Mineirinho que ele
servia era, na verdade, um Sangue de Boi descoberto na dispensa.
Empenhado nas Brahmas, Tio Pedro sequer percebia.
"Xuxa, toca 'Hoje a noite não tem luar?' de novo?", pediu Mari, a
mais romântica (e, por isso mesmo, a mais ridícula) das três. Nos
primeiros acordes, me afastei da fogueira.
Eu detestava Legião com todas as minhas forças.
Cruzei com o Cabeça e a Lu do 3º ano de mãos dadas no quintal.
Fiquei feliz por eles.
Tina estava lendo na varanda. "Esse livro não acaba?", perguntei.
"Os livros não acabam, nós só terminamos de ler", filosofou. "Curto
Rubem Fonseca", confessei. Ela fez com a cabeça que tudo bem. "Não
tenho nada contra quem ouve Skank no último volume", ela disse. E
fechou o livro.
Tina estava de pé, bem na minha frente. Diante da minha covardia
crônica, sua ousadia era assustadora – mas o vinho tinha me enchido de
coragem. "Acho você muito gata", sussurrei. Ela pôs as mãos em volta do
meu pescoço, puxou devagar minha cabeça para si e me deu um beijo
quente e demorado. Tinha lábios especialmente macios. Quando tudo

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Iguaba Grande Saulo Guimarães

terminou, me fuzilou com seu olhar de desafio outra vez. Eu – ridículo –


sorri.
Quando o Cabeça e a Lu do 3º ano se aproximaram para entrar na
casa, ela pegou o livro de novo. Depois que passaram, me perguntou,
sem desviar os olhos da página: “Tem camisinha?”. 
Até hoje, acho que ela só me perguntou porque sabia que eu não
tinha.

Saulo Guimarães ftoc


Jornalista formado pela UFRJ em 2013, com passagem pelas
redações de EXAME.com, Veja Rio e dos jornais O Globo e
Extra. Tem contos publicados pelas revistas Subtextos,
Subversa e pela Editora Malê. Cursa pós-graduação em
escrita criativa pela UniÍtalo. É carioca, vascaíno e torcedor
da União da Ilha do Governador.

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na praia Caroline Rodrigues

Foto: Camille Minouflet em Unsplash

na praia
Terminou de passar o batom. Vestia um biquini preto de cós alto,
escolhido para tapar a marca da cesariana, e uma saída de praia
colorida. Pegou a bolsa, também de praia, e saiu trancando a porta. 
Deixou a chave na portaria do hotel. Caminhou uma quadra e já
estava na avenida em frente ao mar. Enquanto esperava o semáforo dar
passagem, observou os prédios emoldurando a orla em curva, a areia
clara e as palmeiras altas. Buscou os óculos escuros na bolsa quando
percebeu o sol a sua frente. Ainda era cedo e ele aquecia aos poucos a
pele. Os carros pararam uns ao lado dos outros, conduzidos por pessoas
que ela julgou estarem indo ao trabalho. Os olhos na estrada, mas as
mentes em algum outro lugar. Números, documentos, agendas. Ela ficou
feliz por ter sobrado aquele espaço dentre os compromissos da viagem
de trabalho para poder aproveitar um pouco a praia.
Na areia, sentou-se em uma das muitas cadeiras já dispostas para

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na praia Caroline Rodrigues

turistas. Um homem correu para oferecer um guarda-sol e um cardápio.


Ela aceitou tudo, queria aproveitar ao máximo o segundo e último dia.
Tomou sucos, uma caipirinha e comeu camarões. Deixou o corpo
bronzear em partes que o sol em raras oportunidades tinha chances de
alcançar. Não levou nada para ler e não pego o celular. Queria absorver
os barulhos, os cheiros e os movimentos do lugar. As pessoas chegavam
aos poucos, algumas carregavam bolsas, cadeiras e caixas térmicas
enquanto outras iam com a roupa do corpo, que tiravam ali mesmo para
dar um mergulho. 
Bem perto de onde ela estava havia um homem sozinho também.
Vez que outra ela olhava para ele, e ela percebeu que ele fazia o mesmo.
Perto do horário do almoço, o homem levantou-se e caminhou em sua
direção. Ela olhou para o próprio corpo, ajeitou a alça do biquini e
esperou, olhando na direção dele.
— Bom dia — ele disse, curvando-se um pouco para olhar para ela
por baixo da aba do guarda-sol.
— Bom dia.
— Por gentileza, a senhora sabe me dizer onde tem um bom
restaurante para almoçar por aqui?
— Olha, fui a um aqui na avenida ontem e achei muito bom. Eu não
conheço quase nada, não sou daqui.
— Ah, eu também não, estou meio perdido. — Ele estendeu a mão.
— Júlio, prazer.
— Beth — ela disse enquanto apertavam as mãos.
— De onde você é?
Essa pergunta deu início a uma conversa animada. Ele puxou uma

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na praia Caroline Rodrigues

cadeira e sentou-se ao lado dela. Sentiram-se logo à vontade na


companhia um do outro. Beth conseguia saborear o cheiro dele, trazido
pela brisa. Ela adorou o sorriso de Júlio, achou que combinava com a voz
grave e o corpo alto. Ficou surpresa por ele ter ido conversar com ela,
mas procurou não pensar tanto nisso. Buscava os assuntos mais
interessantes que conhecia e ele parecia estar se esforçando também
para impressioná-la. 
Eram movimentos sincronizados de uma dança ou de um jogo, bem
conhecidos por quem já não é mais tão jovem assim. Uma ajeitada no
cabelo, um olhar mais demorado, o corpo jogado para a frente, em
direção ao outro, os braços se abrindo, as pernas se cruzando, uma vez
sozinhos, outras juntos. O peito se inflando e o sexo se aquecendo. A
boca secando, a língua tentando umedecer. O corpo virando todo pele. O
suor, o calor, a brisa e a brasa. 
Acabaram saindo juntos dali para almoçar no restaurante que ela
havia indicado. Ele fez questão de pagar a conta. Em frente ao local, Beth
disse que precisava voltar para o hotel porque tinha um voo marcado
para aquela tarde. Júlio fez cara de decepção, tentou convencê-la a ficar
mais um dia, ofereceu-se para levá-la onde quer que ela precisasse
depois, mas ela disse que não era possível, precisava mesmo voltar.
Caminharam juntos até o hotel em que ela estava hospedada. Na
frente, ele puxou um cartão de visitas de dentro da carteira e entregou
para ela. 
— Me liga, quero muito ver você de novo — disse, se aproximando e
beijando o rosto dela.
— Tá bom — ela respondeu sorrindo e retribuindo o beijo.

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na praia Caroline Rodrigues

Ela subiu as escadas de entrada do prédio. Dentro do hall, pegou o


cartão e leu. “Júlio Almeida Linhares Neto, Engenheiro, Empresa de
Petróleo”. Olhou ao redor e caminhou até um canto onde havia uma lata
de lixo. Rasgou o cartão ao meio e deixou as partes caírem dentro dela.
Eram onze horas da noite quando chegou em casa. Deixou a
bagagem na sala e caminhou pelo corredor escuro. Abriu uma porta e
olhou para dentro. Duas crianças dormiam em um beliche. Ela entrou
tomando bastante cuidado para não fazer barulho, apesar de saber que
os gêmeos não acordavam nem com banda tocando. Parou ao lado da
cama de cima, mirando com ternura a criança e depois se abaixou para
olhar da mesma forma a criança na cama de baixo. Depois saiu,
fechando a porta. Caminhou mais um pouco pelo corredor e abriu outra
porta. Na cama de casal, o marido parecia dormir. Trocou de roupa e
quando se deitou, ele abriu os olhos e se virou para ela.
— Oi, como foi a viagem?
— Tudo bem, o mesmo de sempre nessas viagens.
Beijaram-se e ela apagou a luz. Fizeram amor, como sempre faziam
quando ela voltava de viagem.

Caroline Rodrigues c
Tradutora e escritora. Nasceu em São Sebastião do Caí/RS,
em 1977, e atualmente mora em São Leopoldo/RS. Egressa
do Curso de Formação de Escritores da Metamorfose, tem
contos publicados em antologias da editora, publica textos
em seu blog, na Revista Parêntese e no blog da Escritor
Brasileiro. É autora do livro de contos Sempre tem uma
cachoeira, da Editora Metamorfose.

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Caroline Rodrigues

 
expediente

edição
Mariane Lima
revisão
Caroline Rodrigues
autora convidada
Marina Navarro Lins

contato
subtextos@escritorbrasileiro.com.br

Rua Pedro Ivo, 224/501


Mont Serrat | Porto Alegre - RS

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ofc

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