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RESUMO: O presente artigo tem por objetivo demonstrar, por meio de uma análise de política
criminal, a incompatibilidade entre o paradigma de funcionalismo teleológico e do Direito Penal
enquanto ultima ratio com os crimes de perigo abstrato, cuja tipificação encontra-se
desalinhada com os princípios penais de nosso ordenamento, como o princípio da
subsiariedade, da fragmentariedade e o da ofensividade. Pretende-se, com isso, propor ao
menos uma readequação desses tipos a uma visão garantista do Direito Penal.
1
Recentemente, o STF, julgou o caso HC 133984. O réu, que portava um colar com pingente de munição
de arma de fogo, foi condenado em primeira instância a 3 anos de reclusão em regime inicial aberto,
tendo sido sua pena substituída por outra restritiva de direitos. A Defensoria Pública da União recorreu ao
TJ-MG, tendo o réu sido absolvido. O Ministério Público recorreu ao STJ, que reestabeleceu a
condenação. Ao chegar no STF, contrariando sua jurisprudência, decidiu-se pela procedência do Habeas
Corpus e pela absolvição do condenado.
valores considerados mais importantes, aquilo que fundamenta, serve de base
para a existência do ordenamento jurídico2.
O debate a ser feito é qual o embasamento constitucional para a atuação do
Direito Penal. Para a teoria sociológica-funcionalista, cujo representante
máximo é Amelung (p.69), só é legítima a intervenção desse ramo quando
resposta a uma disfunção da ordem social. Fundamentada na ideia de
danosidade social, deve-se haver uma violação de um interesse social
relevante, a qual cause uma desestabilização social de forma a romper com o
funcionamento e a sobrevivência de uma sociedade. Essa visão, porém, acaba
por subjugar representações individuais e a liberdade individual em face da
comunidade, afinal, comportamentos desviantes do padrão são uma ameaça
ao bom funcionamento social. Da mesma forma, tem-se um conceito vago,
uma vez que não é possível precisar o que é ou não um interesse social
relevante, sobretudo em uma sociedade plural como a nossa.
Se, por um lado, essa teoria localiza-se no extremo social; por outro, a teoria
pessoal do bem jurídico, de Hassamer (p.71), está no individual. Diz-se bem
jurídico aquilo que é capaz de promover o desenvolvimento pessoal do
indivíduo na sociedade.
Entretanto, falta em ambas as teorias objetividade para descrever o que é um
bem jurídico de relevância penal. Tendo em vista isso, a maioria da doutrina
contemporânea tem convergido para o texto constitucional, em consonância
com o efeito irradiante dos direitos fundamentais.
Em se tratando de Direito Penal, a Constituição tem papel imprescindível ao
dispor sobre os bens jurídicos merecedores de sua tutela. É nela que o
legislador, no jogo democrático-legislativo, deve retirar o fundamento dessa
proteção, tanto no sentido de dever valorar o bem jurídico como merecedor de
proteção penal quanto de estar adstrito e limitado pelos direitos e garantias
fundamentais. Afinal, ela é “o único remédio para os poderes selvagens”(
FERRAJIOLI apud GRECO, p.9, 2015).
2
“En otras palabras, los derechos fundamentales son los representantes de un sistema de valores concreto
(de un sistema cultural) que resumen el sentido de la vida estatal contenido en la Constituicíon”
(MARTINEZ, p. 256, 2006).
Para tanto, a doutrina elenca parâmetros para a atuação desse ramo na
proteção desses bens jurídicos, ao destacar a existência de princípios
limitadores do “jus puniendi” – direito de punir – estatal.
3
GRECO, p. 101, 2015.
4
BATISTA, p. 92, 2007.
consequência no mundo fático acarrete em uma lesão grave ao bem jurídico
tutelado pelo tipo, em consonância com o princípio da ofensividade. Exemplo
disso é o crime de lesão corporal, no qual se exige uma conduta, comissiva ou
omissiva, cujo resultado naturalístico gere uma lesão efetiva à incolumidade
pessoal da vítima.
Por outro lado, há crimes em que não se exige uma lesão ao bem jurídico, mas
apenas que se exponha à risco de perigo de dano, no sentido de uma
potencialidade, probabilidade de lesão, com o fim de preveni-lo. A doutrina os
denomina como crimes de perigo, subclassificando-os em de perigo concreto e
de perigo abstrato.
Por crime de perigo concreto, tem-se uma análise ex post da conduta do
agente. Isto é, observa-se posteriormente se o perigo gerado pela conduta de
um sujeito colocou, de fato, em risco o bem jurídico protegido. Na via oposta,
nos crimes de perigo abstrato, a análise é ex ante, ou seja, é feita de forma
anterior à conduta, sendo, por óbvio, uma exposição abstrata, de presunção
absoluta.
“Não merece prosperar a tese sustentada pela defesa no sentido de que a pequena porção
apreendida com o recorrente 1,19 g (um grama e dezenove decigramas) de
cocaína ensejaria a atipicidade da conduta ao afastar a ofensa à coletividade, primeiro
porque o delito previsto no art. 28 da Lei n.º 11.343/06 trata-se de crime de perigo abstrato e,
além disso, a reduzida quantidade da droga é da própria natureza do crime de porte de
entorpecentes para uso próprio”. (RHC 36195, Quinta Turma, Dje 06/08/2013)
5
FERRAJOLI apud GRECO, p. 299, 2015.
excludente de tipicidade do crime impossível, disposto no art. 17 do Código
Penal Brasileiro.
Além disso, revela-se incompatível a presunção absoluta dos crimes de perigo
abstrato com a vedação à imputação objetiva e o princípio da culpabilidade,
uma vez que se faz uma análise meramente objetiva entre o resultado
naturalístico de exposição a risco do bem jurídico tutelado e o desvalor da
ação, cuja conduta é presumida como absolutamente perigosa.
“Ora, a paz pública interessa a todos, e, por isso mesmo, seu sujeito passivo é a coletividade, e
não a União Federal, uma vez que não está em causa interesse direto e específico seu, ainda
quando esse delito, por causa do meio de comunicação empregado, se pratique por intermédio
6
BARATTA, p. 36, 2004.
7
Ibidem, p. 37.
de empresa concessionária de serviço público federal (entidade essa a que não se refere o art.
109, IV, da Constituição), ou tenha a sua consumação verificada simultaneamente em mais de
um Estado” (STF: RE 166.943/ PR, rel. Min. Moreira Alves, 1ª Turma, j. 03.03.1995).
Tendo em vista o que já foi exposto, conclui-se que a abstração dos crimes de
perigo abstrato são incompatíveis com os preceitos democrático-republicanos
dispostos na Constituição, uma vez que são sucetíveis de utilização autoritária
e antidemocrática. Outra agravante é o fato nossa História ser eivada de
períodos ditatoriais, ao passo de que nosso País tem uma recente experiência
de construção da Democracia, com dois impeachments realizados em um curto
periodo de tempo, em menos de 25 anos.
Nesse sentido, os operadores do Direito não devem se limitar à formalidade da
lei, à dogmática. Deve-se, pois, entender o Direito Penal como uma ciência
conjunta, não separada do ramo da Política Criminal e da Criminologia.
Segundo Zaffaroni, Política Criminal é
“a ciência ou a arte de selecionar os bens (ou direitos), que devem ser tutelados jurídica e
penalmente, e escolher os caminhos para efetivar tal tutela, o que iniludivelmente implica a
crítica dos valores e caminhos já eleitos”(ZAFFARONI, p.122, 2011).
Nilo Batista, ao citar Baratta, traz parâmetros para uma política criminal em
uma sociedade de classes como a nossa8. Primeiramente, o Direito Penal não
deve se limitar a uma “política penal”, caracterizada pelo punitivismo, bem
como não basta que haja uma “política de substitutivos penais”, meramente
simbólica: deve-se buscar uma profunda transformação social e institucional,
visando a efetivação de direitos fundamentais. Além disso, deve-se reduzir ao
máximo o seu âmbito de aplicação, muitas vezes fundado em concepções
autoritárias, como de fato é o nosso sistema punitivo, preferindo-se outras
esferas jurídicas não estigmatizantes. Necessita-se, também, de uma alteração
8
BATISTA, p.37, 2007
do sistema de execução penal, humanizando-a e tentando efetivar a reinserção
penal. Além disso, é preciso de uma “batalha cultural” contra as
estigmatizações de condutas desviantes feitas pela Mídia e por agentes
políticos e econômicos.
Contemporaneamente, o debate gira em torno do funcionalismo, corrente que
visa a descrever a real função do Direito Penal. Divide-se em dois: o
funcionalismo moderado ou teleológico, cujo representante mor é Claus Roxin,
e o funcionalismo radical ou sistêmcio, preconizado por Gunther Jakobs.
“aquele que se desvia da norma por princípio não oferece qualquer garantia de que se
comportará como pessoa; por isso, não pode ser tratado como cidadão, mas deve ser
combatido como inimigo” (JAKOBS apud SANCHEZ, p.35, 2015).
5. BIBLIOGRAFIA
GOMES, Luis Flávio. Porte exclusivo de munição: não é crime. JUS BRASIL.
Disponível em < http://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/121823615/porte-
exclusivo-de-municao-nao-e-crime >. Acessado em 08 set. 2016.
STF, BRASIL. “2ª Turma absolve cidadão condenado por portar munição
proibida como pingente de colar”. Disponível em <
http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=316821 >.
Acessado em 05 set. 2016.