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3 - Educao Do Campo Como Afirmao Do Projeto Emancipatrio - EDUO PDF
3 - Educao Do Campo Como Afirmao Do Projeto Emancipatrio - EDUO PDF
Caderno Temático V
Educação, Escolas e Movimentos Sociais do/no Campo
RESUMO:
O presente artigo investiga como as categorias luta social do campo e a identidade de classe são
tratadas na Proposta Educativa do Movimento Sem Terra - MST. As análises estão pautadas em
revisões bibliográficas e documentais, na leitura de materiais publicados pelo (e sobre) MST (livros,
artigos e periódicos) e outros disponibilizados na Internet (matérias de jornais, revistas, etc.), todos
eles resultantes de reflexões sobre sua prática na luta social. O estudo evidencia uma mudança
gradativa nos princípios gerais e na proposta de reforma agrária do MST desde a sua
institucionalização formal em 1984, enquanto que na sua proposta pedagógica, mesmo
apresentando diversas contradições, apontam para a necessidade da articulação entre luta social e
um projeto identitário da classe trabalhadora.
Palavras-Chave: Luta Social. Identidade de Classe. MST. Educação do Campo
ABSTRACT:
This paper investigates how categories of social struggle and class identity field are treated in
Motion Educational Landless Movement - MST. The analyzes are guided by literature review and
documentary, reading materials published by (and about) MST (books, articles and journals) and
others available on the Internet (newspaper articles, magazines, etc..), All resulting from reflections
on his practice in the social struggle. The study shows a gradual change in the general principles
and the proposed MST agrarian reform since its formal institutionalization in 1984, while in his
pedagogical proposal, even presenting several contradictions point to the need for coordination
between social struggle and identity project the working class.
1
Graduado em Pedagogia – Habilitação em Administração e Coordenação de Projetos Pedagógicos, Campus IX –
Universidade do Estado da Bahia - UNEB, com especialização em Educação do Campo e Desenvolvimento
Territorial do Semiárido Brasileiro, Universidade Federal do Recôncavo da Bahia – UFRB / CFP, Campus
Amargosa-BA. E-mail: clebereduao@gmail.com
Educação do Campo como afirmação do projeto emancipatório _ FERREIRA 30
Introdução
2
Segundo TONET (1997: 155) “a emancipação humana não é nem uma utopia ou simples idéia reguladora, nem um
acontecimento inevitável. É uma possibilidade, certamente a mais conveniente para a humanidade, mas apenas uma
possibilidade que dependerá da ação dos próprios homens para tornar-se realidade”.
3
Por uma Educação do Campo: Contribuições para a Construção de um Projeto de Educação do Campo,
Organizadoras Mônica Castagna Molina e Sônia Meire Santos Azevedo de Jesus.
Se “a história de todas as sociedades que existiram até hoje é a história de lutas de classes”
(MARX & ENGELS, 2003, p. 45), a história da instituição escolar, desde o seu nascimento, e,
principalmente após a revolução burguesa não tinha como não carregar em seu estatuto interesses
de classe. Evidente que nas comunidades primitivas pré-capitalistas (sem classes), o que acontecia
era uma educação espontânea e informal que não estava sob controle de nenhum grupo, pois tinha
como objetivo único a sobrevivência das tribos. (PONCE, 2001). Mas, segundo o mesmo autor, a
educação institucionalizada sempre foi negada para maioria da população, enquanto uma pequena
minoria rica gozava de todos os privilégios.
Quando olhamos rapidamente para a história do Brasil, é fácil notar que a educação da
população pobre não vai ser diferente. Como lembra Romanelli (1978), nossa história já começa
com a chegada dos jesuítas que foram os primeiros “educadores”. Eles vieram para o Brasil após a
“chegada” dos portugueses com o intuito de catequizar os índios, num modelo de educação em que
o índio se tornasse submisso. Daí em diante a história é a mesma com a classe dos trabalhadores e
trabalhadoras (camponeses e camponesas). Dito isto não é difícil entender o porquê do nascimento
do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra – MST (e de muitos outros movimentos sociais). Ele é
fruto das contradições e da luta de classes. Sempre existiram no Brasil insurreições das populações
oprimidas e sempre existirão enquanto vivermos numa sociedade que se ancora na exclusão e na
desigualdade. Essas lutas do MST, como tantas outras, são alicerces em construção de uma contra-
hegemonia. Conforme Gramsci (ARANHA, 1981) hegemonia significa dirigir, guiar ou conduzir e
uma classe é hegemônica quando tem o poder de conduzir, através da força bruta ou através das
idéias, os dominados. Quando os trabalhadores e trabalhadoras passam a não aceitar essa
dominação docilmente, e se organizam e contestam essa hegemonia, Gramsci acredita estar
nascendo aí uma contra-hegemonia.
As contradições no campo brasileiro são visíveis, com seus latifúndios e concentração das
terras. Enquanto de um lado representando a classe hegemônica estão os exploradores do trabalho
escravo, grileiros de terras, defensores do agronegócio, dos venenos etc. do outro, como categoria
importante da classe trabalhadora, os movimentos sociais do campo (confrontacionais), com suas
diversas estratégias e formas de resistir as enxurradas do grande capital. A educação do e no campo
brasileiro, nesse sentido é um território em disputa. Segundo Menezes Neto4:
4
Artigo Formação de Professores para a Educação do Campo: Projetos Sociais em Disputa, de Antônio Júlio de
Menezes Neto, publicado no livro Educação do Campo: Desafios para a Formação de Professores, organizado por
Maria Isabel Antunes Rocha e Aracy Alves Martins, Editora Autêntica, Belo Horizonte, 2009.
No campo brasileiro, neste novo século, apresentam, basicamente, dois projetos políticos em
disputa: de um lado, o agronegócio, que se apresenta como globalizado e moderno e, de
outro, o camponês que, apesar de produzir boa parte dos alimentos para consumo interno no
Brasil, é considerado retrógrado (MENEZES NETO, 2009, p. 25).
Educação do e no campo, portanto, tem que ser analisada aqui numa perspectiva determinada
para formação da consciência e libertação da classe trabalhadora, dentro do marco da emancipação
social, na busca da superação do capitalismo. Assim, não pode ser entendida apenas como um
direito social a ser conquistado no Estado burguês ou dentro do viés diferencialista de valorização e
respeito cultural, mas, principalmente, num horizonte de luta pela igualdade, ou seja, um meio (não
o único) para contribuir na transformação da realidade brasileira, da liberdade da classe
trabalhadora do julgo do Estado capitalista.
Para chegar à emancipação de fato, de acordo com essas análises pelo próprio Marx, exige-se
a superação do capital e do Estado, “não se trata, nessa perspectiva, de democratizar o estado em
nome da liberdade, pois essa liberdade (...) só é verdadeiramente possível superando o Estado”
(IASI, 2011, p. 74). A emancipação humana é contrária ao Estado burguês, nega a propriedade
privada e a venda da força de trabalho como mercadoria e só acontecerá em uma outra sociedade.
Para construir uma outra sociedade, torna-se necessário a luta, resistência e uma identidade de
projeto histórico claro, contributo para formação da consciência, que se materializa em ação.
Parte dos movimentos sociais de luta vem vivenciando e percebendo que dentro das condições
atuais, é imperativo não ficar apenas lamentando o processo de dominação exercido pelo
capitalismo, mas, com perspectiva de um projeto histórico de sociedade, construir na luta uma nova
história. O MST tem dito isso em seus documentos. A busca pela emancipação social, a ser
encampado pela classe trabalhadora, e que, os trabalhadores e trabalhadoras do campo estão
inclusos, não pode perder de vista o projeto coletivo, e, para isso, a consciência da classe é pré-
requisito.
Consciência de classe (ou para si) é consciência da transformação ou consciência da ação;
superação da consciência de si, e, portanto, muito mais do que consciência crítica. Acreditamos que
no momento histórico atual é necessário lutar pela unidade de classe (identidade de classe) como
projeto histórico, bem como fortalecer as ações concretas e teóricas para enfrentar o fatalismo do
“discurso” dominante, apesar das primeiras serem primordiais.
Desde a educação jesuítica até as lutas e propostas dos movimentos sociais de luta do campo,
existiram alguns projetos, programas e iniciativas educacionais para o meio rural por parte do
Estado5. Num certo período da história recente da república brasileira, é possível agrupá-los em
dois movimentos: um chamado ruralismo pedagógico e outro urbanismo pedagógico (LEITE,
1996). A proposta de educação libertadora de Paulo Freire da década de 60, apesar de ter
influenciado muitos movimentos no Brasil, foi “emudecida” (temporariamente) nas iniciativas e
prerrogativas do governo militar.
O Ruralismo Pedagógico propunha basicamente alternativas para o campo no sentido de
conter o movimento migratório que começara devido ao crescimento industrial. Segundo Maia
(MAIA apud LEITE, 1996, p.28), esse movimento queria “uma escola integrada às condições locais
regionalista, cujo objetivo maior era promover a fixação do homem ao campo”. Percebe-se, nesse
primeiro momento, que por trás desse “discurso para o campo” e não do campo, apesar de à
primeira vista parecer comprometido, interesses ideológicos visíveis das elites urbanas. Nesse
sentido esclarece Leite (1996, p.29): “o ruralismo contou também com o apoio de alguns segmentos
das elites urbanas, que viram na fixação do homem no campo uma maneira de evitar a explosão de
problemas sociais nos centros urbanos”.
Enquanto de um lado o Ruralismo Pedagógico pregava um ideal, do outro lado, “o discurso”
do Urbanismo Pedagógico voltava-se para negação da existência de uma divisão entre rural e
urbano. Essa concepção não deixa de ser ideológico. Segundo Silva (apud LEITE, 1996, p. 161), o
Urbanismo Pedagógico, acreditava não haver “necessidade de se fazer essa distinção entre campo e
cidade (...) a escola deveria ensinar uma cultura geral e informações gerais que possibilitassem ao
ser humano integrar-se, adaptar-se a essa realidade”. Essa realidade seria o futuro do rural, que
segundo esse discurso, não teria outro destino, senão a cidade. O campo estaria pré-destinado a um
dia, urbanizar-se. É essa visão que vai perpassar em muitos outros programas e iniciativas do
Estado, o que para nós carece de um aprofundamento e problematização. Qualquer iniciativa
vertical proposta pela classe hegemônica na sociedade, sem o consentimento e participação das
populações camponesas (ou até mesmo com a participação dessas), certamente não permitirá
qualquer questionamento às premissas do capital, ou se apegam à ruralismos pedagógicos (que nos
lembra um pouco as políticas diferencialistas irredutíveis) ou à urbanismos pedagógicos (o que
também é insuficiente e não questiona a lógica do capital, além de negar irredutivelmente as
culturas camponesas).
O MST tem questionado essas políticas compensatórias para o campo, principalmente ligadas
a educação. Como já dissemos, está clara a parcialidade do Estado burguês, pois, quando este
5
Campanha Nacional de Educação Rural – CNER; Serviço Social Rural – SSR, Campanhas de Educação de Jovens e
Adultos – EJA; Polonordeste; Pronasec; Pró-município; Plano Nacional de Desenvolvimento – PND; Plano Setorial de
Educação, Cultura e Desportos – PSECD, Edurural, dentre outros.
oferece uma educação para o campo (ou educação rural), sem o consentimento dos trabalhadores
que estão no campo, logicamente, a educação “oferecida” (imposta) será mais um instrumento para
camuflar a luta de classes, não formar trabalhadores com consciência da classe (identidade de
classe), menos ainda contribuir para emancipação social.
Ao não concordar com a terminologia “educação para o campo” (ou educação rural), Caldart
(2004) defende uma “educação no e do campo”, ou seja, as pessoas têm o direito de serem educadas
NO campo e essa educação não pode ser pensada de fora pra dentro sem o consentimento e
demandas dos sujeitos DO campo. Compreendemos as limitações da educação no e do campo
dentro do Estado burguês, mas Caldart (2004) consegue trazê-la para o foco da resistência e,
portanto, apresenta-a como negação da educação rural que tem estado historicamente nas
entrelinhas das propostas pedagógicas de Governos “para o campo”, bem como nas entranhas da
escola tradicional. Dalmagro (2011) e Vendraminni (2008) acreditam que o Movimento por uma
Educação do Campo (EdoC) tem se afastado da perspectiva da luta de classes, isto é, “a formulação
da questão expressa na denominação Educação do Campo não deixa clara a marca de classe e
permite uma oposição (falsa) entre campo e cidade”. (DALMAGRO, 2011, p. 70 apud
VENDAMINNI, 2008). Estamos compreendendo aqui, assim como Ribeiro (2010) e outros autores
referendados que a educação rural deve ser entendida como instrumento do capital e a educação do
e no campo (apesar das contradições incutidas no conceito) como demandas históricas dos
movimentos sociais populares, da classe trabalhadora.
Em 1984, após o 1º Encontro Nacional do MST é que foi elaborada a sua primeira proposta de
um Programa de Reforma Agrária (MORISSAWA, 2001). Se compararmos com a Proposta de
Reforma Agrária Unitária dos Movimentos Camponeses do Brasil elaborada ainda em 1961, fruto
do momento histórico específico, iremos perceber semelhanças, inclusive a defesa de uma reforma
agrária mais radical (STEDILE, 2005). Nesse primeiro programa de reforma agrária do MST, as
categorias luta social e identidade de classe aparecem, sendo a primeira explicitamente e a segunda
mais nas entrelinhas. Nos princípios gerais do documento fica claro a necessidade de articulação da
classe trabalhadora para construção de uma outra sociedade, e como estratégias de luta as
ocupações, marchas e caminhadas (MST, 1989).
6
Dicionário Educação do Campo, 2012
ocupações e conflitos, e coincide com os momentos de maior produção dos cadernos pedagógicos
(Dossiê MST Escola).
Há uma busca explícita, principalmente nos últimos textos pedagógicos do Dossiê MST
Escola, com foco na luta social para além das conquistas da categoria e da passagem da consciência
de si para consciência de classe (identidade de classe). Esse terceiro momento já referenda bases
teóricas que buscam primeiro, romper com o histórico de negação do movimento camponês como
protagonista na luta contra o capital, assim apresentado-o como sujeito histórico7 na transformação
radical da sociedade. Mas, precisamos questionar: Como contribuir para formação de sujeitos
políticos coletivos da luta de classes se em nenhum momento o Movimento se propõe tomar o
poder? Há de fato afirmações categóricas nos princípios filosóficos e pedagógicos do MST e uma
intencionalidade transformadora (diríamos assim), todavia, nos próprios documentos são alegadas
dificuldades práticas para que as orientações cheguem às escolas do Movimento. Mesmo que a
formação desses sujeitos políticos coletivos seja possível em curto ou médio prazo, como fazer
desse esforço (diríamos pedagógico) uma “transformação radical da sociedade” sem a tomada do
poder das mãos da classe dominante?
Ermakova & Rátnikov (1986), inspirados em Marx e Engels, acreditam que na luta de classes,
todas as lutas são importantes (apontando seus limites é claro), incluindo a luta econômica, a luta
ideológica no campo das idéias e a principal, a luta política, esta última, considerada pelos autores
como “a forma superior de luta de classe (...) diferentemente da luta econômica, cujos objetivos se
reduzem à satisfação das necessidades econômicas e sociais quotidianas dos trabalhadores, a luta
política é a luta pelos interesses radicais do proletariado” (ERMAKOVA; RÁTNIKOV, 1986, p.
120). E, segundo os mesmos autores, sem a perspectiva de tomado do poder, sem um partido que
unifique as lutas econômicas (de sindicatos, associações culturais, movimentos educacionais,
movimentos identitários, movimentos de luta do campo, etc.) não existe possibilidade real de
“cumprir a sua tarefa radical: a liquidação da ordem capitalista e a realização da revolução
socialista” (ibid, p. 129). Bogo (2010) e Costa (2012) comungam desse entendimento. Acreditamos
que, assim como Ribeiro (2010) o MST pode ser considerado como um sujeito político coletivo em
7
Ribeiro (2010) conceitua os significados de sujeitos sociais, sujeitos históricos e sujeitos políticos coletivos. Sujeito
social são organizações que podem representar tanto o trabalhador quanto o grande capital, qualquer grupo ou
categoria que se organiza e luta, independente da bandeira que defenda, pode ser considerado como sujeito social.
Já o sujeito histórico está mais relacionada a classe com condições de protagonizar a transformação da sociedade.
Assim como a burguesia protagonizou o fim do feudalismo, o movimento operário, em muitos momentos da
história, protagonizou a luta contra a classe burguesa. O sujeito político coletivo é capaz de unificar “uma
diversidade de interesses específicos, próprios da identidade à qual nos referimos, mas também da
contraditoriedade presente no seu interior, através do movimento de conservar/transformar. (RIBEIRO, 2010,
p.136).
construção, pois tem protagonizado uma luta contra a grande propriedade privada apontando para
uma identidade de projeto e com caráter de classe, influenciando inclusive muitos outros
movimentos camponeses e urbanos. Organizações como a Via Campesina tem conseguido unificar
alguns movimentos camponeses no Brasil e no mundo em torno da luta maior, no entanto,
acreditamos que os limites (digamos revolucionários) estão justamente na dificuldade e disposição
dos militantes de esquerda de lutar por um partido operário-camponês autônomo e independente, o
que dificulta e retarda a tomada do poder das mãos da classe opressora.
De 2001 a 2012: é um período onde o MST consolidou sua proposta de reforma agrária, a
qual ficou intitulada como Proposta de Reforma Agrária Popular8, inspirada nas mudanças
anunciadas pelo Presidente Lula, eleito em 2003 com forte apoio popular e dos Movimentos
Sociais. A partir da segunda metade desse período há um abrandamento da luta pela reforma agrária
e uma redução de conflitos, ocupações e novos assentamentos, ao mesmo tempo em que se
identifica uma redução de material especifico sobre educação do MST, e de ascensão da produção
sobre a Educação do Campo, ou seja, quando se amplia a discussão em torno do Movimento por
uma Educação do Campo do qual o MST é um dos principais protagonistas, há um decréscimo da
produção sobre a Educação do MST. Os dois documentos pedagógicos que analisamos nesse
período são: A Pedagogia do Movimento Sem Terra, tese de Caldart defendida em 1999, mas
publicada em 2004 pela Expressão Popular (2ª edição) e o Caderno do ITERRA, Ano X, No 15
(2010), os quais serão problematizados separadamente.
3) O Livro A Pedagogia do Movimento Sem Terra é um aprofundamento dos princípios
apresentados nos últimos textos do Dossiê MST Escola. O foco do livro é entender como o
movimento social é educativo, ao mesmo tempo em que produz uma cultura de luta enquanto luta:
“trata da formação humana em sua relação com a dinâmica de uma luta social contemporânea: a
luta pela Reforma Agrária”. (CALDART, 2004, p. 18). Já nos primeiros processo de formação do
MST, a categoria luta social aparece de forma basilar tanto que o estudo das lutas pela terra no
Brasil e na América Latina eram conteúdos de formação das lideranças (CALDART, 2004). E o
sentido sociocultural do MST, segundo a autora, é justamente projetar essa luta social para além da
reforma agrária e entendendo a cultura “enquanto uma dimensão dos processos de formação de
novos sujeitos sociais”. (ibid, p. 37), tendo a formação desses sujeitos como um processo cultural
intencional. Segundo a autora, “as condições sociais produzidas pelo início da sociedade capitalista
(...) produziram a luta operária. A luta operária produziu o movimento operário (...) e foi transmitida
exatamente como cultura”. (ibid, p. 75). Em todos os capítulos do livro é ressaltada a luta social
8
MST – Lutas e Conquistas. 2ª Edição, 2010.
como base para existência dessa Pedagogia do Movimento e como alicerce para reconstrução da
própria identidade dos trabalhadores e trabalhadoras, identidade essa vinculada a “uma luta social,
com uma classe e com um projeto de futuro”. (ibid, p. 33).
De fato a luta operária produziu o movimento operário e uma cultura política foi sendo
construindo a partir dessa luta, todavia o que Caldart (2004) não pode esquecer, é que, havia uma
pretensão de tomar o poder da classe dominante. Outrossim, o movimento operário se propôs fundar
um partido, mesmo reconhecendo as disputas e contradições do mesmo.
Caldart (2004) defende, basicamente, que as palavras-chaves luta, organização, coletividade,
terra, cultura e história resumem a Pedagogia do MST, e as trazem nas cinco matrizes básicas: 1ª) A
Pedagogia da Luta Social significa “manter os sem terra em estado de luta permanente é uma das
estratégias pedagógicas mais contundentes produzidas pelo Movimento”. (ibid, p. 333); 2ª)
Pedagogia da Organização Coletiva coloca a luta social em movimento e educa os sem-terra para
além do individualismo, “a ocupação é, como disse Stedile, a matriz organizativa do Movimento, à
medida que foi em torno dela que se constituiu e se formatou a coletividade sem-terra”. (ibid, p.
343); 3ª) A Pedagogia da Terra, base da luta social do MST significa dizer que “os sem-terra do
MST se educam em sua relação com a terra, com o trabalho e com a produção (ibid, p. 351); 4ª) A
Pedagogia da Cultura mistura as demais pedagogias: “há cultura na pedagogia da luta, na
pedagogia da organização coletiva, na pedagogia da terra e da produção e na pedagogia da história”.
(ibid, p. 366); 5ª) A Pedagogia da História acredita haver “um componente pedagógico
fundamental também no conhecimento e na compreensão da história”. (ibid, p. 376).
As contribuições para a luta social e identidade de classe foram intensamente lembradas na
Pedagogia do MST, no entanto, não podemos negar suas contradições. As contradições na
Pedagogia do Movimento Sem Terra são assumidas pela própria Caldart (2004), ao reafirmar o seu
dinamismo constante nas práticas do Movimento e concepções teóricas que a vão abarcando na
caminhada, além disso, nos lembra que “essas pedagogias, ao mesmo tempo (em) que se combinam,
podem, em alguns momentos, também contradizer-se, sendo a busca da coerência (...) um desafio
pedagógico”. (ibid, p. 330). Ao analisar o Dossiê MST Escola, inclusive alguns textos de Caldart
que tratam da Pedagogia do MST, TEIXEIRA (2009) verifica um ecletismo teórico prejudicial e
perigoso, pois perspectivas diferentes e antagônicas ao serem misturadas, podem acarretar em uma
desorientação da sua militância e das linhas de ação de um Movimento importante quanto o MST.
Dentre várias contradições destacaremos aqui algumas que pudemos observar. Além das
constatações de TEIXEIRA (2009) e focando especificamente nosso estudo, é possível verificar
primeiramente que na matriz Pedagogia da Luta Social confirma que ela nasce e existe da “luta
MST está em construção, mas como defendê-la fruto da luta concreta se há momentos em que a
coloca com objetivo de classe e com projeto de futuro sem ser revolucionária? Ou sem pretender ser
revolucionária? A autora acredita que
Podemos estar enganados, mas essa passagem nos parece um apego exagerado por uma
herança cultural a ser deixada pelo Movimento (com toda importância que possa ter) como se
estivesse se despedindo de um histórico de luta e se contentando com algo que restou de tudo
isso, ou seja, a herança que é a Pedagogia do Movimento Sem Terra. Mas como se contentar com
a Pedagogia do Movimento se ela nasceu como princípio “educativo e cultural” a partir da luta e
só existe (ou existirá) na permanência dessa luta, segundo a própria Caldart (2004)?
9
Neste texto, Caldart dirime dúvidas deixadas no texto anterior, e avança expondo com radicalidade os desafios da
educação do MST. É fundamental destacar isso vez que é um texto mais recente, e por aparecer num momento onde a
produção específica do MST diminuiu. Porém, vale salientar que, diferente dos Cadernos de Educação (que eram
gratuitos), este não é um material de distribuição gratuita para os educadores do MST.
nessa formação e os seus limites: “a escola precisa ser transformada, exatamente porque ela não
nasceu para educar a classe trabalhadora (...) e não haverá uma transformação mais radical da escola
fora de um processo de transformação da sociedade”. (ibid, p. 67).
De forma mais consistente a escola é apontada como um mecanismo, com seus limites
revolucionários, mas que precisa ultrapassar a luta social dos Sem Terra para uma intencionalidade
pedagógica voltada para a formação do projeto da classe trabalhadora (identidade de classe), não
pode ser “uma ilha de educação emancipatória” (ibid, p. 68). Ou seja, essa emancipação tem que ser
dos trabalhadores e trabalhadoras: “o projeto formativo maior não deve ser da escola (em si
mesma), mas de um coletivo maior, em nosso caso, da organização dos trabalhadores a que
pretendemos vincular a atuação educativa da escola”. (ibid, p. 71). No mesmo sentido que afirmou
Marx10 numa passagem do Estatuto da Associação Internacional dos Trabalhadores:
Que a emancipação das classes trabalhadoras deverá ser conquistada pelas próprias
classes trabalhadoras; que a luta pela emancipação das classes trabalhadoras não
significa uma luta por privilégios e monopólios de classe, e sim uma luta por direitos
e deveres iguais, bem como pela abolição de todo domínio de classe (MARX &
ENGELS, 2003, p. 107).
A realidade passa a ser considerada não apenas aquilo que é mais próximo, mas tudo
aquilo que merece ser conhecida, do Planeta Terra e do universo (...) o estudo da
realidade agrícola do assentamento, onde está a escola, tem como objetivo se
conectar com discussões acerca da agricultura nacional e até internacional
(CHASSOT & KNIJNIK, 2007, p. 126-127).
O texto termina buscando reforçar o caráter imprescindível da luta concreta (Luta por
Reforma Agrária) do Movimento, sem desmerecer as lutas no campo pedagógico: “as lutas
pedagógicas não substituem as lutas sociais e políticas mais amplas, ainda que também na
pedagogia a vida seja defendida somente com palavras”. (CALDART, 2010, p. 83)
10
Publicado nos Anexos do livro Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels, Editora Martin Claret, 2003.
Nesse trabalho buscamos identificar como a luta social e a identidade de classe aprecem na
Pedagogia do MST na atualidade e o foco foi basicamente analisar com detalhes as contribuições e
contradições da Pedagogia do MST (entendida como uma importante experiência de educação do
campo) como espaço de disputa e como identidade de projeto da classe trabalhadora, contributo
para emancipação social.
Podemos aferir que, retomando rapidamente as análises, o MST foi passando (nos textos
específicos do próprio Movimento!) de uma consciência de si para uma necessidade de consciência
de classe, de uma identidade de resistência para uma identidade de projeto (identidade de classe) ou
de sujeito social para sujeito político coletivo, como referendamos nas reflexões acima, sem
desconsideramos as contradições inerentes a esse processo ainda em construção.
Considerações
Apesar das contribuições do Dossiê MST Escola para nosso estudo, principalmente a partir
dos últimos textos do documento, na Pedagogia do Movimento Sem Terra (CALDART, 2004) e no
Caderno do ITERRA (CALDART, 2010) várias contribuições e contradições foram postas à mesa,
não para desmerecer nenhum esforço teórico-prático desse Movimento Social de Luta que para nós
ainda representa uma força fundamental no Brasil, na América Latina e no mundo no enfrentamento
das contradições do capitalismo, evidente que considerando os limites de um movimento social
(mesmo questionador) para transformação da sociedade capitalista. Qualquer movimento que não se
proponha a fazer parte de uma unidade de luta para tomar o poder da classe dominante, por mais
pedagogias, reflexões ou lutas sociais que tenham construído em sua história, quando alcançar seu
objetivo maior (que pode ser terra, educação, saúde, reconhecimento simbólico) tende ser engolido
pelo capital. E a emancipação humana fica no caminho das conquistas por direitos sociais -
emancipação política -, necessários, mas limitados, quando tratamos da construção de uma outra
ordem social.
Podemos averiguar também que enquanto na proposta de reforma agrária do MST há um
abrandamento teórico-prático, passando a defender uma proposta de reforma agrária popular,
principalmente a partir de diálogos estabelecidos com a eleição do presidente Lula, nos documentos
que tratam da Pedagogia do Movimento Sem Terra que tivemos acesso, ora temos momentos em
que há uma preocupação mais voltada para a sua luta social, ora uma tentativa de articulação entre a
luta social e um projeto de classe, o que está resumido no artigo MST e a Escola, publicado no
Caderno do ITERRA (CALDART, 2010).
Uma educação para a emancipação humana pode e deve dar atenção às culturas dos sujeitos,
todavia, como movimento que se propõem articular luta social e identidade de classe, não pode cair
no “discurso da neutralidade aparente das defesas das diferenças culturais” da política oficial de
forma irredutível. É preciso ir além da cultura ou das culturas; ir além das tradições (e apontar suas
contradições), questioná-las, ressaltando, como resultado da luta social, uma nova cultura para
novos homens e mulheres, com novas identidades que caminhem para um novo projeto de
sociedade para além do capitalismo. Acreditamos que uma proposta de educação com viés
revolucionário pautado em irredutibilidades das diferenças culturais (ou quaisquer outras diferenças
corporais, regionais, geográficas, étnicas ou sexuais) e sem perspectiva de fortalecimento da classe
trabalhadora é limitadora.
Na nossa sociedade mergulhada na desigualdade, uma luta social (independente da bandeira)
só consegue se organizar e ultrapassar a consciência de si se focar uma luta maior pela igualdade
(para além da diferença), numa perspectiva de identidade de classe. Para isso vamos ter que pensar
e repensar a necessidade de tomar o poder da classe opressora, através das lutas econômicas, lutas
ideológicas e, principalmente da luta política. Reconhecer que somos oprimidos e que também
podemos carregar opressores hospedados em nós como diria Freire (1987) não significa negar a
existência dos detentores do capital que na sociedade subordinam todos os movimentos de lutas
sociais ao seu jugo, principalmente quando esses não vêem suas lutas para além do imediato ou da
própria categoria.
As nossas reflexões apontam, portanto, que somente a luta social do MST (ou de qualquer
outro movimento questionador do capitalismo), mesmo que articulado com um projeto histórico, é
um caminho a ser percorrido, mas não é suficiente para as transformações radicais da sociedade. Só
a tomada do poder das mãos da classe dominante e, conseqüentemente da eliminação do poder de
uma classe sobre outra é que podemos caminhar para outra ordem social, para a emancipação
humana.
Quando se tem um projeto histórico claro da luta da classe trabalhadora e não se tem
perspectiva de unificação de todas as “diferenças oprimidas” para lutarem contra todos os
“diferentes opressores”, o limite está dado justamente na falta dessa perspectiva.
Assim como Marx & Engels (2003) em determinado momento histórico questionaram o
socialismo reacionário ou conservador da grande ou pequena burguesia, bem como os socialismos
utópicos que acreditavam na “bondade da classe opressora” (ou em transformações pacíficas),
acreditamos que o único caminho para a organização dos trabalhadores é o movimento
revolucionário “contra as condições sociais e políticas existentes (...) como questão fundamental a
questão da propriedade” (MARX; ENGELS, 2003, p. 82). Podemos fazer uma analogia desses
“socialismos burgueses e conservadores” criticados por Marx e Engels (2003) com os limites das
infinitas lutas sociais dos infinitos diferentes oprimidos que não buscam unidade para questionarem
organicamente a propriedade privada e a sociedade de classe.
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