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CRIMES DE PERIGO ABSTRATO: O VERDADEIRO PERIGO

REGIS FRANCISCO PALOMBO

Discente da Universidade Federal de Juiz de Fora, Campus Avançado


Governador Valadares

SUMÁRIO: 1. INTRODUÇÃO; 1.1. A função do Direito Penal no contexto de Estado


Constitucional Democrático de Direito; 1.2. Os princíos limitadores do “jus puniendi”
do Estado. 2. DA CONCEITUAÇÃO DOS CRIMES DE PERIGO ABSTRATO; 2.1.
O que é crime de perigo abstrato; 2.2.O que não é crime de perigo abstrato; 2.3. Os
bens jurídicos tutelados pelos crimes de perigo abstrato; 2.4. Os sujeitos passivos
dos crimes de perigo abstrato 3. DA INCOMPATIBILIDADE DOS CRIMES DE
PERIGO ABSTRATO E O PARADIGMA QUE SE PRETENDE CONSTRUIR NO
BRASIL; 3.1. O paragidma do funcionalismo teleológico contraposto ao
funcionalismo sistêmico; 3.2. Uma proposta de adequação dos crimes de preigo
abstrato ao paradigma que se pretende construir no Brasil; 4. CONSIDERAÇÕES
FINAIS. 5. BIBLIOGRAFIA

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo demonstrar, por meio de uma análise de política
criminal, a incompatibilidade entre o paradigma de funcionalismo teleológico e do Direito Penal
enquanto ultima ratio com os crimes de perigo abstrato, cuja tipificação encontra-se
desalinhada com os princípios penais de nosso ordenamento, como o princípio da
subsiariedade, da fragmentariedade e o da ofensividade. Pretende-se, com isso, propor ao
menos uma readequação desses tipos a uma visão garantista do Direito Penal.

PALAVRAS CHAVE: Tipicidade material – Ultima ratio - Ofensividade – Perigo Abstrato –


Fragmentariedade – Política Criminal – Funcionalismo teleológico – Funcionalismo Sistêmico
1. Introdução
Carregar consigo, isoladamente, munição de arma de fogo 1. Possuir drogas
para uso pessoal. Portar arma de fogo desmuniciada. Dirigir alcoolizado em um
local deserto ou inabitado. O que essas condutas possuem em comum, além
de serem formalmente tipificadas como condutas ilícitas pela legislação penal?
São considerados, pela jurisprudência majoritária dos tribunais superiores,
como crimes de perigo abstrato.
Dessa forma, é possível perceber um diapasão entre o que se apregoa nas
unidades acadêmicas e o produto da prática forense. Afinal, tais crimes não
estão sintonizados com os princípios limitadores do Direito Penal, quiçá com as
atuais teorias sobre política criminal e criminologia.
Tendo em vista isso, não raro vemos decisões de condenação atécnicas
proferidas pelo Judiciário, sobretudo nas instâncias superiores, envolvendo
esses tipos penais. Ainda que haja um discurso de Direito Penal mínimo,
fundamentado no texto constitucional e com respeito aos direitos humanos, vê-
se, na prática, o contrário: um Direito Penal do inimigo.

1.1. A função do Direito Penal no contexto de Estado


Constitucional Democrático de Direito

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/88) é clara


em seu art 1°: somos um Estado Democrático de Direito. Por respeito à
supremacia das normas constitucionais e ao efeito irradiante dos direitos
fundamentais, tem-se que todo ramo do Direito deve estar em consonância
com a Carta Maior, inclusive o Direito Penal. Isso implica numa interpretação
jurídica voltada à proteção e efetivação dos direitos fundamentais, e não
apenas à literalidade da lei.
Atualmente, entende-se que os direitos fundamentais são uma integração
material dos valores de uma sociedade que legitimam a ordem jurídica. São os

1
Recentemente, o STF, julgou o caso HC 133984. O réu, que portava um colar com pingente de munição
de arma de fogo, foi condenado em primeira instância a 3 anos de reclusão em regime inicial aberto,
tendo sido sua pena substituída por outra restritiva de direitos. A Defensoria Pública da União recorreu ao
TJ-MG, tendo o réu sido absolvido. O Ministério Público recorreu ao STJ, que reestabeleceu a
condenação. Ao chegar no STF, contrariando sua jurisprudência, decidiu-se pela procedência do Habeas
Corpus e pela absolvição do condenado.
valores considerados mais importantes, aquilo que fundamenta, serve de base
para a existência do ordenamento jurídico2.
O debate a ser feito é qual o embasamento constitucional para a atuação do
Direito Penal. Para a teoria sociológica-funcionalista, cujo representante
máximo é Amelung (p.69), só é legítima a intervenção desse ramo quando
resposta a uma disfunção da ordem social. Fundamentada na ideia de
danosidade social, deve-se haver uma violação de um interesse social
relevante, a qual cause uma desestabilização social de forma a romper com o
funcionamento e a sobrevivência de uma sociedade. Essa visão, porém, acaba
por subjugar representações individuais e a liberdade individual em face da
comunidade, afinal, comportamentos desviantes do padrão são uma ameaça
ao bom funcionamento social. Da mesma forma, tem-se um conceito vago,
uma vez que não é possível precisar o que é ou não um interesse social
relevante, sobretudo em uma sociedade plural como a nossa.
Se, por um lado, essa teoria localiza-se no extremo social; por outro, a teoria
pessoal do bem jurídico, de Hassamer (p.71), está no individual. Diz-se bem
jurídico aquilo que é capaz de promover o desenvolvimento pessoal do
indivíduo na sociedade.
Entretanto, falta em ambas as teorias objetividade para descrever o que é um
bem jurídico de relevância penal. Tendo em vista isso, a maioria da doutrina
contemporânea tem convergido para o texto constitucional, em consonância
com o efeito irradiante dos direitos fundamentais.
Em se tratando de Direito Penal, a Constituição tem papel imprescindível ao
dispor sobre os bens jurídicos merecedores de sua tutela. É nela que o
legislador, no jogo democrático-legislativo, deve retirar o fundamento dessa
proteção, tanto no sentido de dever valorar o bem jurídico como merecedor de
proteção penal quanto de estar adstrito e limitado pelos direitos e garantias
fundamentais. Afinal, ela é “o único remédio para os poderes selvagens”(
FERRAJIOLI apud GRECO, p.9, 2015).

2
“En otras palabras, los derechos fundamentales son los representantes de un sistema de valores concreto
(de un sistema cultural) que resumen el sentido de la vida estatal contenido en la Constituicíon”
(MARTINEZ, p. 256, 2006).
Para tanto, a doutrina elenca parâmetros para a atuação desse ramo na
proteção desses bens jurídicos, ao destacar a existência de princípios
limitadores do “jus puniendi” – direito de punir – estatal.

1.2. Os princíos limitadores do “jus puniendi” do Estado


Não se pretende, com este artigo, exaurir o tema dos princípios do Direito
Penal, enfocando apenas naqueles que direcionarão melhor o que se visa com
o trabalho.
Mais do que para punir certas condutas reprováveis, a normal penal revela-se
como um instrumento de limitação desse poder estatal, considerado o mais
gravoso de todos os outros ramos do Direito.
Tendo em vista isso, o Direito Penal deve ser a ultima ratio do ordenamento, ou
seja, seu campo de atuação é aquele no qual nenhum outro ramo jurídico der
conta de proteger efetivamente o bem jurídico em questão, em consonância
com o princípio da subsidiariedade. Da mesma forma, os bens jurídicos
alvos de tutela são selecionados de uma forma diferenciada: são aqueles mais
importantes para a sociedade, considerados imprescindíveis para o convívio
social. Denomina-se isso de princípio da fragmentariedade. Ambos derivam
de um mesmo princípio, o da intervenção mínima, que, em síntese, significa
dizer que o Direito Penal somente deve atuar em se tratando de bens jurídicos
considerados salutares para a sociedade e que não seja efetivamente tutelado
por outros ramos do Direito.
Por outro lado, tem-se o princípio da legalidade. É reflexo do brocardo nullum
crimen nulla poena sine legem, disposto no art. 1° de nosso Código
Penal: “Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia
cominação legal”. Objetiva conferir maior segurança jurídica aos cidadãos ao
garantir que ninguém será punido pela coerção penal sem que haja lei prévia
cominando-lhe sanção correspondente. Um dos corolários desse princípio é o
da taxatividade do Direito Penal, que veda ao legislador criar leis penais
vagas, de forma a não possibilitar interpretações extensivas, sendo um
imperativo ela ser determinada. Impede-se, pois, as analogias, devendo ser a
interpretação da norma penal restritiva.
Outro importante limitador do poder punitivo do Estado é o princípio da
ofensividade. De acordo com ele, estabelece-se, em verdade, não as
condutas merecedoras de sanção penal, mas, sim, as que não merecem 3. Nilo
Batista elenca quatro funções desse princípio 4 . A primeira é a de proibir a
incriminação de uma atitude interna, da cogitação, fazendo-se necessária, no
mínimo, a externalização dela (cogitationis poenam nemo partitur). A segunda
é a de proibir a incriminação de uma conduta que não exceda o âmbito do
próprio autor, evitando-se, assim, a proibição de atos preparatórios e a
autolesão. Além disso, proíbe-se a incriminação de simples estados ou
condições existenciais, em rechaço ao Direito Penal do autor, no qual a sanção
penal não é dirigida a uma conduta, mas às características do autor dela. Por
fim, a última função desse princípio é a de proibir a incriminação de condutas
desviadas que não afetem qualquer bem jurídico. Isto é, não se deve incriminar
aquilo que não fere algum bem jurídico digno de tutela penal, ainda que a
conduta seja desaprovada pela sociedade.
Além disso, o princípio da culpabilidade é uma vedação à responsabilidade
penal objetiva: só se admite punição ao agente que tenha a consciência e a
vontade direcionada finalisticamente a uma prática deliutosa, ou seja, age com
dolo. Excepcionalmente, pune-se o agente que age de forma culposa,
rompendo com deveres gerais de cuidado, devendo, contudo, estar expresso
no tipo esse elemento subjetivo, em consonância com o art. 18, parágrafo
único do Código Penal. Em síntese, em se tratando de um Direito Penal
garantista, não se analisa única e exclusivamente o nexo entre a conduta e o
resultado naturalístico, não se trata de uma análise objetiva, mas, sim,
subjetiva. É um reflexo do brocardo “a culpa não se presume”.
Dessa forma, mesmo que uma conduta seja típica do ponto de vista formal,
prevista na legislação penal, poderá não o ser sob uma perspectiva material,
caso não passe pelo crivo dos princípios interpretativos do Direito Penal.

2. DA CONCEITUAÇÃO DOS CRIMES DE PERIGO


Em regra, os delitos tipificados no Código Penal são classificados como crimes
de dano ou de lesão, ou seja, crimes em que se exige uma conduta cuja

3
GRECO, p. 101, 2015.
4
BATISTA, p. 92, 2007.
consequência no mundo fático acarrete em uma lesão grave ao bem jurídico
tutelado pelo tipo, em consonância com o princípio da ofensividade. Exemplo
disso é o crime de lesão corporal, no qual se exige uma conduta, comissiva ou
omissiva, cujo resultado naturalístico gere uma lesão efetiva à incolumidade
pessoal da vítima.
Por outro lado, há crimes em que não se exige uma lesão ao bem jurídico, mas
apenas que se exponha à risco de perigo de dano, no sentido de uma
potencialidade, probabilidade de lesão, com o fim de preveni-lo. A doutrina os
denomina como crimes de perigo, subclassificando-os em de perigo concreto e
de perigo abstrato.
Por crime de perigo concreto, tem-se uma análise ex post da conduta do
agente. Isto é, observa-se posteriormente se o perigo gerado pela conduta de
um sujeito colocou, de fato, em risco o bem jurídico protegido. Na via oposta,
nos crimes de perigo abstrato, a análise é ex ante, ou seja, é feita de forma
anterior à conduta, sendo, por óbvio, uma exposição abstrata, de presunção
absoluta.

2.1. O que é crime de perigo abstrato


Como visto, nos crimes de perigo abstrato, o legislador, ao elaborá-los,
presume absolutamente que uma determinada situação coloca em risco o bem
jurídico tutelado pelo tipo. Afinal, faz-se uma análise ex ante da conduta, ao
contrário dos crimes de perigo concreto, nos quais se é exigido a comprovação
da efetiva probabilidade de exposição a risco de lesão.
Percebe-se, pois, que essa antecipação de tutela é uma violação ao princípio
da ofensividade. Ora, se a conduta do agente não tiver o condão de lesar, de
maneira efetiva, o bem jurídico protegido, não há no que se falar em crime,
pelo fato de, materialmente, ser atípica a conduta.
Da mesma forma, os crimes de perigo abstrato são incriminações de algo que
não excede o âmbito do próprio autor, podendo ser considerados como meros
atos preparatórios - como, por exemplo, o porte ilegal de arma de fogo
desmuniciada - que, em regra, não são punidos, ou até mesmo autolesão,
como no caso do uso para consumo próprio de substâncias ilícitas. Além disso,
em muitos casos, demonstram-se como uma proibição de simples estados ou
condições existenciais do autor, como bem delineia Ferrajoli: “nas situações em
que, de fato, nenhum perigo subsista, o que se castiga é a mera desobediência
ou a violação formal da lei por parte de uma ação inócua em si mesma” 5. Por
fim, se se presume absolutamente o perigo, em última instância, ele sequer
existe, pois, se tudo é perigo, nada é perigo.

2.2.O que não é crime de perigo abstrato


Vejamos como o Supremo Tribunal Federal (STF) aborda o tema:

“Mostra-se irrelevante, nesse contexto, indagar se o comportamento do agente atingiu, ou não,


concretamente, o bem jurídico tutelado pela norma, porque a hipótese é de crime de perigo
abstrato, para o qual não importa o resultado. Precedente. III- No tipo penal sob análise, basta
que se comprove que o acusado conduzia veículo automotor, na via pública, apresentando
concentração de álcool no sangue igual ou inferior a 6 decigramas por litro para que esteja
caracterizado o perigo ao bem jurídico tutelado e, portanto, configurado o crime.” (HC 109269,
Segunda Turma, Dje 11/10/2011)

Vejamos, agora, o posicionamento do STJ quanto a esse tipo de crime:

“Não merece prosperar a tese sustentada pela defesa no sentido de que a pequena porção
apreendida com o recorrente 1,19 g (um grama e dezenove decigramas) de
cocaína ensejaria a atipicidade da conduta ao afastar a ofensa à coletividade, primeiro
porque o delito previsto no art. 28 da Lei n.º 11.343/06 trata-se de crime de perigo abstrato e,
além disso, a reduzida quantidade da droga é da própria natureza do crime de porte de
entorpecentes para uso próprio”. (RHC 36195, Quinta Turma, Dje 06/08/2013)

Percebe-se, dessa forma, que a jurisprudência dos tribunais - cuja função,


denominada de nomofilácica, isto é, de uniformização jurisprudencial -, assim
como boa parte da doutrina, acaba confundindo crimes de perigo abstrato com
os de mera conduta. Contudo, é válido ressaltar que eles não se confundem:
não basta que o agente apenas pratique a conduta descrita no tipo para se
configurar o crime, como ocorre neste. O meio e o objeto devem ser idôneos a
expor a risco o bem jurídico protegido no crime de perigo abstrato. Afinal, caso
contrário, estar-se-ia contrariando a própria teoria do injusto penal e a

5
FERRAJOLI apud GRECO, p. 299, 2015.
excludente de tipicidade do crime impossível, disposto no art. 17 do Código
Penal Brasileiro.
Além disso, revela-se incompatível a presunção absoluta dos crimes de perigo
abstrato com a vedação à imputação objetiva e o princípio da culpabilidade,
uma vez que se faz uma análise meramente objetiva entre o resultado
naturalístico de exposição a risco do bem jurídico tutelado e o desvalor da
ação, cuja conduta é presumida como absolutamente perigosa.

2.4. Os bens jurídicos tutelados pelos crimes de perigo


abstrato
Se os crimes de perigo abstrato são embasados numa abstração, o mesmo
ocorre com os bens jurídicos tutelados por esses tipos. Por exemplo, a Lei
11.343/06, mais conhecida como Lei de Drogas, tem por objetivo proteger o
bem jurídico saúde pública. Nos tipos de apologia de crime ou criminoso (art.
287 do CP) e o de incitação ao crime (art. 286 do CP), ampara-se a paz
pública. A lei 10.826/2003, ao tratar da posse ou porte ilegal de arma de fogo,
tutela a segurança pública e a paz social. Em se tratando de embriaguez ao
volante, tem-se, primariamente, a incolumidade pública em relação à
segurança no trânsito.
Vê-se, pois, bens jurídicos difusos, que não podem ser materializados, uma vez
que são supra-individuais. De certa forma, isso acarreta em uma maior
abrangência da atuação do Direito Penal. Isso, pois, se se torna difícil precisar
se o agente ativo realmente atingiu ou não o bem jurídico tutelado, quiçá se o
expôs a efetivo risco. Viola-se, indubitavelmente, o princípio da ofensividade. A
solução adotada pelo legislador pátrio foi a de considerar que a consumação
da exposição a risco é presumida absoluta e abstratamente, sem nem ao
menos considerar o princípio da culpabilidade em relação ao agente.
Da mesma forma, é possível se falar em um rompimento com o princípio da
intervenção mínima, já que não se faz a análise se esse ramo está sendo
utilizado de forma subsidiária e fragmentária. Outra crítica é a do imperativo da
taxatividade do Direito Penal, transgredida pela imprecisão e abrangência do
bem jurídico em questão, que, em sua essência, possibilita interpretações
extensivas.
Isso é criticável na medida em que pode ser retoricamente usado para fins
antidemocráticos e/ou autoritários. Volta-se, assim, a arcaica ideologia da
defesa social da Escola Liberal Clássica, nascida nas Revoluções Burguesas.
Embasada no princípio da legitimidade, entendia-se que o Estado, enquanto
representante da reação da sociedade, esta entendida como o bem (DIREITO
PENAL DO INIMIGO, LER), estava legitimado a reprimir a criminalidade,
entendida como um comportamento individual desviante e, portanto, como o
mal, a fim de reafirmar os valores e as normas sociais6. Além disso, tinha-se o
princípio do interesse social e do delito natural, pelo qual se entende que, em
regra, os tipos penais representam interesses comuns dos cidadãos, ao passo
de que a exceção, leia-se delitos artificiais, são criações políticas e
econômicas7. Isso se reflete, atualmente, em utilizações de termos como paz
pública, incolumidade pública, saúde pública, enfim, derivações do interesse
público, compreendidos de forma naturalizada, como se meras condutas
desviantes disso, não necessariamente crimes em um paradigma
constitucional-penal em que vivemos, fossem delitos naturais, merecedores da
coerção do Estado, benevolente, por serem a externalização do mal.

2.4. Os sujeitos passivos dos crime de perigo abstrato

O mesmo ocorre em se tratando dos sujeitos passivos dos crimes de perigo


abstrato. Primordialmente, são entendidos como a coletividade e/ou o Estado.
Dessa forma, são classificados pela doutrina como crimes vagos, dado ao fato
de se ter uma abstração no sujeito passivo.
Ainda que parte da doutrina considere como legítimo ser o sujeito passivo de
um crime a coletividade, por exemplo, muito se critica quando o é o Estado. E
isso não só na doutrina, mas, pasmém, também na jurisprudência dos tribunais
superiores:

“Ora, a paz pública interessa a todos, e, por isso mesmo, seu sujeito passivo é a coletividade, e
não a União Federal, uma vez que não está em causa interesse direto e específico seu, ainda
quando esse delito, por causa do meio de comunicação empregado, se pratique por intermédio

6
BARATTA, p. 36, 2004.
7
Ibidem, p. 37.
de empresa concessionária de serviço público federal (entidade essa a que não se refere o art.
109, IV, da Constituição), ou tenha a sua consumação verificada simultaneamente em mais de
um Estado” (STF: RE 166.943/ PR, rel. Min. Moreira Alves, 1ª Turma, j. 03.03.1995).

3. DA INCOMPATIBILIDADE DOS CRIMES DE PERIGO


ABSTRATO E O PARADIGMA CONSTITUCIONAL-PENAL QUE
SE PRETENDE CONSTRUIR NO BRASIL;

Tendo em vista o que já foi exposto, conclui-se que a abstração dos crimes de
perigo abstrato são incompatíveis com os preceitos democrático-republicanos
dispostos na Constituição, uma vez que são sucetíveis de utilização autoritária
e antidemocrática. Outra agravante é o fato nossa História ser eivada de
períodos ditatoriais, ao passo de que nosso País tem uma recente experiência
de construção da Democracia, com dois impeachments realizados em um curto
periodo de tempo, em menos de 25 anos.
Nesse sentido, os operadores do Direito não devem se limitar à formalidade da
lei, à dogmática. Deve-se, pois, entender o Direito Penal como uma ciência
conjunta, não separada do ramo da Política Criminal e da Criminologia.
Segundo Zaffaroni, Política Criminal é

“a ciência ou a arte de selecionar os bens (ou direitos), que devem ser tutelados jurídica e
penalmente, e escolher os caminhos para efetivar tal tutela, o que iniludivelmente implica a
crítica dos valores e caminhos já eleitos”(ZAFFARONI, p.122, 2011).

Nilo Batista, ao citar Baratta, traz parâmetros para uma política criminal em
uma sociedade de classes como a nossa8. Primeiramente, o Direito Penal não
deve se limitar a uma “política penal”, caracterizada pelo punitivismo, bem
como não basta que haja uma “política de substitutivos penais”, meramente
simbólica: deve-se buscar uma profunda transformação social e institucional,
visando a efetivação de direitos fundamentais. Além disso, deve-se reduzir ao
máximo o seu âmbito de aplicação, muitas vezes fundado em concepções
autoritárias, como de fato é o nosso sistema punitivo, preferindo-se outras
esferas jurídicas não estigmatizantes. Necessita-se, também, de uma alteração

8
BATISTA, p.37, 2007
do sistema de execução penal, humanizando-a e tentando efetivar a reinserção
penal. Além disso, é preciso de uma “batalha cultural” contra as
estigmatizações de condutas desviantes feitas pela Mídia e por agentes
políticos e econômicos.
Contemporaneamente, o debate gira em torno do funcionalismo, corrente que
visa a descrever a real função do Direito Penal. Divide-se em dois: o
funcionalismo moderado ou teleológico, cujo representante mor é Claus Roxin,
e o funcionalismo radical ou sistêmcio, preconizado por Gunther Jakobs.

3.1. O paragidma do funcionalismo teleológico contraposto ao


funcionalismo sistêmico;

Mais condizente com os prceitos democráticos, o funcionalismo teleológico,


cujo expoente é Clauss Roxin, liga-se à política criminal pelo condão da
intervenção mínima do Direito Penal, que orienta todo o sistema punitivo e a
Teoria do Delito. De viés garantístico e minimalista, diz ser a função do Direito
Penal, enquanto ultima ratio, de garantir a proteção dos bens jurídicos mais
importantes para a sociedade, das afrontas mais graves.
Por outro lado, o funcionalismo sistêmico, de Gunther Jakobs, é voltado a
proteção do sistema normativo, e não de bens jurídicos, visando a reafirmação
da autoridade do Direito. É, nesse sentido, de cunho mais punitivista e ideal
para reforçar s preceitos de um Estado autoritário, uma vez que tal proteção
ao sistema é uma carta branca para uma radicalização do positivismo legalista.
Em suas palavras,

“aquele que se desvia da norma por princípio não oferece qualquer garantia de que se
comportará como pessoa; por isso, não pode ser tratado como cidadão, mas deve ser
combatido como inimigo” (JAKOBS apud SANCHEZ, p.35, 2015).

A partir do momento em que um indivíduo realiza uma conduta desviante,


sequer é mais considerado como um cidadão, mas, sim, como um inimigo, não
sendo mais titular de direitos e deveres.
3.2. Uma proposta de adequação dos crimes de preigo abstrato
ao paradigma que se pretende construir no Brasil

Embora se sustente, no Brasil, a ideia do funcionalismo teleológico, muitas das


vezes vemos o contrário. A abstração dos crimes de perigo abstrato, ao ferir a
taxatividade do Direito Penal, encontra-se mais próximo do paradigma do
funcionalismo sistêmico, uma vez que sua vagueza possibilita interpretações
radicais legalistas. Além disso, como afirma Ferrajoli, ao se violar o princípio da
ofensividade, o que se pune é a desobediência ao sistema normativo, e não a
conduta que tenha o condão de expor a risco o bem jurídico tutelado. Afinal,
portar, veladamente, uma arma de fogo desmuniciada; ou portar consigo
apenas munições, sem a arma de fogo, não afeta, abstratamente, o bem
jurídico paz social. Da mesma forma, dirigir, alcoolizado, veículo automotor em
um espaço sem movimento, tendo o cuidado e a prudência de se respeitar as
demais normas de trânsito, também é inócua, no plano abstrato, em se
tratando da incolumidade pública em relação à segurança no trânsito. Portar,
consigo, uma quantidade mínima de entorpecentes, que seja para uso próprio,
sequer é possível cogitar perigo à saúde pública.
Em síntese, tais crimes, ao serem considerados de perigo abstrato, revelam-se
como verdadeiras punições a condutas desviantes, embora não
necessariamente crimes, e a auto-lesão.
O que se pretende é, na medida do possível, que os tipos de de perigo abstrato
comecem a ser analisados de uma perspectiva ex post, exigindo-se uma
comprovação da efetiva exposição à risco ao bem jurídico, a fim de adequá-los
ao paradigma do funcionalismo teleológico. Noutras palavras, reinterpretar os
crimes de perigo abstrato como sendo de perigo concreto, em consonância
com os princípios norteadores do Direito Penal. Por exemplo, embora o caso
descrito acima do sujeito dirigindo alcoolizado não fosse capaz de expor a
perigo a incolumidade pública em relação à segurança no trânsito, seria caso
ele o fizesse em uma via pública movimentada, em desacordo com o limite de
velocidade e demais normas de uma direção segura. Igualmente é possível se
falar em efetiva exposição a risco da paz social se um indivíduo carrega
consigo, em porte desvelado, arma de fogo.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo do presente artigo foi rediscutir os crimes de perigo abstrato à luz do


paradigma do funcionalismo teleológico contraposto ao do funcionalismo
sistêmico, pautando as críticas nos princípios embasadores do Direito Penal e
limitadores do “jus puniendi” do Estado. Ao demonstrar que o verdadeiro perigo
encontra-se na estruturação desses tipos, sustenta-se uma recompreensão dos
mesmos, de maneira a considerá-los como de perigo concreto, exigindo-se a
comprovação da efetiva exposição a risco do bem jurídico tutelado em questão,
em detrimento da presunção absoluta que os crimes de perigo abstrato contém
atualmente em nosso ordenamento.

5. BIBLIOGRAFIA

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica y Crítica del Derecho Penal:


Introduccíon a la sociología jurídico-penal. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 2002.

BATISTA, Nilo. INTRODUÇÃO CRÍTICA AO DIREITO PENAL BRASILEIRO.


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ZAFFARONI, Eugênio Raúl. PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito


penal brasileiro: Volume 1- Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais
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