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As cartas perdidas de
Caio Fernando Abreu
As Cartas
Porto, 2. 8. 76
Nei:
Nosso velho conhecido — Mr. August —
chegou ontem, vestido a caráter: aquele
velho terno cinza muito molhado, e tão
velho que já tem algumas manchas de
limo. Agora é preciso hospedá-lo por 29
dias. E resistir, já que ele insiste sempre
em nos puxar para dentro e para baixo.
Resistiremos.
Retorno
Foi assim, naquele distante agosto,
que Caio me falou de suas leituras,
seus planos, seu trabalho, suas faltas
e me informou sobre o elogio do
Quintana para o poeta estreante. E se
despediu beijando as três pessoas da
minha família, mulher e um casal de
filhos (o terceiro veio dois anos mais
tarde). Deus guarde Caio, que entre
nós cultivou a amizade sincera e a
proximidade solidária e calorosa.
Porto 4. 7. 76
Nei:
Te escrevi acho que faz umas duas
semanas, um pouco menos. Você ainda
não respondeu, e tudo bem, não se
preocupe nem se apresse. Soube pelo
Dudu (o San Martin, não o “Magic
Stone”, que é meio chatinho) que você
saiu da Folha de São Paulo — ou que te
saíram, digamos assim. Sempre as
sacanagens inesperadas, não é? Então
imagino que você deva estar um pouco
envolvido com a batalha de grana ou de
novo emprego, e, sei lá, espero que tudo
já tenha se resolvido ou, pelo menos,
que você esteja levando na melhor
possível, sem bodiar com isso.
Tô te escrevendo por três motivos,
principalmente.
Retorno
1. Sobre personalidades: é a opinião
do Caio, que deixo aqui na íntegra. 2.
Gostei muito da resenha do Antonio
Hohfeldt. 3. “Teia” e “Há Margem” são
dois livros coletivos de contos e
poemas que foram publicados
naquela época em Porto Alegre. 4.
Pedi demissão da “Folha” para
trabalhar na “IstoÉ” onde, aí sim, me
saíram. 5. “Outubro” é meu livro de
estreia, publicado pelo Instituto
Estadual do Livro — RS em que Caio
foi um dos consultores: era preciso
três aprovações — uma outra foi do
Irmão Elvo Clemente, da PUC. 6.
Wladyr Nader escancarou as páginas
da “Escrita” para minhas resenhas. 7.
Caio datilografou todos os poemas
citados da Adélia Prado. Não
reproduzo aqui porque tomaria muito
espaço. 8. Pelo mesmo motivo só
reproduzo a primeira, a segunda e a
última página da carta. As outras
contém reproduções dos poemas de
Adélia. Ao todo, são três folhas
escritas na frente e no verso.
Ao som de Belchior
Nei:
Salve: hoje to tomando chá com limão e
ouvindo Belchior: “eu sou apenas um
rapaz latinoamericano/ sem dinheiro no
banco/ sem parentes importantes/e
vindo do interior”. Eu também. Grilei com
a crítica e as cartas-pixativas de
“Escrita” — ainda não chegou aqui — sei
lá, to numa fase de análise em que fico
me achando um lixo (apaga o cigarro
no peito), outras putas-velhas-de-divã
dizem que é-assim-mesmo and I hope
so, daí fica pintando esse tipo de coisa e
só piora, não é? Sabe que desde janeiro
não escrevo NADA? Foi em janeiro que
começou essa badalação em torno do
Ovo, que me fez muito mal, tanto a
positivo como a negativa — já não
tenho naturalidade para escrever. Além
disso inútil.
Esquina maldita
Mas, como eu ia dizendo — depois de
mais de um mês, ontem, fui à Esquina
Maldita procurar Emílio Chagas. Bem foi
inevitável, tomamos um pileque épico.
Hoje acordei ruim, gosto de cabo-de-
guarda-chuva na boca & culpa: ando
bebendo muito. Horrível, não é? Eu
acho, também, mas é difícil evitar,
principalmente agora que começou a
esfriar, de noite dá aquela necessidade
de coisas quentes você sai por las
calles, aí vêm as brahmas, os vinhos, os
conhaques, as cachaças. E é engraçado,
quando a gente tá bebendo com
alguém chega num ponto em que
parece que vai acontecer alguma coisa
(ninguém sabe exatamente o que), e
que para essa alguma-coisa acontecer
mesmo é preciso beber um pouco mais.
Daí você pede — e então a coisa
começa a se decompor. Nada acontece,
o porre começa a pintar & a mosca
pousa na sopa fria.
Cuca meia-boca
Estou meio tonto, de ressaca. Ontem vi
a crítica da Veja sobre “O Ovo” —
aprovado, não é? Não fiquei contente,
não me pergunte porque (a tal “culpa
original”?). Depois vi meu conto na
Ficção, aí fiquei contente. Queria que
você lesse, é uma coisa muito louca.
Retorno
1. Alguns verbos chamam a atenção,
como “bodiar”, gíria para algo baixo
astral e que já caiu em desuso (acho
eu). “Transar” tem mais de um
significado, pois podia, como é o caso
aqui, se referir a um encontro
recorrente com algum amigo ou
pessoa conhecida, um mergulho na
amizade, uma conversa que toma
tempo etc. E “trovar” é coisa de
gaúcho, é conversar muito, mudando
assim o sentido original, de declamar
versos de improviso numa roda de
galpão. 2. Pessoas queridas e amigos
meus são citados, como Claudio
Levitan, Emilio Chagas, Eduardo San
Martin e Sergio Caparelli. Publico
como Caio se referiu a eles naquela
época distante. Minha intenção aqui é
trazer Caio na íntegra e ele era
sempre carinhoso, mesmo quando
deixava transparecer alguma crítica.
3. Citações: “Apaga o cigarro no
peito” é um verso de Gabriel Britto
Velho, que o Caio gostava muito de
citar; e há o “procurem procurem”
drummondiano; ambos são inseridos
por Caio nesta sua brilhante karta
kaótica, focada principalmente nos
escritores.
Porto Xarope, 6. 6. 77
Nei,
eu hoje tô tão triste — não, eu tava,
agora já passou um pouco, porque eu já
cheguei em casa, fiz um mate e tô
ouvindo o Concerto de Bra(n)denburgo
de Bach (“poucos sabem que Johann
Sebastian Bach…”), um giorno de cane,
como costumam ser os dias nesta
cidade, especialmente para quem
trabalha na Folha da Manhã (tem coisa
pior). Tudo começou às 8h30 da matina,
tirando uma radiografia absolutamente
sádica de um dente — é assim: o cara
enfia ferrinhos nos canais abertos de
um dente até localizar o nervo. Quando
a agulha pica o nervo (e você se crispa
de dor) é preciso que o próprio
radiografado fique segurando uma
chapinha contra o dente até radiografar.
Brrrrr. Tudo bem: no mínimo duas
encarnações de karma a menos.
VI
Nós íamos calados pela rua
e o calor dos rosais nos salientava tanto
que um desejo de exemplo me
inspirava, e você me aceitou por entre
os santos.
Retorno
Tempo brabo de censura, Caio se
preocupava com a inviolabilidade das
cartas em relação à interferência da
ditadura e não ao eventual segredo
contido nelas. 2. O carinho de Caio
por mim e minha família é uma
presença recorrente e marcante em
todas essas cartas, assim como a
relação afetiva que tínhamos, como
dois escritores em pleno processo de
criação. 3. Pessoas queridas citadas
estão aqui como Caio se referiu a
elas, sempre do seu jeito literário de
ser, considerando cada uma como
um personagem. O meu personagem,
vê-se nessa carta, era um pouco
desafiante e por toda a
correspondência interagimos como
duas pessoas próximas e ao mesmo
praticamente desconhecidas.
ESPERGESIA
Yo nací un día
que Dios estuvo enfermo.
Hay un vacío
en mi aire metafísico
que nadie ha de palpar:
el claustro de un silencio
que habló a flor de fuego.
Yo nací un día
que Dios estuvo enfermo.
Yo nací un día
que Dios estuvo enfermo,
grave.
Yo naci um dia
que Dios estuve loco,
despelotado
Te gosto.
Sempre. Caio
Retorno
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