Você está na página 1de 6

Como o Estado brasileiro lida com a desigualdade regional?

Introdução

Desde sua formação, o Estado brasileiro se consolidou como um país que teve seu
processo de desenvolvimento pautado pelas desigualdades socioeconômicas que
se leem através das regiões e suas diferenças no processo produtivo e de
acumulação. Quando o eixo econômico se transportou dos canaviais do Nordeste
para os cafezais do Sudeste há mais de um século, os estados dessa região e, em
menor escala, os do Sul, concentram o capital industrial, inclusive os de maior
dinamismo econômico, e detém boa parte da produção fabril brasileira.

O levantamento estatístico, no trabalho de Wilson Cano, sustenta a tese de


crescimento econômico de todo o país para além da região paulista, e entendendo
que não são privilégios concedidos ao estado de São Paulo pelo governo federal
que explicam completamente a concentração da industrialização no estado.
Deve-se olhar também para a própria lógica capitalista da concentração industrial e
que, por conseguinte, pode explicar as desigualdades regionais. Ademais, fatores
como a perpetuação da estrutura fundiária, e apropriação de excedentes pelo
capital mercantil nas regiões periféricas são argumentos levantados para explicar a
concentração de pobreza e desemprego nas regiões periféricas.

Teoria

A partir de 1930, São Paulo, por ser a região mais avançada, tende a comandar o
processo de crescimento econômico promovendo a integração dos mercados. Esse
processo se dá muito por uma questão de localização geográfica privilegiada.
Desde os anos 20, as facilidades do território paulista podem ser caracterizadas
pelo entroncamento ferroviário que havia se constituído ali nos últimos anos,
resultado do processo de fortalecimento do comércio interno. A vantagem logística
deu para São Paulo a dianteira para que o estado tivesse um desenvolvimento
superior aos outros. Daí em diante, as outras regiões tem no relacionamento com o
estado de SP um fator decisivo em suas evoluções.
Cano também traz um resumo desse processo produtivo de crescimento da
indústria em 3 tendências: aprofundamento da indústria; concentração destas em
grandes capitais como SP e o desequilíbrio da divisão do excedente de produção. A
nível nacional, a indústria paulista era considerada como a que emprega mais
operários e que tem maiores níveis de produção por pessoa, ou seja, operários mais
capazes de gerar valor em comparação a outras regiões do Brasil.

Entretanto, não é como se São Paulo apenas estivesse drenando as capacidades


de produção de riqueza e impedindo o crescimento de outros estados. Segundo o
autor, é por meio de estímulos e da sua forma de evolução que São Paulo dita o
ritmo e da maneira de expansão às regiões, dando inclusive as bases para a
construção mais efetiva de uma economia nacional. Isto inclusive levará a efeitos
como o de elevadas taxas de crescimento econômico no período de 1930-1970.
Traz ainda que, com o desenvolvimento de um processo de Integração do Mercado
Nacional, intensifica-se a taxa de crescimento da indústria regional.

O caráter do capitalismo brasileiro concentrado geograficamente serve então para


criar o que pode ser visto como um conflito interno de Estados da Federação, onde
tira a responsabilidade e desvia o olhar da análise de quem e a quem serve este
discurso. Cano conclui que as demandas de uma parcela abastada de nossa
sociedade conseguem ser atendidas, então, por meio dessa explicação equivocada,
que fez parte de muito da produção científica nacional, sendo referência para
pensar nossos problemas sociais como compartimentados e não parte de um todo.
Todo este que mereceria portanto atenção diferenciada para tratar de forma
diferente problemas diferentes mas tendo o capitalismo e sua forma de produção do
espaço com uma causa em comum.

Análise

Buscando entender como o Governo Federal, por meio das suas Cartas Magnas,
pode operar na diminuição das desigualdades regionais, analisamos os títulos de
tributação e orçamento referentes aos repasses da União para os Estados e
Municípios.

A Constituição de 1967 garantiu a repartição de receitas da união, dividindo parte do


produto entre União, Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal (FPE)
e Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Nessa época a prioridade de
gastos era voltada quase que inteiramente ao governo central, 80% do produto
bruto arrecadado, enquanto o FPE e o FPM ficavam com 10% cada um. Muito se
deve a distribuição de competências que a constituição de 67 estabelecia. Aos
estados e municípios era dada relativa autonomia legislativa e administrativa,
podendo atuar na organização de serviço locais, o restante era dos serviços
públicos cabia à União legislar. Outro fator é que ainda era incipiente o arcabouço
teórico e estatístico que apontava as desigualdades segmentadas regionalmente.

“Art 26 - Do produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 22, n.º s IV e V, oitenta por
cento constituem receita da União e o restante distribuir-se-á, à razão de dez por cento, ao Fundo de
Participação dos Estados e do Distrito Federal, e dez por cento, ao Fundo de Participação dos
Municípios.”

No ano seguinte, o artigo foi alterado e detalhado, reduzindo ainda mais os recursos
destinados aos Estados e Municípios
“Art. 26 - Do produto da arrecadação dos impostos a que se refere o art. 22, nºs IV e V, a União
distribuirá doze por cento na forma seguinte:

I - cinco por cento ao Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal;


II - cinco por cento ao Fundo de Participação dos Municípios;
III - dois por cento ao Fundo Especial a que se refere o § 3º deste artigo.”

Até esse período, nenhuma medida de transferência de renda direta específica para
regiões menos desenvolvidas era citada, pelo menos não em texto constitucional. É
só com a constituição de 1988 que esse cenário começa a mudar.

Passados 20 anos, a sociedade brasileira já tem maior compreensão dos níveis das
desigualdades brasileiras, sobretudo as regionais. A necessidade da atuação do
Estado em reduzir essas desigualdades através de transferência de renda, em
especial a renda vinculada a fatores de desenvolvimento, torna-se cada vez mais
inequívoca. Essa nova compreensão do estado fica explícita no artigo 159, item I,
alínea "c":

“Art. 159. A União entregará:

I - do produto da arrecadação dos impostos sobre renda e proventos de qualquer natureza e sobre
produtos industrializados, quarenta e sete por cento na seguinte forma:

a) vinte e um inteiros e cinco décimos por cento ao Fundo de Participação dos Estados e do Distrito
Federal;

b) vinte e dois inteiros e cinco décimos por cento ao Fundo de Participação dos Municípios;

c) três por cento, para aplicação em programas de financiamento ao setor produtivo das Regiões
Norte, Nordeste e Centro-Oeste, através de suas instituições financeiras de caráter regional, de
acordo com os planos regionais de desenvolvimento, ficando assegurada ao semi-árido do Nordeste
a metade dos recursos destinados à Região, na forma que a lei estabelecer;”

É nesse artigo específico que surge o primeiro grande esforço do Governo, através
de dispositivo constitucional, de combater diretamente o subdesenvolvimento
regional. Além do percentual de 3% acrescido especialmente a região Norte,
Nordeste e Centro-oeste, o repasse é direcionado à aplicação em ​"programas de
financiamento ao setor produtivo".​ Mais tarde, essa mesma redação terá o valor do
produto arrecadado reajustado de 47% para 48% e 49% até os dias atuais.

Além da percepção das desigualdades regionais, fica claro também o diagnóstico de


que o setor produtivo é um fator crucial para a disparidade de desenvolvimento em
relação às regiões industrializadas. No entanto não há nenhum enfoque no tipo de
atividade produtiva que deve ser financiado, abrindo margem para que o recurso
seja alocado em setores economicamente menos eficazes em promover
desenvolvimento socioeconômico. Isto é, nos casos das regiões citadas, o setor
produtivo é de baixa complexidade, por exemplo o agropecuário, e como vimos em
Wilson Cano, a capacidade da atividade industrial de gerar empregos e elevar
investimentos e renda per capta é nitidamente superior. Disso depende, portanto, o
sucesso da vinculação de recurso.

No ano seguinte, em 1989, é aprovada a Lei Complementar nº 62, de 28 de


dezembro de 1989 que estabelece normas sobre o cálculo, a entrega e o controle
das liberações dos recursos dos Fundos de Participação. Pode se dizer que aqui a
ênfase regional atinge o seu ápice. O texto define a que 85% do Fundo de
Participação dos Estados e do Distrito Federal - FPE será distribuído para as
regiões Norte, Nordeste e Centro-oeste, os 15% restantes ficarão com a união.

Art. 1° O cálculo, a entrega e o controle das liberações dos recursos do Fundo de Participação
dos Estados e do Distrito Federal - FPE e do Fundo de Participação dos Municípios - FPM, de que
tratam as alíneas a e b do inciso I do art. 159 da Constituição, far-se-ão nos termos desta Lei
Complementar, consoante o disposto nos incisos II e III do art. 161 da Constituição.
Parágrafo único. Para fins do disposto neste artigo, integrarão a base de cálculo das
transferências, além do montante dos impostos nele referidos, inclusive os extintos por compensação
ou dação, os respectivos adicionais, juros e multa moratória, cobrados administrativa ou
judicialmente, com a correspondente atualização monetária paga.
Art. 2° Os recursos do Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal - FPE serão
distribuídos da seguinte forma:

I - 85% (oitenta e cinco por cento) às Unidades da Federação integrantes das regiões Norte,
Nordeste e Centro-Oeste;

II - 15% (quinze por cento) às Unidades da Federação integrantes das regiões Sul e Sudeste.

Em 2013, a Lei Complementar nº 143 de 17 de julho de 2013 altera a LC 62/89,


citada anteriormente e dispõe sobre os critérios de rateio do Fundo de Participação
dos Estados e do Distrito Federal (FPE). A mudança visa alterar consideravelmente
os critérios de distribuição, mantendo ainda certa redistribuição regional
baseando-se em coeficientes predefinidos e correção monetária.

“Art. 1o​ O art. 2o​ da Lei Complementar n​o 62, de 28 de dezembro de 1989, passa a vigorar com
a seguinte redação:

“Art. 2o​ Os recursos do Fundo de Participação dos Estados e do Distrito Federal (FPE), observado o
disposto no art. 4o​ ,​ serão entregues da seguinte forma:

I - os coeficientes individuais de participação dos Estados e do Distrito Federal no FPE a serem


aplicados até 31 de dezembro de 2015 são os constantes do Anexo Único desta Lei Complementar;

II - a partir de 1​o de janeiro de 2016, cada entidade beneficiária receberá valor igual ao que foi
distribuído no correspondente decêndio do exercício de 2015, corrigido pela variação acumulada do
Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) ou outro que vier a substituí-lo e pelo
percentual equivalente a 75% (setenta e cinco por cento) da variação real do Produto Interno Bruto
nacional do ano anterior ao ano considerado para base de cálculo;”

Conclusão

Dentro uma análise que busque menos culpabilizar e muito mais entender os fatores
que levam a uma organização e desenvolvimento desigual do nosso território,
concluímos que os desequilíbrios regionais são, em suma, o resultado de um
processo de divergência nas taxas de expansão de um estado para o outro, que se
apoia numa lógica capitalista de localização industrial visando maiores lucros de
produção. O que existe por trás de outras teorias é um mito de estagnação de
regiões em detrimento de outras, sem levar em consideração as verdadeiras causas
da miséria e do desemprego de regiões mais marginalizadas do nosso país, em
termos de acumulação de capital. Podemos citar a estrutura fundiária e o capital
Mercantil como causas que forjam essa teoria.

Embora a Constituição de 1967 já estabeleça medidas de repartição de receitas, ela


ainda não tem nenhuma preocupação visível em tratar com isso as desigualdades
no geral, portanto, é de se questionar se era claro para o estado brasileiro a
necessidade de intervir em âmbito regional, com políticas de transferência de
recursos financeiros. O que se sabe é que, dentro de um texto constitucional, o
primeiro momento em que a questão é tratada é em 1988. As intenções eram claras
e os constituintes pareciam ter plena noção do problema e suas causas, tanto as
desigualdades regionais quanto o fator produtivo como causador. Sem o objetivo de
avaliar se os resultados foram efetivamente atingidos, voltando-se apenas para os
indícios de esforços governamentais, pode se dizer que as medidas permaneceram
em constante evolução, sem que hajam notórios retrocessos.

Bibliografia

BRASIL. Constituição Federal de 1967. Ato Complementar nº 40, de 30 de dezembro de


1968. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao67.htm#Art%2026>
Redação dada por <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ACP/acp-40-68.htm#art3>
BRASIL. ​Constituição Federal de 1988.​ Promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível
em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituição.htm​ ​>.

BRASIL. Lei Complementar n° 62, de 28 de dezembro de 1989. ​Estabelece normas sobre o


cálculo, a entrega e o controle das liberações dos recursos dos Fundos de Participação e dá
outras providências. ​ isponível
D em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LCP/Lcp62.htm>

BRASIL. Lei Complementar nº 143, de 17 de julho de 2013. Altera a Lei Complementar n​o
62, de 28 de dezembro de 1989, a Lei n​o 5.172, de 25 de outubro de 1966 (Código
Tributário Nacional), e a Lei n​o 8.443, de 16 de julho de 1992 (Lei Orgânica do Tribunal de
Contas da União), para dispor sobre os critérios de rateio do Fundo de Participação dos
Estados e do Distrito Federal (FPE); e revoga dispositivos da Lei n​o 5.172, de 25 de outubro
de 1966. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LCP/Lcp143.htm#art1>

CANO, Wilso​n. Desequilíbrios Regionais e Concentração Industrial no Brasil: 1930-1970 -​


3ªed.​ São Paulo. Unesp, 2017​.

Você também pode gostar