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A bioética da proteção e a compaixão laica:

TEMAS LIVRES FREE THEMES


o debate moral sobre a eutanásia

Bioethics of protection and the laic compassion:


the moral debate on euthanasia

Rodrigo Siqueira-Batista 1
Fermin Roland Schramm 2

Abstract The bioethical debate on euthanasia (“good Resumo O debate bioético sobre a eutanásia (“boa
death”) has been classically polarized between the morte”) vem sendo polarizado, classicamente, entre
principles of sacredness of life – the argumentation os princípios da sacralidade da vida — argumenta-
against – and the quality of life, represented by the ção contra — e da qualidade de vida, representado
vicarious principle of respect for autonomy – the pelo princípio vicário do respeito à autonomia —
argumentation in favor. In both cases the question argumentação pró. Em ambos os casos, a questão se
is built around the pertinence and moral legitimacy constrói em torno da pertinência e da legitimidade
– or not – of the individual possibility to decide moral, ou não, de um indivíduo poder decidir sobre
about the termination of one’s own existence, de- o desenlace de sua própria existência, requerendo
manding for oneself a good death. Undoubtedly, eu- para si uma boa morte. Sem embargo, a eutanásia
thanasia always implies besides the self, the other, pressupõe sempre, além de um eu, um outro, o qual
who will either carry out the action – or hold to deverá efetuar a ação — ou ater-se à não-ação —
non–action – culminating in the abbreviation of que culminará na abreviação da vida. Propor uma
life. To propose a discussion about this last referred discussão acerca deste último ponto, tendo como
issue, based on the bioethics of protection theoreti- base os referenciais teóricos da bioética da proteção
cal references and the concept of laic compassion is e o conceito de compaixão laica, é o escopo do pre-
the scope of the present essay. sente ensaio.
Key words Bioethics, Compassion, Protection, Eu- Palavras-chave Bioética, Compaixão, Proteção,
thanasia Eutanásia
1
Centro Universitário Serra
dos Órgãos (UNIFESO) e
Instituto Federal de
Educação, Ciência e
Tecnologia do Rio de
Janeiro (IFRJ). Curso de
Graduação em Medicina
(UNIFESO). Av. Alberto
Torres 111, Alto.
25964-000 Teresópolis RJ.
rsiqueirabatista@terra.com.br
2
Fundação Oswaldo Cruz,
Escola Nacional de Saúde
Pública, Departamento de
Ciências Sociais.
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Siqueira-Batista R, Schramm FR

A eutanásia, boa morte, é um dos assuntos de gran- se dão na vida em comum, depois de garantidas as
de relevância na sociedade contemporânea, o que condições concretas para isso.
pode ser “pressentido” pelo atual expressivo nú- É precisamente neste horizonte que emerge, no
mero de escritos (acadêmicos e “leigos”) e de ma- coração do debate moral, o conceito de compai-
nifestações artísticas envolvendo o tema — como xão, enquanto matriz a partir da qual vai se esta-
os filmes As Invasões Bárbaras, Menina de Ouro e belecer uma atitude de amparo a outrem, tal qual
Mar Adentro, que têm apresentado importantes o concebível no âmbito da bioética da proteção.
problemas acerca de sua moralidade1-3. Neste sentido, Schramm e Floriani, em recente ar-
No âmbito da bioética laica, a argumentação tigo8, expressam que o cuidado/proteção será fac-
moral em torno da boa morte tem dado, correta- tível, sempre que aquele que assiste ao enfermo
mente, ênfase à autonomia individual do sujeito que se esvai, adotar uma atitude acolhedora, ou
que decide pela eutanásia4,5. Sem embargo, menor seja: “[...] tornando-se sensível e conseguindo —
atenção tem sido prestada àqueles que se dispõem de modo empático e simpático — perceber a
a praticar o ato misericordioso — p. ex., os profis- precariedade do momento vivido pelo paciente
sionais de saúde —, cujo objetivo é findar com um fragilizado e desamparado [...]” [grifo nosso]8
padecimento considerado acima do suportável por Agir de maneira empática e simpática, ou seja,
um sujeito capaz de reconhecer que sua existência padecer juntamente, simpatizar e compadecer, é
já não vale mais à pena ser “sofrida” e “vivida”. ter compaixão, como, originariamente, na tradi-
Para preencher esta lacuna, é mister que se ana- ção ocidental, com-partilhar o παθοξ (páthos =
lisem criticamente os argumentos morais que sus- paixão, sentimento, afeto arrebatador) do outro.
tentam a decisão de um (possível) agente da euta- De fato, a compaixão é o alicerce moral de várias
násia em oferecer a outrem uma boa morte, pro- tradições sagradas e, em particular, a partir do fi-
pondo-se, como referencial teórico para tal análi- nal do século XIX, do sistema filosófico proposto
se, as ferramentas da bioética da proteção6, âmbi- por Arthur Schopenhauer9.
to da ética prática que pretende resolver proble- A identificação da compaixão como fundamen-
mas que surgem dos conflitos morais entre os su- to da moral9, tal qual estabelecida por Schopenhau-
jeitos, exercendo, para isto, um método consisten- er, revelou-se uma excelente tentativa de compor o
te em uma tripla função7: pensamento oriental — “recebido”, pelo filósofo,
(1) descritiva, ou seja, que se detém em descre- dos Upanixades hindus10 — com a tradição oci-
ver os conflitos da maneira mais racional e impar- dental, especialmente no diálogo que este pensa-
cial possível, podendo, portanto, ser definida como dor estabelece com o pensamento de Platão e com
função propriamente crítica; a filosofia moral de Kant11.
(2) normativa, na medida em que se ocupa de Sem embargo, há dificuldades em sua propos-
resolver tais conflitos, utilizando as ferramentas ta, na medida em que é pressuposto o desapareci-
que podem ser consideradas, por qualquer agente mento da distinção entre o “eu” e o “não-eu” —
moral racional e razoável, mais adequadas para entre alguém e outrem que sofre12 — para a genu-
proscrever os comportamentos considerados in- ína experiência de compaixão. Tal perspectiva, de
corretos e prescrever aqueles considerados corre- inequívoca matriz religiosa (hinduísta e budista),
tos; e parece muito difícil — para não dizer impossível —
(3) protetora, graças à correta articulação en- de ser colocada em prática no contexto de uma so-
tre (1) e (2) e à sua aplicação a pessoas e contextos ciedade composta por indivíduos, detentores de
concretos, fornecendo os meios capazes de dar direitos e deveres, e que se constituem como sujei-
amparo suficiente aos envolvidos em tais confli- tos exatamente na relação (reconhecimento) com
tos, garantindo cada projeto de vida — mesmo um outro separado de si — como é o caso nas
que este implique em declinar a continuar vivendo sociedades democráticas complexas, laicas e plura-
— compatível com os demais. listas, contemporâneas. Em substância, a questão
De fato, recuperando-se o sentido originário se institui nos seguintes termos: como trazer para o
da palavra grega ethos (‘ηθοξ) — no mundo ho- campo discursivo próprio da filosofia moral hodi-
mérico — de “dar abrigo” — sem olvidar os outros erna uma temática intrínseca às sagradas tradições
significados, “caráter” (‘ηθοξ) e “costumes” (‘εθοξ) religiosas do Oriente, mas também do Ocidente,
— torna-se clara a intrínseca perspectiva cuidado- como no caso do cristianismo? Tal pergunta pode
ra e protetora da bioética, visto que todos esses ser também apresentada deste modo: como enun-
sentidos se referem à capacitação de indivíduos e ciar a compaixão em termos laicos? Uma dos pro-
populações para torná-los moralmente competen- blemas a ser trabalhado neste ensaio é a extrema
tes em enfrentar os conflitos que inevitavelmente dificuldade, quiçá impossibilidade, de se tratar, no
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âmbito do logos, da Compaixão (com inicial mai- tos, retiraram-se deixando-o quase morto. Por
úscula) das tradições sagradas; entretanto, pode-se acaso desceu pelo mesmo caminho um sacerdote,
pensar em uma compaixão (com inicial minúscu- viu-o e passou adiante. Igualmente um levita, che-
la) laica, inscrita no binômio pensamento-lingua- gando àquele lugar, viu-o e passou também adian-
gem e, por conseguinte, comunicável e apresentável te. Mas um samaritano que viajava, chegando àque-
como referencial teórico para pensar — e agir — le lugar, viu-o e moveu-se de compaixão. Aproxi-
diante de um homem que opta pela eutanásia. Dis- mando-se, atou-lhe as feridas, deitando nelas azeite
cutir esta possibilidade em termos da bioética da e vinho; colocou-o sobre a sua própria montaria e
proteção, tendo como norte o debate bioético so- levou-o a uma hospedaria e tratou dele. No dia
bre a eutanásia, é o escopo do presente artigo. seguinte, tirou dois denários, e deu-os ao hospe-
deiro, dizendo-lhe: Trata dele e, quanto gastares a
mais, na volta te pagarei. Qual destes parece ter
A compaixão nas tradições sagradas: sido o próximo daquele que caiu nas mãos dos
Compati e Karuna ladrões?” Respondeu o doutor: “Aquele que usou
de misericórdia para com ele.” Então Jesus lhe dis-
Diferentes matrizes religiosas do Ocidente e do Ori- se: “Vai, e faze tu o mesmo”14.
ente articulam a ação do homem à Compaixão, o O bom samaritano foi capaz de comover-se
que se reveste de profundas implicações morais. pelo padecimento do seu próximo, reconhecendo
Na cultura ocidental, pode-se tomar como exem- seu grande sofrimento, movendo-se pela Compai-
plos o Judaísmo — como na prática da rahamim, a xão — um compadecer-se com o sofrimento do
compaixão sob a forma de misericórdia13, tão bem outro. Neste caso, ser próximo — e exercer o amor
descrita no Salmo 10314 — e o islamismo — na em relação a este — baseia-se no mandamento da
exortação à sadaca, caridade voluntária em um sen- lei de Deus de amar ao próximo como a si mesmo.
tido bem amplo, o qual implica agir em consonân- Aqui, o si mesmo pode ser concebido no cerne do
cia com o bem e apartado do mal —, ao passo que reconhecimento de uma profunda identidade exis-
no Oriente é possível recuperar tal horizonte no tente entre um e outro — aquele que sofre e aquele
hinduísmo — algo manifesto no conceito de ahim- que ampara —, legitimada pelo Outro do homem,
sa, não violência, instância profundamente defen- Deus — a transcendência infinita18 —, na medida
dida por Mahatma Gandhi15 — e no taoísmo — em que ambos são feitos à imagem e à semelhança
em uma perspectiva do Wu Wei, caracterizável como do Pai14. Torna-se claro, pois, que a Compati cristã
não-ação, ou não-intervenção16. pressupõe de modo inquestionável, ao prescrever
A despeito da importância da Compaixão nes- um amor como a si mesmo, um sofrer com entre
tas tradições, será no cristianismo e no budismo (criaturas) iguais perante o Criador.
Mahayana que a exortação para a adoção de um No budismo — modo de vida instaurado a partir
modo de vida compassivo alcançará sua máxima do Satori (Iluminação) de Sidharta Gautama, o
plenitude. Entretanto, por questões históricas e Buda Shakyamuni, sob a copa da árvore Bodi, no
culturais inerentes à emergência e ao desenvolvi- século VI a.C.19,20 —, a genuína Experiência, ou
mento destas duas tradições, a concepção predo- adoção de um novo ponto de vista como enfatiza-
minante de Compaixão é diferente em ambas, nos do por Suzuki,21 inclui dois movimentos distintos,
termos a seguir. mas intrinsecamente relacionados: o desapego to-
A dimensão da Compaixão cristã, legado dos tal e a acolhida incondicional. O primeiro inscre-
ensinamentos do galileu Jesus de Nazaré, pressu- ve-se na Com-preensão da efemeridade da vida e
põe que se com-partilhe o páthos do outro, o que da interdependência de todas as coisas; o segundo
pode ser sintetizado na máxima “ama ao teu pró- manifesta-se como Compaixão — Karuna (sân-
ximo como a ti mesmo”. Em última análise, a crito); Thugs rje (tibetano) —, a plena recepção de
Compaixão pregada pelo Nazareno traz a dimen- todos os seres, sem julgamento, como expresso
são de tomar para si o sofrimento alheio, transcri- nos dois excertos a seguir:
ta, ulteriormente, em latim, como Compati = so- Equiparar o “nós” e os “outros” significa desen-
frer com17. Reconhecer a dor do outro e ampará- volver a atitude e a compreensão de que, “assim como
lo incondicionalmente — amando-o como a si desejo felicidade e quero evitar o sofrimento, o mes-
mesmo — é justamente o espírito manifesto na mo se dá com os outros seres humanos, que são infi-
Parábola do Bom Samaritano: Jesus então con- nitos no espaço: também eles desejam felicidade e
tou: Um homem descia de Jerusalém a Jericó, e querem evitar o sofrimento22.
caiu nas mãos de ladrões, que o despojaram; e de- Compaixão significa oferecer morada às pessoas,
pois de o terem maltratado com muitos ferimen- abrir as portas até então fechadas para elas, pergun-
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tar mais que responder. Significa tornar-se altamente (budismo), capaz de tornar a Compaixão um fun-
sensível à situação e aos sentimentos da outra pes- damento que emerge espontaneamente quando se
soa. Significa ouvir com todo o seu ser e dar, se for está defronte a um outro que padece. Esta identi-
possível, o que seja relevante e apropriado para o dade entre os seres humanos passou à tradição
relacionamento, não o avaliando com julgamentos ocidental, pelas “mãos” do cristianismo, como ide-
próprios23. ário de igualdade — bem como de liberdade e fra-
De acordo com o cânone budista, a plenitude ternidade —, tal qual discutido em outras oportu-
da Compaixão é vivenciada pelos Bodhisattvas, nidades4,26. De fato, já nas primeiras comunidades
seres extraordinários que são fortemente motivados cristãs, celebrava-se a igualdade entre os homens,
e movidos pela Compaixão, [e que] prometem al- na proporção em que estes, por terem sido criados
cançar o estado de onisciência em prol da felicidade como almas individuais, à imagem e semelhança
de todos os seres sencientes24, nos seguintes termos: de Deus, pertencem, em igual medida, ao plano e à
O Compêndio do Perfeito Dharma diz o seguinte: obra do Pai27.
“Ó Buda, um Bodhisattva não deve se dedicar a Com base nestas considerações, pode-se pro-
muitas práticas. Se um Bodhisattva se ativer a um por que a identidade entre viventes, tão peculiar às
único Dharma e apreendê-lo com perfeição, ele pos- tradições sagradas — inscrita em Deus14 ou na
suirá todas as qualidades do Buda na palma de sua Natureza Búdica28 — pode ser pensada, em ter-
mão. E se você perguntar o que é esse único Dharma, mos seculares, como igualdade, entre homens lan-
é uma grande compaixão”24 . çados no tempo — ou seja, que nascem, sofrem e
O novo ponto de vista mencionado por Suzuki, morrem (como será detalhado adiante) —, deten-
em sua preleção sobre o Satori, pressupõe a aquisi- tores de direitos e correspondentes deveres perante
ção de “um olhar intuitivo no âmago das coisas, as sociedades. Assim, a identidade que funda a
em contraposição à sua compreensão intelectual e Compaixão poderia ser redimensionada e discuti-
lógica”21, no qual está inscrita a superação da men- da em termos de igualdade, esta última capaz de
te dualística e a percepção genuína de que o “mun- legitimar uma concepção de compaixão laica, apli-
do das coisas” (seres), suas formas e conteúdos, cável ao âmbito da ética e da bioética. Adiante, ten-
são ilusórios. Neste sentido, são eliminadas “as dis- tar-se-á demonstrar em que medida isto é pensá-
tinções dualísticas como eu/você, verdadeiro/falso, vel (e possível).
sujeito/objeto, a fim de chegar a uma essência da Mas, em que consiste esta igualdade? Colocar
vida não condicionada por palavras e conceitos”19. tal questão não é simples, como se torna perceptí-
Os efêmeros seres temporo-espacialmente locali- vel nos grandes debates sobre igualdade, equidade
zados não são em si mesmos, somente havendo o e justiça, ao longo da história do pensamento oci-
“espaço ilimitado, infinito”, um imenso e profundo dental, desde os gregos29-31. Uma das maneiras de
Vazio, “de onde todas as coisas emanam e para a tratar a questão é interrogando, com Amartya Sen,
qual retornam”19. Tal é a compreensão da Verda- sobre o que deve ser igualado32-34. A resposta dada
deira Natureza Búdica, como retorno à casa, pura a tal indagação será o ponto de partida para se
fluência para a lídima Compaixão: Não existe uma propor, em termos bioéticos, um conceito de com-
divisão ou barreira entre o si mesmo e os outros, não paixão laica.
há mais quaisquer sentimentos de alienação, medo,
ciúme ou ódio pelos outros, pois já se sabe e está com-
provada a evidente realidade de que não existe nada Compaixão laica e bioética da proteção
separado do si mesmo e, portanto, nada a temer. Esta
compreensão naturalmente resulta na “verdadeira O economista e filósofo indiano Amartya Kumar
compaixão”. As pessoas e coisas não são mais vistas Sen propõe, como ideário de justiça, a igualdade
como separadas, mas como o próprio corpo19. de capacidades — as quais se referem à liberdade
Compreensão e Compaixão desdobram-se, no efetiva que um indivíduo tem de escolher diferen-
âmbito da práxis, na co-operação entre os seres — tes tipos de vida, entre as alternativas possíveis, o
no sentido de agir junto, operar junto —, os quais que torna factível a opção por realizar distintos
passam a ser vistos como parceiros, capazes de grupos de funcionamentos, aquilo que logra fazer
compartilhar o espaço vital25, em uma lídima acei- um vivente35 — entre os membros de uma dada
tação do mundo da vida. A Karuna budista é, as- sociedade. Tal igualdade representa uma resposta
sim, a acolhida incondicional. cogente — dada especialmente a John Rawls36 —,
A despeito das diferenças entre Compati e Ka- sendo capaz de articular, de maneira complexa, os
runa, ambas pressupõem uma situação de identi- princípios morais de justiça e autonomia34.
dade entre homens (cristianismo) e entre viventes A definição de Sen pressupõe algo óbvio, mas
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não menos importante de se explicitar, pois a igual- e interdependentes — os partícipes do imenso pal-
dade de capacidades só faz sentido para os viventes. co da existência, isto é, suas respectivas condições
Ora, um vivente tem duas dimensões inextirpáveis de viventes: Considerar que a felicidade e a infelici-
— nascer e morrer —, como lembram os médicos- dade fazem parte da não-permanência vai despertar
filósofos Empédocles de Agrigento e Alcmeão de em nós, ao mesmo tempo, uma qualidade de compai-
Crótona: “Ai, pobre e infeliz raça dos mortais, de xão e uma qualidade de presença junto aos sofri-
que discórdias e lamentos vós nascestes!”37 mentos do outro [...]40.
Alcmeão atribui a morte dos homens ao fato Deste modo, a compaixão se estabelece na com-
de não serem capazes de unir o início ao fim — um preensão de uma inquestionável situação de igual-
dito sagaz se lhe atribuirmos um sentido vago, sem dade que é pertinente à vida — ou seja, nascer,
buscar imputar-lhe um caráter de precisão38. sofrer (em relação aos seres sencientes) e morrer.
Neste sentido, pode-se conceber que há uma Tal com-preensão permite ao sujeito se colocar,
igualdade radical — em termos de suas mais pro- em exato pé de igualdade, em relação ao outro, o
fundas e íntimas raízes — entre tudo o que vive: qual pode ser acolhido, compassivamente, em um
nasce-se e morre-se, não existindo vida que não movimento de deslocamento do “eu” em direção
tenha “passado” por um vir-a-ser e que, necessa- ao “outro” (não a superação das distinções entre
riamente, não acabe por se esvair em um deixar- ambos, mas, sim, um deslocamento de dupla dire-
de-ser — quiçá como na “fórmula” de Anaximan- ção), a partir de uma deferência irrestrita à inser-
dro de Mileto, para o qual do apeiron (apeiron = ção deste último no mundo41. De fato, ser com-
ilimitado) tudo emerge e a ele tudo torna37. A par- passivo não significa adotar um posicionamento
tir de tal constatação, torna-se possível situar no paternalista — ou seja, decidir, autoritariamente,
mesmo plano — ou plano de imanência — todos acerca do que é melhor para outrem —, funda-
os viventes, espaço-temporalmente limitados. mentado em um mero sentimento de pena ou co-
A despeito desta óbvia condição que perpassa miseração, mas, sim, desenvolver e praticar um
todos os vivos, há um terceiro matiz de igualdade, amplo respeito à existência, na medida em que se
o qual pode ser pensado em relação aos seres sen- acolhe, incondicionalmente, aquele que sofre, ati-
cientes, incluído o homem: a possibilidade de so- vamente, em seu âmago:
frer. O padecimento relaciona-se à fragilidade pró- Enquanto o espaço perdurar
pria da vida — um simples suspiro da eternidade E enquanto os seres sencientes permanecerem,
—, efêmera e precária, vulnerável e corruptível. Possa eu também permanecer
Deste modo, compreende-se que existir é (ou pode Para libertar do sofrimento todos os seres
ser) sofrer. Tal é a constatação que ressoa na pró- sencientes24.
pria estruturação da vida humana, enquanto ho- Com base nestas conjecturas, uma “fórmula”
rizonte que perpassa as mais díspares culturas39. geral para a compaixão laica poderia ser assim ex-
Ademais, o padecimento se atrela inextricavelmente pressa:
à situação presente — afinal, só é possível vivenci- (1) todos os seres vivos são finitos e perecíveis,
ar o agora: o passado só se faz desde que estando inscritos no tempo, subservientes, então,
“(re)atualizado” no presente; quanto ao futuro, só aos ditames do nascimento e da morte;
passa a ser ao manifestar-se como atual — e, nis- (2) dentre os vivos, há aqueles capazes de pa-
to, a espécie humana é solidária aos demais seres decer, os sencientes, os quais agem para evitar (ou
sencientes, os quais, até onde se saiba, não conhe- minimizar) seus respectivos sofrimentos;
cem o que passou ou o que esta por vir, situando- (3) o reconhecimento de (1) e (2) impõe que se
se em um eterno presente — o qual, pode muito aceite a igualdade radical e irrestrita que perpassa
bem ser preenchido, em seus dias e noites, pela dor todos os seres;
e pelo martírio. (4) a atitude diante de um igual que sofre só
Reconhecer que a vida tem como pressupos- pode ser de amparo, na medida em que, em última
tos, necessários, o nascimento e o passamento, análise, nestes momentos cruciais, a compreensão
acrescentando-se a isto, na experiência humana de de (3) torna inconsistente que o eu se veja como
existir, a contingência do sofrimento, é o primeiro completamente independente (e apartado) do ou-
passo para a delimitação da compaixão em ter- tro que sofre;
mos seculares. Mas, é mister compreender que a (5) amparar tal vivente em martírio — haven-
igualdade expressa nos termos acima colocados do distinção, mas não separação, entre aquele que
pode ser concebida, à semelhança do descrito para “recebe” e aquele que é “recebido” — é acolher a
as tradições sagradas, como manifestação de uma igualdade radical imanente à condição de vivente;
identidade profunda, a qual torna interligados — (6) acolher/proteger o outro, em tal circunstân-
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cia, só pode ser obtido sem julgamento, ou seja, a velmente, na morte, tal qual tematizado nas dife-
partir da recepção incondicional de sua situação- rentes manifestações da cultura — pode-se mencio-
no-mundo (a despeito dos sofrimentos, desejos e nar as narrativas míticas, as religiões, a filosofia, a
decisões autônomas, em relação à sua própria ciência e a arte46.
existência); Assim, a morte — uma das condições de igual-
(7) o acolhimento/proteção assim expresso é dade entre os viventes, tal qual o acima descrito —
um genuíno ato de compaixão. é o destino da vida, mantendo-se, sempre, como
Toda a argumentação, apresentada nos sete pas- possibilidade — afinal, o passamento é uma “porta
sos acima, tem como horizonte a proteção do ou- que está sempre aberta”. Tal entendimento possibi-
tro, a partir do entendimento de que o ethos, a “mo- lita que uma pessoa cognitivamente competente,
rada”, só se atualiza nas relações entre as pessoas. racional e razoável, possa tomar a decisão autôno-
Assim, agir por compaixão laica é, na verdade, pro- ma de morrer — com todos os problemas que a
teger o outro — especialmente em situações de de- autonomia possa ter4,26,47 —, quer para mitigar os
samparo, nas quais sua autonomia esteja muito li- terríveis sofrimentos de uma moléstia incurável —
mitada —, dando-lhe condições para exercer um a qual o obriga “a se reconhecer mortal”48 —, quer
mínimo de autodeterminação em relação às (gra- por perceber sua existência como insuportável e
ves) decisões a serem tomadas. Esta é, precisamen- indigna de ser vivida (ou padecida) —, como nas
te, uma das proposições da bioética da proteção, palavras do personagem de Ramón Sampedro, no
que pode ser vista como o ato primordial e que, filme Mar Adentro: [...] eu quero morrer porque a
devidamente pensado, pode servir como referencial vida para mim, neste estado [...] não é digna. Enten-
teórico-prático, pois pretende resgatar aquele que é, do que outros tetraplégicos possam se ofender quando
provavelmente, o significado originário da palavra eu digo que a vida assim é indigna [...] Mas, eu não
grega ethos, que tem justamente o sentido de “am- julgo ninguém. Quem sou eu para julgar os que que-
paro”, “guarita” e “abrigo”; em suma, de proteção7. rem viver? Por isso, peço que não julguem a mim e a
Vale ressaltar que esta proteção pode ser apli- quem me ajudar a morrer [...] “49
cada: Nesta situação de amargura, na qual viver é
(1) às relações interpessoais — médicos-pa- um martírio para além de todas as forças do titu-
cientes, por exemplo; lar da existência — de acordo com sua perspectiva
(2) às relações entre Estado e cidadãos — como de não querer, de modo algum, continuar “viven-
aquelas que se estabelecem em saúde pública entre do” (como vociferado por Sampedro) —, qual se-
formuladores e gestores de políticas sanitárias e a ria a melhor forma de agir?
população destinatária de tais políticas — no que a (1) Tentar consolar — quiçá por meio dos cui-
bioética da proteção pode ser aproximada da con- dados paliativos50 — o que é, muitas vezes, incon-
cepção de hospitalidade incondicional defendida por solável (afinal, o adequado controle da dor, da disp-
Jacques Derrida em suas últimas obras42-44; e néia, da ansiedade e de quaisquer outras manifes-
(3) às relações entre o homem, os demais seres tações mórbidas pode não ser suficiente para que
vivos e o planeta — como seria o caso de políticas um homem deixe de desejar, para si, o consolo da
ambientais que visassem proteger o óikos (“casa morte)?
comum”) indispensável à sua sobrevivência con- (2) Impor um “renascimento” forçado, a cada
tra catástrofes. momento, pelo tratamento inconsequente e contra
Inscrevem-se, no primeiro caso, os aspectos a vontade do enfermo, adotando-se as nefastas e
relativos ao debate moral sobre o fim da vida, no inclementes obstinação terapêutica e distanásia?51
contexto da bioética da proteção e da compaixão (3) Abandonar o homem que sofre, deixando-
laica. o entregue a sua própria (má e desgraçada) sorte?
(4) Oferecer-lhe a possibilidade de acabar com
seu sofrimento, possibilitando o fim do martírio
Eutanásia: um ato de compaixão laica através de uma ansiada (e desejável, de seu ponto
de vista) boa morte — a eutanásia?
A tomada de consciência da própria finitude pare- Entre as opções acima, qual aquela que pode-
ce ter ocorrido antes mesmo do aparecimento do ria ser considerada como inscrita no acolhimento
Homo sapiens sapiens, havendo indícios de que o de um ser que padece? A resposta a tal questão vai
Homo sapiens neanderthalensis, há mais de 60.000 emergir, precisamente, na relação entre aquele que
anos, já realizava rituais de sepultamento45. Deste cuida e aquele que é cuidado: se a decisão for real-
ponto de vista, é constitutiva à espécie humana a mente não permanecer vivendo, acolher tal dispo-
compreensão de que a vida se extinguirá, inexora- sição é, efetivamente, um ato de compaixão. Como
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apresentado, tal acolhimento pressupõe o não-jul- objetivo nestas circunstâncias é facilitar que o ou-
gamento do outro — algo absolutamente explíci- tro em situação de desamparo possa ser acolhido,
to na declaração de Ramón, em Mar Adentro —, até que o exercício de sua autonomia possa ser
mas, sim, e tão somente, sua aceitação, o amparo restabelecido.
de sua condição de vivente25, caracterizando o mo- Em tal caracterização, torna-se claro que a com-
vimento de recebê-lo sem preconceitos e com pro- paixão não se estabelece necessariamente dentro
funda responsabilidade40. de um contexto paternalista — ou seja, entre al-
guém “superior” e “alguém” inferior —, como pa-
rece ter sido a (equívoca) interpretação de Capo-
Antecipando possíveis críticas ni53, na medida em que a acolhida incondicional
do outro deve se dar, mantendo em alta conta os
A despeito de sua fecundidade, a utilização da com- genuínos propósitos de vida do sujeito amparado.
paixão como referencial teórico nas discussões éti- É por isso que a compaixão laica se estabelece entre
cas e bioéticas, recebeu — e continua recebendo — compartilhantes de uma radical e inquestionável
algumas críticas, as quais devem, outrossim, ser igualdade, ou seja, só há compaixão entre iguais.
discutidas, dentro da perspectiva própria de uma
práxis compassiva, merecendo destaque (1) o pa- Pusilanimidade
ternalismo, (2) a pusilanimidade e (3) a inatingibi-
lidade52-56. A moral inscrita em um ethos compassivo vem
sendo acusada de ser uma “ética para fracos” e
Paternalismo “pusilânimes”: “[...] a figura do homem piedoso é
alguém que não pode tolerar qualquer tipo de dor,
Boa parte da acusação de “paternalista”, dirigida por menor que seja, que não pode desfrutar ou
à ética de matriz compassiva, pode ser descrita como aprender com sua solidão [...]”53.
crítica às relações de poder. Em seu livro Da compai- De acordo com este ponto de vista, a motivação
xão à solidariedade53, Sandra Caponi caracteriza para uma ação compassiva poderia ser a repulsa à
como atinentes à “lógica da compaixão”, os seguin- infelicidade e ao padecimento, a negação do alcance
tes aspectos: [a lógica da compaixão] parece instau- que o sofrimento pode ter para uma dada pessoa,
rar uma modalidade peculiar de exercício de poder como no entender de Nietzsche: [...] tudo que pode
que se estrutura a partir do binômio servir-obedecer, ser vinculado à infelicidade, não preocupa a esse
multiplicando, assim, a existência de relações dissimé- caro compassivo, ele quer socorrer e não pensa
tricas, entre quem assiste e quem é assistido53. que existe uma necessidade pessoal da infelici-
Tal consideração se estriba — como reconhece dade; que tu e eu temos necessidade pessoal do
a própria autora — na crítica nietzschiana, dirigi- medo, das provações, do empobrecimento, das
da, sobretudo, ao cristianismo, ao budismo e ao vigílias, das aventuras, dos riscos, das transgres-
pensamento de Schopenhauer. Assim, coube ao fi- sões e de seus contrários e mesmo, para me ex-
lósofo de Além do bem e do mal54 e da Genealogia da primir de modo místico, que o caminho de nosso
moral55, a seguinte formulação: “Nossos benfeito- céu atravesse sempre a voluptuosidade de nosso
res, ainda mais que nossos próprios inimigos, di- próprio inferno56 . [grifo do autor]
minuem nosso valor e nossa vontade”56 . Ora, se para a formulação da compaixão laica
Em tal situação — segundo argumenta Nietzs- é preciso, justamente, reconhecer a impermanência
che — instaura-se uma profunda assimetria entre de todas as coisas e o sofrimento que se manifesta
um e outro, estando o assistido em flagrante situ- em toda a existência senciente, como o homem com-
ação de inferioridade. Mas é precisamente neste passivo pode ser caracterizado enquanto “alguém
contexto que o conceito de compaixão laica pre- que não pode tolerar qualquer tipo de dor” — ou
sentemente construído ganha maior expressão, na seja, um fraco e pusilânime? Há uma questão de
medida em que mesmo diante de uma circunstan- compreensão em relação à verdadeira natureza da
cial assimetria — como no caso da interação entre compaixão, concebida em termos seculares. Ade-
médico e paciente, por exemplo —, a relação é (ou mais, pode-se responder a Nietzsche, em concor-
deveria ser) construída entre sujeitos lançados no dância com Sérgio Fernandes57: Não há compaixão
tempo, e, portanto, compartilhantes de uma igual- sem compreensão. [...] A Grande Compaixão tem sido
dade inextirpável, a qual os torna inseparáveis do demasiado facilmente confundida com enternecimen-
ponto de vista de sua origem (nascimento), finitu- to frouxo, mas a ternura do coração é ríspida, senão
de (morte) e sensibilidade (sofrimento). Ademais, afiada, cortante, penetrante como a espada. “Tor-
retomando a perspectiva protetora da bioética, o nar-se vulnerável”, “sem defesa”, ou “tornar-se como
1248
Siqueira-Batista R, Schramm FR

as criancinhas”, no sentido de compreender que se é, Considerações derradeiras


antes de mais nada, criatura, apesar de criadora como
o Criador, é algo que exige tamanha resistência que A experiência de viver um profundo sofrimento —
faria tremer de medo um super-homem57. como, por exemplo, estar morrendo vitimado por
A compaixão nada tem a ver com a fraqueza uma doença grave e incurável, ou, ainda, estar “en-
apontada por Nietzsche e por Caponi, na medida carcerado” no próprio corpo (por uma tetraplegia
em que a igualdade só pode ser reconhecida em e/ou uma doença degenerativa) —, pode se consti-
um contexto em que se identifica o sofrimento tuir em algo insuportável para o titular da existên-
como intrínseco à existência de todos e de cada cia. Nestes casos, quando o desespero e a agonia
um. A moral do cordeiro, tão comentada por Ni- dão o tom, preenchendo completamente os dias e
etzsche na Genealogia da Moral, nada tem a ver noites, a interrupção — definitiva — do martírio
com a atitude autenticamente compassiva. Só há torna-se, muitas vezes, a melhor (ou única) opção
compaixão entre tenazes. para aquele que se esvai, de tal sorte que uma “boa
morte”, a eutanásia, pode se constituir em uma
Inatingibilidade genuína libertação59,60.
Aquiescer a tal anseio, fornecendo os meios para
Seria a compaixão atingível pelo homem das a prática da eutanásia — ou, efetivamente, concre-
sociedades democráticas e pluralistas contemporâ- tizando-a com as próprias mãos — pode ser mo-
neas? Nos termos apresentados em relação à Com- ralmente justificável em tais circunstâncias? Tal foi a
paixão inerente às tradições sagradas — budista e questão trabalhada neste artigo, tomando como
cristã —, quase certamente não, de acordo com as esteio a idéia de Compaixão, recuperada a partir de
considerações apresentadas no início deste ensaio. seu sentido originário nas tradições sagradas —
Sobre isto, pode-se interpor um excerto de Nietzs- especialmente o budismo —, mas redimensionada
che, transcrito de A gaia ciência: O que nos faz na ordem discursiva própria da filosofia ocidental,
sofrer de modo mais profundo e pessoal é ininte- agora como compaixão laica em íntima relação com
ligível e inatingível a quase todos os outros; nisto os referenciais teóricos da bioética da proteção. As-
que permanecemos ocultos a nosso próximo sim, pois, é argumentativamente cogente afirmar
mesmo quando coma conosco na mesma mesa56. que agir por compaixão implica:
[grifo nosso] (1) a com-preensão de que (a) nascer e morrer
O aforismo de Nietzsche é elucidativo, trazen- são dimensões inextirpáveis de qualquer vida — o
do em seu bojo a possibilidade de compreensão da que torna os viventes possuidores de uma igualda-
(aparente) aporia da inatingibilidade: a palavra de inquestionável —, (b) inscrita no tempo e, por
quase. Por que não todos? Provavelmente, porque conseguinte, impermanente, (c) sujeita a sofrimen-
alguns são capazes, efetivamente, de reconhecer o tos das mais diferentes ordens e, eventualmente,
sofrimento como constitutivo da existência huma- reconhecíveis como não mais toleráveis por seres
na — e dos demais seres sencientes —, indepen- racionais e razoáveis e,
dente do mote a partir do qual este se manifesta — (2) a ação de acolhimento incondicional da-
perdas, doenças, traumas e outros. Na verdade, a quele que sofre, não-o-julgando, a partir do ofere-
dificuldade está, precisamente, em reconhecer-se a cimento de uma boa morte que lhe permitirá en-
inegável igualdade que perpassa toda a existência, cerrar seus dias com dignidade.
nos termos presentemente pontuados, e reitera- Esta seria uma possível síntese da inscrição da
dos por David Bohm58: [é] enganoso e sem dúvida compaixão laica no debate moral sobre a eutaná-
errado supor, por exemplo, que cada ser humano é sia, entrando em cena enquanto horizonte capaz de
uma realidade independente que interage com ou- permitir o abrigo daquele que padece, garantindo
tros seres humanos e com a natureza. Em vez disso, sua autonomia, no sentido de tornar fato a dispo-
todos esses são projeções de uma totalidade única. sição de fenecer em paz e sem dor — caracterizando
[...] Deixar de levar isso em consideração deve, ine- uma boa morte. Eis a acolhida incondicional.
vitavelmente, levar aquele que o deixa a uma confu- Ademais, se se reconhece que, nestes termos,
são séria e persistente em tudo o que faz58. há uma atitude de amparo à autonomia do indiví-
Uma vez com-preendido tal pressuposto, a ina- duo decidido a morrer, garantindo o seu “exercí-
tingibilidade, simplesmente, cessa de ser um pro- cio” em um momento de fragilidade, é factível con-
blema. Nasce-se, sofre-se e morre-se e neste ciclo, ceber, claramente, que, em última análise, a com-
samsara em termos budistas, expressa-se a imper- paixão pode ser pensada como uma fundamental
manência inerente à ordem de toda a forma de característica da bioética da proteção. De fato, o
vida. A compaixão é universal.
1249

Ciência & Saúde Coletiva, 14(4):1241-1250, 2009


alcance da compaixão laica coincide com o pró-
prio ethos do mundo homérico — agora dimensi-
onado em óikos —, na medida em que se institui
como morada, acolhida incondicional da experi-
ência de viver, quiçá reiterando sua beleza, o que
pode, perfeitamente, significar, como nas palavras
de Platão, aprender a morrer...

Colaboradores Referências

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