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Edição integral
Copyright (c) 1961 Fernando Namora Capa: ilustração de Fernando Ramos Sousa
Composto pela Linoart Ltda. Impresso e encadernado pelo Círculo do Livro S.A.
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Primeira parte
Penso ainda, muitas vezes, e apesar de tudo o que se passou, no significado dessas
minhas ondas de fastio, arrogância e aspereza. Aspereza gratuita
- que se poderia resumir, com mais rigor, nesta palavra que hoje, após os
acontecimentos que me fizeram revelar muitas coisas dos outros e de mim próprio,
deveria envergonhar-me: exibicionismo. Recusava, por exemplo, as batas de modelo
único que distribuíam aos médicos do hospital e que se tiravam do cabide, a olho,
consoante a estatura de cada um, como recusava submeter-me aos horários
convencionais que disciplinavam os serviços das diferentes consultadas. Todo eu me
sacudia num risinho secreto, mal aflorado no desdém que me afilava o queixo, se me
constava que o chefe da clínica, um sujeito de contumélias tresandando a alfazema e
frases adocicadas soltava guinchos de porquinho-da-India ao dizeremlhe que eu me
negara espetaculosamente a observar uma dama da alta-roda que se julgara no direito
de passar adiante da gente humilde das consultas - um rebanho paciente que se
reunia como reses aturdidas à porta de um açougue. E eu ficava regalado de gozo
sobretudo pela certeza de que o melado chefe da clínica seria incapaz de repetir os
guinchos na minha presença, embora nessa noite ele fosse ter pesadelos com o terror
de que a dama badalasse entre a sua tribo que, naquele serviço, se vexavam as
pessoas respeitáveis.
Tais excentricidades, ou como lhes queiram chamar, porque eram temidas, tornavam-se
uma comodíssima justificação para todos os caprichos que me davam na gana e
permitiam-me ser tão independente, azedo e solitário, quanto as vagas de
neurastenia o exigiam. A neurastenia e, por fim, a petulância. Agora, que me deu na
cabeça contar-vos umas coisas de que não posso orgulhar-me, é bem preferível usar
as palavras necessárias. Petulância, pois. De uma vez deixara bem ameigado um tipo
qualquer que se arriscara a anavalhar-me a reputação pelas costas, e como toda a
gente comentou, com farta imaginação, a sova
de cavalo-marinho que lhe dera, a minha fama de selvagem capaz de todos os dislates
solidificou-se, solidificando-me, ao mesmo tempo, o prestígio. Por que o fiz? Fi-
lo, hoje estou certo disso, não por desagravo, mas por fatuidade.
mas uma espécie ambígua de solidariedade que os fizesse sentir apoiados até por
quem estivesse ao lado do executor no minuto final; ou mesmo a solidariedade do
carrasco e da vítima quando o mundo se fecha sobre ambos. Mentiras, era o que me
pediam, sempre mentiras, logros mendigados de mão estendida.
Sendo eu o tal sujeito bruto, de palavras aceradas, parecia estranho que eles me
escolhessem entre os demais coveiros, embora nunca os tivesse seduzido com a minha
compaixão. Vinham, no entanto, vinham sempre, eles e as famílias, estabelecendo uma
pertinaz e surda ronda a todos os meus passos. Eram cavalos viciados no chicote.
Cavalos que mantinham de pé, por tenacidade e não por orgulho, a sua agonia. Talvez
a minha dureza lhes soubesse a verdade. Talvez a preferissem às palavras veladas,
aos afagos corrompidos, que deixam o travo duma fraude maior ainda.
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Ora foi há uns anos, com efeito - não me apetece agora esforçar a memória e
esclarecer exatamente há quantos -, que o acaso me encaminhou, em certa viragem da
minha carreira hospitalar, para o serviço de doenças malignas. Pouco tempo depois
de trabalhar ali, reparei que a tarefa não era desejada por ninguém e que todos os
meus colegas se mostravam assustadoramente interessados em incitar qualquer novato
que lhes aparecesse com ideias de assentar arraiais. Essa inquietante camaradagem,
que a minha desconfiança aceitava com acautelada bonomia, foi-me empurrando para
mais longe ainda, para os casos de doenças do sangue incuráveis, e quando farejei
uma oportunidade de me escapar da armadilha, deixando os outros sob a surpresa de
um ludíbrio em que as personagens invertiam as suas posições, senti que era
demasiado tarde e que me seria já impossível safar-me não do cerco daqueles
sabidos, mas da credulidade desprotegida dos tais cavalos açoitados que a morte
condenara a prazo fixo e insistiam em viver à beira de uma sepultura talhada à
medida do seu corpo. Toma-se o gosto a tudo - permitam-me a filosofice -, à dor, à
crueldade, à devassidão, e eu, decerto, sentia-me já identificado com o meu mester
de condutor de um rebanho noturno que caminhasse, de olhos vazios, como os
morcegos, ao encontro do cutelo. Se algum deles ajoelhava pelo caminho, tinha de o
vergastar: o meu dever, de recuo em recuo, bastava-se em fazê-los cumprir um
suicídio premeditado e instintivo. Eram já mortos? Ainda eram vivos? Quem saberia
dizê-lo? A verdade, reconheço-o agora, é que o horror do meu ofício se apossara da
minha personalidade, desfigurando-a, como acontece àqueles magarefes das morgues,
de ombros tortos e nervos empedernidos, que mergulham os dedos e as na-
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Não exagero neste vesgo retrato de mim próprio, embora lhe tenha buscado, quantas
vezes ansiosamente, certas atenuantes e justificações. Algumas pessoas, e sobretudo
Clarisse, é que procuravam verme de outro rnodo. E também eu reconhecia, sem que
isso me redimisse, que a minha enfatuada aridez era uma espécie de enxerto bastardo
que, como as células vorazes dos tumores, digerira insidiosamente o que em mim
havia de confiado e espontâneo. Um ou dois anos antes de ter conhecido Clarisse,
ainda eu, por revoadas quixotescas e de um grotesto sem grandeza, abria as portas a
qualquer vendedor de alquimias que me dernorteava com drogas enroupadas em teorias
de lógica irrefutável, que eu, pressuroso, ia ensaiar nos meus doentes, avivando-
lhes a fogueira breve e agônica da esperança, onde, por fim, nos queimávamos
juntos, a sangue-frio, assistindo ao espetáculo da própria carne imolada. Eles
morriam/- e eu corria a embriagar-me no torpor de novas teorias. Por fim, sempre
que um doente jovem
- e eram-no quase todos - de cores sadias, em que a exuberância e a fé, de tão
impudicas, me pareciam
obscenas, vinha à consulta com a certeza de que os frustes sintomas que lhe tinham
aparecido nem mereciam o tempo gasto a escutá-los, apetecia-rne gritar-lhes a
verdade, abater essa jactância, para assim resgatar a minha inutilidade, e então ia
dali para o meu covil, um recanto isolado onde saboreava o veneno duma nova teoria,
de mais um disfarce. E durante dias atordoava-me com especulações, desvanecido com
o aplauso reverente dos colegas, até que a orgia terminasse nas cobaias mortas do
laboratório./!
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v.
nos faz aproximar as coisas, habitá-las, que pelo amor as reconhecemos e que,
depois de lhe recebermos a revelação, nada mais é preciso para nos sentirmos vivos.
*
~~""~ Como foi possível escrever eu isto? Tenho os membros espessos da insónia. É a
fadiga que nos amolece.
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II
Foi nessa época que entrou para o serviço uma rapariguinha insignificante chamada
Lúcia. Tinha o lábio inferior grosso e lamuriento, que lhe dava um ar de pasmo
perpétuo. Terminara o curso havia pouco e corava até à raiz dos cabelos,
escondendo-se na cauda do grupo, quando, na sua presença, falávamos de coisas que
ela não tivera ainda ensejo de aprender. Ao ouvir-me expor sedutoras mas frágeis
patogenias, bem dissimuladas num fraseado imperativo, ficava de gestos extasiados,
o beiço pesado, e eu divertia-me e também me irritava com essa devoção. Reparava
ainda que ela tremia mais que os outros com as minhas explosões de mau humor e por
isso exacerbava-as na sua frente, pois a mistura dessa rapariga ingénua, e pelos
vistos pateta, nas nossas tarefas, sentia-a como um insulto à gravidade dos
problemas que nos mortificavam.
Ela tinha sido, evidentemente, uma descoberta do chefe da clínica. O serviço era a
todo o momento baldeado por uma estirpe folclórica de rapazinhos presumidos, seus
afilhados nas relações mundanas, que vestiam a bata como os cadetes vestem a farda
dos domingos: para conquistar datilógrafas. Ainda bem que eles não criavam musgo.
Eram instáveis como meteoros, lá lhes parecendo que tinham asas para outros voos.
Lúcia, porém, não era presumida. Nem isso chegava a ser - diria eu nessa altura.
Dava mesmo a ideia de alguém que, de nariz entupido, a
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precisar de um bom espirro, tenta sustê-lo de todos os modos apenas para se tornar
despercebido.
No entanto, com o decorrer dos dias, fui tendo surpresas. Lúcia fazia às vezes
romper dos seus enleios uma sugestão imprevista e, mais do que isso, acertada e
enérgica. Perseverante no seu trabalho, havia nela qualquer coisa de arrumado, de
seguro, de disciplinadamente confiante. com os doentes era suave e atenta, mas
também lhes sabia incutir um sentimento de responsabilidade que os dignificava. E
nem o seu lábio seria tão lorpa como me parecera de início. Tinha, antes, a boca
tímida e deslumbrada de uma criança.
À medida que era forçado a apreciá-la e a admitir como definitiva a sua colaboração
- e a colaboração das mulheres vexava-me -, não podia deixar de feri-la
deliberadamente com a minha rudeza e, ao mesmo tempo, de me render à serena
revelação dos seus méritos. Por vezes, quando a noite nos encontrava ainda no
hospital - as noites do hospital oprimiam, esvaziavam-nos até que viesse aquele
silêncio de pedra, livoroso e gelado, dos prenúncios da madrugada -, Lúcia estendia
uma frase ou os seus dedos ternos para a minha solidão, diluindo-me a crosta de
bicho indócil, rompendo a muralha interposta nas nossas relações. Nessa hora de
agonia, em que até as dores arrefeciam, tudo se passava como se os objetos, as
vozes e as pessoas se afastassem de nós, sorvidas, transformadas em hálitos surdos,
e então era necessário que a gente se agarrasse a qualquer coisa viva e próxima
para que não fôssemos também aspirados pelo silêncio. Sim, era então que as
tentativas de Lúcia me impressionavam, que lhe agradecia ter nela um ser humano,
com saúde, nervos, vitalidade, ligado às minhas angústias - mas não lhe dava a
entender que me sentia, nesses momentos, tão débil e receptivo como ela.
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Lúcia dera-se conta de que eu gostava de café -- via-me subir com frequência ao bar
do hospital -, e um dia deve ter ido de propósito comprar uma destas máquinas
bojudas que o preparam voluptuosamente, para nosso uso durante as vigílias na
enfermaria ou no laboratório, pois nunca mais a levou dali. Havia entre nós uma
intimidade cúmplice, que ela tecera sem alardes, deixando-me sob o espanto de a
verificar quando fosse tarde para a repelir. Quando, enfim, eu próprio a sentisse
necessária.
Essa cumplicidade tinha a sua história. Eu passava muitas horas no hospital, para
lá de todos os horários. Até certo ponto, já que não tinha família na cidade, era
ali o que Lúcia chamava o meu "santuário". E embora me apetecesse vadiar um pouco
lá por fora, depois daquelas manhãs saturadas de um bulício gemebundo, as mais das
vezes achava-me na rua como um amanuense a quem, ao fim de uma vida de repartição,
obrigam a cumprir, por insistência da lei, a regalia da reforma. Por isso não
tardava em vir rondar os muros do hospital, conquanto, fora das horas das
consultas, ele me parecesse um casarão depois de saqueado. E foi assim que,
esgotados os pretextos de preencher o tempo na enfermaria e avivada a minha
solitude pelos corredores desertos, me fui chegando ao laboratório - que era ainda,
nessa época, feudo de certos tipos, a inviolada aristocracia do hospital. Aliás,
soube logo que não perdia os meus passos. O laboratório era a outra face ignorada e
fascinante da minha profissão; abriu-me os olhos de clínico, fazendo-os talvez mais
humildes e astutos, e, de qualquer forma, tornou o meu trabalho menos rotineiro.
Outra das minhas singularidades - pensariam os colegas.
Mas não Lúcia; essa, pelo menos, pensava de maneira diferente. Foi, de todos os
meus colaboradores - mais interessados em se escaparem para em-
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pregozinhos fúteis e rendosos -, o único que, com os tais seus modos de gato que
nos salta para os ombros sem lhe darmos pelas garras, me seguiu o exemplo. Por
ardor profissional? Por cupidez? Porque também ela tinha umas horas de fastio que
não sabia como gastar? O certo era termos chegado a isto: aos cafés, a umas vagas
experiências feitas em comum, a um convívio que não precisava de palavras para se
justificar. Ela pertencia, digamos, ao ambiente. Por vezes, com efeito, esquecia-me
da sua presença. Mas se voltava os olhos, despertados por qualquer interferência,
não sentia surpresa em ver ali essa rapariga sentada, um tanto sonolenta, numa
expectativa muda e sem objetivo. Uma rapariga desocupada, abúlica, quase um objeto,
limitando-se a estar ali. Essa passividade de cão de guarda era enervante. De
outras ocasiões, porém, se o meu olhar não a encontrava, havia em mim um
sobressalto, quase insegurança; como quando nos esquecemos de fechar uma porta e
reparamos, já tarde, que nos devíamos ter sentido desprotegidos enquanto a porta
esteve franqueada.
- Ainda fica? - dizia ela, ao mesmo tempo que me despejava o cadinho de pontas de
cigarro, que arrumava distraidamente os cadernos, a frasearia, embora já os tivesse
arrumado antes, dando tempo a que eu me decidisse.
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Instantes depois, ouvia o trinco da porta da rua fechar-se com uma violência
significativa.
Fez uma pausa, à espera, decerto, que eu retorquisse, enquanto pequenas manchas de
rubor começavam a tingir-lhe as faces. Eu tive a sensação de que alguém me estava a
beliscar o nariz. A boca secou-seme. E, depois, Lúcia, numa voz cautelosa, de
pessoa que caminhasse em bicos dos pés sobre estilhaços de vidro, lamuriou:
Ú£-£QÍQL.
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- Muito bem, Lúcia. Eis uma explosão honesta. É tempo de confessar que está farta.
- Desculpe, não repare no que lhe disse! Sou apenas humana e não evito mostrá-lo.
Nisso estamos muito longe um do outro. Não mereço que desfigure as minhas palavras.
- Não. Já que assim o deseja, não é tudo. Quero que saiba também que tenho
confiança e acho-me bem em senti-la. Confiança em mim e em todas as pessoas; em si,
por exemplo, claro. Não considero o meu trabalho inútil, tal como lhe acontece.
- É uma censura?
Havia sido, para Lúcia, um diálogo heróico. E esse heroísmo excedera-a. Lavei a
cara e as mãos com água fria, acendi outro cigarro, observando-a recatadamente.
Após aquele rubor de adolescente surpreendida numa audácia, a face de Lúcia tinha
um tom embaciado, exausto, tristonho.
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que a vermelhidão o percorreu por inteiro), como para outros é um modo, pior ou
melhor suportado, de ganhar dinheiro. Em qualquer dos casos, um ofício que lhe não
desse insónias.
Já que começara, tivera de ir até ao fim. Mas de modo nenhum me orgulhava de lhe
ver aquela ruga escura e magoada entre os olhos.
Ela própria me evitou o embaraço da resposta, se é que eu tinha alguma coisa para
lhe responder. Levou uma das mãos à boca e mordeu o dedo mínimo. Depois disse, no
mesmo tom de apelo que usara antes:
- Deixe os outros acreditar em alguma coisa. Não lhes roube o que de melhor lhes
pertence.
Fomos ao cinema. Nos dias seguintes, vingueime da pieguice não a olhando uma única
vez.
21
in
- Morreu alguém?
- Ah! - disse eu, absorto, como se tentasse identificá-la na memória já sem espaço
para esses comparsas da banalidade. No entanto, enquanto moía o cigarro, ia
passando em revista o problema de consciência que esse caso representara para mim.
Ela tinha, ou tivera, uma doença maligna incurável, era uma das minhas mortas-
vivas, e engravidara. Só pensava no filho que ia nascer, e ninguém teria coragem de
a prevenir de que, depois do parto, pouco mais tempo viveria. O marido era um pobre
camponês, que alugava os braços a qualquer senhor medieval lá dos sítios, e reagia
sempre com grunhidos às nossas insinuações de que iria acontecer o pior. Andava por
ali, uma sombra muda e obstinada, um esbirro que procurasse, em vão, um pretexto
para acusar.
Tenho aprendido muito com o povo. Nele, as coisas que dão à vida inesgotável
grandeza não foram ainda violadas nem empobrecidas. O instinto do
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povo guarda-lhes o mistério e a seiva. Ainda hoje, na consulta, ao insistir com um
aldeão para que me descrevesse o seu mal, ele, por fim, disse-me:
- É a natureza comida.
A natureza - o sexo. Dêem-me tratados onde se atinja esta sabedoria e esta serena
humildade.
Pois acontece - era aonde desejava chegar que as famílias desses doentes broncos,
tal como os bichos, e por uma telúrica e milenária experiência, pressentem o perigo
ou o alívio. Nenhum elemento objetivo os previne, os esclarece, nem o entenderiam,
mas no instante em que a vida começa a sobrepor-se à morte, um alvéolo que se
distende pela primeira vez depois de estrangulado, recuperam as tarefas diárias,
desinteressam-se, fogem-nos, sem que a gente possa saber por quê. Somos os últimos
a verificar que a ameaça passou. O mesmo sucede quando o fim está próximo e nos
escapa. O doente reanima-se, olhamos as pessoas à volta com um bom humor grotesco,
e essas pessoas estão hirtas, severas, acusadoras. Sabem já o que se vai passar. A
sua dor começou.
A notícia da morte da camponesa oferecia-me uma trégua aos nervos. Assim mesmo. A
morte era muitas vezes uma solução cómoda, definitiva; fechava uma porta aos meus
sobressaltos no turnos. Não sei, porém, o que a enfermeira deduziu da minha
expressão taciturna, pois acrescentou imediatamente:
E, com obscena malícia, indicou-me o novo cartão, a que dava um meticuloso retoque,
a fim de não destoar da metódica minúcia com que fixara os outros no retângulo de
cortiça.
- Quem a admitiu?
- A sua assistente. - E após uma curta e densa pausa: - Quer vê-la agora?
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estaria ávido de conhecer a nova presa. Alguma coisa, em mim, estava errada para
que os outros me interprestassem tão sombriamente.
A enferma era uma jovem de cabelos bravios, que pareciam ter crescido sem que
ninguém os estorvasse. E nem só os cabelos eram bravios: ela olhavanos sem qualquer
espécie de precaução e no fundo das pupilas havia uma zombaria a roçar pelo
descaro.
Lembrava-me de a ter visto já não sabia onde. Talvez num café. Isso, num café: os
seus cabelos vinham associar-se a um blusão carmesim (suponho que dessa cor - a
atitude enxovalhada e altiva é que se me fixara com mais precisão), a um cigarro
preso enfaticamente entre dois dedos esguios e enrugados. E tão segura de si como
hoje.
Era evidente que ela não fazia ideia do seu caso. Sentira umas vagas dores
abdominais, consultara um médico que, ao encontrar-lhe um baço suspeito,
aconselhara, entre muita rotinice disparatada, um exame de sangue. Assim se
desmascarou a devastação que a consumia em segredo. O médico, por fim, conseguira,
não sei como e sob que argumento, convencê-la a internar-se no hospital.
Aprendi toda essa história violentando-lhe os monossílabos. Esteve a fitar-me algum
tempo em silêncio e tive a impressão, aliás repetida com a maioria dos doentes, de
que ela experimentava uma secreta e jubilosa surpresa em verificar o pouco que,
afinal, tinha para me dizer. Um dos meus assistentes ia preenchendo a ficha e
tomando notas sobre o interrogatório. Ela, desconfiada, franzia as sobrancelhas,
dando muito mais importância a esse misterioso relatório, que não poderia vigiar,
do que aos trejeitos que eu repetia com a boca, fazendo rodar o cigarro, quase
mastigado, com a ponta da língua, enquanto lhe explorava demoradamente certas
regiões do corpo.
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- Dói-lhe aqui?
Mas, por fim, também essa devassa a enervou. Daí, talvez, como um larápio que se
desmente, ter procurado desviar-me a atenção antes que eu lhe descobrisse a prova
do delito:
Não mostrei tê-la ouvido e repeti por certo com um ar de quem pensava noutra coisa:
- Já o disse há pouco.
A doente reagiu. Percebi-lho logo no rosto tenso. Se lhe era lícito desvalorizar as
suas queixas, parecia-lhe, porém, que eu não tinha igual direito. Mesmo estes
enfermos que não aceitam a gravidade do seu estado, que se rebelam contra o vexame
da doença, admitem ainda menos que não demos a devida atenção ao seu caso, que para
eles e para nós deve ser único, esquisito, e merecedor de absorver todo o nosso
zelo.
Uma e outra não contavam, porém, que eu retrocedesse. Foi de longe que, num tom de
quem havia esquecido um pormenor desvalioso, indaguei:
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- O seu nome?
Nem sei como me acudiu essa curiosidade nem por que a não exprimi ao assistente
que, ali à beira, me teria elucidado.
- Clarisse.
Clarisse. Um nome por coincidência misturado com certas leituras ignóbeis da minha
adolescência. Mas esse outro nome eu estaria agora a escrevê-lo com emoção.
No dia seguinte, ao chegar junto do seu leito, desfechou-me:
Ela era de força. Desconfiei que fazia da sua irreverência um espetáculo. Daí, com
o ar de quem não estava para graças, suspendi o gesto de a ajudar a despir o
casaco, pois ia dispor-me a nova observação. Recobri-a, mesmo, com a roupa da cama,
até que ela mo impediu, e retorqui secamente:
- Hoje mesmo.
Aquela era a boa altura de a domar até ao último estertor da gatinha caprichosa - e
não a desperdicei. Via-a a esgadanhar-se lá por dentro, antes de ceder, anuindo
numa voz constrangida:
- Uma pergunta.
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- Não a posso esclarecer. . . por enquanto disse eu. - Mas o hospital não é uma
prisão: não tem guardas à entrada nem à saída.
Talvez eu me tivesse excedido, embora fosse meu hábito produzir desde logo esse
choque psicológico em todos os doentes que me pareciam volúveis, capazes de trair o
nosso esforço - deixando-nos de um dia para o outro, ao mais ligeiro despertar da
saturação. Os doentes são como as crianças: precisam que os ensinem a obedecer. O
carinho, a afabilidade, ou o que lhes parecer, devem vir depois.
Mas Clarisse não se resignara a que a última palavra do nosso medir de forças fosse
minha. Quando eu confrontava, por alto, na mesa da enfermaria, os últimos
resultados que tinham chegado do laboratório, interpelou-me:
- O senhor como se chama? (Aos meus ouvidos aquilo soou: "O seu nome?")
- Jorge - respondi.
Mais tarde, sempre por intermédio da enfermeira, soube que a rapariga decidira
ficar no hospital. Não me parecera que se sujeitara por submissão. Pelo contrário:
adiara, antes, para melhor momento, o ensejo de me fazer sentir que não era assim
tão fácil dispor dos outros. Eu errara os cálculos; nela, a gatinha, só previra uma
reação desabrida e imediata. E
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- A doença pode arrastar-se. E não creio que isto seja ambiente para si. Aliás,
durante estes primeiros tempos, nada a impede de continuar a sua vida lá fora.
Basta que, uma vez por outra, nos procure na consulta.
- Não importa. Sinto-me aqui muito bem. Era aquela a sua maneira de, contrariando-
me,
Deixou-me afastar uns passos, e disse numa voz que me pareceu insegura:
- Não ouviu dizer que deve tratá-lo por "senhor doutor Jorge?"
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Suspeitei algumas vezes que ela reconhecia, com irritada decepção, que talvez a
minha dureza fosse um disfarce, que por debaixo desta crosta enfatuada sangrava a
minha tímida adesão aos dramas que me rodeavam. A sua vigilância ia mudando de
timbre.
Por tudo isso, deixara que o caso de Clarisse fosse pormenorizado por Lúcia ou
outro assistente. Raramente intervinha quando os encontrava à beira da rapariga.
Pensava eu que, assim, lhe seria menos abrupta a revelação de que nada a distinguia
das outras. Porém, de uma vez em que me demorei mais tempo numa cama vizinha, não
pude deixar de inquirir de um modo brusco, mas ainda incolor:
E para que a minha iniciativa fosse mais insensata, ajuntei, começando a percutir-
lhe o ventre escavado:
Então ela, estonteada, pareceu despertar de um sono. Tinha sido uma pergunta de
rotina, tão banalizada como um disco que se ouviu cem vezes, mas nela teve o efeito
de uma agressão. Uma denúncia.
Era uma doente. E como doente se lhe dirigiam. E aquele era, afinal, também o seu
mundo.
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Toda essa viragem me perturbava. Preferia vêla do outro lado, um bom galo de briga
inconsciente de que lhe podem deitar a mão ao pescoço.
IV
Clarisse nunca recebeu visitas até ao dia em que um rapaz encapsulado num camisolão
verde-azeitona, cabelo de ouriço, quase sem testa, lhe veio trazer o mundo lá de
fora em duas frases nas quais o calão tinha lugar proeminente. Ele entrou a fungar
e a fungar continuou, um tanto assustado, um tanto cético, olhando para todos os
lados da enfermaria à espreita de uma oportunidade de fuga. Sempre que Clarisse se
lhe dirigia, o rapaz parecia estrebuchar: uma ave apanhada pela ponta da asa.
Quando ele saiu, e senti-lhe lá fora os passos ligeiros de quem receia ser forçado
a voltar atrás, creio não ter conseguido refrear uma expressãozinha de mofa.
- É estudante de pintura.
Ela disse aquilo como se me devesse uma desculpa.
- Vê-se logo.
- A visita do seu amigo foi, digamos, pouco convencional. Está certo num artista.
Clarisse plantou nos meus os seus olhos cinzentos, mas estava longe deles. Longe
deles e das palavras. Absorta.
- Penso que ele não voltará. Apeteceu-me retorquir: "E isso é importante?",
mas seria inútil ou cruel. Não, apenas cruel, pois ela prosseguiu com uma brusca e
provocadora animação:
- E o senhor viu logo também que ele não voltaria, não é verdade? . . .
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- Para quê?
Talvez a surpresa, afinal, fosse tragicamente sincera e ela, até aí, não se
reconhecesse ainda, em toda a sua evidência, como um dos protagonistas da nossa
sinistra aventura. Melhor dizendo: talvez Clarisse não tivesse confessado ainda, a
si própria, que já não havia logro possível. Ela apercebia-se, através da atmosfera
em redor, que o seu caso deveria ser grave. Mas conseguira manter arredada essa
certeza (pois uma certeza, tratando-se dela e não das companheiras de enfermaria,
continuava a ser incrível e paradoxal). Tinha suportado até aí a objetividade do
fato sem deixar, porém, que ele lhe bicasse o coração. Os dramas alheios são fáceis
de compreender. Mas não os nossos. De espectadora, ei-la, pois, de chofre, no
centro do palco.
- É necessário.
- Desculpe, é necessário.
Não insistiu. No entanto, horas depois, quando entrei no laboratório, fui encontrá-
la num banquinho baixo, quase aninhada, a fazer perguntas assustadoramente ingénuas
à minha assistente. Escapou-se logo, mais furiosa do que enleada com a minha
intromissão.
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Remexi em frascos e seringas, sem alvo definido, à espera que Lúcia tomasse a
iniciativa de um comentário. Mas Lúcia parecia disposta a tirar partido desse
enervante silêncio, mordendo o lábio papudo para não se trair. A curiosidade,
porém, era nela, como em todas uma das inexoráveis contribuições femininas às
regras da fisiologia. E, por fim, de gestos tão disparatados como os meus, não a
sufocou.
- Que procura?
- Onde está o Guedes? - repliquei, para que de qualquer pretexto anódino, como
esse, com mais naturalidade se desprendesse uma referência à rapariga.
- Era então o Guedes que procurava? ... Afiara a voz, dando-lhe uma ressonância de
lâmina a vibrar. - Saiu daqui, há pedaço, com uns papéis na mão. Deve ter ido
averiguar se há escândalo em perspectiva.
- Em excesso.
- Assim parece. . .
Meias frases de parte a parte, velhacas, calculadas, cínicas. Por isso, desnudando
o meu amor-próprio e deixando-o a tiritar de vergonha, avancei:
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cabeça como se eu tivesse acabado de dizer aquilo que ela desejava que eu dissesse.
- , . .E obstinada.
E agora, que eu tinha enfiado pela ratoeira, Lúcia não era a mesma. O seu beiço
lembrava um gomo carnudo e ensanguentado. Estivera a mordê-lo. Encheu-me logo a
chávena de café, escondendo nesse ritual uma súbita perturbação. E o diabo era que
eu próprio não me sentia à vontade. Agucei os sentidos para o bulício da rua. Em
certas ocasiões, fazia-me bem ser solicitado por essas coisas exteriores: a zoada
impertinente de uma motocicleta, o saracoteio dos elétricos, por exemplo. Ergui a
chávena à altura da janela e disse:
- O trânsito está cada vez pior. Esburaca-nos os miolos. Os hospitais deviam ficar
isolados deste inferno.
- Há por aí uns sinais que previnem: "Silêncio!"
- Ainda bem que assim acontece. De outro modo, se o mundo passasse por nós em bicos
de pés, os hospitais mais parecidos seriam com os cárceres.
Era um jogo infantil, grotesco. Tinha de ter um fim. Peguei o assunto de caras:
Olhei-a, não muito certo de a ter ouvido. Dessa vez, porém, Lúcia enfrentou-me com
serenidade; talvez
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mesmo com insolência, como se se tivesse despido na minha frente e agora, que o
fizera, já fosse tarde para defender a nudez. Eu é que me via sem coragem para lhe
dizer, por exemplo, que não me sentia muito disposto a esses equívocos de donzelas
aluadas. Adotei a solução mais cómoda: atirar com a bata para cima da mesa, com
brusquidão, uma brusquidão ostensiva, e escapar-me para a rua.
No corredor, esbarrei com o Guedes. O seu sorriso tinha um melaço pegajoso. O meu
gesto instintivo era logo o de levar o lenço ao rosto, a cada polegada de carne
desprotegida, e limpá-la do contágio. Ou, então, de desapertar o cinto e vomitar
antes mesmo de ser acometido de náusea. Os sorrisos, os modos e as palavras do
Guedes eram cubos de açúcar a derreter-se no meu estômago, até que o conjunto,
mucosa e açúcar, formassem uma geléia tão detestável e eficaz como um vomitório.
- Trago aqui uns artiguinhos que lhe interessam, meu caro Jorge. Quando vou à
biblioteca, penso sempre em si.
Ele não era pederasta, mas, com certas atitudes, passaria bem por isso. Se me
dissesse uma palavra mais, naquele momento, a geléia ia fora.
- Você é um homem prestável. Mas agora não tenho tempo; deixe-os em qualquer parte.
Amanhã falaremos - e sacudiu-lhe os dedos que, lestos e insistentes, lagartas
açuladas, nos apertavam o braço.
A rua. A rua é uma boa coisa. Sobretudo vadiar por aí, sem destino. Isso acontecia-
me muitas vezes. Nem sempre com prazer, pois era frequentemente o aguilhão da
angústia a impelir-me para a vadiagem, pela qual procurava o que não sabia
encontrar ou procurava nem sabia quê, enquanto o cérebro trepidava, em cada minuto
mais acelerado - um êmbolo coagido por uma fornalha insaciável.
37
Lúcia, na ambiguidade explosiva (e por que ambiguidade?, e por que explosiva?) das
suas relações com Clarisse, por mais que lhes quisesse antepor, como um escudo,
outras lembranças ou outras imagens mais vulgares: a do Guedes, por exemplo. O
Guedes com aquele começo de papada, que estremecia durante as suas risadas sem voz,
embora o corpo permanecesse seco e tenso, apto a enfiar-se, sem demora, por uma
inesperada oportunidade. A gente não sabia ao certo para onde esse voraz dinamismo
se orientava, de tal modo o víamos farejar em todas as direções, mas um dia, sem
dúvida, ele acabaria por descobrir uma brecha - e então meteria os ombros ao último
obstáculo, fossem quais fossem as resistências, derrubando-o com estrondo. O Guedes
de têmporas já grisalhas, de um grisalho precoce e talvez postiço para sugerir
respeitabilidade; o Guedes que, dizia-se, frequentara muito de perto estas ruas e
estes bares, a recolher atmosferas para um drama canalha (havia lá postigo que o
Guedes não espreitasse - até o de autor dramático!); o Guedes. . . Ao diabo o
nojento do Guedes, um videirinho! Era Lúcia e a rapariga da enfermaria que iam
comigo naquela rua de empedrado seboso, da morrinha breve caída pela manhã. Sempre
gostei de vagabundear por estes sítios. Tenho, quem sabe, uma costela de rufia. Ou
então faz-me bem um pouco de suj idade cenográfica, que se pegue aos sentidos, para
depois facilmente sacudir a roupa e ter a ilusão de me sentir, por dentro, um tanto
mais limpo do que dantes. Contudo, este bairro foi em tempos uma espécie de feudo
da aristocracia que nasceu em linha reta das especiarias da índia. Ainda aqui se
vêem, dessoradas, residências de paredes com a espessura de fortalezas, pórticos
senhoris e azulejos que são relíquias. Quase todas elas são agora hospedarias com
quartos de tetos muito altos, que se alugam à hora e são vigiados pela polícia. Em
vez de
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Ao prender-me a estas minúcias estou tal qual como nessa tarde em que assestava os
olhos e os pensamentos arredios em coisas imediatas e fugazes que me desviassem dos
meus problemas. Mas que problemas, afinal? Eu nada tinha que ver com as reações dos
meus comparsas.
Pois entrei num dos tais bares. Ao odor grosso que, lá de dentro, extravasava para
as narinas impressionáveis dos transeuntes, ferroou-me uma brusca sensação de fome.
O balcão até quase ao fundo da casa, por detrás do qual, bojudas e viciosas, se
enfileiravam as pipas de vinho; um recanto com algumas mesas. A força do negócio
devia ser ali, ao balcão, onde me empoleirava num à-vontade fingido. Clientes de
copos de tinto e sardinhas fritas. Ei-las, nos pratos onde a gordura se impregnara,
tornando-os sebosos e opacos, ao lado de outros com fatias doces.
- Um prego e...
- Um café.
Dois merceeiros (eram merceeiros, ia jurá-lo) olharam-me com reserva e, após breve
inspeção, voltaram-me as costas. O criado acabara de servir-lhes duas fartas doses
de clarete escolhido, meticulosamente, entre as várias garrafas dispostas na
prateleira dedicada aos clientes preferidos.
Preparado à vista do freguês, por uma cozinheira de bíceps que lhe estoiravam as
mangas arregaçadas. Para domar aquela carne dura e velha, de origem
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incerta, era bem preciso. Mas tanto a cozinheira, como o criado, como os
apreciadores do clarete, tinham nervos sólidos, preocupações elementares. Que eram
para eles coisas como a doença e a morte? Abstrações. Ou nem isso.
Numa das mesas sentara-se, por fim, uma rapariga magrota. Mas bonita. O criado
escutara-lhe os desejos com o ouvido quase apoiado ao seu narizito lustroso e
transmitiu-os num pregão:
- Duas bifanas!
- A esta hora. . . que apetite! - disse o que tinha umas farripas encaracoladas ao
cimo da calva mal disfarçada.
Corda, tinha-a ela; os metediços é que, pelos vistos, consultando-se com um olhar
embaraçado, não eram homens para grandes atrevimentos.
Sorvi o primeiro gole de café. Não era pior nem melhor do que o do bar do hospital.
E de novo, e de súbito, a memória me levou ao meu verdadeiro mundo. De nada servia
escapar-me. Nem aquele obeso Churchill de faces assopradas, empunhando um par de
bandeiras, a portuguesa e a britânica, no cacifo da parede, decerto esquecido ali,
no bar, por algum ma-
40
II!
A reação de Lúcia apavorava-me. Nunca mais lhe perdoaria o seu encontro com a minha
vulnerabilidade. A ela devia o meu estado psíquico cinzento e melindroso, a fuga
para esta inconsequente vadiagem, em que, afinal, embora sacudido por títeres
singulares, dois merceeiros, uma rapariga de língua solta e vulto ossificado, um
Churchill fadista, me afundava em mim, solitário e emparvecido. Eis o resultado de
misturar mulheres em problemas sérios. Eu bem sabia que um dia me arrependeria de
não a ter instigado a ir para casa pespontar as roupas da família. Clarisse, Lúcia,
todas estavam sujeitas àquelas marés sentimentais. Por agora, era deixar que a onda
passasse. Devia recusar-me a esse apelo à desordem, à adulação sorrateira do
acidental. Mas uma nova pergunta começava a insinuar-se-me... O caso de Clarisse
talvez não fosse vulgar. O caso humano, bem entendido. E se ela. ..
Bravo. A rapariga lutava por aquilo que lhe era agradável. Não desperdiçara tanta
ternura, tanta expectativa, para que lhe roubassem um pedacinho que fosse do prazer
previsto. Assim é que era.
- Quer torresmos, não?
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- À vontade, filha. . . - transigiu o homem, num sorriso frouxo mas que lhe
desvendou uma falha na dentadura.
A rapariga levantou-se da mesa e veio para junto de mim. Mais próximo do Chico. Ao
subir para o banco abriu despreocupadamente a roda das saias.
- ... Mas antes de dizer uma coisa devia ir a casa vestir o meu vestido de veludo.
Fica-me bem, não fica? Faz-me mais alegre.
Mas o gesto que acompanhara as palavras negava-as. O dono do bar sacudiu as mangas
da camisa, talvez a despegá-las dos braços suados. Não sei por quê, pareceu-me que
esse gesto era a sacudir não as mangas, mas a rapariga. Como se sacode uma coisa.
- Os ovos?. . .
Onde isso ia, os ovos! Mas o Chico não podia perceber. Nem eu, talvez. No entanto,
aquela frase "estou triste", depois dos ares estouvados da rapariga, revolteara o
que quer que fosse dentro de mim. Viera legitimar, sabe-se lá como, a atmosfera
emocional que me trouxera ali. Tanto as minhas reações como as de Lúcia e Clarisse.
Um novo enleio. Atirei com o dinheiro para dentro do prato, onde, da sanduíche (que
eu trucidara, ferozmente, aos pedacinhos), restava uma nódoa túrgida e ainda
quente. Nem quero dizer o que ela, de repente, me sugeriu.
Cá fora, de um dos casarões clandestinos, saía uma mulher com o aspecto de manequim
comprado na Feira da Ladra, e logo depois um tipo pequenino,
42
"Estou triste, sr. Chico." De uma vida constrangida podiam rebentar todos os
gritos. Aquele era o da rapariga magrota. O grito da melancolia violentada em
máscara de risos, E qual o grito da gente como nós - eu, Lúcia ou Clarisse? Mas -
insistia, eu olhando agora as árvores nuas da praça onde desembocara, braços
escuros que pareciam músculos à espera que um fluxo de sangue verde os fizesse
crescer
- que havia de coerente na tal insinuação de Lúcia? E, ou fosse da tarde, da praça
translúcida e afogueada no crepúsculo voluptuoso, ou fosse das árvores, a pergunta
repetiu-se-me mais vezes do que seria de desejar.
43
Viesse a rotina, pois. E sem pausas. Se eu fizesse uma paragem naquela sucessão
monótona, mas sempre demolidora, de dias iguais, talvez não pudesse sofrear uma
deserção. E era ainda essa rotina que acabaria por me defender de emoções
desgastadoras, pois nem os dramas resistem à monotonia. Essa gente
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que vinha procurar-me, cada vez mais impaciente, mais esfomeada de vida e logros, à
medida que cornpreendia o tão pouco que lhe restava, já não se individualizava
perante o caos que era, por fim, a minha esgotada capacidade de partilhar os seus
tormentos. Via-os como um confuso e denso rebanho: o rebanho à espera da matança.
Eu reparava que Clarisse era agora um dos alvos preferidos dessa intriga melíflua e
subterrânea. E ela também o sabia. No modo como observava as companheiras,
acirradas, estou certo, por um instinto de desagravo social (pois não era Clarisse,
entre elas, uma burguesinha amimada a quem a doença e o desespero iam amachucando a
soberba de classe?), via-se que procurava todo o indício que pudesse dizer-lhe
quanto as outras a achavam já diferente, quanto lhe notavam o emagrecimento ou a
palidez. Mas era sobre mim que incidia mais vezes a sua alertada acuidade: em todos
os estremecimentos da minha face entedia-
46
47
Quando esses doentes voltavam - e voltavam sempre -, tinham lido livros, consultado
outros médicos e discutiam já as notícias sobre novas e milagrosas drogas para o
seu caso, com que as gazetas lhes sacudiam a febre de persistir. Investigavam-se a
si próprios, procurando os ardis sob que a morte se escondia, e, lá no íntimo,
esperavam ser os primeiros a conseguir dominá-la. Os ardis não eram apenas da
doença. Eles também os teciam. Apercebiam-se da vizinhança da morte, sentiam-lhe a
voracidade e o cheiro, mas, inexorável, só nos outros. A pérfida ameaça, presença
obcecante na vida de todos eles, como um punhal enquistado, e que, na sua injusta e
medonha objetividade, se assimilava através da experiência em redor, não lhes
dizia, porém, individualmente respeito. No último instante, cada um, de per si,
conseguiria libertar-se. Velada ou abertamente, falavam-me então dos tais fabulosos
tratamentos - até mós exigirem, e era-me mais cómodo falsear-lhes as análises do
que, como dantes, evitar que lhes caíssem sob os olhos.
Saía extenuado dessas consultas, em que as explosões de choro, que nem os homens
poupava, se alternavam com a euforia e o riso. Eles forçavam-me tanto a ser
cúmplice da sua ansiedade, ou viam-me tão responsável por ela, que acabavam em ter
por mim uma devoção aterrorizada ou, quem sabe, o ódio que segura o cão maltratado
ao dono que tem numa das mãos o chicote e com a outra lhe estende um osso.
um drama. Aparecera-me, entre outros, uma poetisa de flor ao peito, tipo de beleza
do cinema mudo, toda olhos, toda boquinha em coração, toda rosto de boneca
enfarinhada, que, a fiar-me na sósia que lhe fazia companhia, apalpava de minuto a
minuto todos os gânglios acessíveis, na caça de um vestígio funesto. (Lera, com uma
cupidez nevrótica, essas coisas num alfarrábio.) Trazia já o diagnóstico, da sua
lavra, e insinuava que a tragédia do seu caso era um formoso desfecho para uma vida
dedicada à poesia. A outra dama, sua gémea na flor, nos sonetos e na beleza fora de
moda, parece que lhe ia sofrendo as vagas de histerismo, tentando amansar-lhe os
destemperos com uma ternura silenciosa e compungida. Ambas eram das mais celebradas
entre as atrações dos saraus literários, onde eu um dia, forasteiro desprevenido,
as vira despachar uma dose memorável de salsichas após a declamação de um poema de
derreter a medula das pedras. Sempre me enervaram esses chorões, que falsificam a
vida em palavras. Não são pessoas em corpo inteiro - falta-lhes o que deixam nos
livros. Há nelas - pelo que, em certas oportunidades, me tem sido dado observar -
não sei que íntima impotência ou corrupção. Tal como hoje reconheço em mim.
Mais tarde, constou-me que a poetisa, posto o rumor da sua gloriosa adversidade a
circular, vestira, convictamente, o papel de desditosa, propondo ao marido que se
fosse adaptando à sua iminente situação de viúvo, quartos separados e, logo depois,
vidas à parte. Passava os dias num café, a beber, a consumir-se por dentro e-a
escrever poemas. De tanto imaginar e sentir a doença, definhou. Não admitia - e
muito menos à solícita amiga, também ela já definhada - que alguém lhe desmentisse
os receios, as certezas, o infortúnio que ardia nos seus versos e lhe iria dourar a
memória. A todos os nossos argumentos opunha um sorriso sutil, pois a sua doença
era tão
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real que a sentia borbulhar no sangue. Bebia, horas a fio, sempre na mesma mesa,
donde a outra, numa vigilância sem pausas, a ajudava a transportar, de falas
entarameladas de ébria, para o hotel do seu voluntário exílio. Cada novo dia lhe
parecia o último da sua mortificada espera.
Até que a história teve um remate anedótico. Uns rivais do cenáculo haviam semeado
uma perfidiazinha: a companheira da poetisa, que lhe cobiçava simultaneamente a
glória e o marido, é que a convencera da ameaça de doença fatal e lhe adulterara as
reações, para assim lhe usurpar, com mais discrição, o leito conjugal. Perfeito. Os
rivais, desse modo, matavam dois coelhos de um tiro. E sem que a espingarda ficasse
a fumegar. A coisa tinha um sombrio pitoresco, lembrava intrigas de rameiras, mas,
de tão pulha, enojou-me. Nem ao Guedes ocorreria uma insídia tão requintada.
30
VI
Lembro-me de uma série de minúcias supérfluas acontecidas nessa manhã e que, tal
como, decerto, irá repetir-se noutras circunstâncias desta história, se fixaram com
uma nitidez cuja significação me escapa, enquanto os fatos verdadeiramente
importantes me exigem às vezes o esforço de os ir escavar numas luras nebulosas. A
memória, porém, lá tem as suas razões ou os seus caprichos.
encontrar um poiso tranquilo num café. Já vos disse quanto a promiscuidade humana
avulsa me era penosa. Um grupo de rapazes sentara-se ali ao lado. Falavam como
gralhas. Alegres, frívolos - gralhas renovadas após um susto. (O susto tinha sido a
trovoada desfeita pelo vento.) Depois uma rapariga rondou pelo passeio em frente,
olhando de soslaio os carros afuselados e lentos que passavam. Mas não se tratava
de urna pega, nada disso. Desconfiei que ela tinha uma perna mais curta do que a
outra, embora soubesse fazer-nos crer que não era assim. E depois, ainda, chegou
outro rapaz encavalitado numa moto estrepitosa, disse não sei quê à rapariga
(conheciamse já, provavelmente, tão familiares se mostravam) e ela anuiu logo ao
convite. Um dos companheiros do galã, quando a moto largou, toiro ferido, em
explosões fragorosas, teve um soberbo achado:
As pessoas riram e eu não ri. Por momentos, todos os clientes estenderam as mãos
para esse pretexto de riso e de convívio. Menos eu. Que se passava comigo? Que
espécie de aridez? E pus-me a pensar que o hospital era a minha única ou última
oportunidade de diálogo humano. Que seria de mim sem essa oportunidade, embora lhe
resistisse, ou julgasse resistir, embora sentisse que me era imposta, como a um
bicho por detrás das grades da sua jaula? Naquele instante, porém, tornou-se-me
urgentemente necessária. E dirigi-me ao hospital.
Pelo caminho, reparei numas pernas, talvez porque, mesmo sem premeditação, já
tivesse reparado nas da rapariga da moto. Apenas nas pernas. Tão bem feitas que se
bastavam: não apetecia subir o olhar. Abrandei a marcha (também sem premeditação).
Ela, a dona das pernas, decerto pelo hábito, devia ter pressentido que era
observada e, conquanto discretamente, avaliou-me por sua vez. Era uma empregada
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do hospital. Fiquei furioso, tal um peixe gabarola apanhado num anzol, e carreguei
no acelerador. Arrumei o carro, subi as escadas, dispensando o ascensor bloqueado
por uma caterva de resignados pretendentes. Na porta da sala de tratamentos estava
colado um papel: um convite impessoal para a festa das enfermeiras.
Soube então que a doente tinha morrido. Sentime, de repente, sem forças para
qualquer atividade. Andei de um lado para o outro. Na sala de espera, um rosto
vagamente conhecido; pertencia, sem dúvida, à família da morta. A mulher recostou-
se, fitando-me com os olhos vazios e esbranquiçados. Mas reparei-lhe sobretudo na
boca: dava-me a ideia de que esquecera o modo como é feito um sorriso. A linha dura
que a desenhava parecia decisiva, uma lasca de pedra.
Claro, aquela morte tinha sido esperada. Podíamos às vezes prever o desfecho com
uma margem de erro terrivelmente insignificante. Na última fase, já a doença punha
as máscaras de lado. De um dia para o outro, a fogueira ateava-se, o incêndio era
um clarão e, logo depois, cinzas. Cinzas que ainda demoravam a arrefecer até que
tudo terminasse.
E sempre que morria alguém, era nos outros, os vivos, que eu pensava. Eles haviam
assistido a todas as gradações da devastação. Mas só com a agonia a enfermaria se
alvoroçou verdadeiramente. E após o alvoroço, o estremecimento surdo, o pânico, as
insinuações ínvias sobre qual seria a próxima vítima, veio outra coisa mais
temível: a tranquilidade. Já falei do silêncio da madrugada. Aquele era outro: nele
os pensamentos tinham cor e voz, uma presença túrgida e ensurdecedora. Tenso,
lascivo, sufocante; precisava de ser incisado de alto a baixo antes que rebentasse
dentro de nós ou explodisse em berros, em loucura. Nesse silêncio, que nada tinha
que ver corn
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o vácuo da noite, com o charco da noite, o latejar subterrâneo das veias era o
rugido pesado e cavo de um rio de encontro aos penhascos. Dentro dele, o sofrimento
levedava, transformando-se em demência.
Se Clarisse (que absurdo nome!) não tivesse já compreendido que pertencia, como as
companheiras, ao meu cemitério de vivos, o rescaldo desse acontecimento tê-la-ia,
decerto, mergulhado numa atmosfera em que os sentidos se saturavam de evidências.
Devia ter meditado uns dias numa decisão; bisonha, enrolada em si própria, saiu
desse mutismo para me procurar na sala de tratamentos, certa de que, àquela hora,
não havia grande probabilidade de alguém nos estorvar. Encostada à porta, aguardava
que eu desse pela sua presença ou que as palavras se lhe soltassem tão seguras
quanto as planeara.
Esse mutismo deixou-a por momentos irresoluta, após o que decidiu dispensar o
contraponto das minhas palavras.
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- Sei muito bem. Posso repeti-lo. Cuidado, se eu lhe fosse na peugada, caminharia
sobre alçapões.
- Lá fora, talvez. Aqui, repare bem, está num hospital. - Enquanto, por reflexo,
sacudia outro cigarro antes de o levar à boca e deixava que os sentidos se
distraíssem com aquele automóvel que passava na rua com um ruído engasgado de
besouro, acrescentei duramente: - Já devia ter percebido que há regulamentos.
Desafiava-me. Clarisse tinha os lábios finos, contraídos, mas o jeito da cabeça era
só provocação. Queria apanhar-me num destempero. Queria uma verdade ou, muito
provavelmente, uma nova mentira. Mais hábil do que as anteriores. Uma coisa a que
se agarrasse, agora que todas as outras se submergiam com metade dela própria.
Ainda não acertara com uma atitude e ia-a adiando. Tentava sentir-me humilhado,
colérico, para burlar a minha própria amargura. De mãos nos bolsos, queixo recuado,
aguardava que a coragem de Clarisse se esbatesse como a raiva das ondas quando
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- Quer dizer desta casa. . . ou de mim? Pareceu-me que havia, em tudo o que disse,
uma inflexão muito pessoal. . .
- Estão a vê-lo? Aqui finge que nem somos mulheres. Mas lá fora, credo, até mastiga
as beatas, em vez de as fumar, quando os olhos topam alguma coisa de jeito. . .
Escrevo estas recordações com um mal-estar que não tenho capacidade para definir. É
que, da maneira como as narro, elas surgem-me tão adulteradas e ridículas
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que seria bem melhor, nem que fosse por pudor, guardá-las para mim. E talvez sejam
mesmo ridículas e não haja modo de lhes dar coerência e dignidade. A vida é assim.
É por isso que as histórias que se contam nos bons livros são suportáveis: torcem a
vida, inventam-na, até lhe darem verossimiIhança e uns restos de grandeza. Tenho
pensado algumas vezes que, enquanto o ímpeto criador dos homens se desviar para
esta solução tão individualista, a arte, o mundo continuará vesgo e as pessoas
esmagarão a cabeça nas paredes.
Mas já agora que comecei e me é urgente pôr cá fora uns entulhos para melhor os
clarificar e esquecer, terei de ir por diante. Não volto a pedir-vos desculpa de
ser tão desastrado nestas evocações.
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VII
Não podia evitar que ela fizesse perguntas, por muito que eu passasse de fugida
pelas vizinhanças do seu leito. Agora, que perdera a altiva segurança em si
própria, perseguia-me com uma devassa perseverante, diria ainda cruel, sobre os
exames amiúde repetidos, e todas as manhãs descobria novo pretexto para me chamar a
atenção para uma nódoa anormal na sua face ou para os nódulos que começavam a
bosselarIhe a pele murcha e enrugada. Entrava na fase da luta aberta.
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Às vezes eu pensava de véspera uma frase de histrião que lhe desarmasse a tensa
desconfiança. Tal como, com frutuoso talento, via proceder os meus colegas. Dizia-
lhe então, por exemplo, antes que ela me deitasse o laço:
- Hoje, sim, Clarisse, vê-se logo que teve uma noite repousante. É do que precisa.
E, como pode verificar, a curva do seu peso começa a ser famosa. Só receio que lhe
contrarie a estética. . .
Ela fazia um sorriso mole e, de fato, por instantes ficava perturbada, embora a
cínica exortação das minhas palavras lembrasse certo locutor a reclamar flocos de
aveia para o pequeno almoço. Não, nada daquilo era decente na minha boca. Tanto
como um palavrão saído de um manual de civilidade. Aliás, os diálogos com os
doentes, em regra, exigiam-me pouco mais do que resmungos e acenos breves de
cabeça, a despachar, conquanto, noutras ocasiões, a inspiração me consentisse uma
frase curta mas oportuna. As lerias farsantes, que atuavam como narcóticos, eram
com os meus assistentes. O papel assentava-lhes à perfeição.
Frases curtas, sibilinas. Cada um de nós tinha a sua estratégia. A minha era essa:
fazer de mago; ora, os magos deixam de ter o público na mão quando lhe desvendam o
porquê dos truques. E com Clarisse bem o reconhecia - eu ia perdendo essa ambígua e
tão eficaz sobriedade.
Tanto assim era que, passado o tal sorriso mole, a sua face acordava do enleio
efémero e recusava-me o papelucho da curva do peso, fazendo por ignorá-lo:
- Não preciso de verificar coisa nenhuma. Ficaria tão esclarecida como dantes. -
Afastava-me o braço, a pasta com o dossier, e tudo nela, olhos e boca, endureciam.
- Tem a certeza, senhor doutor, de que nada mais tem para me dizer?
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- Chame-me o que quiser. Mas esse palavreado não me adianta. Fale direito. Quanto
tempo viverei ainda? É assim que devo fazer a pergunta? Já a entende, feita deste
modo? . , .
- Todos nós a fazemos, em cercos momentos. Os que têm medo das trovoadas fazem-na
de cada vez que ouvem o trovão. É uma pergunta apetitosa, mas desnecessária.
Estupidamente inútil, não lhe parece?
- Inútil?... - soletrou Clarisse. - Inútil para o senhor, que tem saúde e essa
horrível segurança que nos humilha.
De novo aquela sensação de queimadura na nuca, que logo se fazia uma lava a
escorrer por todo o corpo. Mas fiz o possível por que a minha voz não se alterasse.
- Levianamente. . .
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Tal como nesse momento, ainda agora me espanto com a minha vã, prolixa e
desbordante exaltação. Antes que Clarisse revelasse uma justificadíssima surpresa
(afinal, o que lhe pressentia era, quem sabe, uma ávida alegria convulsiva),
inquiria de mim se aquela prolixidade fora tecida pela cena insensata de dias
antes, por uma intimidade que traiçoeiramente me havia sido imposta. Mas, sem
remendo possível, tive de dar um remate à minha tirada:
- . . .Voltando à sua pergunta: ninguém me garante que hoje mesmo, agora mesmo,
este teto, que já tem bolor e fendas, me caia em cima. Não seja pateta, Clarisse!
Você, eu, todos, viveremos o que temos para viver.
- Quer ser uma exceção às leis da biologia? Ela não me deixava como alternativa
senão este
cinismo de folhetim.
Clarisse voltou o rosto para o outro lado. A boca descaíra-lhe. Era a boca de uma
face angulosa, desfeada, onde pespontavam pequenas cicatrizes, como se em tempos a
tivesse depilado. Nada me fazia esperar que ela tivesse ainda um novo e desvairado
protesto. Um patético grito de carne.
- Morte, morte!, foi a única palavra que lhe ouvi dizer! Já ninguém sabe, aqui,
falar de outra coisa?
62
Subi à cantina do pessoal. Três andares sem elevador. O hospital era um velho
edifício em T, e nesta cauda, onde se punham de quarentena as seções
administrativas e outras consideradas menores, partia-se do princípio de que a
comodidade era supérflua. Dessa vez, contudo, fez-me bem o esforço físico de trepar
os quarenta e um degraus. Exatamente quarenta e um. "Trago apetite para dezassete",
costumava chalacear uma das colegas que prestava serviço nos agentes físicos, cara
de cavalo satisfeito com a ração. Feia, bom Deus!, mas com que honesta convicção!,
pêlos de bode no queixo afilado como um pepino, e de um bom humor invulnerável.
"Dê-me só um terço da dose, não mereço mais. Trepei apenas do segundo andar." O seu
grande êxito, porém, dera-se de outra ocasião, quando, ao chegar ali ofegante,
alguém se antecipara na ordem à empregada: "Hoje, a senhora doutora parece que
necessita de uma dose de quarenta e um. . . " "Retifico!", protestara ela, de
palavras a saírem-lhe arquejadas. "A dose é para quarenta: despachei-me dos dois
últimos de uma assentada. Quando quero, sou uma atleta!"
Claro: a Maria Armanda, àquela hora, era inevitável. O copo de leite, os dois
bolinhos de bacalhau. com salsa. E, prestável como era, via-a logo repetir certo
sinal à criada, que, também rigorosamente àquela hora, costumava fazer ruidosa
demonstração dos seus brios profissionais, furoando-nos os ouvidos com o aspirador.
Soalho impecável - à custa, porém, das sangrias nervosas de temperamentos
suscetíveis
63
como o meu. Eu não refilava, mas alguém teria de escolher entre mim e o aspirador.
A Maria Armanda escolhia, e aquele sinal, de uma eloquência secreta, lá entre elas,
dispensava quaisquer argumentos para que a empregada adiasse o atordoador
cumprimento do seu dever.
- Ouça, doutor (a Maria Armanda, como outros colegas mais novatos ou astuciosamente
mais humildes, tratava-me por um irritante "doutor"): por que não vem a sua
assistente comer um bolinho conosco?
- Lúcia?
- Pois, a Lúcia.
- Pergunte-lho você.
- Ah, decerto que hei de perguntar. A Maria Armanda não se abespinhara. Coçava os
pêlos do queixo, com ar divertido. - Qualquer dia vou lá a baixo levar-lhe uns
bolinhos. Criar-lhe o vício. . . Temos de fazer engrossar este grupo das onze
horas. Sinto-me mal de ser quase a única mulher entre tantos homens.
64
Outro parceiro seguro era o Romualdo. Maciço, pesado e mãos de padre. E gestos de
padre. Aquelas mãos erguiam-se, numa prece, ou refugiavam-se, amedrontadas, nas
mangas da bata, sempre que as conversas escorregavam para uma heresia. Não que o
Romualdo tivesse convenções teológicas, mas tinha outras: sobre quase todas as
trivialidades da vida, que ele espremia com pertinácia até as fazer suar uma gota
de conteúdo. Não há carcaça, mesmo sorvida por milénios de soalheiro, que não
guarde um pingo de umidade. Era essa a tarefa especulativa do Romualdo. Ele podia
demonstrar-nos, por exemplo (vem-me agora esta à lembrança), que as penas que
enfeitam os chapéus das senhoras são a expressão de um resíduo anatómico, perdido
em qualquer acidente biológico.
Lá estava ele, o Romualdo de maneiras plácidas e um começo de corpulência, feita de
beatitude e adiposidades, que decerto iria progredir com os anos; lá estava ele, o
pobre, a jogar às escondidas com o pastel de nata, sem saber se deveria ou poderia
resistir-lhe.
65
- Você já reparou, Jorge, no modo como um doente inicia o relato das suas queixas?
Não é por acaso que ele situa a doença num local, num acontecimento, numa dor ou
numa alegria. Medite você neste exemplo. . .
A Maria Armanda punha-se séria. Uma enfermeira que pedira um chocolate quase em
segredo desceu do banco, suavemente, comprometida. Sentia-
66
A Maria Armanda tinha ido a correr buscar um pires onde eu esmagasse a beata.
Empurrou-mo atabalhoadamente, aflita, não fosse perder a réplica. Romualdo teve um
sorriso breve e laborioso. Parecia recuperar energias abaladas, como os pugilistas
ao sentarem-se junto às cordas, no intervalo entre dois assaltos.
- vou contar-lhe uma pequena história. A si também, é claro, Maria Armanda, embora
nunca a tivesse contado a ninguém. - Escorropichou a chávena de café prudentemente
doseado com umas gotas de leite. - Um dia tocaram à campainha de minha casa, a
campainha da porta da rua. Eu vivia num sexto andar. Passou-se muito tempo antes
que alguém aparecesse e eu desconfiei que um tipo qualquer se fizera engraçado a
tocar à porta só para nos criar expectativa. Há gente dessa. As pessoas divertem-se
com as coisas mais incríveis. . .
- Bem o sei. Estou a responder-lhe - e o Romualdo cruzou as mãos num gesto beato. -
Ninguém aparecia, ia eu a dizer, e, por isso, tomei a iniciativa de espreitar o
elevador e as escadas. Não tinha sido brincadeira, não: Alguém vinha a subir. A
subir esforçadamente. Era meu pai. Trazia um cesto
67
pesado que ia mudando de mão. Fui ao seu encontro, olhei-o e soube logo que ia
morrer. E parecia pedirme já desculpa da sua morte, do incómodo da sua morte. Meu
pai fora sempre uma sombra que se fizera sombra para não perturbar os demais. Só
ele poderia morrer assim. "Por que não se aproveitou do elevador, pai?" Ele sorriu
com humildade, a pedirme desculpa de não saber lidar com elevadores. "Mas cansou-se
tanto!" Ele sorria ainda. Pedia-me desculpa de se ter cansado. Entrou, sentou-se
numa cadeira. Tinha a face exausta, cor de cidra, e o colarinho, de tão largo,
parecia o de um clown. Todas as vezes que me lembro disto dá-me a sensação de que
ele não chegou a levantar-se mais dali. Que morreu ali, depois de todos nós, a
família e eu principalmente, que era médico, termos deixado que a doença o apagasse
sem ninguém se dar ao incómodo de a estorvar. Só meu pai poderia morrer desse modo.
Soubemos que Romualdo acabara porque esticou o braço até ao prato com bolos.
Escolheu mais um, não ao acaso, mas medindo bem se ele valia a preferência. A Maria
Armanda, de pescoço distendido, dir-se-ia que engolira um osso. E eu. . . eu
procurava safar-me do eco perturbante da confissão do colega. Safar-me desse
sentimentalismo mistificador. Que resposta, afinal, me dera o Romualdo? Nenhuma.
Ainda esperara que ele nos fosse dizer como lhe parecia que nós, médicos, encaramos
a morte - a dos estranhos e a dos familiares. A morte de um pai, por exemplo. Nada
disso. Vazara a sua ferida oculta
- . . .e ei-lo a comer bolinhos; tal como a Maria Armanda, tal como todos. Esta sua
atitude apenas me legitimara o que pensara antes: a vida tinha de ser isso mesmo, a
mistura indecente de coisas opostas, coabitando sabiamente, sem pejo. Sem pejo, sem
pejo - para que não enlouquecêssemos todos.
68
O Romualdo, só porque lhe palpitara que eu estava num dos meus bons dias, iria
filar-me por uma hora das puxadas. Via-se logo pelo embalo da farsa. E, perante
essa convicção, de pouco me adiantava sair dali: ele acompanhar-me-ia às escadas, à
consulta, a qualquer parte, encarando as pessoas que se metessem de permeio como
hereges desprezíveis. Só me podia valer a entrada em cena de uma nova e importante
personagem. Lembrei-me, então, do Guedes. E, naquele momento, ele tornou-se o
patife mais desejado de todo o hospital. No intervalo entre duas fraldiqueirices, o
Guedes também costumava saborear a sua xícara de café. Tive uma ideia:
- Um momento, Romualdo. Agora me lembro de que o Guedes andava à sua procura. Tem
uma urgência danada em falar consigo.
O Romualdo entrelaçou as mãos. Deixou-as meditar por uns segundos. O rosto parecia
o de um confessor que tivesse ouvido, há instantes, um desabafo inoportuno mas
suficientemente grave para, nele, concentrar a atenção.
- Ah, já sei. - E puxando-me de lado: Você ouviu dizer que ele tem feito o diabo
para ser escolhido entre os peritos na questão das "alcachofras"? Penso que ele
cheirou ali uma mina. Se os tipos apanham o subsídio, o Guedes aceitará deles, como
direi?, uma lembrança de Natal. . .
Eu devo ter feito uma careta, e tão persuasiva ou tão enojada, que o Romualdo,
seraficamente, logo ajuntou;
69
VIII
Era uma história escura. Uns "tipos", como dizia o Romualdo, trabalhavam, havia
anos, num novo método empírico de destruição das células malignas. Tinham
descoberto nas montanhas de Andorra uma planta selvagem, de virtude, que, pelo modo
como era reproduzida nas embalagens, dava certos ares de alcachofra. Daí,
chamarmos-lhe, por sugestão das fitas de quinze episódios, "alcachofra H-5". Os
tais fabricantes do extrato vegetal viviam como eremitas, dizia-se, a sua
descoberta era mercê divina. Procuravam-nos bandos de jornalistas que mascavam
pastilhas elásticas e precisavam de leitores. Conseguiam-nos, claro, nem que para
tanto fosse necessário inventar um cataclismo. A cabana dos monges era ainda,
naturalmente, assediada por doentes de esperança desgastada; acorriam de toda a
parte do adro da romaria. O trágico pitoresco da história, porém, nem estava no
misticismo da cabana nem nas alcachofras: aparecera de surpresa em Lisboa um
biologista a crismar-se mentor dos iluminados de Andorra: a ciência, as
investigações, o génio, eram dele. Os outros apenas faziam a safra no local. E o
biologista propuserase merecedor de subsídios de uma fundação de largos cabedais.
Aí entrava o Guedes em cena. Alguém deveria estremar o joio do trigo - se é que não
se tratava de mais uma negociata -, e o Guedes logo se metera na bicha dos
prováveis inquisidores. O Guedes aparecia em todo o lado e saltando por cima
71
de toda a gente: nas conferências, nos simpósios, nas redações da revistas médicas,
nas empresas de indústria farmacêutica. Sempre com muitos livros e papéis debaixo
do braço. Sorria, dizia que sim a qualquer opinião, intrigava, rastejava e, por
detrás dos seus óculos severos, os olhos enigmáticos, escorregadios, moviam-se como
peixes num aquário turvo. Ele transformara a doença numa banca de quinquilharias. O
Guedes, já de si, era um guizo. Ou melhor: uma réstia de guizos.
72
IX
Quando, dois dias depois, voltei à enfermaria (e essa ausência, para os outros
caprichosa, fazia-me entrar ali com um pueril sentimento de culpa), Clarisse fixou-
me, do seu canto, demoradamente. Ao primeiro ensejo, disse:
Aquilo era para as outras ouvirem. Quando lhe chegasse à beira, já poderia falar-me
sem grandes precauções: entre a sua cama e a das companheiras mais próximas havia
umas vagas. Até certo ponto, propositadas. Fora eu o autor da manobra. Isso
permitia-lhe sentir-se menos devassada e, como naquela ocasião, dizer coisas que só
a ela interessavam.
Pintara-se. Suponho que pela primeira vez. Os cabelos, prendera-os sobre o nuca,
desajeitadamente.
- Decerto.
73
risse tinha uma expressão apaziguada. Levara as mãos aos cabelos. Tentava
domesticar ainda um ou outro mais rebelde.
Percebi-lhe muito bem as intenções, talvez todas as tivessem percebido (e por isso
me correu uma onda de fogo pela cara), e a sua intervenção mais me fez sentir
responsável pela anormalidade do diálogo. Não era por acaso que essas coisas
aconteciam. Onde estava o meu erro?
- É provável. Nem na enfermaria nem em qualquer outro lugar desta casa. - Fez uma
breve pausa. - Mas não é por isso que estou aqui.
- Mais perguntas?
Não, daquela vez não havia perguntas. Soube-o antes que mo confirmasse. O rosto de
Clarisse assumiu uma expressão grave, voltou a cabeça o suficiente para que não
parecesse olhar para mim, embora continuasse a ter-me sob a sua aguda observação, e
declarou num toro neutro:
- Não precisa de se enfadar mais com as minhas perguntas. Quero dizer-lhe que me
vou embora.
74
maradas. Ia nelas boa parte do meu nervosismo, não tanto, porém, como seria
necessário.
- Está no seu direito. Mas - e soprei o resto do fumo, esticando o beiço inferior -
não lho aconselho.
- Não lhe perdoo o tempo que me fez perder. Dizia tudo aquilo com alarmante
tranquilidade.
- Foi então para isso que veio aqui? Estou a desconhecê-la. Julguei-a mais
equilibrada e razoável.
Um novo intrometido desembocou por uma porta lateral. Todo ele se abriu logo num
sorriso, o pateta! Quanto aquela gente, meu Deus, se pelava por uma saudação! Ia
obrigar-me a repetir o mesmo jogo de escondidas.
- Importante? Importante para mim ou para o senhor? Ser uma vítima dócil, para sua
comodidade? - E antes que eu tentasse, com um gesto, impedir-lhe mais disparates,
exasperou-se: - Quero apenas sair deste inferno, e ninguém me estorvará. Ninguém
poderá estorvar-me, não foi mesmo o senhor que o disse? Ainda lhe ficam muitas para
que se regale com o espetáculo.
75
- Terminou?
- Sim, terminei.
Creio que ela esperava de mim fosse o que fosse. A aflita expressão dos olhos
contradizia o sarcasmo da sua boca. No entanto, afastei-me, vagarosamente,
hesitante, defraudando-lhe a ansiedade. Não sei bem, aliás, o que me fazia hesitar
ou qual a hesitação.
Não foi logo que dei pela presença de Lúcia. Quando me voltei, já ela despira a
bata e, maquinalmente, em gestos brandos, aquecia a inevitável geringonça do café.
Odiei o café. Odiei-lhe os gestos.
- Já veremos isso.
- Este, quê? Que quer dizer com essa pergunta? - repliquei num exaspero a
despropósito.
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Nunca se sabia quando Lúcia tinha ironia nas palavras, de tal modo aquela
serenidade parecia límpida e desarmada.
Aquilo sabia-me a lisonja e fez-me sorrir. Lisonja? Pela primeira vez duvidei.
Efetivamente, até aí, eu olhara os outros como se a vida fosse uma selva, habitada,
porém, mais por símios e raposas ladinas do que por leões. Os leões têm nobreza. O
animal feroz mata para se alimentar. A ferocidade do homem tinha mais requinte:
escolhia as vítimas com regalada antecipação, preparava-as de longa data para o
momento do sacrifício. E os que nem chegavam a ser feras? Esses eram a fauna cuja
carne insípida os dentes rejeitam e que, seguros da sua mediocridade, garantiam ser
possível passar-se indene entre duas fileiras de crocodilos. Mas Lúcia sabia que a
vida não era uma selva. Acreditava tanto nos homens, penso eu, quanto os místicos
no absoluto. E, mais ainda, ela iria jurar a pés juntos que eu acreditava também.
Lá lhe parecia que o meu ofício era o único responsável por esta quebradiça
armadura de incredulidade.
- De fato, tem feito progressos - repetia ela, certamente com reservada intenção.
- Então ponhamos as coisas no devido pé: fazemo-los ambos. Se a minha timidez deu
um pouco de si, a sua suficiência também começa a abrir algumas brechas.
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- ... Quando as pessoas não se mostram muito preocupadas em que as ouçam. Creio
que foi esse o caso da sua doente.
- Onde isso vai! Nunca julguei que os nossos progressos fossem tão nítidos, meu
caro. Pelo que lhe toca, a sua amabilidade começa a tornar-se enleadora, de tão
insistente. Quanto à minha timidez. . .
Lúcia não aceitou o tom galhofeiro da minha pergunta. Pôs-se muito séria, quase
magoada.
78
As posições entre mim e Lúcia, era um fato, tinham-se invertido. Enquanto sorvia os
últimos goles do café, lembrei-me de um velho sapateiro, bonacheirão, pau para toda
a colher, que um dia resolvera estudar ao espelho uma braveza de todo o tamanho, já
que dentro de si existia apenas uma complacência preguiçosa e abúlica, que os
outros pisavam como lhes dava na gana. A minha rispidez era, afinal, a do sapateiro
bonzarrão. Mas já não iludia ninguém e muito menos Lúcia.
- Ah, pelos vistos sempre saboreia os venenos! . . . Não culpe o pobre café! Você é
que tem a boca azeda, meu caro. Sabe que fico muito satisfeita de me dar uma
boleia?
Olhei, pela janela embaciada, as casotas pobres que se aninhavam do outro lado da
cerca do hospital. Assim tão encolhidas umas com as outras, rasteiras e medrosas,
pareciam-me velhinhas friorentas a disputar um raio de sol. Cidade de contrastes.
Naquele descampado, que as escavadoras tinham esquecido, viam-se ainda, às vezes -
e eu bem gostava de apreciá-los -, rebanhos de carneiros, assustados do burburinho
à volta. Roíam a erva seca, já inseguros, o instinto a acautelá-los do açougue
próximo. Cidade a esconder uma irremediável cepa provinciana.
79
Segunda parte
loucuras pela cidade. Era muito vista nos dancings e nos salões de jogo. Não era a
primeira a quem isso acontecia. A maioria confundia prazer com desvarios. As
pessoas tinham dentro de si, secretamente, uma atração pela imundície. Se dessem
dois dias de tréguas a um condenado, como iria ele aproveitá-los? Retificando
egoísmos, perfídias, cobardias, completando o capítulo inacabado de qualquer coisa
perdurável? Não: mergulhando no lodo, atulhando as narinas com o fedor das
podridões. Todos os mortosvivos da minha clínica, assim que os freios se soltavam,
corriam para um único e ardente objetivo: o de experimentarem o que, até aí, as
convenções lhes tinham vedado, calcando a pés juntos, como possessos, milenárias
inibições. Talvez porque o desespero se atordoasse mais depressa com o vício? Era
preciso que os sarros lhes refluíssem às bocas, que a náusea de si próprios os
cobrisse de uma epiderme surda, definitiva e impenetrável, amortecendo-lhes a
terrível lucidez de chegar ao fim. Deter o tempo. Anestesiar o cérebro e os
sentidos.
De uma vez um homem tranquilo (identifico-o ainda hoje na minha memória pelos
abafos e galochas de burguês temeroso das gripes) pedira-me que lhe demarcasse, com
a precisão possível, os seus últimos oito dias de existência. E na sua voz
domesticada em anos de obediência ao chefe da repartição, ao orçamento, às fórmulas
("Repare que lhe peço apenas oito dias, senhor doutor"), dizia-me que queria morrer
sentindo a plenitude de quem participou das sensações saboreadas nos sonhos que
ficam secretos. Um estômago esfomeado que só antevê uma brutal e suicida
indigestão. (Recordo ainda as suas mãos. Eram elas que verdadeiramente falavam,
mais explícitas que a voz domesticada. Mãos de uma doçura branca, que, junto do
rosto, se torciam numa dança nervosa e desbordante.)
84
- O dinheiro não me chega para mais. Furtara-me de qualquer maneira a uma resposta
O homem foi leal à sua promessa. Passou oito dias num bairro donde, em certas
horas, fogem os burgueses, salvo quando na companhia de turistas ou de amigos
excêntricos mas respeitáveis. Já lá fui
- sem comitiva nem turistas à ilharga: as lâmpadas das casas de má nota, na
espessura roxa da noite, parecem os olhos pérfidos de um gato. Foi ali que, no
último desses dias, gasto o dinheiro com escrupulosa pontualidade, o homem se
suicidou.
85
Pois foi com disparates assim na cabeça que, como habitualmente, me dirigi a uma
portinha hu-
86
milde, destas que servem aos aluados que entram num hospital depois da meia-noite.
Toquei rio botãozinho escuro, atrevido como um mamilo que se desnuda (era o halo
das lâmpadas que o desnudava, tornando-o impuro, escarlate), e o botão produziu
aquele som remoto de campainha a ressoar, perdida, numa casa vazia. Não sei ao
certo o que se passou comigo: antes que alguém viesse atender, retrocedi. À saída,
o porteiro repetiu o ritual: os passos, o boné, a saudação; só a mais o espanto,
mal contido, de me ver de regresso instantes depois. Mas um porteiro que se preza
não deve ter surpresas com as pessoas de seu cortiço. Cabe-lhe conhecê-las como
ninguém.
Sim, foi nessa noite que não me contive e decidi descobrir Clarisse. (Tentei dar-
vos, com isto que fica para trás, uma sugestão do quanto não me encontrava muito
bem da cabeça.)
Dancings. Mas a pista não era assim tão esclarecedora como, de começo, eu podia
supor. Pus-me a catalogar palpites: qual desses antros teria preferido uma rapariga
no estado de espírito de Clarisse? Provavelmente, ou um desses covis soezes onde
nenhuma mulher decente consentiria em enfiar o nariz (lembrem-se da escolha feita
pelo meu burguês de galochas), ou um daqueles lugares falsificados, nem carne nem
peixe, que oferecem a oportunidade excitante de coabitarem lado a lado, numas
tréguas frustes, a aristocrata e a meretriz. Os tais lugares onde se admite uma
aventura para esquecer no dia seguinte, cujo sarro é um farrapo de sonho, e que
serve para vazar apetites inconfessados. Por outro lado, mesmo que eu fizesse um
prognóstico exato das reações de Clarisse, nem por isso me pouparia a tentativas
falhadas, pois, de dancings, só lhes conhecia os reclamos de um vermelho vicioso,
que nos acenam naquelas noites ermas.
87
mo da avenida solene onde terminava o mundo das pessoas que têm horas certas para
entrar em casa. Passei várias vezes pela porta, numa timidez de campônio, fingindo
estar muito interessado numa montra de samarras ali estranhamente encastoada (ah,
havia uma loja de adeleiro na cave), antes de me decidir a uma espécie de mergulho.
Quando voltei à superfície, os olhos estavam encandeados. Não de luz, mas de uma
lívida penumbra. Quis desde logo convencerme de que Clarisse não estava entre
aqueles rostos informes, magicamente idênticos, que se moviam como seres fabulosos,
num cenário não menos fantástico. No segundo em que entrei, nem por isso a minha
investigação foi mais minuciosa. Era ali um instruso, mesmo que, de queixo aproado
para a frente, fizesse crer que acontecia precisamente o contrário: transpunha o
átrio, misteriosamente embuçado num grosso cortinado, vestindo a pele de um
adolescente a quem vão pedir o cartão de identidade e, lá dentro, sentia a nuca
queimada pelos olhares de toda a gente.
Pergunta de entendido. (Nem sombra de Clarisse, mas como escapar-me, sem mais nem
menos, depois de ter enfiado o pescoço no baraço?)
- Martíni.
- Perfeitamente. com ou sem gelo?
Gelo, uma palavra concreta. Uma corda que se desprende de um instrumento afinado e
nos arranha
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A minha busca poderia ter ficado por ali. Um ponto final peremptório na ideia
caprichosa de trazer Clarisse ao redil. Se era uma questão de luas - como acontecia
a Lúcia, como acontecia a Clarisse -, bastar-me-ia, por exemplo, chamar o criado e
dizer-lhe, um dedo apontado ao seu arzinho de raposa: "Você é tão amável que me dá
vontade de lhe escovar a fachada". E um de nós ficaria, sem dúvida, a precisar de
concerto. Nada melhor do que isso para ir direito a casa e adormecer de nervos
afrouxados. Mas a minha romagem pelos dancings já era também amorpróprio. Se eu
viera para fazer de anjo da guarda de Clarisse, havia de consegui-lo.
Encontrei-a, por fim, não muito longe dali. Vi-a logo que passei a entrada em arco,
ao fundo de um corredor que parecia um túnel escarlate. Ela dançava com um destes
imbecis que olham as mulheres com a indulgência de quem lhes basta um aceno para as
pôr de rojos. Clarisse tinha a cabeça encostada ao peito almofadado do rufia e o
seu corpo arrastava-se entre os dançarinos, reduzido a uma súplica. A emoção
enrolou-se-me nas goelas. Uma emoção grotesca, mas não valia a pena tentar
discipliná-la ou esclarecê-la: como aquelas dores físicas que, de tão verdadeiras,
se exaltam ao procurarmos anestesiá-las. Só me apetecia ir defender Clarisse, à
bruta, das mãos hediondas daquele tipo, do engodo da atmosfera entorpecente, ir
buscá-la para a acariciar como a uma criança tonta que teve um gesto inútil de
rebeldia.
Sentei-me num dos bancos altos do balcão, no único livre, entre duas mulheres. E
logo os cílios nasais me ficaram saturados de um perfume prurigino-
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só. Apetecia-me espirrar. Elas conversavam animadamente uma com a outra. Mexericos.
E não percebi porque tinham deixado aquele banco vazio de permeio, tanto mais que
nenhuma delas se mostrava interessada na minha presença. Continuavam a trocar
frases curtas e rápidas, como bolas de pingue-pongue lançadas por cima de uma rede.
Eu era a rede.
Sempre martíni, sempre com gelo. Aliás, não saberia pedir outra coisa. A não ser
uísque. Mas não gosto de uísque. E agora, que encontrara Clarisse, que iria fazer?
Aí a tens, por que esperar? Acendi novo cigarro para que as ideias se arrumassem.
As ideias e, sobretudo, os nervos. Estava aparentemente sereno, de testa levantada,
desdenhosa, mas sei que essa serenidade encobria um mar absurdamente agitado.
Observava Clarisse: o seu olhar, com breves relâmpagos de sofrimento, transbordava
do rosto delgado, onde o suor refletia por instantes a luz enfermiça que ardia em
volta. E quanto mais durava a observação mais sentia que esta Clarisse era uma
desconhecida. Não me dizia respeito. O meu jogo ia terminar após esvaziado o copo
de martíni. Agora, que o sabia, voltava a reencontrar-me em corpo inteiro.
Uma das mulheres, a do perfume que me fazia coçar o nariz (e não lhe chamo rapariga
porque a pele do pescoço, mesmo sob o disfarce do colar de várias voltas, lembrava
a de uma galinha depenada), disse, apontando furtivamente uma mesa:
- Vamos ambas.
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Agora, sim, já me podia sentir espectador entre aquela fauna. Nem um só músculo se
me contraía. Agora estava liberto. A maioria das vezes não conseguia avistar
Clarisse, encoberta pelos outros pares; ou antes: via-a através de clareiras
fugazes. Mal deslocava os pés. Pareceu-me embriagada. Voltei-me para o balcão. Um
dos lugares a meu lado teve, depressa, quem o ocupasse. Uma loira que usava óculos
escuros. Não sei que pretendia ela esconder, pois os seus olhos pareceram-me doces
e joviais. A loira abriu imediatamente a carteira, tirando de lá uma carta que já
devia ter sido lida muitas vezes. No entanto, releu-a de novo. Primeiro só com os
olhos, depois murmurando-a ritmadamente, como quem recita uma poesia; e depois,
ainda, levantando a voz, em certas passagens que lhe afagavam os ouvidos. Mirou-me
de esguelha e, gradualmente, foi aproximando um cotovelo. Por último, dava-me
talvez a entender que também eu poderia usufruir a leitura.
- / mis s y ou. . . Não acredito que mis s seja ter saudades. Misses são aquelas
que ganham concursos. Mas não as de cá, que são todas uma possidônias.
Neste ponto, foi nítido que esperava a minha opinião. Tão flagrante que tive de lhe
responder:
- Não sou forte em inglês. Nem em misses. Ela arrastou o banco, sem mais demoras,
até o
- Esta carta foi escrita por um marinheiro americano. Sargento, ou mais do que
isso, claro. Escreveu-ma, a mim, sabe? Você é simpático. Olha, como ele ficou logo
vaidoso! Ele trata-me por darling, não é engraçado? Oh, nunca recebi uma carta
assim. Darling é querida. Ele foi um companheirão quando por aqui passou. Tinha uns
ombros como o senhor.
- Desconfio que não ouviu nada do que eu lhe disse. . . É ou não é verdade?
Claro que não era verdade. Mas enquanto lhe afiançava, sacudindo veementemente a
cabeça, que sim senhor, não perdera uma palavra, ia meditando nesta resistência
absurda de Clarisse, e de outros doentes como ela, ao esgotamento e ao pânico de um
viver dilacerante. Absurda fora, porém, a minha intenção de a recuperar. Para quê?
Aquela mão sobre a nuca era uma carícia. Estava no seu direito.
Já não era a mim, ouvinte distraído, que a rapariga se dirigia, mas a uma das
companheiras que momentos antes me ladeavam e que voltara para o seu banco depois
de deixar o campo livre à preferida pelo sujeito das orelhas de elefante.
- De que se trata?
92
aqui: 7 miss vou, my fleshy doll. É uma frase bonita. Doll é boneca, sou eu. Que
giro, não é?
- Ora, papéis. . .
A carta tremeu nas mãos da rapariga; as suas doces pupilas vacilaram, desnorteadas,
buscando em mim um apoio ou uma ironia. Mas foi uma hesitação breve. com um
entusiasmo que não podia dar-se por vencido, empolado e agudíssimo, quase gritou:
- Ele chama-me querida em toda a carta. Darling, darling! E aqui este fleshy é
carne, mas não é carne de se comer. My fleshy doll, minha boneca de carne. . . Sou
sempre eu. Não é giro?
- Tretas. Se calhar, o teu apaixonado escreve essa mesma carta a todas as mulheres
com quem dormiu nas viagens.
No meio da face branca, enfarinhada, da rapariga que era uma boneca de carne, não
de comer mas de acariciar, abriram-se duas cavernas vermelhas. Todo o seu rosto
surgiu, bruscamente, esculpido em lava e iluminado por um brilho de maldade
icompreensível.
E nisto lançou a carta ao chão e saltou do banco para a espezinhar, uma e outra
vez, numa cólera desesperada, como se o papel baço e amachucado fosse uma coisa
viva que ela quisesse destruir até ao último estertor.
A cena alertou a maioria das pessoas à roda. Fomos cercados, num ápice, por uma
alta e vergonhosa muralha de silêncio. E foi então que Clarisse deu por mim. (E era
estranho que eu tivesse associado logo todo o acontecimento ao caso de Clarisse,
até mesmo à sua carícia resvalando pela nuca do seu par.) Clarisse deu por mim, lá
por detrás de uma bruma que afastara com as mãos. Empurrou o companheiro, sacudiu
vagamente os cabelos, a desfazer-se de mais
93
outro obstáculo entre nós, e o seu rosto amarrotado teve uma expressão de súbito
alívio.
O dancing não existia, não. Nada de permeio, nem o tempo, nem as raparigas t a
carta do sargento que talvez fosse mais do que sargento, nem os lugares - nada
acontecera desde o último dia em que nos víramos no hospital. Era isso que diríamos
um ao outro se fosse necessário dizê-lo, isolados como ilhas no redemoinho donde
iríamos escapar.
94
(tinha dezoito anos), devia ser verdade. Aliás, o bar chamava-se "O Náutico". Pois
o marujo roubou-me na conta, descaradamente, mas, subjugado pelos seus braços e
pela tatuagem, não refilei. Essa tarde, por vários motivos, foi muito importante na
minha iniciação de adolescente. Todos os acontecimentos que nela se deram - havia
feito exame e, como prémio, deixaram-me andar à solta com uns companheiros sabidões
- gravaram-se-me profundamente. com ou sem tatuagens, quem ainda hoje me serve nos
bares é aquele pirata que me fez gastar duas cervejas por uma.
- Não o sabia tão folião. . . - Mas, de repente, a sua voz mudou como mudaram os
olhos e tudo o mais. - Veio aqui para me procurar? Diga-me só isso, peco-lhe!
- Que a fez pensar tal coisa? - respondi-lhe, levando as mãos à anca dorida.
- Veio, confesse!
Num momento, esqueci o dancing, a intervenção dos molossos, a anca dorida. Fixei-a,
hirto. Ela não podia saber quanto a sua pergunta me perturbava e também não
compreenderia o absurdo de qualquer das respostas que me impunha.
95
- E entrou também por acaso, não é isso que vai dizer-me? Mente! É um reles
mentiroso.
Senti-me atordoado. "Um reles mentiroso." "És uma cabra, Teresa!" Fui-me afastando
devagar, sem saber ao certo se ela me acompanhava. Quando olhei para trás, vi-a
ainda à entrada do dancing. As dobras transparentes do vestido ondulavam como asas
de seda à aragem que viera estremecer a noite pasmada. Pareceu-me irreal.
Como irreais, de uma irrealidade louca e dolorosa, foram as horas que se seguiram.
96
XI
Emendei a tempo a indicação que ia dar à enfermeira para que fizesse entrar
Clarice. Já não foi por uma questão de disciplina que me contive, mas pelo receio
de que, depois dela, me fosse impossível obser-
97
var com serenidade os outros doentes. Iludia-me, porém, ao supor que a expectativa
de falar com Clarisse me permitiria essa serenidade.
Antes de mais, um café. Necessitava de varrer dos miolos este saburro coalhado. As
coisas à minha volta eram ainda penumbra. Mas seria perder tempo ir lá a cima toma-
lo.
Fichas, análises, papéis - cada um deles reduzindo a uma seca e fria sugestão o
drama de uma vida; um universo fechado na palma da mão. E eu, o mago dessa fraude,
era apenas um homem com a cabeça obscurecida por uma noite de desconchavos
pessoais. E cético, ainda por cima. Ora, nada me poderia enjoar tanto nessa manhã
como a sensação de um falso poderio. O mundo tremendo da minha prestidigitação,
justamente por sê-lo, abria gretas de impostura.
Como seres míticos, sem autenticidade, os ia, pois, ouvindo. Esta, por exemplo:
- ... Quando o meu marido se serve de mim (e a mulher, ao tomar alento para trazer
ali pormenores inconfessáveis, dirigia-se à enfermeira, à procura de um cúmplice da
sua coragem), sai sangue, senhora. .. Não sei como a hei de chamar. Não sei se
vosse-
98
- Acha então que as enfermeiras é que vêem os doentes? ... - protestou com bonomia
a minha colaboradora. Mas, nela, bonomia era vinagre. - É ao senhor doutor que deve
dizer essas coisas.
- Bem sei, senhor doutor, já mo disseram logo à entrada, assim uma senhora também
vestida com um avental, mas eu ainda não me queixei do resto.
- Venha o resto.
Não, nem a ironia me poderia distrair da ideia de que, no fim da consulta, seria
Clarisse a entrar por aquela porta. E a boca ainda me sabia a trapos velhos.
Agora vinha um nariz que era o bico de um corvo, na raiz do qual, muito juntos,
dois olhos espavoridos procuravam um refúgio.
- Que sente?
- Fraqueza no sangue. Diz aqui nos papéis que me deram na minha terra.
99
Os olhos da mulher, de novo desorientados, percorreram rapidamente os vários
esconderijos da sua prisão. Mas ao sair pela porta dir-se-ia um evadido que já não
sabe fazer uso da sua liberdade. As mãos franziam-lhe as pregas da saia.
- Já ali tem o seu café. Ali dentro. Discretamente, na saleta contígua do aparelho
de radioscopia, para que ninguém fosse testemunha de que eu tinha apetites desses,
fora de todas as normas, no próprio local do trabalho. Prestável e azeda rapariga.
Eficiente como um relógio suíço.
- Blasfémia não será, senhor doutor, mas obriga uma pobre criada a subir e a
descer quatro andares para, no fim, lho trazer quase frio.
Para ele, sim, era. Era comigo e com todos os que tinham sempre na carteira o
dinheiro para qualquer imprevisto.
Depois, uma rapariga, muito grave no seu vestido que tinha sido moda há vinte anos.
O fecho do vestido encravara-se a meio das costas. Ela, a tomar para si a
responsabilidade do acidente, oferecia à minha piedade o seu rosto que se tingira
da cor das lagostas.
- Quem mais?
100
A enfermeira não precisou de mo dizer. Era a vez da Maria Antônia, que vinha ali
com a assiduidade prazenteira de quem visita parentes chegados. Eila já a meia-
porta, ela, o sorriso bonito e o seu familiar e doce "Dá-me licença, patrão?"
- Cinzentos. Apetitosos.
- Hoje não, senhor doutor, hoje vamos conversar muito a sério. . . - e ela dobrava
nervosamente os cantos do dossier que lhe dizia respeito, preparando-se, decerto,
para nos armar uma cilada. vou fazer uma viagem.
- Muito bem, invejo-a. Também eu ando há anos a pensar numa coisa dessas. Por
enquanto, porém, contento-me em colecionar programas de viagens.
- vou partir para África. O meu marido arranjou lá um emprego. - E de súbito, como
quem faz saltar das axilas um revólver sonegado e no-lo aponta na f ração de um
segundo, disparou: - Digame depressa senhor doutor, se posso ir. Se devo ir. Não
pense numa desculpa, responda-me depressa!
- E a viagem. . . seria para breve? Que ideia essa, África! Ponho-me logo a
transpirar. - O tom das minhas relações com a Maria Antônia era uma exceção:
ninguém resistiria à sua álacre espontaneidade. - Não é preciso ir tão longe para
se beber uma xícara de bom café; mesmo daquele que cheira a dois quarteirões de
distância. . . Pergunte aqui à Senhora
101
Enfermeira se ela não é da mesma opinião. . . Então não tinha pena de nos perder de
vista?
- Pronto, se quer as coisas ditas como quem deita uma moeda numa geringonça e apara
com a outra mão os amendoins, aí tem: faça uma nova análise e depois lhe darei uma
resposta. Um sim ou um não.
- Aquela rapariga que esteve internada. O senhor doutor foi deixando a sua ficha
para o fim. . . Espero que ela não esteja muito zangada de a termos obrigado a esta
demora.
- Espero que não. Olhe, Margarida, faça-a entrar e depois, se quiser, pode retirar-
se.
Não procurei sondar o que a enfermeira pensaria das minhas precauções e nem
tentava, sequer, escondê-las. Eram, de fato, precauções. Ninguém poderia prever
como Clarisse se comportaria. Além disso, pelo que me dizia respeito, seria
preferível não me apoiar na presença de terceiros.
Clarisse, porém, entrou sem pressas, sem enfado nem ressentimento, sentando-se com
uma inquietante passividade de gestos. Fiz um aceno à enfermeira e levantei-me da
cadeira para fechar as duas portas do gabinete.
102
Não, não lhe faria qualquer referência à noite anterior. E iria jurar que ela
usaria do mesmo recato.
- Precisa de repouso.
A minha voz tinha um timbre rouco, gutural. Tossi forte para a aclarar, enquanto
Clarisse confirmava as minhas palavras com um lerdo movimento de cabeça. Os seus
olhos continuavam firmes, mas brandos e meditabundos. Insistiu:
- Cansada.
- vou auscultá-la.
- Então que veio aqui fazer? - disse eu, rispidamente, prevendo que ela se me
escaparia ao fraseado profissional.
- Preciso de si.
Aquilo foi um punhado de areia sobre a minha violência. A voz fez-se-me mais rouca.
H33
-- Que espera então de mim? ' ?
Creio que a minha boca, trémula, lembraria a de um peixe a sufocar-se depois de uma
onda o largar em terra.
- Um pouco de amor, se for possível. Não, peco-lhe, não faça essa cara de quem se
lembrou que tem um abcesso num dente! Amor ou o que lhe queria chamar. - Vagueou os
olhos pela sala, à procura de um abrigo precário. Pareceu-me um olhar branco, cheio
de sonho e de delírio. - Ternura. Mesmo que tenha só um poucochinho de verdadeira.
Como nunca ninguém gostou de mim, facilmente serei convencida... Eu inventarei o
resto.
Deu-me a sensação de que alguém me rasgara por detrás, com uma lâmina bem afiada,
deixando-me as costas nuas. Tinha sido um erro pôr a enfermeira com dono.
- Penoso talvez para si. Mas se não puder ser de outro modo, basta-me que me deixe
amá-lo. Nem que seja por compaixão. Não me sentirei tão desamparada.
- Talvez o esteja e nem admira, não é verdade? - Pôs-se a rodar com o tinteiro da
secretária, soltando, imprevistamente, um risinho aguçado. Mas isso não tem
qualquer importância. Que pensa do que se tem passado comigo durante estas semanas?
Sei muito bem que não me resta muito tempo e achei melhor devorar-me do que ser
devorada. Encarou-me com um sorriso astucioso e estendeu a mão para o maço de
tabaco. - Logo que teve o cuidado de fechar as portas, julgando certamente que eu
104
- Oh, que generoso! Dantes, não costumava ser tão condescendente. . . Ou é da regra
tornar-se menos severo nas vésperas da. . .
Ela, valha-nos Deus!, ainda arranhava como uma gata. Preferia que assim fosse. Eu
tinha-a atalhado com um punho sobre a mesa.
- Sim, deve ter razão - prosseguiu numa voz subitamente desmantelada. - Nada do que
fiz ou desejei fazer nestas semanas adiantou, posso agora confessar-lhe. Às vezes,
no meio daquela gente, apetecia-me gritar por socorro; mas eu sabia que ninguém me
ajudaria. É o que venho pedir-lhe: calor humano. Era bom imaginar que poderia
permanecer através do. . . da amizade de alguém. Pelo menos, não morrer sozinha,
num deserto. É tão difícil dizer estas coisas!
- E ouvi-las.
Clarisse não deu, ou não quis dar, pelo meu comentário. Empurrou-me os cigarros e
eu acendi um mecanicamente.
- Depois venha o que vier. Já não me rala. Os seus olhos piscavam sob o efeito da
fadiga e
- Não tenho coisa nenhuma. Posso levantar um pouco as persianas. . . mesmo contra
os seus "apetites"?. . .
105
- Pode. - -r
- É o que eu digo. . . Chegou o momento de nada recusar. Até certo ponto, é uma
vitória. . .
- Não, nunca mais me apanhará aqui. Leveme para qualquer lado, onde seja apenas uma
mulher. Sabe o que isso significa? Não quero ouvi-lo falar mais naquilo que vocês
gulosamente chamam o meu "caso". O hospital está cheio de "casos". - Clarisse
martelava acremente as palavras. - Devem bastar-lhe.
Desta vez, eu tinha o cigarro entre os dedos. Ia-o deixando queimar-se até o fim,
ardendo-me na pele, e nele se consumiria, também, a minha indecisão. Um pouco mais,
e iria sentir o saboroso ardor da carne martirizada.
106
XII
Cada vez me sinto menos capaz de prosseguir esta narrativa. Não sei defender-me
deste jeito adocicado e postiço. E espanta-me que tal aconteça, pois das raras
ocasiões em que tive de historiar casos clínicos - "aquilo que vocês chamam
gulosamente o meu 'caso' " - era tão árida a minha descrição, de um rigorismo
traçado à régua, deixando os leitores ainda mais gelados que as palavras
utilizadas, que me via forçado, embora rilhado por dentro, a sujeitar-me à censura
suntuosa do meu chefe de clínica, de quem já falamos e que de qualquer trivialidade
pilhada a um colega menos expedito fazia um vistão, repartindo-a em várias
comunicações chamadas científicas, perante as quais o leitor seduzido perguntava
onde estaria a droga ou a surpresa que lhe hipnotizara o senso crítico. Eu
apresentava-lhe as minhas observações condensadas em duas páginas ossudas, e ele só
dizia:
- Meu caro... - Perfilava-se nas suas magníficas calças e no seu casaco sem uma
ruga, de um cinzento aristocrático, e grulhava: - Meu caro: aqui está a pólvora;
falta-lhe agora a mecha para que se ouça o tiro. Não vou deixá-lo expor-se a um
fracasso.
Não, não deixava: a mecha esticava-se por mais umas dúzias de páginas de recheio
duvidoso mas inegavelmente enleador. E só assim a minha pólvora vingava. O preço
era o de o meu nome minguar, progressivamente, debaixo do dele, no momento em que
107
o trabalho passasse a letra de forma. Isso, aliás, com ou sem mecha, aconteceria de
qualquer modo: era uma norma do serviço.
Essa colaboração do chefe, como tudo o mais, tinha preferência por certos cenários.
Suponhamos que ele entrava no hospital, sempre muito rápido, muito "sem tempo para
coisa nenhuma", após uma das suas múltiplas e meteóricas viajatas ao estrangeiro.
Era uma das boas alturas para ele, esfregando com um dedo frenético o crânio
reluzente, nos falar dos trabalhos.
108
mas, ao falar do meu chefe, corre-me a pena sem eu dar por isso.)
Não sei contar, eis o que eu e vós deveremos concluir. E mais reconheço a minha
inabilidade de escriba ao chegar a este epílogo da história de Clarisse. O estilo
nem é o meu, áspero e breve, nem o das grandiloqúências românticas do chefe da
clínica. Ao querer, talvez, imitá-las, ou descobrir-lhes o seu ópio, embora pondo
de lado os desperdícios, fica-me nas mãos este melaço inexpressivo e pastoso que,
tal o cuspo adocicado do Guedes, me agonia.
Mas poderia ter sido outra a minha atitude? Não, decerto, garantia eu, embora
nenhuma garantia me bastasse. A minha conivência nos desatinos e excessos de
Clarisse traduzia apenas a solidariedade que se deve a um ser humano desesperado.
E, sobretudo, solitário no seu desespero. Era este o disco entorpecente que fazia
girar dentro do meu amor-próprio. E
109
seria amor o que ela sentia? Seria amor aquele olhar reanimado, a alegria versátil,
usurpadora, que lhe rejuvenescia os traços? Não, para ela eu era um pretexto, uma
oportunidade. A sua última oportunidade. E em mim, que se passava? (Perguntas,
sempre perguntas.) A ternura que eu lhe dava em troca - se é que eu sabia dar-lhe
voz - não me exigia esforço nem mentira, a ternura não precisa de amor para ser
justificada. Era isso? Apenas isso? Ainda hoje, a tão grande distância, o não sei
ao certo.
(Acaba de me escorrer para o papel esta frase volúvel: "Grande distância". No
entanto, a noção de tempo é bem caprichosa. Se eu quiser ser preciso, direi: foi há
três anos; quase rigorosamente há três anos. Mas logo adianto: será possível? Na
minha cabeça, alguns dos acontecimentos decorreram apenas ontem. Ou agora mesmo. É
esquisito que o tempo se detenha assim! Outros, porém, esquivam-se de tal modo ao
meu esforço de os captar com fidelidade, estão já tão longe, dizem-me tão pouco
respeito, que me acho, às vezes, a refazê-los por inteiro. E nas remoídas horas em
que medito sobre estas páginas que vou escrevendo chego a ter dúvidas sobre quais
desses acontecimentos merecerão, afinal, sobreviver.)
Eu trocara, sem entusiasmo, a velha casa onde, havia anos, vivia só, por um
apartamento que tínhamos alugado numa das zonas mais recolhidas da cidade. Mas os
nossos dias eram lá fora: dávamos muitos passeios, por aqui, por ali, sem programa
nem horário. Dias alucinantes, dentro de um frenesi que os aturdisse. Se
parássemos, se consentíssemos uma pausa de reflexão, onde acharíamos coragem para
prosseguir? Às vezes, sentávamo-nos à beira de uma estrada, à hora em que o sol
amansava, afrouxados pelo cansaço, deixando que a austera tranquilidade das
110
As coisas aconteciam, a maioria das vezes, deste modo: Clarisse fazia-me parar o
carro sempre que uma várzea, digamos uma certa várzea, um certo moinho, um bosque,
um rapazito que corresse além atrás de umas cabras, lhe mordessem a febril
curiosidade. Dava-me a ideia de que o menor zumbido, um longínquo aroma, lhe faziam
vibrar os sentidos. Mas se, para mim, citadino, o encontro com tal mundo quase
ignorado desencadeava sensações até aí disponíveis, nela dava-se uma insondável e
premeditada imolação: fundia-se para que o que nela havia de efémero pudesse logo
renascer e perdurar em todas as coisas vivas: um inseto, um chamado distante logo
absorvido no pasmo dos campos, o voo repentino de um pássaro arisco. De cada uma
dessas vezes se acendia, no fundo das suas íris esverdeadas, um clarão inquietante.
E eu, farto já de bucolismos, sabia que me esperava mais uma boa caminhada, a que
ela resistia
- com que secretas forças! - muito melhor do que eu.
- E agora, que nos faltará ainda descobrir? Um alambique? Uma centopeia com duas
patas? . . .
- Oh, não rias! Por favor, não rias! - censurava Clarisse, como se eu tivesse
acabado de dizer uma heresia.
111
-- Na cidade sinto-me perdida. Mas não quero sacrificar-te.
- Não exageres, Clarisse. Não estamos no sertão! A seis quilómetros há uma vila,
restaurantes, cafés; e a trinta, um bom hotel.
- Mas já pensaste quanto irás perturbar esta gente, se é que estão dispostos a
aturar-nos?
112
dedos ficaram a meio caminho do boné. Deu-me a impressão de que, em vez dele,
entrara por ali um enxame enervado. O enxame zunia à nossa volta, aproximando-nos,
de instante para instante, um ferrão assassino.
Quando descíamos a vereda que nos levaria ao cobiçado automóvel - e dessa vez
estava certo de Clarisse concordar com as vantagens de um bom hotel! -, ouvimos um
tiro de espingarda. Era ainda o homem. Ele deu mais um tiro e outro, para o ar, ao
ver que tínhamos parado, hesitantes e perplexos.
O saldo, porém, como disse, pertencia a Clarisse. E o mais intrigante, para mim, é
que ela não parecia de modo algum surpresa com a hospitalidade às vezes sôfrega,
que usava de todos os meios ingénuos para se manifestar, enquanto eu permanecia de
lado, reticente e carrancudo. Havia muitos equívocos na minha experiência e no meu
ceticismo de lobo enjaulado. Coisas a rever. Ela bem me atiçava nessa mistura
desprevenida com os estranhos, dispondo de uma
113
- Oh, que maravilhoso pão caseiro! Desse, pois. Serve-te, Jorge, verás como é
delicioso. Quando eu ia a férias, à minha terra, os vizinhos já sabiam que era este
o manjar que eu mais apreciava. Mandavamme pãezinhos de centeio, aos domingos, como
se se tratasse de uma guloseima. Mas, se não gostares, estes amigos trazem-te pão
de trigo.
E, de súbito, eu era possuído pela sensação de que conhecia, havia muito, aquela
gente. Afilava os olhos para os ver melhor. Pois: já se me tinha deparado o velho
patriarca cuja boca arfava sob a barba, já conhecia este petiz de pupilas lisas e
puras como um céu de agosto; e as mãos encardidas que me estendiam a terrina com o
guisado pertenciam à grelha de certas recordações. Eu não era um intruso nem eles
seres alheios à minha vida. Coisas, enfim, a rever. E essa revelação era uma dívida
para com Clarisse.
Era a ela, no entanto, que sempre se dirigiam. Eu nada sabia transmitir-lhes do que
se passava dentro de mim.
114
tava escapar-se por debaixo dos toros. No seu rosto anguloso havia um tom de cobre
embaciado pelo uso. Nunca repetíamos os mesmos lugares: por isso, tanto gastávamos
uma tarde nas ruínas de um convento ("nas pedras desabitadas ainda ressoam
palavras; não as ouves? Há quem pense que cada vida deixa nas coisas um eco que
dura anos, séculos. Talvez seja por isso que, nestes ermos, julgo sempre que, de um
momento para o outro, vai surgir uma pessoa saída do fundo dos tempos. Sinto-me
arrepiada! As pessoas nunca morrem verdadeiramente, não te parece também, Jorge?")
como numa bodega. ("Verás que nos irão oferecer um copo de vinho. Ficarão
satisfeitos se aceitarmos. E nós aceitaremos, claro.") Eram as vidas autênticas que
ela procurava. Chegamos a enredar-nos em humilhantes complicações com a polícia,
por Clarisse enfiar o nariz em histórias e ambientes duvidosos.
- É tão bom viver, querido! E pensar que eu poderia ter deixado de conhecer tantas
coisas maravilhosas!
- Pois se me falta um bom guia!. . . - e, com perfeito descaro, era muito bem capaz
de ter, em público, uma destas mimalhices que fazem ruborizar um cristão.
De uma vez descobriu uma portada que se abria para um insólito formigueiro humano:
um pátio, um mundo, ali encastoado na carne anónima da cidade. Reparei quanto ela
estremeceu de gula. De gula, desejo frisar, e não de horror. Os casebres feitos, na
generalidade, de miseráveis desperdícios, as crianças mendigas!, os velhos
refugiados na concha da
115
De nada valeria dizer-lhe: "E tão esfomeados, tão imundos!" E a verdade é que eles
decifravam-lhe o sorriso. O intrometido era eu. Um dos mais gaiatos, prontamente,
estendeu-lhe a mão e a rapariga de cabelo muito negro, ligeiramente estrábica, que
momentos antes nos virara as costas, recomendou:
- Fique um de vocês de guarda ao carro deste senhor. Não deixem que lhe façam
riscos.
Clarisse perguntou-lhe:
116
- Ai, aqui há doentes? -.-: : ;ijtjK Lá se acendia a labareda! Mas ninguém lhe
respondeu à ingénua, e mórbida, exclamação. A luz, de uma brancura ácida, mordia-me
os olhos. Pus-me desassossegado.
- Entramos, Jorge.
- O raio da velha julga que lhe comem algum bocado! - e dirigindo-se a Clarisse: -
A senhora queria ver um doente, queria? Mandaram-na cá da Visitação? Então venham
daí, que está ali perto um desgraçadinho.
E eis que todo o nosso grupo rompeu tempestuosamente pelo interior do pardieiro.
Pessoas e galinhas, pessoas e pombos e trapos e móveis inventados de tábuas que
tinham conhecido vário préstimo, numa mistura de fedor e alarido. E o doente. Deu-
me a ideia de um Menino Jesus de carne e osso. A pantomina estava demasiado bem
desempenhada para não ser autêntica.
- Trouxe-lhes um médico. E dos entendidos! Vá, vocês, miúdos, toca a sair lá para
fora.
aquela oferta de uma perna de galinha que alguém trouxera ao doente. E o maço de
cigarros. E também o rádio portátil que eu, atónito, descobrira numa das enxergas e
que poderia ter sido pilhado nas redondezas apenas para regalo do enfermo. Vi-me
assediado por uma fraternidade oca que, se tivesse uma expressão física e lhe
tocasse, soaria provavelmente a moeda falsa. Ou, então, a sua falta de sentido ou
de autenticidade partia de dentro de mim. O Romualdo, que era muito no estilo da
medicina lacrimejada e clinicava, por sacerdócio, em lugares como aquele, um dia
enchera-se de fobia e disse-me: "Vá lá você, Jorge. Eu não aguento mais". E
enredara-se seguidamente numa decifração ensarilhada do mistério de, após milénios
de civilização, o homem não ter resolvido este problema imediato: o de, sob o mesmo
céu ben2Ído por Deus, haver hotéis majestosos, onde o burguês nem sabe que mais uso
fazer do conforto, ao lado de quem não possui um farrapo para se cobrir. "Eu nada
quero saber de política, Jorge, mas há coisas que me fazem sentir responsável e
abjeto." "Comovente, meu bom Romualdo; pois o melhor modo de nutrir essa abjeção é
proceder como as velhas caritativas que lhe seguem a pista: esmolas e guitarra."
Mas isso não poderia eu dizer a Clarisse. E assim, saturado do cheiro animal, de
mijo e de outras coisas mais, ia a escapulir-me quando ela me segredou, enquanto
nos seus olhos vacilava um doce clarão:
- Podes fazer alguma coisa pelo doente? É grave? - Mas, logo revoltada com o meu
constrangimento, esporeou-me: - Isto não representa nada para ti?
- Então dize-lhe que tudo correrá bem. Tronqíiiliza-os, fala! Vocês nem chegam a
saber o calor de
118
119
isso!
Reparei no velho, na argúcia desencantada da sua boca. Ele captara a ansiedade que
Clarisse pusera no rogo. As sobrancelhas dele, alertadas, moveram-se como aranhas a
mudar de poiso.
- Oh, menina! Quando morre alguém, murcha uma estrela; e, antes disso, já'a vemos
empalidecer.
- Nascem outras. Em todo o caso, a gente sabe sempre quando uma estrela vai
desaparecer. Correm pelo céu, deitando rastilhos de lume. E todas as outras, à
roda, escurecem.
- E a minha estrela?
Ele refletiu. Apesar da hora matinal, a toca era penumbra; pelas frinchas, no
entanto, enfiavam-se alguns raios de sol, que, travessos, perseguiam os gestos do
ancião, as suas têmporas latejantes, a barba encaracolada, incendiando-lhe, de
fugida, os olhos matreiros. Ele afagou ainda os joelhos antes de responder com
arrastada suavidade:
- É pequenina. A sua estrela é pequenina. A gente pode pegar-lhe assim, com as duas
mãos.
Quando abri a porta da rua, para sairmos, fi-lo com uma lentidão de culpado.
- Ele não me quis dizer. Não me quis dizer a verdade. Bem o percebi. - E, de
súbito, fez-me parar: - Fala-me sem rodeios, Jorge: acreditas nessas coisas? Nem um
bocadinho? Ah, bem sei que os homens nunca confessam as suas fraquezas.
120
- Sou. De fato, sou. Sou ainda mais do que piegas: uma chalada. Agora é que eu sei
que não presto.
Eu tinha uma sede danada. Umedecia, em vão, os lábios secos. Procurei nas
redondezas uma cervejaria onde pudesse beber duas canecas seguidas. Ela apreciou,
com um enlevo bem-humorado, o requinte que eu punha no ritual de passar a língua
pela espuma de cerveja que me orlava a boca.
ro. ..
- Reconheço que tens sido paciente. - Eis a nuvem escura sobre a alegria da sua
expressão. Reparaste como o homem evitou uma resposta?
- Não troces, Jorge. Todos evitam dizer-me a verdade. Tu, ele, todos. - Fez seguir
essas palavras de um longo momento de expectativa. - E eu, afinal, só queria saber
se. . . Achas que viverei o bastante para. . . para que possas sentir alguma coisa
por mim?
Clarisse ainda não me tinha feito essa pergunta. Pelo menos daquele jeito: sem me
deixar um buraco por onde escapasse. Peguei-lhe na mão e apertei-a, carinhosamente.
Era tudo o que eu poderia fazer.
121
XIII
Num dos passeios, Clarisse fez-me parar bruscamente o carro junto dos muros de uma
quintarola dos arredores. Aliás, as velhas mansões, mesmo que o tempo e o êxodo
para a cidade as tivessem assolado, fascinavam-na. E a mim também. Flores lilases
vinham do outro lado do muro até à rua, libertandose das heras enroscadas. Via-a
tão embevecida com as flores, numa excitação desconforme, que receei um choque
emocional de que não podia perceber o motivo. Nela, dia a dia, havia zonas
obscuras, pegos, onde não me chegavam as mãos. E isso acabara por me confundir e
saturar. Clarisse, por fim, teve um dos seus sorrisos em que havia zombaria e
astúcia.
123
- É uma hora ignóbil, esta. Mas perdoo-lhe a infelicidade que me traz pelo que me
sugere - dizia ela, falando baixo. Uma fala rouca, emergindo dos fundos de uma
espécie de terror.
- Que te sugere?
- A infância.
Clarisse havia-se deitado sobre a relva, o rosto meio oculto nas folhas dos
arbustos que balançavam com indolência, misturada no cheiro da terra. Eu imitara-a.
Ficou por cima de nós um céu espavorido, donde desertavam umas feias nuvens, ao
pressentimento da borrasca. Uma delas, menos expedita, ia passando devagar. Depois
alongou-se exageradamente e, na sua teimosia de se exibir ou ficar para trás,
agonizou sem dignidade, devorada por outra que lhe vinha no encalço. A infância. A
infância - devia ter ela repetido para si, digerindo as palavras e as evocações que
lhe traziam. A infância tinha um tempo vasto à sua frente. Nem a imaginação nem os
desejos lhe encontravam os limites. E, afinal, tão curtos que eles eram no seu
caso! E, para mim, que era a infância? Eu fechara os olhos, para que o recuo fosse
mais longe, e depois, talvez oprimido pelo silêncio dos campos despovoados, abrira-
os de novo. Por cima, já não havia nuvens. Um céu lavado e oco - um abismo, o fundo
de uma cratera para onde escorregavam os meus olhos entontecidos. Senti,
abruptamente, a vertigem da sua sedução. O abismo esperava a minha queda, no espaço
ou no tempo, agora que a mecânica densa dos meus dias, executados como um relógio
pontual, abrira uma brecha. Ele estava certo de que eu não me recusaria. Voltei a
cerrar os olhos esvaído, deitei-me de ventre sobre a terra. Tive a sensação
momentânea de que deixara de existir. O que existia era a presença aguçada das
coisas. Não, não existiam apenas os arbustos, as flores lilases com a grenha
desmanchada sobre os olhos, os pinheiros, a linha tor-
124
tuosa e áspera da serra distante, aquela brisa envolvente, que ressoava a longas
viagens. Existia Clarisse
- Não te parece, Jorge, que o tempo não conta, mas sim como foi preenchido? Uma
hora, às vezes, chega. Nela pode caber uma vida inteira. - Rodou também sobre si,
acertando com a minha posição.
Que podía eu dizer-lhe, sem a crosta dos hábitos a defender-me? Segui-lhe no rosto
a minha própria perturbação.
- Deves ter razão em duvidar. Para te falar franco, chego a julgar que me
inventaste - e apertei os dentes, atravessado por uma dor instantânea.
Bem vi que outros pensamentos galopavam de encontro às suas têmporas. Não lhes
daria voz, porém. Pelo menos, a todos. Clarisse preferia não esticar, além de
certos limites, as cordas do meu enfado. Picava-me, apenas. Ia aceitando,
gradualmente, em-
125
bora com espanto, fúria e terror, o pouco que eu lhe poderia oferecer.
- Nunca quiseste saber nada de mim. Vá, que sabes tu do meu passado?
- Escuta, Jorge, agora escuta-me. Quero sentir que estás, realmente, aqui. Tu
poderás compreender que eu deseje tanto que saibas tudo de mim? Só assim poderei
pertencer-te, como eu quero. - Ela fazia pontaria ao meu mutismo, para o
estilhaçar. Mas logo uma ira crispada lhe borbulhava nas narinas frementes. - Dá-me
às vezes a impressão de que és um saco de areia. Dou um murro, a mão amolga o saco,
mas não se ouve pancada. E o saco, claro, fica na mesma. Será inútil repetir o
murro.
- Faltava que alguém me definisse desse modo... Geralmente, o murro ouve-se, e bem,
pois sou eu próprio a desejar ouvi-lo. Para que não fique sem resposta. . .
- Dá primeiro o murro.
Ela desenhou-me a boca e os olhos com os dedos, antes de, subitamente, com fereza,
me beijar.
126
- Uma garota de nariz arrebitado. Caprichosa, volúvel, nem sempre fácil de aturar.
Fiel ao meu jogo, tive um sorriso que pretendeu ser jovial, mas que resultou duro e
sombrio. Nem assim, porém, lhe evitei as receadas inquirições.
- Mesmo as desnecessárias?
Os dedos dela, úmidos, voltaram a aventurarse pelo meu rosto. Quando estava
nervosa, bastava prender-lhe as mãos nas minhas para o saber. A sua pele tornava-se
pegajosa. Era um contacto indesejável.
- Supões então que o meu passado é assim tão. . . sem interesse. . . ou tão
secreto?
Clarisse abriu a boca para dizer alguma coisa, mas pareceu reconsiderar e, durante
uns minutos, deixou-a asperamente cerrada. A sua expressão era a de quem estivesse
a saborear um gracejo amargo. Depois, encolheu os ombros e disse:
- Por saberes que a minha vida já não pode ser desperdiçada com recordações...
127
Ela sacudiu a cabeça nervosamente. 'f
- Estou farta de estar aqui. Desculpa, vamos embora. Fazes o possível, bem o sei. É
já muito que consintas em aturar-me.
- Pois é, só digo tolices. Vamos embora. A culpa deve ser deste vento, desta
abominável paisagem.
- Mas tu gostas.
- Gosto. Gosta-se de muitas coisas que, por fim, nos empastam os sentidos. Por
favor, leva-me depressa.
128
mento no minuto seguinte. Esse abuso de emoções, mesmo que só prenunciado, era, uma
vez mais, exasperante. Daí, pus-me em guarda, sobretudo quando ela abriu de novo os
olhos e me sondou de esguelha, com zombaria. Eu sabia bem que ela ia falar, que
media a surpresa das palavras, e eu, nessa tarde, já não lhe suportaria o jogo de
flagelações.
Peguei num cigarro. Clarisse abrigou-me a chama do isqueiro com a mão que ficara
solta e depois, de cabeças quase juntas, beijou-me a boca. De repente, à traição,
como uma punhalada. O carro guinou com a travagem inoportuna, ia-se descomandando,
de tal sorte que ficamos a dois palmos de um valado.
Tudo se passara em instantes. Ela teve um riso nervoso, um tanto feroz, que em vão
fazia por reprimir ao enfrentar o meu gesto esboçado de censura.
De súbito, senti o seu pé sobre o meu. Como a apoiar-me. Como num desafio. Esse pé
aumentou a pressão, gradualmente, calculadamente, a haste do pedal foi
desaparecendo, enquanto o meu corpo, e sobretudo os dedos retesados no volante, lhe
recebiam o alarme e as vibrações. Só a muito custo eu dominava o deslizar do carro
para as margens. Acei-
129
Seria aquilo coragem? Mas eu concedia que assim fosse. Sentia em mim tanto de
irritação como nela de improvisado propósito de me avaliar a resistência ao
desatino. No entanto, ao abeirarmo-nos de um traiçoeiro ressalto da estrada, nas
faces de Clarisse já não havia sangue. Apenas o brilho do susto saboreado. E também
uma outra reação, ainda a gerar-se, mas que, aos poucos, ia avultando; o rosto
tornara-se-lhe grave, quase refletido. Contudo, nem quando ela se abriu: "E se isto
acabasse desta maneira?", apreendi o sentido da brusca viragem na sua atitude. Por
isso, devolvi-lhe estupidamente a provocação de há pouco:
130
após outra curva, quando a azinhaga, uns metros além, ia partir-se em duas, fui
varado pela certeza de que já seria tarde para qualquer tentativa de perícia. Ó
suor arrefecia-me a testa. Tudo iria, efetivamente, acabar. Clarisse sentiu o
mesmo, mas, absurdamente, o seu pé soltou-se, fugindo do pedal, negando-se, de
chofre, à ameaça e à cumplicidade no pavor; os seus dedos formaram um escudo à
frente do rosto. Encolhendo-se de encontro a mini, gritou:
- Cuidado, Jorge!
Passamos o cruzamento nem sei como, o carro num balanceio de navio ao sopro de um
tufão, até eu lhe moderar o desatino. Já lhe conseguira impor uma velocidade
sofreada e ainda Clarisse não tomara consciência de que o perigo ficara para trás.
Quando tomou contacto, mas por intuição, com a marcha tranquila, com o sossego das
árvores que já não eram devoradas, susteve a respiração, como quem evita embaciar
um espelho que se tem junto à boca, como se alguma coisa, o céu turvo, a cidade de
colinas altas, já tão próxima, o heroísmo ou a covardia, tivessem desabado sobre
ela; e olhou-me então com o espanto e o alívio cético de um sobrevivente, finda a
catástrofe.
Balbuciou qualquer coisa que não percebi, passando a língua pela secura dos lábios.
Uma veia pulsava-lhe, ainda em sobressalto, na fronte desmaiada. Eu persistia no
meu azedume. Preferia manter-me na posição de quem acusa.
- Estás a olhar para mim mas não me vês. Clarisse debatia-se um pouco mais antes de
se submeter com a humildade que precedia as pausas de desalento. - Acertei?
- Procuro descobrir se há uma outra por detrás de ti. Uma outra Clarisse, a
verdadeira.
131
- É o que pergunto em certos momentos. Ela cerrava de novo os olhos, macerados pela
quietude grave que nos envolvia. A sua respiração era breve. Ainda não se refizera
do abalo. Por que não a ajudaria a desanuviar-se? Que gosto esse, tão frequente,
por vê-la rabiar como uma lagartixa de cauda cortada? Fui possuído pela sensação de
que, na maioria das vezes, eu era para Clarisse um inimigo atento ao mínimo deslize
que lhe pudesse trair os defeitos. Tinha de me defender contra isso, tanto como das
armadilhas do seu humor instável. Passei-lhe os dedos pelos cabelos. Ela reteve-
mos, aceitando a carícia com docilidade.
- As coisas que nos vêm à cabeça, Jorge! Mas agora só queria saber se, há pedaço, o
medo que tive foi por mim, se por ti.
132
XIV
No entanto, Clarisse tinha de falar do passado. Arrumá-lo (tal como eu tentava
arrumar o meu presente, unir o <que fazia ao que sentia, sem porém, o conseguir),
esclarecê-lo para se libertar melhor. Ou então era-lhe necessário, por orgulho,
talvez, justificar certos aspectos contraditórios que se farejavam na sua vida.
- Decerto.
- Muitos doentes?
- Alguns.
Clarisse não insistiu. De olhos fitos na vastidão sonolenta das águas, seguindo-
lhes, com ar absorto, o estremecimento subterrâneo, que às vezes refluía como uma
maíicha de óleo, ela estava, no entanto, de pensamentos ^ léguas dali. Bem lhe
percebi a ausência. Estalei com os dedos a chamar o criado.
133
dose a Clarisse: - Hoje, este jantar vai ser com todas as regras. Aprovas?
Ela acenou que sim. O lampião rente ao muro do terraço dava-lhe uma tonalidade
crua. A sua beleza surgia assim estranhamente artificial ou mortificada. Mas pelo
meu lado, assaltara-me um desejo imbecil e urgente de boa disposição.
- Queres então que te fale da minha consulta de hoje... Aí vai: observei um bom
homem das Beiras, com o rosto bochechudo da cor do salpicão, e reformado da Câmara.
A sua doença era essa, julgo: uma reforma que o obrigava a trazer fundilhos nas
calças. Depois, uma algarvia. Padecia de tudo, muito particularmente de uma língua
infatigável. Etc. Estás satisfeita? Claro que, de todas as vezes, eu repetia o
estribilho: "Não é para esta consulta". Levo os dias a repetir as mesmas coisas.
Estas e outras, como um papagaio.
- Essa tarde, Jorge, creio que não me fiz entender. Devia ter dito logo que o meu
desejo era que conhecesses melhor a Clarisse. Não, não me refiro àquela tolice do
automóvel! Isso está esquecido. E espero que também o esteja da tua parte.
Disse as palavras de roldão, a desfazer-se delas de qualquer maneira, e ficou a
sacudir o pescoço, como um frango engasgado.
Esvaziei o copo, esperando que ela dissesse o resto. Havia um resto, de certeza.
Ela tinha uma maneira imprevista de travar e ficar em guarda, dando
134
tempo a que se revelasse aquela parte de mim a que as suas palavras não conseguiam
acesso.
- Acaba o teu mar tini, Clarisse. Posso agora confessar-te que na noite em que te
encontrei no cabaret bebi mais martínis do que em todos os anos da minha vida.
Fiquei a gostar.
Donde lhe vinha aquele reflexo esverdeado das pupilas? Do rio? Da noite? Um reflexo
verde mas opaco. A opacidade dos velhos espelhos que retêm as imagens de que
ninguém se lembra. E a voz subitamente ausente? Nunca a sentirão tão longe de mim.
Tão desapegada. As suas palavras não me eram dirigidas. Era uma sensação
desconfortável. Achei-me a estimulá-la ao diálogo, numa tentativa ciumenta de a
recuperar.
- Não era bem isso: mais leal com o presente. As perguntas que te fiz esta tarde
eram importantes. Mais do que supões. Sabes que é viver toda a vida em companhia de
gente para quem significamos muito pouco? E isso nem ao menos nos ajuda a
encontrarmo-nos. Nem isso. Sei-o agora.
Havia, como de outras ocasiões, certa irrealidade no que ela dizia. Mas talvez essa
irrealidade estivesse antes na entoação. Não o sei. O certo é que, ao ouvi-la
depois falar no passado, não senti que fosse eu o interlocutor: como se Clarisse
tivesse gravado essas palavras noutras circunstâncias, para outros ouvintes, e
agora as reproduzisse para inventariar as reações de alguém que se deseja conhecer.
Fitava-me com estranheza e arguta minúcia. A voz monocórdica
135
nada tinha que ver com esses olhos que já não eram foscos, antes sobressaltados, de
uma agilidade de lebres esquivando-se à matilha.
Foi assim que fiquei a saber que Clarisse nascera numa cidadezinha da província. O
pai tinha um modesto comércio. Um dia, não suportando mais o ambiente, ela saíra
dali para cursar uma escola comercial. Depois vieram os instáveis e miseráveis
empregos de escritório, as ciladas, os amigos e, às vezes, os dias sem dinheiro
para uma refeição. Apaixonarase por um homem casado ("Para que precisamos nós tanto
de gostar das pessoas!") e, seguidamente, quase sem transição, por um artista.
Este, por fim, vendera-a. Ela deixara-se negociar com a passividade de um ébrio que
aceita todos os copos que lhe põem nas mãos. Não fora bem assim - corrigira. O
amante era um tipo da grande finança e ela aceitara-o por desprezo ao artista.
Quando reparou no logro (o artista não sentira qualquer afronta), decidira fazer
uma coisa terrível: por exemplo, lançar-lhes ao rosto um ácido corrosivo. Que todos
lhes pudessem reconhecer a monstruosidade. Vira isso num filme. Num dia de maior
solidão e amargura comprara o bilhete de cornboio para a cidadezinha natal, mas ao
chegar à estação verificou que nada daquilo lhe dizia respeito: era ali uma
estrangeira. O que lhe restava de seu era a independência, o aceno de uma vida
despremeditada. Tomou o primeiro combio de regresso. Mais tarde recebera a
inesperada herança de um parente.
- Como vês, não me devo queixar: passou por mim muita coisa, menos bolor. . .
Aconteceu-me um pouco de tudo. Até a morte marcada por um despertador que, uma vez
que lhe foi dada corda, ninguém o fará parar. Este vinho é bom, Jorge, tu afinal
percebes destas coisas. Não, não me devo queixar. Mas a verdade é que me queixo,
não é o que dirás? Riu, de súbito, numa alegria despropositada. - Te-
136
II
Chamei de novo o criado. Ao voltar-me, encontrei um par muito jovem que se sentara
numa das mesas. Não dera pela sua chegada. Eles tinham as cabeças juntas, a boca
imóvel, quase severa, os olhos assestados no festim de luzes do ferry-boat. Se
alguém ali desse um berro, nem estremeceriam. Depois ela rodeou o companheiro com
um braço, não para o acarinhar, mas sim para que os dedos lhe buscassem, no bolso,
naquele exato bolso, um cigarro. Naquele exato bolso. Ela estava certíssima de não
se enganar. Nenhum pormenor me poderia ter sugerido tão profunda identificação
entre dois seres. Senti-me parvamente emocionado. Talvez por isso, um ressalto da
narrativa de Clarisse, contada num humorismo sombrio, ficara-me retido e ei-lo a
ferroar-me os ouvidos: a história da herança. Parecia incongruente, ao confrontá-lo
com a situação atual de Clarisse. Naquela noite, depois do cigarro que, no exato
bolso, aguardava as mãos da rapariga, não lhe perdoaria uma mentira. Daí, embora
fosse outra coisa bem diferente que ela esperava de mim, insinuei:
- Não foi grande coisa. Não levou muito tempo a gastar o dinheiro em viagens e
vestidos.
- Em vestidos?!
- Por que esse espanto? - Ela riu-se docemente, com afeto. - Tu és daqueles que
nunca cornpreenderão verdadeiramente uma mulher. Tive sempre a impressão de que
medias qualquer mulher por ti, quer dizer: pelas virtudes e defeitos de um homem.
Era quase certo que ela tinha carradas de razão, já Lúcia mo dissera antes - e pela
primeira vez via-me empurrado a meditar nesse aspecto da minha personalidade, que,
porventura, explicaria algumas
137
das reações que me eram habituais. Ainda nessa manhã, na tal consulta que Clarisse
se esforçara por me j fazer relatar. . . Ainda nessa manhã. A algarvia tinha, como
era de norma, a sua idade marcada na papeleta. Mas eu não reparara nisso e, ao
tentar desensarilhar-me do embrulho das suas queixas ("sinto umas coisas na cabeça,
a subir e a descer, sinto uma vontade nem sei de quê, de partir cadeiras, por
exemplo, ora veja o senhor doutor para que me dá"), eu disparara a pergunta, uma
certa pergunta, da qual às vezes se partia para uma investigação mais certeira:
- Trinta e sete.
- Ninguém o diria.
E este "ninguém o diria", mesmo de olhos baixos e secamente, bastara para abrir uma
fenda de paz, de arrumação e de confiança, na doente. A partir daí, tudo se
simplificara. E ela saíra do gabinete com alguma coisa mais do que antes de chegar
à minha presença.
E não só a algarvia. A tal velha também, a seu modo, e por outros caminhos.
- Ah, o senhor sabe! (Eu lera no dossier, mas ela estava longe de supor que uma
doença de há anos atrás tinha ali a sua marca, catalogada como um crime.) Então foi
o senhor que já nesse tempo me tratou, ora basta que sim! E como ainda se lembrava!
Tão simples, tão eficaz e simultaneamente tão difícil. Difícil para mim.
138
rapariga dissera a outra "és uma cabra, Teresa" só porque ela lhe esfrangalhara uma
pobre ilusão. Uma ilusão que, no entanto, tinha a consciência de o ser
- mas era necessária. Que eram as pessoas? Ilhas. Ilhas isoladas e um braço
estendido, a fazer de ponte, por onde se esparava que passasse alguém.
Assim era: eu não sabia compreender uma mulher. Em Clarisse, por exemplo, teimava
em ver apenas a doente - as suas reações deviam ter sido descritas, classificadas,
algures, num tratado de medicina. Tal como um enfermo, achacado de pelagra, que
corre doido pelos campos. Se corre doido pelos campos, tem pelagra. É a pelagra que
corre. Se aqueles breves raios de loucura passavam por Clarisse, se o mórbido
desvario a conduzia a atitudes extremas, é porque as patologias as previam, as
regulamentavam. E se assim não fosse?
- Que beliscadura?
- Ora, falei-te de mulheres. E tu julgas ser um puritano. Pois vou agora dizer-te
por que espatifei o dinheiro daquele modo. Estava farta de ser eu, miserável como
um casaco velho. Percebes? Este vinho é mesmo born. E a linda cor que tem,
transparente, tão leve. Repara aqui! Tu sabes lá o que representa vestir durante
anos um casaco velho! E então pensei que os vestidos e outras coisas para que nunca
me sentira atraída me dariam uma nova personalidade.
Ardiam-me os rins. Já não queria estar bem disposto. Nem ouvi-la. O momento
passara. Aliás, ela falava excitadamente e cansava-se. Daí a nada a sua voz tornar-
se-ia anelante e segredada. Mas seria inútil impedi-la. Apenas disse:
139
- Ah, ainda bem. Vais então compreender. Deita-me um pouco mais de vinho, Jorge.
Assim, basta. Eu queria ser diferente, começar tudo de um novo ponto de partida.
Como se me tivessem oferecido outra vida. Seria maravilhoso, não te parece? Mas o
vazio ampliou-se. E não havia razão para isso, pelo menos na aparência, não achas?
A verdade é que eu fugia das coisas que valem a pena, das que nos enchem cá por
dentro, mesmo que seja preciso sofrer por elas. Ou então negava-me a verificar que
não tinha coragem para as merecer.
A sua voz, como previra, tornara-se lenta e monótona. Tal como o céu espumoso que
nos cobria. Ela ia arrancar as palavras ao fundo da memória para as trazer, já sem
vibração, aos meus ouvidos distraídos. Essa toada acabara por me entorpecer. Só
desejava que ela terminasse aquilo depressa: os meus nervos estavam saturados. Foi
com irritada fadiga que lhe ouvi dizer ainda que, quando adoecera, já não havia
dinheiro, mas que se resignara, sem desgosto, a uma enfermaria.
Chegando aí, calou-se. Esperava decerto que, fazendo prolongar o eco das últimas
palavras, me estimularia, finalmente, a uma referência àquilo que tanto eu como ela
(mas eu, sobretudo) procurávamos fingir que não se atravessava entre nós. Era a sua
segunda ofensiva naquela noite. (Uma bela noite de nudez saciada, que apetecia
silêncio, modorra e não palavras.) Ela raramente tinha ânimo para fazer um ataque
frontal; no entanto, de todas as vezes que estávamos juntos, a sua ansiedade
interrogativa pediame aqueles nadas que reanimam uma vida. Em particular uma vida
que não tem de que habitar o futuro.
140
- Enfim, Clarisse, fiquei a saber muita coisa de ti, como desejavas, e também que
não percebo muito de mulheres. Ora, para começar a minha aprendizagem, acho que
deverei mandar-te flores. É uma ideia que me acompanha, como se fosse um pecado,
desde esta tarde.
- As flores.
As flores. Que fosse para o diabo mais os enigmas. Levei o último copo à boca e
esvaziei-o. Já lhe ia ganhando o jeito.
141
XV ,,:-
. . . Pedía-me aqueles nadas que reanimam uma vida. Enfim: a torpe ilusão de que
poderia haver um erro ou uma possibilidade. Mas nem só Clarisse necessitava dessa
ilusão, embora fosse eu, que também dela necessitava, a última pessoa que a doença
pudesse burlar. Não era apenas a magreza, o embaciado amarelento da face, os olhos
que começavam a parecer desmedidos, isolados numa paisagem desabitada: as próprias
feições se tinham alterado. A gente percebia-lhe, com uma ácida e progressiva
nitidez, a corrupção. No entanto, à medida que essa decadência se acentuava, menos
eu a queria admitir. Pela primeira vez, por assim dizer, nesta revolta das
vísceras, eu fazia a violenta descoberta da morte através de uma pessoa ainda viva.
Durante as minhas vigílias de cigarros traspassava-me o eco de longínquas vozes.
Desejei muitas vezes ter alguém (e só então reparava, com azeda amargura, quanto
tinha sido até aí desastrado nas relações humanas, quando conduzira as pessoas a
respeitarem-me por entre uma gélida terra-de-ninguém, a temerem-me e nunca a terem
estima por mim), um amigo que interpretasse as incongruências do meu procedimento,
humanizando-as a meus olhos, ajustando-as, se fosse possível, à espécie de pessoa
que eu julgava ser. Eu, por mim, de modo algum as poderia ajustar.
143
Ilíadas na sangria dos dias, que me tinham enchido as mãos de um calor de sangue
desperdiçado - emoções que, de súbito, haviam encontrado uma fissura por onde
rebentar? A pergunta seria talvez mais coerente se eu lhe desse uma expressão
exata; que era Clarisse para mim? Eu temia, porém, essa precisão. Tenho evitado,
mesmo, reler o que fica para trás pois receio que nestas páginas já a verdade, por
si só, embora a desencaminhe por atalhos, haja furado a armadura das palavras. E,
no entanto, bem sei que a pior raça de embusteiro é o que se escolhe como vítima.
144
Tenho de falar mais dessas noites, mesmo que o não queira. As noites, por vezes,
quando são flácidas, dilatam as formas. Os volumes perdem os contornos. São
modelados pelo pesadelo. Concentramos, por exemplo, as ideias num pedaço do nosso
corpo, um dedo, um joelho, e sentimo-los distorcidos, excrescentes. Apetece-nos
decepá-los. Lá fora, acontece o mesmo: as coisas dormentes agitam-se para uma dança
sonâmbula, as mortas fumegam das cinzas, e tão densa é a espessura da atmosfera que
o nosso desabrigo goteja como de uma esponja espremida. Então, sem coragem para nos
erguermos e fazer qualquer coisa exata e aliviadora, sentindo o teto a prensar-nos
o crânio, nada mais nos resta do que esperar, de coração transido, pelo alvorecer.
Só quando ele chegar, os espectros, a quem a luz cega, regressarão às sepulturas.
145
uma, outra vez, em sucessivas vagas de fúria amorosa.
A voz dela, na obscuridade, partia de um lugar indefinido e era depois apanhada por
mãos gigantes, que a desfiguravam e enrouqueciam, obrigando-a a ressoar por mais
tempo.
- Tem - e acendeu o candeeiro. - Não quero dormir. Nunca mais me deixes dormir!
Não conseguia serená-la. Apetecia-me, aliás, tentá-lo pela violência, mas faltava-
me coragem para isso.
- Jura!
Ela foi então percorrida por uma alegria maravilhosa e enternecida, a que logo se
seguiram soluços refreados como quem os tritura, enquanto me dizia que as horas do
sono lhe eram roubadas, roubadas à vida, que a despertasse sempre que a fadiga lhe
fosse subjugar a resistência. Insisti em apagar a luz. Não podia ver Clarisse. Nem
por isso as suas mãos, insaciáveis, deixaram de me correr o corpo. Impeliu-me a
possuí-la noite adiante, de cada vez atiçando-me o desejo com luxúria e pânico.
Dir-se-ia
146
que, para ela, para nós, a vida iria acabar no minuto seguinte.
- Não precisas de outra mulher, Jorge. Sou eu a tua mulher, a tua amante, o que
desejares que eu seja para ti. Juras que não pensarás noutra mulher?
E, na posse, a sua ânsia encarniçada era a de que toda a nossa fusão fosse para
além dos corpos.
pelas faces: gotas de alegria, intensas, vivas, que me deixavam nos lábios o suor
de pétalas orvalhadas. Já apaziguada, já humilde, trocando a minha humilhação por
um pouco do seu desânimo, disse:
Quando Clarisse voltou a adormecer, já a manhã espreitava por uma abertura das
cortinas e estava exausta como uma criança que tivesse chorado horas seguidas. O
seu subconsciente, porém, não se rendera, continuando alerta. Ela voltava-se na
cama a todo o momento, o rosto mortificado, os dedos a cravarem-se na carne das
pernas e dos braços para se despertar a si própria.
Após essa noite, e durante uma semana, o seu frenesi não teve medida. E a verdade é
que conseguia manter-se de pé quase sem dormir. Por vezes a cabeça tombava-lhe para
cima dos meus ombros, toda a sua carne vergada à doença e à fadiga, incapaz de
suportar um segundo mais de vigília, e só muito depois as pálpebras se fechavam
sobre a imobilidade esgazeada dos olhos.
Como tem mudado o tom desta narrativa! Perco as rédeas dos meus nervos. A unidade
do que somos - é tão fácil perdê-la! Dá-me a ideia de que me pegaram pela mão,
arrastando-me para uma feira alucinante de surpresas. Quem entra na roda, subindo,
147
Mas tudo deve ser da noite. À hora em que vos escrevo, as lâmpadas adormecem nas
esquinas, penduradas, como enforcados, da névoa ribeirinha. Ainda pensei em
percorrer as ruas - fugindo de mim. Hoje, porém, seria inútil. Prefiro, daí,
continuar amanhã. Amanhã é dia.
148
XVI
149
das, escamoteadas, cujo desfecho íamos adiando sempre, tacitamente, para mais
tarde.
Lúcia, todavia, não podia ser indiferente ao que se passava. Provavelmente sentia-
se mais vexada que traída, mas na sua atitude captava-se, sobretudo, uma reprovação
em que ela, como mulher, não parecia em causa. Censurava-me o desatino, sim, mas na
medida em que se refletia no meu desleixo profissional. (Andavam já por ali, ao
cheiro da minha queda, uns cachorros famélicos de dentes adestrados e eu imagino
que salivas empeçonhadas escorriam para os ouvidos do diretor de serviço, que,
aliás, ia distanciando cada vez mais os seus cumprimentos cenográficos.) Eu sabia,
contudo, ou suspeitava, que esse desleixo era, para ela, um trofeu: uma razão
válida e impessoal de acusação. Preferia mil vezes que ela me tivesse lançado à
cara tudo o que tinha para dizer. Por isso, decidi quebrar-lhe a reserva (aquela
sua tão ladina reserva!), ferindo-a:
- Mas você ainda não ensaiou estas ampolas que nos enviaram da Alemanha?
(De tempos a tempos, creio tê-lo dito já, de vários lados nos chegavam novas drogas
de diferente cariz: as honradas e as desonestas - que eu, ao farejá-las, logo lhes
dava o destino justo -, umas e outras, porém, igualmente incapazes de nos acenarem
com a certeira via da cura dos nossos doentes. Não obstante, tínhamos de joeirar as
boas das más sementes - e experimentar. Experimentar sempre, com um prévio e
desgastador sentimento de fracasso. Um dia avistaríamos o triunfo: até lá, cumpria
a todos, aos doentes e a nós, pagar-lhe o seu duro preço.)
ff O
- É uma insinuação?
- É uma acusação.
Atingira o alvo. Agora era esperar que Lúcia dissesse as coisas de frente. Era tudo
o que eu desejava: que fosse alguém a encurralar-me donde não pudesse escapar.
Lúcia, porém, não soube ser firme. Até hoje ainda não conheci nenhuma que soubesse
sê-lo. Ao vê-la esconder aquele seu lábio chorão por detrás dos dedos e fugir de
uma briga salutar, pensei uma vez mais que os povos bíblicos, ao legarem-nos bons
preceitos de higiene, foram sábios em muita coisa mas esqueceram-se de suturar, em
devido tempo, o saco lacrimal das mulheres.
Olhei pela janela o sol arrefecido. Chovera momentos antes: o bafo da terra úmida
fumegava à superfície da erva tenra. Lá estavam os perfis espessos e graves das
colinas por onde, ainda na manhã anterior, andara com Clarisse. No alto, avaliando
a altura do céu, as torres da televisão. Ainda ontem. O espaço esvaziava-se, à
medida que os meus olhos o percorriam e identificavam, por ele alastrava o meu
cansaço. Já agora - dizia eu para comigo, sob a ressonância do murro de Lúcia -
quero ver em que isto dá. Achava-me, afinal, a repetir uma frase antiga, que não
era minha, mas sim de um doente à beira de um íntimo naufrágio: "Já agora, senhor
doutor, quero ver em que isto dá". Pensava ele que lhe era possível gozar o seu
espetáculo.
151
infelicidade. O que aquilo sempre me tinha exasperado! Mas nunca como nessa altura.
Uma certa locomotiva. Dizia-se que a guiava um ferroviário cuja mulher morrera ali
no hospital, esquecida, morta pela nossa indiferença ou ignorância. E, pois, sempre
que passava em tão odiada vizinhança, atravessava-nos a carne com o seu grito de
dor e maldição. Dessa vez, homem ferido de boa memória, ninguém o sentiu como eu.
Alberto era um pinguim. Seria preciso tê-la conhecido para achar piada à minha
definição, pois os seus ombros sugeriam duas dobradiças flectidas sobre o esterno e
deles partiam os braços desmesuradamente longos e escuros, que, ao cruzarem-se à
frente, síncronos com o andar articulado, semelhavam as asas grotescas de um
pinguim. Pois a Henriqueta, era o seu nome, sabia rigorosamente o que havia a
esperar da doença do noivo e nem por isso arredou pé. Mais se lhe dedicou. com
estóica simplicidade. No entanto, seria impossível a alguém, fosse quem fosse,
referir-se ao seu estoicismo, pois não havia fresta por onde ele se manifestasse.
Lúcia veio falar-me deles, embora no modo desastrado como introduziu a conversa me
tivesse deixado na dúvida se o caso do Carlos Alberto lhe servia, sobretudo, para
varrer o rescaldo do incidente de horas antes.
Não pude, contudo, deixar de sorrir. E esse sorriso foi o bastante para que a pobre
Lúcia se sentisse ameigada como uma cadela sem dono.
Abri a torneira e chapinhei a testa e os olhos com água fria, submetendo depois ao
espelho uma face de cada vez, numa inspeção desconfiada de quem aprecia um sujeito
contra o qual nos preveniram criando, em suma, aquela pausa irritante e artificial,
já bem conhecida de Lúcia e de todos, que a definiam neste pregão: "Cuidado: lá
está o Jorge com as lavações!" Mas quis-me parecer que Lúcia assistia ao ritual com
evidente agrado.
153
- Ela. Está pronta a concordar. Queria apenas saber de nós se o casamento poderia
prejudicálo... apressar-lhe a evolução.
Lúcia descruzou as mãos. Passou-as pelos cabelos (cabelos finos, dóceis - não eram
os de Clarisse, excitados como a crina de um potro bravio) e respondeu:
- Quando alguém sofre sozinho, nem sempre pode com o peso do seu sofrimento. Se eu
fosse tão corajosa como a Henriqueta, faria o mesmo.
- E não é?
Depois Lúcia pôs-se a cirandar à minha volta, um inseto em redor de uma chama, e
por fim, sem me encarar, tornou:
154
- Por agora. . . - e, de súbito, percebi. Foi das raras vezes em que o meu rosto se
fez
túrgido.
155
XVII
157
que eu, até aí enfiado num reduto de frustrações, dentro do qual inventara orgulhos
e uma falsa invulnerabilidade, ficaria à mercê do primeiro estremeção. As minhas
emoções, represadas, rebentariam fragorosamente logo que lhes abrissem uma brecha.
Em certos momentos, já dantes, havia em mim o prenúncio de acontecimentos
inconfessadamente desejados.
Lembrava-me agora de uma senhora que falecera no hospital tempos atrás. Contara-me
ela, como resposta aos meus esforços de a reter no seu leito de moribunda, que em
criança a fechavam num casarão, isolando-a das pessoas, do vento, do sol; uma breve
corrente de ar, pressentida lá dentro, no bater de portas, alvoroçava imediatamente
a gente da casa, e o simples receio de que daí resultaria uma ameaça para a sua
saúde justificava a visita urgente do médico de família. Só lhe permitiam descer ao
jardim, emparedado por altos muros de presídio, nos raros dias em que a amenidade
do tempo parecia a todos indiscutível e, mesmo assim, sob o resguardo de chapéus e
camisolões. Ela então, certo dia, olhando a chuva fustigar as vidraças da varanda,
e as pessoas normais, livres, que lá embaixo, na rua, podiam experimentar a fúria
do tempo, a violência e a doçura de todas as coisas da vida, escancarara as portas
da varanda, deixando que a chuva a molhasse, a repassasse, a violasse. Os lábios e
as narinas fremiam-lhe de volúpia.
158
cara de cavalo da Maria Armada e das lucubrações do Romualdo e dizer a este bom
sargaceiro: "Tome lá este tema. Sirva-se dele para uma digestão profunda".
Talvez Clarisse suspeitasse, às vezes, que me era urgente reaver as coisas de que
tinha sido arredado. Que era essa a forma mais segura de me reter. Falava-me,
então, da vida do hospital, de um modo neutro, sem perversidade. Telefonava-me de
qualquer parte - "não posso hoje sair contigo, encontrei umas amigas" - e andava lá
fora, à toa, deixando-me livre, até que o medo de se achar sozinha consigo mesma e
com a sua condenação a fazia correr, angustiada, para casa. Nos dias de euforia - e
eu previa-os pelo requinte, tão ingénuo, de usar um chapéu, nela grotesco, de dama
da alta roda -, chegava tarde aos nossos encontros no apartamento. Entrava açodada,
as palavras atropelando-se sem dizer uma frase inteira, os braços derreados de
embrulhos onde havia ninharias familiares que lhe davam apoio e a enterneciam,
pastas dentífricas ou uma nova loção para a barba, a revista que eu desejara na
véspera, uma jarra de formas atrevidas. Essa solicitude espaventosa, que me
baralhava as ideias, parecia ter sido improvisada à entrada da porta. Dava-me a
sensação de uma amante infiel, a lançar poeira sobre as dúvidas de quem a espera.
Toda essa maré alta de nervos tinha, porém, o seu reverso: os dias em que nunca a
sentia bem presente, aninhada no interior da sua concha. Nessas alturas, Clarisse
não participava das coisas nem dos seres; a sua meiguice tinha uma secreta
gravidade, a dos cegos a fixar, com os dedos, um rosto querido, e pedia-me
conselhos como uma criança obediente. Durante horas sentava-se na borda da cama, ou
à beira do rádio, as cortinas isolando o quarto na penumbra, a música afogada num
tom de segredo. O seu olhar, então, quando lhe sacudia o mutismo, pou-
159
- Bem.
Finalmente, Clarisse levou-me à casa onde habitara, que, aliás, ainda conservava.
Era num sítio da cidade emaranhado de encruzilhadas. Atento à condução, aos sinais,
ao braço articulado do sinaleiro (que, ao gesticular, parecia um boneco de arame),
não parei logo que ela me preveniu:
- É aqui.
Tivemos, pois, de retroceder, e isso dispôs-me mal para aceitar esse primeiro
encontro com um casarão de rosto desdentado que logo associei às ruelas por onde,
em tempos, eu desgastava as horas de fastio. Ali perto, entretanto, devia ter-se
dado um engasgo no trânsito, os automóveis recalcitravam num furor impaciente.
Casa era um modo de dizer: um quarto esconso repartido em dois tugúrios, separados
por um arco donde pendia uma chita tão usada que talvez se rompesse, como teia de
aranha, se lhe soprássemos com alma. Outro nicho, a que a escada de acesso ao
primeiro andar, servindo-lhe de teto, dava uma configuração corcoveada, subia por
um degrau ao compartimento onde entramos. Não cheguei a perceber-lhe o préstimo,
pois Clarisse não me levou lá. Era razoável supor que fosse ainda mais sórdido do
que o resto.
Logo que passei o rebato do velho prédio, de janelas protegidas por barras de
ferro, compreendi a resistência de Clarisse em mostrar-me esse cenário dos seus
dias de falsa boémia: não seria apenas por
160
ter vivido ali com o pintor de testa de ouriço (e ela, provavelmente, não desejaria
pôr-me tão perto de evocações que a nós ambos embaraçariam), mas sobretudo por
aquela rnansarda significar uma reles denúncia das agruras cque passara. Era suja
como um galinheiro. No sítio em que a caliça resistira aos anos, e as paredes do
corredor estavam quase de alto a baixo descarnadas, havia de tudo: desenhos,
borrões de tinta, frases ingénua-s ao lado de um lauto mostruário de obscenidades.
Em vão Clarisse, enquanto me atarantava com um alude de palavras e gestos
enervados, me pusera de encontro à parede mais ilustrada, evitando assim cjxie eu a
olhasse minuciosamente; não só a da outra "banda era quase tão escabrosa, como o
odor oleoso <le tudo aquilo, umidade, bafios, detritos, sugeria mmito mais do que
eu poderia certificar com os olhos - Imaginei que gente habitaria o imundo prédio.
Por uma necessidade de contraste, não pude deixar de me lembrar que lá fora estava
um belo dia de outono, seco e limpo, cheio de pegadas do verão.
Eu, porém, tirada mostrado tal empenho em vir ali (empenho que i& crescendo por
tudo o que lhe dizia respeito ao passado, numa tentativa enciumada de o
reconstituir com exatidão, de o possuir, arredando-lhe as personagens que sentia
abusivas), que Clarisse, por mais que lhe custasse, acabara por ceder.
Na sala havia ^"inda três quadros do pintor. Um surrealismo de pesadelo. A meu ver,
medíocres, embora eu não pudesse estar seguro dos meus gostos artísticos, pelo
simples motivo de que nunca lhes dera muita atenção. Por todo o lado, ou uma peça
de vestuário que parecia ter sido posta sobre a cadeira ainda na véspera, jornais,
cartões com esboços, ou um móvel trôpego cie várias serventias. Mas foi mais aquele
casaco cediç<=?, dependurado de uma ripa que sobressaía da parece como um osso
partido pelo
161
meio, que me deu a sugestão pungente de miséria desleixada. Nesse momento, nem
lástima pude sentir. Ou a Clarisse que o vestira, que o largara ali por incúria,
nada tinha que ver com a Clarisse de hoje, ou então só agora os meus sentidos,
enojados, acordavam para a repelir.
(Este pormenor sádico que ponho na descrição do pobre teto de Clarisse, reflexo da
minúcia com que, na altura, o vasculhei, deve ter um motivo. A memória, ou a
atenção, tem razões tão obscuras! Após um passeio ao campo com Clarisse, por
exemplo, eu achava-me a rememorar miudezas como as rugas das árvores, a joaninha
vestida de colete encarnado, o meu sopro vândalo derruindo a boca de um formigueiro
- mas por que se me desvanecia o sorriso doce de Clarisse nessa mesma tarde? Ora,
ao catalogar os indícios do passado de Clarisse, creio que me impelia o intento de
os apagar pela sua excessiva evidência ou de me convencer, romanticamente, de que
esse ambiente estava, afinal, certo: outro que fosse seria um escárnio. Uma vida
escassa não precisa de largueza. Nem de raízes. Um lar que valha esse nome
justifica-se quando pertencemos a um mundo que germina: filhos, amor, objetos que
se herdam e em que moldamos a nossa presença, um pequeno universo que fervilha e se
estende para além de nós, depois de nós, e nos dilata. Na época em que a minha
família vivia em comum, um dia meu sobrinho Arnaldo chamou-me de lado para me
confiar um segredo importante.
Meu bom Arnaldo: para essa confissão, dita naquele tom maduro que te conhecíamos,
um lar era preciso, mesmo que tivéssemos de ir para um canto
162
evitando os ouvidos de tanta gente que se enfiava nas nossas confidências.)
Não sei se Clarisse perscrutou as minhas reações; pelo menos, no seu rosto aflito
correu uma sombra acre de suspeita e lançou-me um apelo:
- Pronto, aí tens. Isto é um baldio. - Teve um riso oco com a agudeza terrível de
uma guinada.
- Bem te preveni que a Clarisse viveu dias em que apetece deixar as ervas crescerem
à nossa volta, como nos baldios. Percebes o que quero dizer?
E encostada a mim, oferecendo o corpo como escudo, teve, de súbito, um gesto tão
feminino, tão humilde, que, por muito que eu o evitasse, me enterneceu: ela
descalçara os sapatos, atirara-os para longe e dissera, apertando-me sempre:
- Assim está mais certo. Fico mais pequenina junto de ti. Do meu verdadeiro
tamanho.
Do seu verdadeiro tamanho: uma pobre coisa exposta às ressacas do meu temperamento.
Nunca mais falamos dessa visita. Agora de longe, enquanto escrevo para segurar as
horas esquivas do que fulgurou para se consumir mais depressa, creio bem que ela
resultou benéfica para ambos. No meu empenho em me mostrar compreensivo e afetuoso
havia agora uma determinação concreta: apagar-lhe da memória as nódoas que tinham
ficado para trás.
163
anos
calei-a com um projeto intermédio: uma semana na praia que ela preferisse. Aliás, o
meu dinheiro não chegava para um projeto mais ambicioso. Aí estava um aspecto
irritadiço das nossas relações de que Clarisse ainda não se dera conta: o dinheiro
não tinha, ou perdera para ela, todo o significado. Quando íamos para o comboio -
até o automóvel, cúmplice dos meus dias delirantes, eu ia deixar de lado -, um
rancho de garotos veio junto de nós, à boca da estação, propor a sua ajuda. Pois
Clarisse, que devia ter sondado o meu gosto de recusa, distribuiu-lhes logo as
malas e os embrulhos. (É um exemplo que assinalo por vir a propósito.) No momento
de os compensar com uns escuros, reparei que não tinha moedas e, pouco confiado na
honradez da pandilha, fui eu mesmo trocar uma nota. Ao regressar, Clarisse estava
já festivamente identificada com a garotada. Riam e pulavam como pardais. E ao
aperceber-se das minhas dúvidas na avaliação dos serviços daquela malta, resolveu
depressa tais hesitações tirando-me o dinheiro das mãos e espalhando-o como chuva
do céu: "Vá, ide gastá-lo em coisas boas. Hoje é dia grande".
168
- Por acaso é bonito. - E daí a pouco, numa lógica cerrada: - Escuta, avô, onde
está o mais feio?
Clarisse sorriu, pousando a mão num dos joelhos da menina, associando-se, para que
lhe coubesse uma fatia de ternura que a escolhera como alvo. Todos sorrimos. Um
sorriso que era uma espécie de mútua reconciliação. Quando o comboio se demorou
169
numa das estações, vazando as gralhas, a garota teve um desabafo (que era o nosso
desabafo):
A luz doirada banhava de poesia toda a face costeira da povoação. O mar tinha um
odor quase fétido de tão intenso, provavelmente das algas apodrecidas ao rés da
praia, e a sua presença absorvente vinha receber-nos umas centenas de metros antes
de descermos às ruas que marginavam as falésias. No alto, um moinho e pinheiros; do
outro, a praia. Era, pois, uma perspectiva variada.
A dona da pensão chamava-se Eufrásia. (Mesmo que não lhe tivesse fixado o nome
pelos acontecimentos que demarcaram essa gorada estada na beira-mar, decerto
dificilmente o esqueceria. Eufrásia não é nome que mereça a água do batismo.) Ela
devia ter aspirado logo um cheiro de ilegalidade no modo como nos apresentamos,
pois mostrou-se discreta e alheada e mandou-nos espontaneamente café ao quarto que
escolhêramos no andar de cima, com o recado: "Se os senhores quiserem, podem tomar
as refeições nos aposentos". "Aposentos", no seu tacto profissional, tinham
"alcova" como sinónimo mais direto. Esse recato complacente destroçou-me uns restos
de naturalidade que me esforçara por conseguir. Não importava: uns dias passariam
depressa, não haveria tempo para que a dona Eufrásia procedesse a um inventário das
nossas vidas. No entanto, quase poderia supor-se que havia entre a hospitalidade
alcoviteira da pensão e Clarisse um tácito entendimento. Clarisse tinha a sua
fisgada. Não me agradou o modo como se apropriou do quarto e sobretudo o ar com que
desde logo pareceu tomar posse dos dias de que dispúnhamos. Eu estava a troçar da
frase insidiosa da criada e Clarisse teve uma des-
170
tas infantilidades domésticas que sempre me fazem sentir enleado por sargaços:
- Por quê?
- Sei lá bem. Gosto, acabou-se. Talvez por fazeres essa covinha na face.
Ao cingir-me nos braços magros, à espera, decerto, que eu me mostrasse tão lamecha
como ela, atiçou-me:
Apercebi-me sem dificuldade de que o que ela dizia ficava apenas à superfície da
intenção.
- Oh, este homem! Contigo, a gente nunca sabe de que lado vai chover. Pois vou
prevenir-te: não farei repouso. Não farei coisa nenhuma. Ou antes: farei o possível
para que estes dias tenham um significado.
Depois mostrou-se impaciente por que nos fôssemos isolar no miradouro talhado nas
fragas que ela já conhecia de anos antes. Chegados lá, cerrou-se em meditação
profunda.
171
- Para mim, é. Fico bem certa que existo. Sacudi um novo cigarro, preparei-me para
um
172
ver que a pensão da dona Eufrásia só nos abrigaria por mais uma noite.
Tenho perfeita consciência de que enfio nesta história pormenores supérfluos para
quem me lê se isso chegar a acontecer -, emaranhando-os nas situações que
verdadeiramente a fariam progredir; mas se eu os guardei com tal particularidade,
se se me estampam nos nervos como planos indissolúveis da odisseia de Clarisse e
se, por último, me apetece demorar-me neles - quem sabe se para adiar um desfecho
-, é porque, no fim de contas, obedeço instintivamente a um ritmo ambicionado e
sempre esquivo: a harmonia do tempo, que é feita do modo como os acontecimentos se
entrelaçam e valorizam. A vida tem uma composição, de avanços, pausas, recuos,
cujos processos se nos escapam.
Embora a nossa hospedeira nos tivesse ralhado quando, na manhã seguinte, descemos à
sala de mesa para o pequeno-almoço - "Deviam levantar-se mais tarde. A senhora tem
um ar tão abatido! Vê-se bem que a viagem de ontem foi comprida" -, Clarisse
dispôs-se a irmos, a pé, até à chamada "praia da lota". Ainda lancei um olhar
cobiçoso para as colinas arborizadas, no cimo das quais rangiam as velas dos
moinhos, mas Clarisse calou-me os instintos serranos com a promessa:
173
- É odioso!
A recusa não estava nos planos beneméritos do turista e por isso insistiu,
estendendo o maço:
174
O pescador ficou à espera, a boca um pouco aberta, a mão abaulada a coçar o nariz
borrifado de sardas. Conformara-se sem aranzel. Uma resignação de antologia.
O mar colérico das primeiras horas da manhã tinha apaziguado, embora na atmosfera
houvesse ainda uma poalha de cinza, grossa e sufocada. Contrariei, daí, o plano de
almoçarmos na esplanada. Em vez do horizonte marítimo que ela nos oferecia,
tínhamos agora a janela que se rasgava para o quintal da pensão. Nele, um bando de
galinhas distraía-se a esgravatar o lixo.
175
Mas era visível que estalava de prazer. Tanto era que só depois de nos abençoar com
a sua surpresa afastou o beijo de Clarisse - eu nem tivera tempo para avaliar se o
prazer era mútuo - e gritou-lhe:
Deitei-lhe um olhar fero e aterrado. Clarisse, por seu turno, moveu os frágeis
ombros escavados
- também na raiz dos ombros, céus!, havia os pontinhos sanguíneos - e esclareceu
com gelada indiferença:
Estavam, sim, havia uns dias. Que coincidência! Um encontro fantástico. Poderíamos
comer à mesma mesa. E esmiuçou um programa de convívio no qual só faltava dormirmos
juntos. Seria inútil, pelo menos naquele almoço, furtarmo-nos a essa voraz amizade.
Concluídas as apresentações - pela nossa parte um pouco reticentes, eu, por
exemplo, era um vago "doutor" -, a amiga, Adelaide, voltou à carga:
- Lembras-te do nosso emprego no Lourenço & Carvalho? Como o tempo passa! Tu não
estás bem, Clarisse. Tenho a certeza de que não estás bem. - E misturando-me numa
velada mas complacente censura: - Às vezes os homens não reparam nessas coisas... É
preciso que alguém cuide de ti minha querida.
177
Os óculos do homenzinho estremeceram de susto. Pesou sobre nós uma pausa de chumbo.
Só uma palavra cega a poderia varar. Até que ele, deglutindo o espanto, arriscou:
- Não é chalaça - emendou Clarisse, numa espécie de ira deliciada. - E que importa
que eu tenha uma leucemia? Já é muito acordar de manhã e sentir-me viva. Conquista-
se a vida todas as manhãs. É um gozo que nos está vedado. Dize-lhes que é um gozo,
Jorge.
- Pois, no meu caso, Adelaide, não se desperdiça coisa nenhuma. Tenho as minhas
compensações . . .
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- Estou confusa, querida. Não pode ser. Há de haver qualquer coisa que. . .
ia jurar que, embora a frase fosse agressiva, nela vibrava, além do desafio, uma
censura e uma estúpida ilusão. Nesse momento, uma torrente de cólera afogueou-lhe o
rosto e a voz, que se transformara num berro doido:
- Dize-lhes que até tu desististe de fazer essa qualquer coisa por mim! Dize-lhes
tudo, eles querem ouvir-te. E eu também!
- Clarisse!
- Vá, por que esperas? Não vês como a minha amiga me olha? Parece que duvida que eu
ainda esteja viva como ela. Olha-me bem, Adelaide, não precisas de disfarçar.
- Oh, meu Deus! - lamuriou a amiga, também ela, esparvoada, a sentir-se responsável
fosse do que fosse. - Apanhaste sol, querida.
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Para o inferno com tanta "querida"! Levanteime sem uma palavra, chamei Clarisse a
mim, que, destroçada, soluçava com mansidão, amparei-a, deixando os nossos
companheiros sob o dilema de levarem ou não o almoço até ao fim.
Mais tarde, Clarisse teve aquela guinada num dos flancos. (Já antes eu deveria ter
reparado que ela se queixava de esporádicas dores articulares.) O febrão súbito
fazia-a delirar. Fechei a porta à solicitude apatetada de Adelaide, que
choramingava umas negras lágrimas de rimei, e do seu apreciador de vinho verde, e,
desorientado, socorri-me do colega da vilória. Encharcamo-la em hemostáticos. Por
fim, ao entardecer, Clarisse serenou. Havia nela uma paz de submissão. Fui até à
varanda do quarto fumar um cigarro. A sombra tardia suavizava o crepúsculo. O
moinho ("domingo à tarde será a vez do teu moinho. . ." Que domingo, Clarisse?), os
pinheiros, as colinas onde as giestas iam florir; o mar, não, era uma ideia odiosa.
Aproximava-se uma noite cálida, de veludo, as ondas eram já um queixume. O mugido
de uma sereia, ao longe, vindo de outro mundo. Ouvi então segredar lá dentro:
- Jorge. . .
que a febre aturdira. Sufocava-me uma raiva encarni-1 cada contra mim. "Dize-lhes
que até tu desiste. . ." i Um grito do fundo da carne. Mas tão certeiro! Eu havia
esquecido que o rosto de Clarisse se encarquilhava em cada dia, que a sua voz tinha
agora um cansaço ofegante, que o corpo se lhe ia mirrando ("para ser franca, nem
pareces a mesma"), toda ela a extinguir-se à lenta voracidade de uma chama. Tinha
es-
180
quecido. Ou antes: por mais que julgasse o contrário, havia feito tudo para
esquecer. Mas eis que o acidente - quem sabe se precipitado por aquele nefando
almoço e do qual eu bem conhecia o significado - me punha, sem embustes, diante da
sua agonia. O fim estaria para breve e a viagem fora, da minha parte, uma grosseira
temeridade.
A minha reação era tão intensa e caótica que poderia supor-se que só naquele
momento a verdade me fora revelada. Achei-me algemado dentro daquele quarto avulso,
repugnante como uma alcova de aluguer, que me separava de todas as armas que
poderiam ainda estorvar o desfecho, adiando-o. Fechado num cárcere. Agora, porém,
as coisas surgiam-me honestamente esclarecidas: eu não era apenas o médico
compadecido, era um homem com uma luta malograda mas definida, sabedor das razões
por que lutava.
Regressamos à cidade numa ambulância. Dessa vez, já não foi difícil convencer
Clarisse a voltar para o hospital.
181
XIX
à enfermaria, onde se isolavam os moribundos; mas também nos servia para favorecer
algum doente das nossas relações, que assim furtávamos à promiscuidade dos demais.
Ela ficou com o queixo quase encostado ao peito, como se tivesse sido agredida.
- Ensaiou as ampolas?
Os meus gestos deviam ser tão descomandados que ela me avaliou com inquietação.
- Ao menos, diga bom-dia. - A sua voz parecia ter sido crivada por areia seca. -
Creio que não nos vemos há uma boa temporada. . .
183
- Não precisa de o dizer. Chegou-me aos ouvidos com um tiro. Bem, ensaiei as
ampolas. Que deseja saber mais?
- O resultado.
- Esperava que fosse diferente das outras tentativas? As conclusões a que cheguei
podem escrever-se no rebordo de uma unha.
- É que tenho pensado naquela sua sugestão de. . . ensaios "noutras pessoas".
Lembra-se? Só dias depois a percebi. Não se referia a Clarisse?
- Talvez.
- Clarisse está lá em cima.
A tarde acabara de repente. O ar que entrava pela janela ainda não tinha a leveza
da noite, mas sim o tédio espesso de um fim de dia. Enquanto Lúcia apressava o
internamento de Clarisse, pus-me, de crânio embrutecido, a escutar o som bulhento
do tráfego. Sentia uma súbita fome. E um vazio em todas as vísceras. Fui ao
restaurante da frente comer qualquer coisa e conduzi o carro para as vielas da
beirario. Não queria voltar para junto de Clarisse.
184
- Mentes, é claro, e eu já nem sei bem se alguma coisa em mim me pertence. Sinto-me
uma falsidade. Destruída por dentro.
Eu teria reagido do mesmo modo. Por isso, deixava-a em paz, até que ela própria,
humildosa, me
185
- A quem te referes?
- Uma amiga do tempo de escola. Gostaria de saber onde ela pára. Éramos duas
cabritas!
Toda essa gente insuspeitada que ela, a espaços, ia buscar aos esconderijos da
memória e se esforçava por lhe dar, perante mim, uma sugestão física, me parecia
cúmplice dos tais abutres. Adelaides, corretores de prédios de rendimento. Pintores
de cabelos de ouriço. Personagens odiosas de um velório. com muitos deles, Clarisse
deixara reconciliações adiadas, projetos traídos, e agora tudo isso irrompia para
uma urgente retificação.
- Queria vê-los. Falar com todos os meus amigos. Parece-te que ainda se lembrarão
de mim?
Pelo mesmo motivo, víamo-la agora enervada à hora das visitas. Só eu, talvez,
percebia por quê. As pessoas entravam na enfermaria em passinhos fo-
186
Nem sei que me fez acertar imediatamente: ele era o tal pintor de testa rudimentar.
- Não sou da mesma opinião - contrariei, azedo. - E lembro-me bem que já pensaste
como eu.
- Que pretendes com todas essas lembranças. .. Queres dizer que eu não sou nada
para ele? Que nunca gostou de mim a valer? - Lá estavam as veias das têmporas a
assanhar-se. Já não podia sustê-la. - Pois hei de perguntar-lhe. Preciso sabê-lo.
- Para quê?
187
As dúvidas inchavam sobre mim com o peso de uma noite de vigília. Deveria continuar
a sujeitar Clarisse à mesma brutal ficção?
188
momento em que as nossas mãos se tocaram no manejo dos tubos de ensaio, encarei-a
de narinas afogueadas.
- Diga-me lá, com todas as letras: que lhe parece tudo isto, Lúcia? Inconsciência,
desvario?
A firmeza tranquila com que me respondera nada tinha do animal doméstico de pêlo
enlameado.
- Então dê-le um nome, por favor. Faça você um diagnóstico, se é capaz. - Ela ia
acenando, reprovadoramente, com a cabeça. Mas a sua mímica tinha uma solenidade
excessiva. - Diga tudo sem rodeios. De caras. Tenho-me portado como um criançola,
não é verdade?
- Uma bonita frase! vou saboreá-la como um rebuçado. O pior é que não me chegará
para adoçar a boca.
Mais expressivo era o sorriso de Lúcia. Não havia reticências nesse sorriso. Por
agora, sentia-o espontâneo, saudável, deixando para trás uma carga de larvadas
tempestades. Pus-me a refletir no seu significado: traduzia, quis-me parecer, a
capacidade de certas pessoas para reduzir os acontecimentos a pretextos de
reconciliação. No entanto, essa desarmada simplicidade de Lúcia tinha mais força
que todas as minhas truculências.
- Afinal o Guedes sempre foi nomeado cabecilha na peritagem do tal caso. O caso dos
homens de Andorra.
Falava com uma postiça seriedade - ela, que me copiara o desprezo por todos os
traficantes de alquimias - e reparei que não empregara o termo
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- Falou-se de que seria o senhor o escolhido. Por isso o Guedes andou a rondar por
aí. O que ele queria, sei eu. Entretanto, como o senhor se ausentou. . .
Lúcia assistia, aflita, a tão inepta interferência < e, quando pôde, cortou-a: '
Ele, atónito com a censura de Lúcia, sem perceber já de que lado corriam os ventos,
pôs-se da cor dos lagostins, e engasgou-se na resposta. Sumiu-se, por fim,
estrategicamente.
- Agora entre nós, Lúcia. . . que pretendia você com a conversa? Acredita que haja
na história uma réstia de decência? Valerá a pena?
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sabe. Não perde nada em ouvir o Guedes. Quanto mais não seja, para lhe refrear as
guias. No fim de contas, com ele em cena, é todo o prestígio do serviço que está em
causa.
Já sabem que espécie de fuinha é o Guedes. Vivo, manhoso, com aqueles olhos
encurralados nos óculos com dois dedos de espessura, a gente nunca o prende nas
mãos. Escorrega-nos como uma truta. Ainda semanas antes, contava-se, aproveitara
uma boleia turística no carro de um colega e, prevenido de que este turrara com o
chefe da clínica, logo tecera tão imbricado enredo que só poderia concluir-se que a
viagem fora, pelo que lhe dizia respeito, um rapto. O Guedes, claro, repudiava, do
coração, todas as amizades que não fossem abençoadas pelo chefe. E era com este
traste que eu iria humilhar-me!
Ele estava tão sôfrego de me apanhar na rede que desatou aos pulinhos.
- Venha comigo visitar o homem. Estou certo de que gostará dele. Sabe química e
biologia como gente grande.
- E abstraindo desses encantos, diga-me lá, Guedes: que pensa você da droga?
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- O inferno está cheio de seriedades incontestáveis. Quem sabe, talvez você, com a
sua, tenha já lá um lugar. - Redimia-me da minha fraqueza anavalhando-o. Estava a
ser covarde. Tudo isso, porém, no Guedes, provocava apenas um esgar de malícia.
- Que é a droga?
- Ele não nos esclarece muito. Vive apavorado com a ideia de lhe apanharem a
fórmula. Tem pesadelos com espias. . .
- Mas estou certo de que você não se satisfaz com pesadelos. Ninguém poderá
escrever honestamente sobre a droga sem saber do que se trata. Você não o fará.
O insulto, para aquele verme, era uma banalidade. Engoliu-o como quem toma uma
purga açucarada.
- Apenas sei que estou disposto a experimentar a vossa panaceia. Mas não porque
tenha sentido uma súbita simpatia por si.
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O Guedes pensou o mesmo, quer dizer, segurou a ocasião pelos cabelos antes que eu
multiplicasse as minhas reservas e acabasse por me negar; enfioume à pressa no seu
automóvel. Um quarto de hora depois estávamos num bairro excêntrico, a bater ao
refúgio do sábio. Um prédio forrado a azulejo, um relvado à volta, no qual três
acácias misturavam o seu forte odor à imobilidade tépida do ar. Saí do carro,
atirei com a porta, afastando-me, até que o Guedes se me juntou, arquejando atrás
de mim. Ainda que as coisas não se tivessem passado com essa rapidez, eu ter-me-ia
sentido, do mesmo modo, o ridículo herói de um sequestro. Houve tempo, contudo,
para me demorar num pormenor: o Guedes, ou era um perfeito imbecil, ou, no seu
empenho em me trazer ali (arriscando-se a um dos meus destemperos), mostrava uma
confiança perturbante nos efeitos da droga. De qualquer modo, pelo que me dizia
respeito, eu salvara as aparências com a minha rude incredulidade. O Guedes não
poderia dizer que me arrastara como a um papalvo.
Envergonho-me de que, depois de tudo o que aconteceu, essa ideia ainda hoje me
reabilite. Ainda me dê prazer. E que, ao trazer aqui estes lances subsidiários da
minha história (da história de Clarisse, retifiço), nem me refira à ansiedade com
que cheguei à presença do mentor, depois de uma mulher de meiaidade, rosto de
pioneira das fitas do Far West, ter enfiado o nariz vermelhaço no postigo da porta
para nos examinar sem tolerância. Ansiedade que redobrou ao aceitar-lhe os
frasquinhos da mezinha. Naquele mo-
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mento, acreditava nele, precisava de acreditar fosse em quem fosse.
vou recordar: a sala era quadrada e tinha a atmosfera de uma capela funerária.
Havia grades metálicas nas janelas laterais. Estava ali tão escuro que, de começo,
apenas me guiou a claridade da rua, anemiada pelos vidros foscos. Depois ele entrou
e inventariou-me dos pés à cabeça.
Aquilo era comigo. Ele limpava os lábios, entre uma palavra e outra, com ternas
pancadinhas do lenço. Pus-me a observar os objetos que se encontravam em cima da
mesa: um Buda gordo e cínico, ao lado de uma escultura indígena; caixas de produtos
farmacêuticos.
- Sei que a sua adesão à nossa causa deve ser assinalada com uma pedra branca.
- O dr. Guedes sabe que eu não gosto de ver gente a bisbilhotar-me os trabalhos.
Não gosto de curiosos.
O Guedes aquiesceu. Parecia calmo. Mas devia estar tão excitado como um olho sádico
a espreitar uma virgem. O biologista meteu uma cigarrilha na boca, acendeu-a e
atirou o fumo para o ar com expressão satisfeita. Seguira-lhe a manobra de riscar o
fósforo e rodar a cigarrilha à chama breve, chupando-a depois metodicamente, até
ficar certo de que estava bem acesa. Que iria dizer-lhe? Não, aguardaria que fosse
ele a comprometer-se. Ou o Guedes. Mas este era uma esponja: se o espremesse,
encheria uma banheira. Engolia sem devolver. A partir daí, a
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represa estoirou: o homem abriu o caudal das suas difusas revelações, mostrou-nos o
laboratório. Ele tinha um rosto arguto, devo dizê-lo. E nos seus modos visionários,
no clarão longínquo e estranhamente sedoso da sua expressão, havia fosse o que
fosse que nos fazia admirá-lo. Do resto, o cenário, o silêncio conventual do
casarão, as frases apologéticas, a torrente sem nexo de teorias com que nos cegava
ou pretendia cegar, as misteriosas salas de misteriosas frasearias, onde às vezes
reluziam olhos desinquietos de cobaias, a esquisita amabilidade do dono da casa,
que me fazia gelar os braços, nem é bom falar-vos. Tive pena do Guedes. Parecia
agora aterrado de se ver entre dois adversários - sempre à espreita de uma
estocada, vinda de um ou de ourto lado, que ele não pudesse aparar com
oportunidade. Era visível quanto o sabichão o dominava.
À saída, não resisti a vingar-me do pobre Guedes, vingar-me, afinal, de ser tão
vulnerável como ele, embora por outras razões - e farpeei-o impiedosamente mais uma
vez:
XX
- Deviam tirar isto daqui. São um escárnio. Mas não lhes resisto.
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agradável fazê-lo. Quando depois a visitei, Clarisse tinha as flores a seu lado, no
sofá, como se as defendesse de um roubo.
- Obrigada pela lembrança. É tolice, mas foi, para mim muito importante. Quando
vejo um f une-1 ral, no que reparo é se vão flores sobre o caixão e se os
transeuntes tiram o chapéu à passagem do cortejo. As pessoas não morrem quando são
lembradas. Creio que li isto em qualquer parte.
Ela sorriu com fadiga e doçura. Não podia avaliar que, por dentro, a raiva me
dilacerava. Tudo o que ela dissera me fluía à boca com o sabor de malogros e
traições. Nos últimos tempos, eu reagia por tudo e por nada. Tinha os nervos
eriçados, sensíveis como um dente cariado. Ainda nessa manhã, antes da saída de
Clarisse. . .
.. A rapariga correra para mim quando passei a porta do corredor. Esperava a minha
vinda espiando o local onde o porteiro lhe dissera que eu arrumava o automóvel. Era
um velho ardil, conhecido de todos nós. Ei-la espremendo as mãos, estorvando-me o
caminho, um pedinte que nos salta ao virar de uma esquina.
- Eu sei, eu sei - disse, a apressar o intróito. Estava impaciente por chegar junto
de Clarisse e despachar a consulta o mais breve possível.
- Diga-me o que se passa com a minha mãe! Diga-me tudo, senhor doutor.
O peito subia e descia, num arfar de harmónio, ao mesmo tempo que dele se escapava
um som de goela estrangulada.
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noutro lado. Ela correu atrás de mim. O pedinte que não desiste da esmola. - Venha
daí comigo.
- Não pense nisso. O que não compreendo é que ninguém atenda o telefone.
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mãos, enquanto eu relia a história da doente. Uma conversa difícil e, por isso,
demorada.
A pressa que eu tinha, santo Deus, e a rapariga com aquele pasmo! Por que não me
libertava ela da sua presença, do seu choro, das suas mãos enervadas?
- ... Mas trata-se de uma localização benigna.
Era um remendo tardio. A rapariga preparavase para sair sem dar tempo a
reconciliar-me comigo.
Não insisti. Não havia nada para dizer. Arrasate, Clarisse. Acaba depressa. Seria
possível que eu o desejasse? Ficamos à procura de qualquer palavra inútil, enquanto
eu ia e vinha da janela, a desbastar um turvo nervosismo, cada um na expectativa de
se libertar da presença do outro. Na melancolia pesada que havia de permeio poderia
eclodir uma tempestade. Daí a pouco, foi ela a referir-se de novo ao con-
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certo. Pediu-me que esperasse lá fora. Estive não sei quanto tempo junto do
elevador. O homem que o servia, com a face opaca e retalhada, lembrou-me uma velha
relíquia. Sem carne, sem veias. Apenas a pele seca colada aos ossos. Quando
Clarisse apareceu no elevador, esforçando-se por não cambalear, trazia o vestido
que lhe vira no dancing. O seu corpo flutuava dentro do crepe vaporoso. Tal como
naquela noite remota mas instantânea. E também como nessa noite, parecia-me irreal.
Os seus gestos tacteavam as paredes e o pavimento. O meu cavalo de circo ia morrer.
Exibia-o num último espetáculo.
Pelo caminho, voltou a falar-me das flores. De um modo incoerente. Não, não era de
todo incoerente: a mim é que, de ouvidos arranhados pela teatralidade desagradável
que ela pusera nas palavras, custou perceber-lhe, desde logo, o objetivo. Ela
queria dizer-me, num simbolismo de mau gosto, que nem as circunstâncias defendiam,
que não desejava que lhe vendassem os olhos no momento da execução.
- Guarda todas as flores para esse dia. Quando as receber, ficarei prevenida. Posso
confiar na tua promessa?
Eu sentia a garganta afogada por uma emoção ridícula. Cerrar os ouvidos, esquecer.
Recomeçar do esquecimento. Mas não se pode descer uma cortina sobre nenhum ato da
nossa vida.
- Que promessa? Ainda não disse uma palavra. Aliás, o que me pedes não tem pés nem
cabeça. Já o esqueci.
- Sei que mo farás. Preciso de morrer sem medo. Mas para isso tenho de ser
prevenida. Confio.
- Não esperou pela minha reação e prosseguiu logo depois de me sondar durante uma
pausa: - Nunca
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- Elas voltarão.
A cidade devoradora ainda não chegara ali. Havia mesmo um caminho escavado das
chuvas, entre hortejos e figueiras, antes de começarem as terras escuras de pousio.
O perfil brumoso e enigmático da vivenda estampara-se de encontro a um céu roxo. De
instante para instante, o céu enegrecia e o perfil da casa deixava de ter contornos
para ser apenas uma turva e insondável profundidade. Mas persistira alguma coisa: a
luz lívida da janela do último andar um náufrago que, depois de submerso, deixa o
punho de fora. Clarisse assistiu a toda aquela agonia, até que a luz desapareceu
também. Assoprada. Esmagada entre duas mãos.
Bem percebi que ela retesava os músculos para não obedecer a uma dor corrosiva.
Durante a noite, esteve febril, com espasmos de tosse. Quando terminava de tossir,
mantinha-se arfante por muito tempo e os seus olhos escondiam-se na fundura dos
ossos, ainda acesos e vigilantes. Essa vitória sobre o sono ateava-lhe a euforia.
De manhã, os estimulantes que, quase à força, lhe injetei, de pouco serviram.
Apenas os olhos, nem sei como, per-
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- Tens hoje melhor aspecto. Amanha, talvez possamos dar outra volta.
Inclinou a cabeça na almofada, como se fosse dormir e desejasse ficar só. Saí do
quarto discretamente, sentindo-me um malfeitor que se escapa em bicos de pés antes
que alguém venha surpreendê-lo. "Isto agora corre bem." Não gostara da frase.
Repercutia-se-me nos ouvidos até lhe encontrar uma patética ironia.
Mais tarde, coagido nem sei por que remorsos, vim rondar o hotel. Andei por ali até
conseguir coragem para subir ao seu quarto. Ela estava deitada entre flores
lilases, imóvel, desta vez de olhos fechados, julguei que dormindo. Abriu-os para
me dizer:
- Ofereci-as a mim própria. - Falava em surdina, arrastadamente, como quem resiste
aos efeitos de um hipnótico. - Foi a primeira vez em que não confiei em ti.
ao outro.
Creio que conversei com o gerente do hotel sobre as formalidades a cumprir. Gente a
assinar papéis. Os corvos pretos. Daí a horas ou no dia seguinte, o funeral. com
flores e pessoas que se quedariam no passeio, descobrindo a cabeça. Não me lembro
ao certo do que se passou. O elevador levou-me ao résdo-chão e o rosto de palha do
empregado estava tão vazio quanto o meu cérebro.
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- Desculpe, não podia deixar de vir buscá-lo. Lúcia, de súbito, reparou na apatia
da minha
- Podemos começar? - disse-me Lúcia, numa voz que partia lá de longe, embora firme
e apaixonada. Erguia-me a bata à altura dos braços.
- Podemos.
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Obra vasta e matizada como a que vem construindo desde 1937, quando publicou
"Relevo", seguindo-se os romances e novelas "As sete partidas do mundo" (1938),
"Fogo na noite escura" (1943), "Casa da malta" (1945), "Minas de San Francisco"
(1946), "A noite e a madrugada" (1950), "O trigo e o joio" (1954), "O homem
disfarçado" (1957), "Domingo à tarde" (1961), "Diálogo em setembro" (1966), "Os
clandestinos" (1972) e "O rio triste" (1982). ,
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Mas Namora também escreve poesia e memórias, e -publicou vários títulos nesses
géneros, como "As frias madrugadas" (1959) e "Marketing" (1969) - poesia -, e
"Retalhos da vida de um médico", primeira e segunda séries (1949 e 1963). "Penso
que sou um escritor que se desafia, sem cuidar do preço. De tantos em tantos anos,
dou uma guinada, mudando de género, ou misturando-os numa espécie de aventura
intelectual, ou então ousando uma toada narrativa, para alguns desconcertante, que
cada um interpreta como lhe aprouver." Ao abordar o múltiplo rumo de sua
literatura, Namora se referia a "Resposta da Matilde" (1980), best seller em
Portugal, que chamou de "divertimento", designação entendida das maneiras mais
contraditórias, e que, afinal, apenas pretendia "sugerir prazer de escrita, prazer
de chamar o leitor à cumplicidade da feitura do livro".
Essa cumplicidade é novamente oferecida em "O rio triste", que termina em aberto,
com o ponto de interrogação ao invés do ponto final. "A verdade é que nunca estive
certo do que iria suceder no capítulo seguinte, apesar de se tratar de um livro de
estrutura ficcional muito elaborada, em que se tenta uma manipulação do espaço e do
tempo, e em que a narração é distribuída por vários narradores, tendo o leitor como
cúmplice."
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"Eu pertenço a uma geração que foi, toda ela uma geração insubmissa. E uma geração
que, talvez, pela primeira vez na história literária portuguesa, tentou inventariar
o que era efetivamente a realidade portuguesa nos seus mais diversos estratos,
desde o campesinato até o meio citadino".
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