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As cartas perdidas de
Caio Fernando Abreu

POR NEI DUCLÓS


EM CRÔNICAS

Um tesouro guardado no arquivo do


escritor Nei Duclós traz por inteiro o
jovem Caio F, então com 27 anos,
com suas lutas, medos e sonhos,
reportando com lucidez e coragem a
época e o país em que vivia, a
profissão que abraçou e seus
complicados habitantes

Decidi achar as cartas do Caio


Fernando Abreu no meu arquivo
(soterrado de papéis, acumulados em
décadas). Ele escrevia normalmente
para mim nos anos 1970, quando por
um tempo fomos muito amigos e nos
correspondemos, ele em Porto Alegre,
eu em São Paulo. Biógrafos e estudiosos
já me pediram essas cartas. Uma
biógrafa chegou a duvidar da existência
delas, já que eu não ofereço a
aparência de um capital simbólico
suficiente para convencer os
deslumbrados. Mas por algum motivo
não cedi.

Agora vou revisitar cada uma delas,


sem obedecer a nenhuma cronologia.
São todas cartas legítimas, originais,
com a assinatura do amigo que já tinha
grande prestígio na época e se
transformou num escritor cult, numa
celebridade nacional, queridíssimo por
muitos milhares de leitores. Divulgo para
o meu país conforme recebi: com o
espírito desarmado e abraçado ao
grande amor que os escritores do Brasil
tem pela literatura que aqui se faz e
aqui se paga com a vida.

Com vocês, o Caio que me escrevia e foi


uma personalidade chegada, um amigo
por algum tempo próximo, irmão das
letras e generoso em sua amizade e
talento. A primeira, que divulgo, é do
início de agosto de 1976. Foi escrita em
papel pardo comum, a máquina e
corrigida a caneta. Tem algumas frases
antológicas, que poderão ser notadas
ao longo do seu texto.

As Cartas

Porto, 2. 8. 76
Nei:
Nosso velho conhecido — Mr. August —
chegou ontem, vestido a caráter: aquele
velho terno cinza muito molhado, e tão
velho que já tem algumas manchas de
limo. Agora é preciso hospedá-lo por 29
dias. E resistir, já que ele insiste sempre
em nos puxar para dentro e para baixo.
Resistiremos.

Junto com ele veio também — graças!


— um pouco de luz, acho que para
contrabalançar: a Pifa, um pouco mais
ruiva e muito mais bonita. Deu notícias
de você, da Ida, Daniel e Juliana (as
mãos de Juliana já estão famosas aqui
no Sul, dizem que são longuíssimas,
expressivas, espirituais). Eu tinha
recebido os teus BIC de pena (lindos) e
a notícia do nascimento dela, fazia
algum tempo. Devia ter respondido, mas
a barra andou pesando, tremores de
terra internos e também bodes de fora
— mortes, doenças na família (avôs,
avós, tias — essas coisas).

Agora estou recomeçando/refazendo.


Batalho emprego COM vontade de
achar y me vuelve a la universidad, dia
9. Independência ou morte é a ordem
do dia. Tenho escrito bastante, umas
coisas muito cruéis, às vezes até meio
porcas, genetianas. Por aí você pode
supor o estado da cuca. Mas tudo bem:
botar o horror pra fora é um dos jeitos
de não deixar que ele nos esmague.

Estou mandando procê o recorte duma


entrevista com o Mário Quintana, saída
no Caderno de Sábado, e onde você —
glória!- pinta como um dos poetas
preferidos dele. Congratulations
efusivas! Acho que é o maior elogio que
você já recebeu em toda a sua vida.
Confesso, fiquei com inveja. Tá saindo
um novo livro dele — “Apontamentos de
História Sobrenatural”. Um dos poemas
que mais me fez a cabeça é este aqui:

O Morituro (Mario Quintana)

“Por que é que assim, com suas caras


imóveis e simiescas,/ os vivos nos
devassam num cínico impudor?/ Por
que nos olham assim — como se
fôssemos cousas —/ quando os nossos
traços vão repousando, enfim,/ na
tranqüila dignidade da morte?/ Por que
é que eles, com a sua obscena
curiosidade,/ não respeitam o até mais
íntimo da nossa vida/ — ato que deveria
ser testemunhado apenas pelos Anjos?/
Ah, que Deus me guarde na hora da
minha morte, amén,/ que Deus me
guarde da humilhação deste
espetáculo/ e me livre de todos, de
todos eles:/ não quero os seus olhos
pousando como moscas na minha
cara./ Quero morrer na selva de algum
país distante…/ Quero morrer sozinho
como um bicho!”

Sinto saudade de ti. Sinto falta. Os


amigos estão raros, distantes, esquivos.
Não deu para viajar em julho, talvez no
fim do ano, ou de repente, sempre pode
ser.

Que teus três companheiros estejam


bem. Um beijo para eles. Até a outra.
Teu
Caio

Retorno
Foi assim, naquele distante agosto,
que Caio me falou de suas leituras,
seus planos, seu trabalho, suas faltas
e me informou sobre o elogio do
Quintana para o poeta estreante. E se
despediu beijando as três pessoas da
minha família, mulher e um casal de
filhos (o terceiro veio dois anos mais
tarde). Deus guarde Caio, que entre
nós cultivou a amizade sincera e a
proximidade solidária e calorosa.

Caio Fernando Abreu: três


motivos para uma carta
Compartilho mais uma carta que Caio
Fernando Abreu escreveu para mim nos
anos 1970. Desta vez, ele enumera três
motivos para me enviar suas
preciosidades: primeiro, a resenha sobre
meu livro de estreia “Outubro”, que saiu
na imprensa de Porto Alegre; segundo a
alegria de ter participado de um
encontro com jovens estudantes de
Vacaria, RS, onde reforçou sua certeza
na missão de escritor, num trecho
antológico sobre nosso ofício; e terceiro,
a descoberta de uma poeta mineira
então desconhecida, Adélia Prado. O
desfecho é mais do que surpreendente:
o relato de um sonho castañedistico! Ou
seja, é tudo alumbramento. Vamos à
carta.

Porto 4. 7. 76
Nei:
Te escrevi acho que faz umas duas
semanas, um pouco menos. Você ainda
não respondeu, e tudo bem, não se
preocupe nem se apresse. Soube pelo
Dudu (o San Martin, não o “Magic
Stone”, que é meio chatinho) que você
saiu da Folha de São Paulo — ou que te
saíram, digamos assim. Sempre as
sacanagens inesperadas, não é? Então
imagino que você deva estar um pouco
envolvido com a batalha de grana ou de
novo emprego, e, sei lá, espero que tudo
já tenha se resolvido ou, pelo menos,
que você esteja levando na melhor
possível, sem bodiar com isso.
Tô te escrevendo por três motivos,
principalmente.

Primeiro: enviar esse recorte, do


“Caderno de Sábado” de ontem — uma
crítica do Antonio Hohfeldt sobre
“Outubro”. É UMA CRÍTICA ALTAMENTE
ELOGIOSA — e eu fiquei contente. Muita
gente pixa o Antonio (inclusive eu), mas,
não sei, o Appel diz sempre que “no
fundo ele é um sujeito bom e esforçado”
— é um cara também que apesar dos
seus muitos defeitos, tem uma grande
abertura. É muitíssimo menos
provinciano e cagador de regras que os
Neis Gastais e Cristaldos da vida, o que
é um ponto (ou muitos) a favor. Além
disso, me parece que ele decodificou
muito bem o teu livro, que ele sacou,
sentiu. Espero que você também fique
contente. O Wladyr Nader disse que teu
livro era adolescente. Forças! Eu não
concordo. Uma vez você falou uma
coisa muito bonita, aquilo que “a gente
não deve atraiçoar a própria juventude”
— e na minha opinião é exatamente isso
que o Nader não sacou no “Outubro”: o
compromisso com o novo (que sempre
vem, não é Belchior?).

E aqui pinta o segundo motivo desta


carta. Seguinte: estive dois dias em
Vacaria, fazendo palestras para
estudantes do nível colegial, sobre a
experiência “Teia” e “Há Margem” e “a
novíssima literatura gaúcha”. Nei, foi
demais bonito. Não dá para contar tudo,
seria assunto pruma carta de 50
páginas. Mas o que aconteceu foi que
me dei conta que não estamos
escrevendo inutilmente, para ninguém
ou para nós mesmos. A molecada (em
Vacaria!) estava excitadíssima, na
biblioteca do colégio tinha “Teia” e
também “Há Margem” (a professora de
literatura é muito legal), então eles
estavam informados sobre você e o
resto do pessoal. Senti que estão muito
ávidos de uma literatura que fale do
aqui-agora, que fale deles também.

Um garoto me falou que não suportava


a literatura antes do meu papo porque
pensava que “literatura eram só aqueles
caras chatos do livro de português: José
de Alencar, Raul Pompéia”. Por aí afora.
Me deixou muitas coisas boas, uma
delas a certeza que minha missão é
exatamente essa: fazer as cabeças
alheias. Distribuir, salpicar aqui e ali
pitadinhas de inquietação, de sonho,
também de luta. Uma certeza objetiva
(fora de mim) que existo como escritor,
você me entende? E que o nosso
recado, através do que escrevemos,
sem que a gente saiba, está voando por
aí — e que nós temos que ser cada vez
melhores, mais verdadeiros e mais
conscientes do que podemos dar ao
outro que nos lê. Isso aí. Pessoalmente,
um dia, te conto como foi tudo.

O terceiro motivo é poesia, também.


Encontrei uma poeta chamada Adélia
Prado, mineira — acho que já te falei
dela —, tem um livro chamado
“Bagagem”. E tenho lido os poemas dela
sempre pensando em você. Deu a
vontade de dividir contigo e, na
impossibilidade de te mandar o livro
(não me separo dele), te mando
também esses poemas: Grande Desejo,
Impressionista, Ensinamento, Um Jeito,
Bilhete em Papel Rosa, Psicórdica,
Clareira, Cabeça.

É isso aí. Tem muito mais, é um livro


farto de singelezas, gosto de bolinho, dia
de chuva e café preto. Adélia tem me
encantado e me feito ver o mundo de
um jeito muito mais simples, “sem sérias
patologias”, que existe e que a gente já
teve e se perdeu.

Ah, queria te contar também de um


sonho castañedistico que tive em
Vacaria: muitas coisas, uma festa, eu
assistindo do portão uma festa que
passava sobre a rua, e a rua era rolante,
as pessoas não caminhavam, a rua é
que carregava eles. Aí entrei na casa
branca, grande, colonial, e tinha uma
bacia de louça cheia de objetos,
principalmente pedras. Mergulhei as
mãos dentro da bacia. A voz da minha
avó disse: “São objetos de poder”.

Saudade de você. Um beijo pro Daniel,


outro pra Ida. Até de repente,
do seu
Caio

Retorno
1. Sobre personalidades: é a opinião
do Caio, que deixo aqui na íntegra. 2.
Gostei muito da resenha do Antonio
Hohfeldt. 3. “Teia” e “Há Margem” são
dois livros coletivos de contos e
poemas que foram publicados
naquela época em Porto Alegre. 4.
Pedi demissão da “Folha” para
trabalhar na “IstoÉ” onde, aí sim, me
saíram. 5. “Outubro” é meu livro de
estreia, publicado pelo Instituto
Estadual do Livro — RS em que Caio
foi um dos consultores: era preciso
três aprovações — uma outra foi do
Irmão Elvo Clemente, da PUC. 6.
Wladyr Nader escancarou as páginas
da “Escrita” para minhas resenhas. 7.
Caio datilografou todos os poemas
citados da Adélia Prado. Não
reproduzo aqui porque tomaria muito
espaço. 8. Pelo mesmo motivo só
reproduzo a primeira, a segunda e a
última página da carta. As outras
contém reproduções dos poemas de
Adélia. Ao todo, são três folhas
escritas na frente e no verso.

Karta kaótica de Caio


Fernando Abreu
Já tínhamos tempo acumulado, e não
era pouco. Das cartas que Caio
Fernando Abreu me endereçou em 1976,
esta é a mais dark, pesada e
absurdamente luminosa. Aqui temos o
escritor aos 27 anos, com um livro
poderoso na praça, “O Ovo
Apunhalado”, sendo alvo de críticas,
análises, elogios da grande imprensa e
dos veículos especializados e se
sentindo um lixo, desconfortável no seu
papel de escritor, duvidando agora do
seu ofício, se perguntando porque nos
metemos nessa e falando sobre surtos,
loucuras, internações, psiquiatria, porres.
E, ao mesmo tempo, declarando mais
uma vez sua fé na dignidade humana.
Nada foi cortado, nem nesta nem nas
cartas anteriores. Com todas as letras,
vamos revisitar o Caio dos meus
arquivos, que agora vem à tona como
um vulcão. Fiquem atentos. É barra. A
mais genuína.

Ao som de Belchior

Nei:
Salve: hoje to tomando chá com limão e
ouvindo Belchior: “eu sou apenas um
rapaz latinoamericano/ sem dinheiro no
banco/ sem parentes importantes/e
vindo do interior”. Eu também. Grilei com
a crítica e as cartas-pixativas de
“Escrita” — ainda não chegou aqui — sei
lá, to numa fase de análise em que fico
me achando um lixo (apaga o cigarro
no peito), outras putas-velhas-de-divã
dizem que é-assim-mesmo and I hope
so, daí fica pintando esse tipo de coisa e
só piora, não é? Sabe que desde janeiro
não escrevo NADA? Foi em janeiro que
começou essa badalação em torno do
Ovo, que me fez muito mal, tanto a
positivo como a negativa — já não
tenho naturalidade para escrever. Além
disso inútil.

Nair, minha mãe, hoje veio de novo com


o velho papo: na sua ronda costumeira
por casas espíritas, umbandistas e o
que pinta, sempre dizem que “uma
mulher fez um trabalho para mim num
cemitério”, many years ago — é uma
coisa pra me enlouquecer, e que só não
enlouqueci porque tenho muita força,
mas o tal trabalho bodeia num outro
sentido, causando depressões,
autodepreciações. O psiquiatra hoje de
manhã disse que tenho como uma
espécie de “culpa original”: acho que
não mereço nada de bom que me
acontece, daí nos momentos em que
devia estar meio contente é quando
estou mais bodiado (vide Laing, “O Eu
Dividido”, falso-self & outros bichos). Eu
não sei. Sei que tem um negócio errado.

Tua carta, lida quatro vezes, me deu


uma vontade absurda de estar em SP.
Absurda porque tive a oportunidade de
ficar aí em fevereiro e não quis. Você
me pergunta pela minha paixão…Saco,
acho que aqui to sentindo falta de
estímulos-externos: barras mui
violentas, batalha por grana, por casa,
por emprego, essas coisas. Nas vezes
em que estive mais pressionado de fora
para dentro foi quando mais produzi.
Estou cansado da meia boca daqui:
sentimentos mornos —quanto tempo
faz que não me apaixono? quanto
tempo faz que não sinto ódio? quanto
tempo faz que não tenho vontade de
morrer? É como um filme de Antonioni
fase- antiga, longas tomadas,
lentíssimas, mui sacais — & nada
acontecendo. Quanto tempo faz que
não beijo alguém na boca? Many time,
my friend.
Saí a catar o Dudu San Martin ontem —
não teve espetáculo, chovia pra caralho
(“o maior caldo”, como dizem no IAPI) —
daí li os poemas que ele mandou pro
livro-coletivo-do-Valdir (que me
mandou o livro, tudo bem, escrevi a ele).
Wow! Ou uáu, para ser mais
nacionalista. São muito fortes? vivos?
bons? são fortes-vivos-bons, mas
também são mais, têm um FERVOR que
fazia tempo eu não sentia em nada
escrito. Acho que é o melhor dele que li
até agora, me fez muito mal, me baixou
ainda mais a moral, porque são
extremamente pessimistas (mas, nessa
altura do campeonato, pode-se ser
otimista?). Depois bebemos cachaça e
ouvimos Mercedes Sosa. Levitan —
encontrei no teatro, outro dia, ele fez a
música duma peça infantil que está em
cartaz junto com a nossa, tava de calça
listrada e, não sei, meio “controlado”
(não sei se é bem isso), como sempre.

Intervalo: gagos e vesgos


Parei quase umas 24h, nesse tempo
(será que no espaço também?) que
separa a última frase coube: uma
apresentação do “Sarau” prumas 20
pessoas (amargo, não?), uma tarde de
autógrafos do Gabriel de Britto Velho
onde a média de idade das pessoas
devia ser — sem exagero — uns 60 anos
(mas ele é ótimo: gago: sempre gostei
muito de gagos, de vesgos também,
têm something else); quebra-pau nos
camarins (ainda vou escrever uma peça
que se passe naquele espaço entre o
camarim e o palco).

Incrível, tá mesmo difícil, meu amigo —


chegou Caparelli, trovamos, trovamos, aí
quando ele ia saindo chegou um cara
da UNISINOS com um gravador,
querendo me entrevistar. Fui
entrevistado. Burríssimo, o moço, mas
excelente visual. Ficou me olhando dum
jeito esquisito quando perguntei: “Sabe
que você poderia estar faturando
horrores como mocinho de bangue-
bangue italiano?”

Esquina maldita
Mas, como eu ia dizendo — depois de
mais de um mês, ontem, fui à Esquina
Maldita procurar Emílio Chagas. Bem foi
inevitável, tomamos um pileque épico.
Hoje acordei ruim, gosto de cabo-de-
guarda-chuva na boca & culpa: ando
bebendo muito. Horrível, não é? Eu
acho, também, mas é difícil evitar,
principalmente agora que começou a
esfriar, de noite dá aquela necessidade
de coisas quentes você sai por las
calles, aí vêm as brahmas, os vinhos, os
conhaques, as cachaças. E é engraçado,
quando a gente tá bebendo com
alguém chega num ponto em que
parece que vai acontecer alguma coisa
(ninguém sabe exatamente o que), e
que para essa alguma-coisa acontecer
mesmo é preciso beber um pouco mais.
Daí você pede — e então a coisa
começa a se decompor. Nada acontece,
o porre começa a pintar & a mosca
pousa na sopa fria.

Nei, estou ficando cínico e sem


esperanças. Essa é uma fase grave.
Você não pode me ajudar. Pode-se ficar
cínico numa boa? Já não consigo
acreditar muito mais nessa “numa boa”.
Apaga o cigarro no peito.

Tenho transado com o Henrique do


Valle. Ele é incrível, incrível mesmo, mas
numa ruim. Não é exagero, NUNCA vi
ninguém mais drogado, não consegue
ficar em pé, quem o ampara é a
namorada, que se chama — juro —
Misericórdia. Tem marcas de picadas
nas VEIAS DOS TORNOZELOS. Veja
esses poemas que ele me trouxe:
“ninguém acreditou/ quando eu falei
dos anjos/ que moram nas estrelas//
então eu falei da crise do petróleo/ do
preço do dólar/ e falei mal dos outros//
nas estrelas/ os anjos morriam de rir”.
Ou esta, baudelairiana: “escuta minha
prece, Satan/ já que o lótus não
nasceu/ deixa eu beber teu vinho/ com
os bodes da floresta// já que a vida não
é nada/ sem teu sopro// só tu devolves
paz/ só tu dás alegria// só tu entregas
prazer// enchendo a terra com teu
orvalho”, Ele trouxe as respostas de um
questionário para a “Escrita”, mais uma
pilha de poemas. Alguns vão junto com
a matéria mas os outros eu não sei o
que fazer. Tem a “Inéditos”, de Belo
Horiozonte. Ele é muito muito muito
bom. E dói olhar para ele, porque está
se matando e sabe disso.

Cuca meia-boca
Estou meio tonto, de ressaca. Ontem vi
a crítica da Veja sobre “O Ovo” —
aprovado, não é? Não fiquei contente,
não me pergunte porque (a tal “culpa
original”?). Depois vi meu conto na
Ficção, aí fiquei contente. Queria que
você lesse, é uma coisa muito louca.

Chega o Correio com um livro de Minas


(meu deus, como os mineiros escrevem)
—“O Globo da Morte”, de Hugo Almeida
Souza, um pra mim outro pra Jane (que
manda um beijo), abro ao acaso: “Faz
assim, cara: diga que tá legal, muito
bonito, colorido, sabe como? , (suas
mãos mexiam, o cabelo no olho), que o
anúncio dá vontade na menina de
comprar a porra aí, entende?”. Quem
mandou foi o Luiz Fernando Emediato,
que me dá um click! — esse-cara-é-bom.
Dudu quer ir para Minas, eu quero
conhecer Lucienne Samôr, também
quero ir pra Minas, Minas não existe
mais? Rosane-Luísa internou-se na ala
para indigentes do São Pedro, a
psiquiatra descobriu e recambiou-a
para a Melanie Klain. Procurem,
procurem.

Nei, houve um tempo em que a loucura


era coisa tão de poucos, lembro dos
loucos de rua de Santiago/Itaqui, e
gente assim mais fina só tinha uma
mulher, Dona Benvinda (!), mãe dum
amigo meu, Fernando, que tinha medo
de formiga e quase 20 anos depois
econtrei no El Mourisco,
desmunheecando muito — Benvinda
enlouquecia periodicamente e era
trazido pro São Pedro. Agora todo
mundo enlouquece a toda hora, já
estive louco, mas nunca numa clínica, o
que é uma desfaçatez da minha parte,
às vezes até entro numa que a minha
cuca é demais meia-boca, já que nunca
mereceu sequer uma clínica. Rosane, eu
não tive coragem de amar Rosane
como ela me pediu que eu a amasse
(sem pedir, entende?)

Nei, os amigos estão enlouquecendo,


alguns, outros indo embora, outros se
trancando em casa, outros ainda
bebendo muito, não interessa falar do
meu medo, mas ele existe e eu não sei
se o nosso grito adianta alguma coisa
contra tudo isso — adianta?
Gritarei/gritaremos sempre, mas as
coisas mudarão? Esta é uma karta
kaótica. Caparelli diz que todo verbo no
futuro é imbecil. Houve um tempo em
que pensei que tinha asas, houve um
tempo em que pensei que comigo seria
diferente. Tenho na memória imagens &
imagens de solteirões de bombachas
tomando mate nos degraus ao sol, no
inverno (sempre agosto), eu não sei
porque isso me ocorre agora, já caiu a
primeira geada e as bergamotas estão
muito doces. É isso aí. Ou não. Amanhã
continuo.

Retorno
1. Alguns verbos chamam a atenção,
como “bodiar”, gíria para algo baixo
astral e que já caiu em desuso (acho
eu). “Transar” tem mais de um
significado, pois podia, como é o caso
aqui, se referir a um encontro
recorrente com algum amigo ou
pessoa conhecida, um mergulho na
amizade, uma conversa que toma
tempo etc. E “trovar” é coisa de
gaúcho, é conversar muito, mudando
assim o sentido original, de declamar
versos de improviso numa roda de
galpão. 2. Pessoas queridas e amigos
meus são citados, como Claudio
Levitan, Emilio Chagas, Eduardo San
Martin e Sergio Caparelli. Publico
como Caio se referiu a eles naquela
época distante. Minha intenção aqui é
trazer Caio na íntegra e ele era
sempre carinhoso, mesmo quando
deixava transparecer alguma crítica.
3. Ci​tações: “Apaga o cigarro no
peito” é um verso de Gabriel Britto
Velho, que o Caio gostava muito de
citar; e há o “procurem procurem”
drummondiano; ambos são inseridos
por Caio nesta sua brilhante karta
kaótica, focada principalmente nos
escritores.

Porto Xarope: a carta que


Caio Fernando não
conseguia encerrar
Sigo publicando as cartas que Caio
Fernando Abreu enviou de Porto Alegre
(aqui identificado como Porto Xarope)
para mim nos anos 1970. Digitá-las uma
a uma, cuidando para que tudo saia na
íntegra como ele me enviou é um
exercício não apenas de memória, mas
de resgate de emoções soterradas,
paisagens perdidas, dias ocultos,
conversas que o vento tinha levado. Por
isso este processo é lento, intenso e
revelador. Vamos à carta.

Porto Xarope, 6. 6. 77
Nei,
eu hoje tô tão triste — não, eu tava,
agora já passou um pouco, porque eu já
cheguei em casa, fiz um mate e tô
ouvindo o Concerto de Bra(n)denburgo
de Bach (“poucos sabem que Johann
Sebastian Bach…”), um giorno de cane,
como costumam ser os dias nesta
cidade, especialmente para quem
trabalha na Folha da Manhã (tem coisa
pior). Tudo começou às 8h30 da matina,
tirando uma radiografia absolutamente
sádica de um dente — é assim: o cara
enfia ferrinhos nos canais abertos de
um dente até localizar o nervo. Quando
a agulha pica o nervo (e você se crispa
de dor) é preciso que o próprio
radiografado fique segurando uma
chapinha contra o dente até radiografar.
Brrrrr. Tudo bem: no mínimo duas
encarnações de karma a menos.

Depois o jornal e tanta, mas tanta gente


querendo falar comigo. Tem dias que
tenho vontade de escrever nas costas
da cadeira “hoje não estou para
ninguém” ou “seja breve” ou “genius at
Work” ou também “keep distance”. Fui
agressivo e desagradável com o San
Martin e com todo mundo. Tenho usado
botas — fisicamente e no sentido
figurado também. Por fim a Praça XV,
vir em pé no ônibus, como gado, um
passo à frente, outro mais — e aos
pedaços chegar em casa.

Eu queria ter te escrito antes. Tinha


POTES de trabalho. Me descontaram
cerca de uma milha e quinhentos da
quinzena, recebi só 900 e só de aluguel
tinha 950. Fiquei com menos 50 até o
dia 15. Queixas, queixas. A portaria da
censura prévia aos livros, jornais &
revistas estrangeiros. O negócio do
INPS, não tem mais direito a
atendimento (embora continue
descontando) quem ganha mais do que
a monumental quantia de três salários
mínimos. O quebra-pau em belo
Horizonte. E coisas que não sei, porque
não li e ninguém me disse. E um
cansaço, e uma sensação de estar
escorregando (não individual) prum
negócio escuro.

As batalhas de todo-dia parecem


inglórias. Claro que a gente insiste.
Tenho comprado brigas: esta semana
devo falar, quarta, no Clube de Cultura
e, na sexta, em Pelotas. Quero “dizer
coisas”. Não sei se posso, se devo —
mas tô evitando me omitir e, na medida
do possível, através das matérias que
faço ou desses papos que pintam ir —
que pretensão — pelo menos alertando
as pessoas para o HORROR que taí em
volta delas e pra necessidade —
urgente, urgente — de modificar as
coisas.

Ô Nei, não temos nenhum líder,


nenhuma ideologia que preste, nós
estamos sendo roubados, estuprados e
assassinados lentamente, todos os dias.
Eu ando cheio de raiva. Acho que todo
mundo. E de impotência. E de vontade
de agir de uma maneira mais eficiente,
mais real, mais imediata. Porque
NINGUÉM a não ser pessoas como nós
vai fazer porra nenhuma para modificar
essa merda toda. A gente não pode, não
deve, não tem o direito de se omitir.
Apesar das limitações pessoais, das
dores individuais ou da própria pele a
defender. Que talvez valha muito pouco
neste momento.

Pausa. Tomo mate, ouço Bach, fumo


Carlton.

Individualmente, tudo — digamos —


bem. Cheguei daí com uma energia
incrível. Eu tava todo amortecido aqui,
eu só tinha dor e um nojo constante de
tudo, de todos, um desprezo, um
desgosto. Isso aí me sacudiu, a partir da
ansiedade mesmo das pessoas, da
crispação das situações, do desespero
gritante de todo mundo. E Julio, teve
Julio. Foram 12 dias de convivência
intensa, 24 horas por dia.

Quando cheguei aqui me faltava um


membro, uma metade de cérebro. Doeu
muito. Tomei meio vidro de Vegostesil (é
ótimo) e dormi 16 horas. Depois fui
aterrissando aos poucos, e perdendo
energia, e voltando aquele desgosto,
aquela náusea, e contração no canto da
boca. Mas tô resistindo, che. E tento me
querer bem apenas por isso — por
insistir e resistir. Nem sempre consigo.

Sábado faz uma semana que me mudei.


Desde que tinha proclamado minha
independência ou me auto-parido, em
novembro, tava morando num
apartamento em pleno centro
(Jerônimo Coelho) onde a paisagem
onde a paisagem
(onde a paisagem)
onde há pais agem

Passou um tempo. Agora é quase meia


noite. Eu jantei, fumei, bebi vinho
(pouco), conversei com Gui e Graça
Medeiros, depois chegou Sandra — e
tantas coisas se passam, na real-de-
fora e na da-mente-de-dentro-tão-real-
quanto. Ô Nei, ás vezes eu fico tão
confuso. Agora tô meio chapado e acho
que antes estava tentando dar umas
coordenadas objetivas da minha vida,
mas agora eu fico me perguntando se
têm importância. Suponhamos que sim.

Aí continuo a te contar. Retome a


página anterior, na parte (…Coelho)
onde a paisagem — bem a paisagem
lãs era um paredão de concreto. Agora
estou numa casinha, em Petrópolis, com
terra e pátio. Tento me adaptar. De
qualquer forma, anyway, me adaptaria.
Mas teve coisas/tem coisas boas.

Eu não sei. Mas passa pela cabeça que


isso não interessa, e me dá vontade de
reler tudo o que te escrevi antes para
tentar pegar algum sentido. Mas é tão
partido. Ô Nei, eu tenho ficado tão
confuso. Tem uma divisão aqui — uma
querendo fugir a todo vapor a qualquer
compra de qualquer barra e uma outra
onipotente, querendo ficar no controle
de absolutamente todas as emoções,
sensacionais, situações.

Tenho planos. Acho um pouco


temerário? utópico? fantástico?
escapista? ainda ter planos a esta altura
do campeonato, mas — que se á de
fazer? — tenho. Tem uma coisa contra a
cidade, contra a moral local, estadual,
contra a burrice, a estreiteza e a
mediocridade crescendo. Há uma
possibilidade de conseguir um registro
profissional no Sindicato. Ainda não foi
possível ir lá (dentista todas as
manhãs), mas eu gostaria de cair daqui
depois de julho. Acho que esta casa
para onde vim e todas as barras que
possivelmente pintarem nela — boas
ou/e más — devem ser transadas. Mas
eu quero ir. Ô Nei, eu sinto um sufoco
terrível.

Me escapam queixas, chicotinhos


autopunitivos.

Foi bom e quente ver você. Depois, na


tua casa, eu fiquei achando que a vida
de vocês tá bastante dura. Que era uma
vida muito nua. A partir das paredes da
casa, dos poucos móveis — de tudo o
que há (ou que não há) de objetos
dentro dela. E que isso me dava uma
outra face tua. Como te ver no jornal
também me dava. E me ocorre que —
porra, que troço mais literário — que as
pessoas são um pouco quebra-cabeças
que você vai juntando pedaço por
pedaço (às vezes misturando dois ou
mais jogos diversos e fazendo
confusões medonhas, ou tentando
freneticamente encaixar peças que
absolutamente não cabem nos espaços,
ou — tanta coisa). Me confundo nessas.

Enquanto te escrevo, me passa uma


idéia ubaldiana na cabeça: até que
ponto é inviolável tudo isso que digo
aqui? (*) Outro dia — há uma semana —
recebi uma carta de Madri que foi
colocada no correio dia 12 de dezembro
de 1976!

Mas não importa muito. Acho que já te


disse que ando meio agressivo — tenho
pensado que não existe nada
absolutamente inconfessável.

Quando eu voltava pra casa, hoje, ao


descer do ônibus, quando ia cruzar na
frente de uma garagem — de dentro da
garagem saiu uma moto em alta
velocidade, com um garoto em cima,
passou zunindo na minha cara e
espatifou-se contra o poste da calçada
oposta. Eu não parei pra olhar.

É meia-noite, a minha cuca não tá


rendendo mais nada, tô dispersando e
confundindo. Ô, Nei, eu queria te dar um
grande abraço — tem um jeito disso não
soar forçado? — aquele dia em que
você entrou na sala Vladimir Herzog me
deu um ufa! interno. Eu acho que vou
cair enseguida nessa briga aí, pra dar
um jeito de enseguida cair pra outra
fora daqui. Brigas, brigas. Eu quero te
mandar um poema aqui do fim, tem a
obra completa de Mario de Andrade
aqui na minha frente. Vemos ver o que
ele sugere: (abriu nos poemas de amiga,
já está viciado)

VI
Nós íamos calados pela rua
e o calor dos rosais nos salientava tanto
que um desejo de exemplo me
inspirava, e você me aceitou por entre
os santos.

Erguer do chão um toco de cigarro,


fumá-lo sem saber por que boca
passou,
a terra me eriçava a língua e uma saliva
seca
poisando nos meus lábios molhados
renasceu.

Todos os boitatás queimavam minha


boca
mas quando recomecei a olhar, oh
minha doce amiga,
os operários passavam-se todos para o
meu lado,
todos com flores roubadas na abertura
da camisa…

O Sol no poente, de novo auroral e


nativo,
fazia em caminho contrário um dia
novo,
e as noites ficaram luminosamente
diurnas,
e os dias massacrados se esconderam
no covão duma noite sem fim

Dá um beijo na Ida, outra nos petizes


(petizes é bom, não é?). Dá um abraço
no Moacir Amâncio e anota lá a direção,
che: Rua Chile, 661, 90000 Petrópolis,
Porto Alegre (o CEP deveria vir após
Petrópolis, e não antes — a minha
objetividade às vezes também marca).

Agora abri de novo o Mario de Andrade


e peguei ele “sonetizando” lindo. Che,
veja estes, a La Augusto dos Anjos (que
tenho lido muito):

“Vou fazer do meu fim minha


esperança,
Oh sono, vem!…Que eu quero amar a
morte
com o mesmo engano com que amei a
vida”.

Tô espichando para terminar. Julio


(Santa Hoerst) tem me escrito muito.
Tem pintado baixezas & vilezas na
história do livro do Pasquim
absolutamente vergonhosas. Um pouco
por isso, também, a minha cuca está um
pouco descacetada. Me dá uma puta
decepção e uma certeza de novo que a
política-dos-bastidores-literários é,
realmente, de vomitar.
Blllleeeeaaaarrrrggghhhh! (não é assim
vômito de HQ?). A minha cuca tá cheia
de idéias pra escrever, mas eu não
tenho ousado. Li a entrevista do Ferreira
Gullar no Pasquim (leia o poema dele
chamado Alegria no Anima nº 2 — achei
ele aqui — e ele diz que agora só
escreve quando é pressionado por
alguma coisa interna muito forte.
Comigo tem sido assim, não sei se é
uma desculpa para a minha falta de
método. Esse poema do Gullar aí me
incendiou por uns três dias, é uma barra
de lucidez meio alucinante, veja:

“O sofrimento não tem


nenhum valor.
Não acende um halo
em volta de tua cabeça, não
ilumina trecho algum
de tua carne escura
nem mesmo o que iluminaria a
lembrança
ou a ilusão
de uma alegria)
Sofre tu, sofre
um cão ferido, um inseto
que o neocid envenena.
Será maior a tua dor
que a daquele gato que viste
a espinha quebrada a pau
arrastando-se a berrar pela sarjeta
sem ao menos poder morrer?
A justiça é moral, a injustiça não.
A dor te iguala a ratos e baratas
que também de dentro dos esgotos
espiam o sol
e no seu corpo nojento
de entre fezes
querem estar contentes.

Esse é A Alegria. (definitivamente não


estou conseguindo encerrar esta carta).
Sábado foi o aniversário do Dudu SM
(Dudu SM é um bom nome prum
personagem. Não?). A gente fez um
jantar aqui e tentou fazer com que com
que — quem sabe? — as coisas ficassem
um pouco legais, pra todo mundo. Foi
meio crispado, meio o final desse
poema. Acho que é assim quase
sempre. Ou sempre, não sei. Magra
Jane vai sexta embora para o Rio. Eu
acho ótimo. A cidade, ô Nei, a cidade. O
jornal, ô Nei, o jornal.

Mas o inverno, tem frio chegando e aqui


em Petrópolis um céu incrível. Que eu
quase nem olho, mas quando olho é
bom. Vi um filme absolutamente lindo: A
História de Adele H., de Truffaut, um
amor alucinado, romantismo louco, uma
paixão levada ao limite da loucura. Dá
uma grandeza pros sentimentos
humanos.
Sei lá.

Um beijo. Não escreve se tu não puder


ou não tiver tempo. Tudo bem.
Até
Caio

Retorno
Tempo brabo de censura, Caio se
preocupava com a inviolabilidade das
cartas em relação à interferência da
ditadura e não ao eventual segredo
contido nelas. 2. O carinho de Caio
por mim e minha família é uma
presença recorrente e marcante em
todas essas cartas, assim como a
relação afetiva que tínhamos, como
dois escritores em pleno processo de
criação. 3. Pessoas queridas citadas
estão aqui como Caio se referiu a
elas, sempre do seu jeito literário de
ser, considerando cada uma como
um personagem. O meu personagem,
vê-se nessa carta, era um pouco
desafiante e por toda a
correspondência interagimos como
duas pessoas próximas e ao mesmo
praticamente desconhecidas.

Carta de uma data


adivinhada
Da solidão à epifania, esta carta que
Caio escreveu para mim em data
incerta, mas determinada (vejam por
que logo no início) percorre as
dificuldades que enfrentávamos na
época, como desemprego, projetos
frustrados, amores que se esvaziam,
relacionamentos que acabam, dor de
cabeça que não passa. Começa
mostrando como se fazia nos anos 1970:
ia-se pessoalmente à redação levar o
texto para ser publicado. Não tinha essa
moleza de e-mail. E não era um lugar
qualquer, mas na mais profunda
Marginal do Tietê, na redação da “Veja”.
Ia-se a pé, ou seja, de ônibus. Assim
vivíamos naquele tempo heroico. Caio
mostra com todas as letras o que se
passava na época. Destaque para a
história ótima com Mario Quintana.

Porto, acho que 23. 11. 77


Nei,
tanto silêncio meu que, eu sei, pode ter
soado a desamor. Não foi não, só um
acúmulo de coisas internas e externas,
lançamento de livro, insegurança,
medos, bodes e bodes que não vale a
pena enumerar. Mas hoje pensei forte
em você porque fui na sucursal da Veja
levar — depois de muita marcação
— uma resenha que o Humberto
Werneck tinha pedido sobre “A Vaca e o
Hipogrifo”, do Mario Quintana – e que eu
abri citando aqueles versos seus, o
dinossauro, a borboleta, é incrível como
ele dinossaureia e borboleteia nos
textos. Depois levei na Folha a minha
página de quinta, estou só com duas
páginas, agora uma às segundas,
outras às quintas, sobre o que eu quiser,
depois fui no psiquiatra e saí tão
desantenado (demônios novos na
roda…) que não suportei sequer a idéia
de tomar um ônibus na Praça XV e
voltar pra casa.Daí fui ver um filme
qualquer, meu deus, uma
pornochanchada grossíssima, “Gen​te
Fina é Outra Coisa”, do Calmon, que já
fez coisa boa, e saí mais desantenado
ainda e na rua tava uma puta agitação
com a história de terremoto no interior.
Só li as manchetes, meio apavorado,
apocalíptico demais, acabei
enfrentando a Praça XV, a casa vazia,
eu e Tigra, ,cozinhei, lavei pratos e
panelas, fiz um chá de cidró-hortelã-
funcho colhidos no quintal, que to
tomando agora, dez e meia da noite e
uma pontada do lado esquerdo da
cabeça, que não me larga faz dias.

E eu tava no meio da comida quando


me dei conta que tinha começado a
chorar e a repetir meio dementemente
“tudo-faz-tanto-tempo-tudo-faz-tanto-
tempo”, talvez em parte um efeito
colateral da matéria enorme sobre o
Tropicalismo que li ontem em parte uma
sensação presente, cada vez mais, e
mais constante, de qualquer coisa como
estar-ficando-velho, ou já ter atrás de
mim uma história dessas com agá
mesmo. E uma solidão muito grande. E
uma sede. E uma vontade de ir embora,
obsessiva, esgotante. E uma falta de
coragem. E um desgosto com a cidade
semi-destruída, com as pessoas
esvaziadas e semi-destruídas também
(e eu nem sequer me excluo disso).

Me olho no espelho e vejo uma cara


endurecendo dia a dia, uma falta de
espanto nos olhos. Não faço nada. Um
dia engendra o outro, sem alegria,
desde que voltei. E quando andei por aí
parecia tudo tão novo, me veio outra
vez uma curiosidade pelo mundo, um
carinho pelas pessoas, uma vontade de
continuar vivo, de lutar, de seguir. As
águas estagnadas de escorpião deste
porto parecem fazer dueto com o zero
grau do meu escorpião ascendente.
Meu deus (há poucos dias fiz uma
grande descoberta: deus está na
clínica), quanta queixa sem ponto de
exclamação. Por isso também tava
evitando escrever, porque sabia que a
torneira ia abrir e jorrar água barrenta.

Me conta de você, Ida, de Daniel e Ju


Jaegger, das batalhas pela nova casa
(espero que ainda esteja aí na antiga,
senão essa carta vai se perder). Vocês
foram tão bonitos comigo quando
estive aí, não agradeci porque sou sem
jeito pressas coisas, mas tinha um
agradecimento implícito que acho que
foi percebido. Olha, se eu continuar
escrevendo, vou continuar me
queixando, então vou te mandar este
poema do César Vallejo, que eu gosto
muito. Lá vai:

ESPERGESIA

Yo nací un día
que Dios estuvo enfermo.

Todos saben que vivo,


que soy malo; y no saben
del diciembre de ese enero.
Pues yo nací un día
que Dios estuvo enfermo.

Hay un vacío
en mi aire metafísico
que nadie ha de palpar:
el claustro de un silencio
que habló a flor de fuego.

Yo nací un día
que Dios estuvo enfermo.

Hermano, escucha, escucha…


Bueno. Y que no me vaya
sin llevar diciembres,
sin dejar eneros.
Pues yo nací un día
que Dios estuvo enfermo.

Todos saben que vivo,


que mastico… y no saben
por qué en mi verso chirrían,
oscuro sinsabor de ferétro,
luyidos vientos
desenroscados de la Esfinge
preguntona del Desierto.

Todos saben… Y no saben


que la Luz es tísica,
y la Sombra gorda…
Y no saben que el misterio sintetiza…
que él es la joroba
musical y triste que a distancia denuncia
el paso meridiano de las lindes a las
Lindes.

Yo nací un día
que Dios estuvo enfermo,
grave.

Uma força grande pro vestibular da Ida.


Agradeça por mim ao Moacir Amâncio
a publicação da entrevista, e diga que to
esperando a Estação dos Confundidos.
Falar nisso, pedi ao Mangarielo que te
levasse um exemplar das Pedras.
Levou? Se não levou, dede ele pra mim.

A pontada na cabeça continua. Não


consigo parar de escrever. Ocê me
agüenta mais algumas laudas? Podia
ser assim:

Yo naci um dia
que Dios estuve loco,
despelotado

Produzindo (é a palavra) as páginas pra


Folha, veio um lado bom — não-ir à
redação — e um lado mau, me esgotar
pra parir textos imbecis praquele jornal
imbecil. Veja só: fui escrever mau e
escrevi meu : lapso freudiano, típico.
Sandra e Gui chegam, semi-demolidos,
foram assistir “Face to Face”…

Às vezes tenho vontade de dormir até 1º


de janeiro de 1978. Andei tão mas tão
paranóico que parei de fumar e de
beber. Fiquei inteiramente careta. A
última vez que fumei, me deu um
nervoso tal que mudei de lugar todos os
moveis do quarto e fiz uma puta faxina:
eram cinco da matina quando terminei.
O que eu diria dessa coisa que não dá
mais pé? Nada: em boca fechada não
entra mosca. El Zwetsch mandou o Vício
da Palavra, que distribuí por aqui,
preciso escrever a ele, pero no hay saco,
fiquei coma puta rejeição do livro-
guardei um exemplar pra mim sem
conseguir ler nada.

Aristides Klafke passou por aqui, ficou


uns dias aqui em casa, foi bom, uma
cuca nova! acho que sou meio vampiro
de cucas, depois se mandou pra
Montevidéu pra ver dois amigos.
Sábado chegou um cartão dele: os dois
amigos estão presos há três meses, sem
perspectiva de serem soltos…Soube pelo
Julio que ocê teve no Rio, pro
lançamento do Torpalium. Ele
vezenquando escreve cartas
dementíssimas, ótimas, e eu fico
pensando que podia ter sido diferente,
se ele não fosse assim como é e se eu
não fosse assim como sou, estás a ver
que já parto de uma premissa
impossível. Mas.

Pifa voltou de Vitória pra pegar no meu


pé. Vai ficar aqui até o fim deste mês.
Transei um pouco, depois destransei,
cansei, bodiei. Detesto a sensação de
“ter compromisso” com alguém. Mas a
solidão rói, dói, mói, como diz a Lara de
lemos. Estou tentando me organizar
para ir embora: decidi (teoricamente,
até agora) dar uma injeção de
adrenalina na minha Cader​neta de
Poupança (por en​quanto tenho 50
pilas!), mas sofro ataques cotidianos
fortíssimos de bundamolismo. Magliani
voltou triste. Bem, Magliani é triste, mas
voltou mais ainda, dizendo que a barra
do desemprego tá pesada . Me cansei,
desisti, se há sorte? eu não sei, nunca vi.
Vontade de ver um filme de vampiro.
Você tem a “Vaca e o Hipogrifo?” Se
não tem diz, que te mando. O Mario
Quintana lá pelas tantas diz que adora
filme de vampiro. Quando eu tava
autografando as “Pedras” ele entrou na
fila para apanhar um autógrafo. Eu
abanei o rabo de puro contentamento, e
disse: “O título do livro é de um poema
seu”. Ele agitou as asas de borboleta,
fixou em mim os olhos de dinossauro e
soltou: “Eu sei. Foi só por isso que
comprei”. Achei marioquintanamente
ótimo.

Você tem alguma receita pra gente


mudar de vida? E pra tomar decisões? E
para mudar de personalidade? E para
flagrar-se? E para pagar o karma em
suaves prestações? E pra desorientação
aguda, você tem? Se tiver, me passa
que eu preciso. Se não tiver, me escreve
e me dá um corte. Vontade, também, de
tomar uma Brahma contigo e ouvir
Carmélia Alves. Any​way, um beijo.
Segura as pontas daí que eu seguro as
daqui. E não se preocupe: Deus estaria
conosco até o pescoço, se não estivesse
na divisão Melanie Klein.

Te gosto.
Sempre. Caio

Retorno

1. Mario Quintana: gosto de contar a


história desse poema que fiz para ele
e que contém forte dose de Caio, que
trabalhava conosco a edição do meu
livro de estreia “Outubro”. O poema é
este: Olhem o antípoda/ olhem o
animal da palavra/ É um dinossauro
na cidade de vidro/ borboleta branca
na floresta queimada/ Respei​tem seu
andar/ e desconfiem com temor/ de
sua conversa fiada/ Ele é o flagelo
do Senhor/ e vocês não sabem”. De
que se trata? perguntou Caio. É para
o Mario Quin​tana, falei. Mas então
por que você não põe o nome dele
no título, para ficar claro?. 2. Pedras é
“Pedras de Calcutá”; O ovo, “O Ovo
Apunha​lado” 3. Na borda da lauda,
um recado a caneta: “Teu aniversário
passou: eu não esqueci: Parabems”
(com o m imitando o símbolo de
escorpião).
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As razões certas para Sabe o ódio que


se esfaquear um ser espalhamos por aí?
humano Daqui a pouco ele
volta…

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