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A Ética Evangélica na Política

Um Ensaio para o Debate


Por Ednaldo Carvalho

J á se foi o tempo em que o segmento evangélico,


em nosso país, vivia voltado para dentro de si
mesmo. Inegavelmente, nas duas últimas
décadas, afluiu-nos a consciência de que somos
(Isaías. 1.23). E mais: “Outros diziam: – Para não
morrermos de fome, nós tivemos de penhorar os
nossos campos, as nossas plantações de uvas e as
nossas casas a fim de comprar trigo. E outros,
uma comunidade plural e co-responsável pelo espectro ainda, disseram: – Tivemos de pedir dinheiro
da coletividade na qual estamos inseridos. Hoje, nossa emprestado para pagar ao rei os impostos sobre
presença nesse contexto tem visível ascendência social os nossos campos e plantações de uvas.” (Neemias.
e política, principalmente pelo avanço dos evangélicos 5.3,4). Palavras como estas tornaram o movimento
no conhecimento e reconhecimento da teologia política profético não somente uma ação contra o pecado, mas
que marcou a história de vida de personagens bíblicos também contra algumas de suas ferramentas, o mau
que se imiscuíram na vida pública e muito lutaram por governo e a má política.
justiça social.
Não podemos negar, no
A contemporaneidade da ação e Éramos, até pouco tempo, vistos entanto, que o isolamento
do pensamento político de como um povo que vivia apenas dos evangélicos por décadas
profetas como Isaías, Daniel, com a visão espiritual do Reino de levou-nos ao isolamento
Amós e de administradores Deus, esquecendo que o Governo político. E o mais grave: ao
como Neemias e José, no Egito, de Deus, instalado em cada um de isolamento das idéias. Éra-
fala claro à nossa mente e nos nós, é o que nos potencializa para mos, até pouco tempo, vistos
desafia, como cidadãos, a lutar- influenciarmos a sociedade com a como um povo que vivia
mos igualmente por justiça, ética do Evangelho do Reino num apenas com a visão espiritual
afinando-nos coerentemente a tempo de reinos e governos sem do Reino de Deus,
estes exemplos de humanismo e ética e sem justiça. esquecendo que o Governo
solidariedade. Jesus Cristo sinte- de Deus, instalado em cada
tizou tais valores quando Ele mesmo ratificou em Mateus um de nós, é o que nos potencializa para influenciar-
22.39, ressaltando o mandamento “Amarás o teu mos a sociedade com a ética do Evangelho do Reino
próximo como a ti mesmo” como um entre os dois num tempo de reinos e governos sem ética e sem justiça.
maiores mandamentos, exortando-nos a uma convi-
vência de paz e reciprocidades. No Brasil Imperial e no início da República, alguns
fatores históricos foram determinantes para explicar
Alguns textos desses profetas demonstram que vivemos esta introspecção: a intolerância do clero romano, que
dias semelhantes – “Por acaso, podem os cavalos impunha sua igreja como representante da religião
galopar sobre as rochas? Ou será que os bois oficial; as limitações constitucionais que subalter-
podem puxar o arado no mar? Claro que não! Mas nizavam as ações eclesiásticas dos grupos evangélicos
vocês fazem a honestidade virar veneno e a justiça aos sacramentos e dogmas da igreja romana; e a opção
virar injustiça.” (Amós. 6.12 – São palavras de Amós de lideranças que tinham suas origens no trabalho de
contra os governantes de sua época). De igual modo, missionários estrangeiros que não queriam envolver-
em seu tempo, Isaías impacta seu contexto político com se em questões políticas e de estado.
palavras como “As suas autoridades são pessoas
revoltadas e têm amizade com ladrões. Estão Durante anos a fio, o segmento evangélico, cada vez
sempre aceitando dinheiro e presentes para torcer maior em número, orientava-se com a advertência de
a justiça. Não defendem os direitos dos órfãos e líderes que satanizavam certas atividades que
não se preocupam com as causas das viúvas.”
compunham as em xeque a qualidade desses representantes. Salvo
áreas da inteli- Sem se aperceber e acomo- salutares exceções, observamos, por um lado, a falta de
gência humana. dando-se em não lutar pelo preparo científico e, por outro, o que ainda é pior, o
Em função ideário bíblico de justiça social, comportamento ético questionável. Sem falar na nítida
disso, abrimos a comunidade evangélica, em manipulação da comunidade da fé, pela ação
mão de influ- sua majoritária parcela, tem corporativa de interesses de determinadas lideranças
enciar e ajudar hipotecado apoio eleitoral aos eclesiásticas e superestruturas denominacionais. Uma
a i n d a m a i s a representantes de partidos retórica sem
compor o teci- ligados às classes dominantes, m é r i t o Corremos o risco de vermos sur-
do cultural na- notadamente partidos conser- desses polí-
gir ações do fundamentalismo
cional. A filo- vadores e de direita. ticos evangé-
religioso aparelhado pelo poder
sofia, as artes, licos faz re-
político de lideranças evangélicas
a música, a antropologia, a psicologia e principalmente percutir en-
a política, até pouco tempo, eram áreas com as quais, tre os irmãos
e igrejas que buscam, a qualquer
segundo tais lideranças, os crentes não deviam se grandes falá- custo, a incorporação do poder às
envolver. cias, como: ordenanças da igreja, voltando ao
“irmão vota tempo em que fundiram-se igreja
Na ausência deste nível de reflexão, o comportamento em irmão”, e Estado para oprimirem em
dos evangélicos no Brasil tem sido, historicamente, o “temos que nome de Deus.
de cumprir, de maneira tímida, o direito e o dever do eleger evan-
voto. Sem se aperceber e acomodando-se em não lutar gélicos para proteger a igreja” e outras manipulações do
pelo ideário bíblico de justiça social, a comunidade gênero.
evangélica, em sua majoritária parcela, tem hipotecado
apoio eleitoral aos representantes de partidos ligados Outro perigo iminente é a condução eleitoral de massas
às classes dominantes, notadamente partidos conserva- evangélicas em função desta ou daquela denominação a
dores e de direita. serviço deste ou daquele partido político. Corremos o
risco de vermos surgir ações do fundamentalismo
Esta postura arredia, contraditória e de isolamento políti- religioso aparelhado pelo poder político de lideranças
co do passado recenteconfronta-se hoje com o despertar evangélicas e igrejas que buscam, a qualquer custo, a
de uma nova visão. Afinal, embora ausente das esferas incorporação do poder às ordenanças da igreja,
do poder,osegmento evangélico no Brasil tem cumprido voltando ao tempo em que fundiram-se igreja e Estado
sua missão evangelizadora – recuperando vidas do flage- para oprimirem em nome de Deus. Por falar nisso, já
lo do alcoolismo, das drogas, do crime e da desesperança observamos movimentos da igreja católica se organi-
– e, também, sua zando para fazer frente a esta mobilização evangélica
Nenhum grupo, sem verbas missão assisten- em torno do poder. Estaremos diante do início de uma
oficiais, tem feito o que as cial. É imensurá- disputa religiosa pelo poder?
igrejas evangélicas realizam vel o trabalho de
diariamente pelos menos assistência à vida O MOVIMENTO EVANGÉLICO POPULAR
favorecidos. realizado pelo SOCIALISTA (MEPS), através deste instrumento, vem
voluntariado manifestar seu posicionamento e conclamar os cristãos
evangélico. Nenhum grupo, sem verbas oficiais, tem progressistas a provocarem o debate e lutarem contra a
feito o que as igrejas evangélicas realizam diariamente pelos manipulação do cidadão evangélico, ao mesmo tempo em
menos favorecidos. Atualmente, este trabalho valoriza- que motiva a discussão sobre política, poder local, cida-
se ainda mais. Novas lideranças surgem, os seminários dania e a presença ética do evangélico na política.
teológicos formam líderes com amplitude de visão e
de conhecimento, a assistência social do passado as- O debate está aberto. O Evangelho é a expressão do
sume um formato de ação social, não apenas assistindo amor de Deus. O Cristianismo só tornou-se perseguidor
ao homem, mas potencializando-o para o vôo próprio. quando se tornou religião de Estado, no tempo do
imperador Teodósio (379-395). Os evangélicos
Esta premissa tem despertado também o interesse dos precisam ter a perfeita dimensão de sua participação
evangélicos pelo poder político. Nada mais legítimo, na política, como cidadão ou como político. Nosso
embora devamos reconhecer que a presença de compromisso é o de manifestarmos o caráter de Cristo
evangélicos na política, em nossos dias, tem colocado em nossas ações políticas, como fazemos na igreja ou
Devemos também dizer não na vida. Não deve- Cristo. Se for preciso, nós sabemos, Ele levantará até
à manipulação e à falácia de mos exercer man- mesmo o perseguidor para fazer crescer a sua Igreja.
datos em nome ou Assim fez a um deles no caminho para Damasco.
que irmão vota em irmão.
em função dos
Afinal, é legítimo e politi-
evangélicos, mas A proposta do MEPS é a de promover o debate e a
camente correto um evan-
de toda a socie- discussão junto aos evangélicos de todo o país,
gélico preferir votar em um
dade, de evangéli- aprofundando a questão que ora está posta, pois, a cada
político ateu solidário, res- cos ou não. O fim ano e a cada eleição, observa-se grandes contingentes
ponsável e honesto a votar de toda ação po- de fé serem tocados às urnas como os bois são tocados
em um evangélico perdu- lítica deve ser o de aos matadouros, dizendo amém ao engodo dos que
lário, manipulador e deso- fazer o melhor manipulam a comunidade evangélica como massa de
nesto. O critério para o voto possível para todo inocentes-úteis.
não deve ser o fato de o can- homem, mulher e
didato ser ou não da igreja criança, sem dis- Certa vez, alguns discípulos de Jesus quiseram aclamá-lo
evangélica, mas se ele exer- tinção de sexo, rei. Ele retirou-se, os evitou. Sabemos hoje que a
ce, ou não, seu mandato e raça, ideologia na- mensagem do Cristo é que o Seu Evangelho exerça poder
sua vida com dignidade. cionalidade, con- de dentro para fora, ou seja, que cada homem ou mulher
dição social e credo. alcançados pelos valores deste evangelho produzam
Devemos também dizer não à manipulação e à falácia efeito prático de exem-
plos de conduta e éti- ... um evangélico não
de que irmão vota em irmão. Afinal, é legítimo e politi- deve politizar sua condi-
camente correto um evangélico preferir votar em um ca em todas as áreas de
suas vidas. O Seu reino ção de partícipe desse
político ateu solidário, responsável e honesto a votar em Reino espiritual para
não era desse mundo,
um evangélico perdulário, manipulador e desonesto. tirar proveito pessoal ou
como Ele mesmo
falou, embora os valo- político disso. A condi-
O critério pa- Também devemos discordar
ra o voto não res do reino devam ser ção de membro dessa grei
de que precisamos eleger
deve ser o fa- vividos neste mundo. não o torna diferente das
evangélicos para eles defen-
to de o candi- Ele mesmo demais pessoas no exer-
derem a igreja. Outra menti-
dato ser ou reconheceu a legiti- cício da cidadania, ape-
ra... Nem mesmo o Império
não da igreja
midade dos governos e nasodesafiaaviverconfor-
Romano conseguiu destruir a
dos homens que exer- me esta profissão de fé,
evang é l i c a , Igreja de Cristo. Se for preci-
ceram o poder civil. traduzindo coerentemen-
m a s se ele so, nós sabemos, Ele levantará Pagou o tributo e man- te a ética cristã em suas
exerce, ou não, até mesmo o perseguidor para dou dar a César o que atividades seculares.
seu mandato fazer crescer a sua Igreja. era de César, mas não
esua vida com Assim fez a um deles no utilizou a sua condição de líder espiritual para, em nome
dignidade. caminho para Damasco. disso, justificar a luta pelo poder político.

O essencial é compreendermos que os evangélicos não Extraímos daí grandes lições, especialmente a de que
precisam do poder pelopoder.É legítimo e louvável desco- um evangélico não deve politizar sua condição de
brirmos talentos nessa área no seio das igrejas e capaci- partícipe desse Reino espiritual para tirar proveito
tá-los, motivando os candidatos evangélicos a disputa- pessoal ou político disso. A condição de membro
rem eleições não como evangélicos, mas como cidadãos. dessa grei não o torna diferente das demais pessoas
Se assim não for, estarão fazendo como os conhecidos no exercício da cidadania, apenas o desafia a viver
serviçais que elegem-se com o apoio de estruturas conforme esta profissão de fé, traduzindo coerente-
econômicas ou corporativas que financiam suas campa- mente a ética cristã em suas atividades seculares.
nhas e, em troca, controlam suas consciências e seus
mandatos. Uma corrida cega dos evangélicos pelo poder, em nome da
segmentação religiosa, propiciará uma visão social separatista
Também devemos discordar de que precisamoselegerevan- e novamente voltaremos ao gueto do isolamento, dessa vez
gélicos para eles defenderem a igreja. Outra mentira... Nem acreditando que alcançamos uma parcela do poder político
mesmo o Império Romano conseguiu destruir a Igreja de como um fim em si mesmo.
As distorções da religião promovem Além de observarmos profun- políticos fundamentados na ética
ambientes favoráveis ao fundamen- das distorções na pregação do cristã, na paz social e na democracia.
talismo religioso, que tem provocado
que seria o genuíno Evan- A superação das barreiras religiosas
grandes conflitos no mundo inteiro:
gelho, acontecem, em nosso entre judeus e gentios, das barreiras
injustiças, intolerância, ódio,
meio, articulações que visam socioeconômicas entre escravos e
preconceitos e guerras. Milhões já fo-
a utilizar o crescimento do livres e das desigualdades sociais
ram mortos, queimados vivos,
segmento evangélico, no Bra- entre homens e mulheres, no
jogados às feras e outros se auto-
sil, para fins eleitorais, exclusiv- primeiro século, não foram mais
sacrificam como instrumentos do
amente para robustecer o poder fáceis que a superação entre negros
terror. Mata-se e morre-se em nome
político de grupos que acre- e brancos, entre ricos e pobres e
de Deus. Hoje, vemos surgir novos
ditam deter o condomínio do entre homens e mulheres no século
mecanismos desta religiosidade presente. Estaremos, pois, vigilan-
tóxica que engana, emburrece e voto evangélico.
tes contra novas barreiras que
aliena quem a segue. Além de suscitem o fundamentalismo religioso e que ameaçam
observarmos profundas distorções na pregação do que surgir em nossa já tão contraditória política brasileira.
seria o genuíno Evangelho, acontecem, em nosso meio,
articulações que visam a utilizar o crescimento do seg- Os erros do passado não são diferentes dos erros do
mento evangélico, no Brasil, para fins eleitorais, presente. E, como no passado existiram muitos,
exclusivamente para robustecer o poder político de estamos nós, no presente, com o compromisso de
grupos que acreditam deter o condomínio do voto resistência, com a visão de liberdade e com a tarefa de
evangélico. ajudar a abrir olhos e mentes.
O MEPS, através desse documento, propõe o debate e
A visão do MEPS é uma visão libertária e se coaduna sugere a realização de eventos, seminários, congressos e
com a visão libertária do PPS, que tem, no seu movimento palestras nos Estados e municípios, sugerindo, ainda, que
evangélico, um órgão de cooperação não voltado para a os membros evangélicos do PPS levem este texto para
cooptação de consciências ou de manipulações eleitorais, discussão junto às lideranças partidárias, eclesiásticas e
mas sim um organismo voltado para levar propostas de demais irmãos de nossas igrejas.
debates visando à permanente conscientização da
sociedade, especialmente dos evangélicos a fim de que Contribuição ao Encontro do Diretório
este segmento tenha elementos de análises críticas e Nacional do PPS. (Ednaldo Carvalho)
históricas para decidir, de forma livre, o exercício da Foz do Iguaçu - dias 10, 11 e 12 de outubro de 2003
cidadania através de votos conscientes e posicionamentos

PROPOSTA: Que este texto, com as devidas emendas que possam surgir decorrentes de
comentários e sugestões, venha servir de documento base para o Fórum do MEPS no Congresso
do PPS, em março/2004.

O MEPS está construindo seu site. Por hora, diponibilizamos esse texto
para abrir o debate sobre Ética Evangélica na Política.
Qualquer comentário, mandar e-mail para meps@pps.org.br ou
ednaldocarvalho@globo.com

www.pps.org.br/movimentoevangelico
MEPS – Movimento Evangélico Popular Socialista
Coordenação Nacional: Rua Senador Dantas, 117 – sala 1522 – Centro – Rio de Janeiro – RJ
CEP.: 20034-900 – Tel.: (21) 9963-8255
E-mails: meps@pps.org.br ou ednaldocarvalho@globo.com

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