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Aprendei dos lírios dos campos...

Apontamentos para uma espiritualidade


ecológica a partir da Laudato Si’
Introdução
Devo confessar, inicialmente, meu enorme apreço pelo Papa Francis-
co, apreço que antecede o sentido do afeto colegial e o reconhece como o
Francisco da pós-modernidade, enviado por Deus para ajudar a “recons-
truir a Igreja” no início do terceiro milênio. Identifico nele os traços con-
ciliares do Vaticano II a relocar a centralidade de Jesus Cristo como Lumen
Gentium (Luz dos Povos) e a reposicionar a Igreja em seu lugar profético-
sacramental no mistério da salvação. Embora seja ele o primeiro papa
pós-Vaticano II a não ter participado do Concílio, Francisco tem uma
alma conciliar a nos provocar constantemente. Ele tem se demonstrado
verdadeiramente o homem do diálogo na disposição de se encontrar com
todos que o procuram e de escutá-los. Na simplicidade visível de seu estilo
de vida e da coragem de suas opções, ele tem recuperado para a Igreja a
diaconia quotidiana aos pobres e mais frágeis. Portanto, considero o mo-
mento histórico eclesial como muitíssimo fecundo. E oro com o Papa,
pedindo: “Virgem e Mãe Maria, alcançai-nos agora um novo ardor de res-
suscitados para levar a todos o Evangelho da vida que vence a morte. Dai-
nos a santa ousadia de buscar novos caminhos para que chegue a todos o
dom da beleza que não se apaga” (EG 288).1
Dito isto, quero recordar dados da história recente. Bispos, coordena-
dores diocesanos de pastoral, presbíteros e leigos/as das dioceses do Regio-
nal Leste 2 da CNBB – Minas Gerais e Espírito Santo –, reunidos em
Assembleia Ordinária em novembro de 2015, debruçaram-se sobre o texto
da Carta encíclica Laudato Si’,2 para estudá-lo e escutar as suas interpela-
ções. O trabalho foi fecundo e, naquela manhã de 5 de novembro, o Re-
gional Leste 2 definiu três urgências pastorais para o quadriênio 2015-2019.
A terceira delas, assim está descrita:
Urgência 3: Cuidado com a Casa Comum. Aplicação da Laudato Si’: fomen-
tar reflexões e ações sobre as questões ecológicas do Regional: mineradoras,
recursos hídricos e outros, na cultura do cuidado com a ecologia integral.

1. FRANCISCO, Papa. Exortação Apostólica Evangelii gaudium. Sobre o anúncio do evangelho


no mundo atual. São Paulo: Loyola; Paulus, 2013. Para a citação dos parágrafos usar-se-á a sigla EG.
2. ID. Carta encíclica Laudato Sì. Sobre o cuidado da casa comum. Brasília: Edições CNBB, 2015.
Para a citação dos parágrafos usar-se-á a sigla LS.
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“O urgente desafio de proteger a Casa Comum inclui a preocupação de


unir toda a família humana na busca de um desenvolvimento sustentável
e integral, pois sabemos que as coisas podem mudar. O Criador não nos
abandona, nunca recua no seu projeto de amor, nem Se arrepende de nos
ter criado (LS 13)”.
A Assembleia encerrou-se com o almoço. Exatamente na tarde daquele
mesmo dia, enquanto os participantes da Assembleia regressavam às suas
dioceses, espalhou-se pelo Brasil e mundo afora a triste e terrível notícia do
rompimento da barragem da Samarco em Bento Rodrigues, município de
Mariana em Minas Gerais. A lama de dejetos deixou um rastro de destrui-
ção jamais visto. Ceifou vidas humanas. Desagregou laços sociais. As con-
sequências dessa tragédia são bem conhecidas da população de Mariana e
regiões vizinhas, assim como de toda a bacia do Rio Doce. O que poderia
ser identificado como uma mera coincidência entre a indicação pastoral do
Regional Leste 2 e o maior crime ecológico ocorrido no Brasil, no seio da
Igreja primaz de Minas Gerais, pode ser compreendido como um grito
da Terra, como o clamor da natureza vilipendiada pela ação voraz do lucro,
como um sinal dos maus-tratos impetrados à “casa comum”, grito esse di-
rigido especialmente à Igreja do Regional. Já se passou mais de um ano, e a
lentidão da justiça brasileira mostra o descaso com que se trata não apenas
a terra, mas, sobretudo, os pobres.
Falar da Laudato Si’ tem, portanto, um significado muito especial, seja
pela urgência da questão das cidades feridas pela falta de cuidado com a
casa comum, seja pela missão que todos – cristãos e não cristãos, homens
e mulheres de boa vontade – têm de contribuir, para que não se repita essa
destruição em nenhum outro lugar.
A Laudato Si’ traz um conjunto de reflexões que se desdobram e pedem
tempo e aprofundamento. Aqui delimito, a partir de um recorte, o tema
da espiritualidade ecológica. Fiz esta escolha por considerá-la uma contri-
buição urgente e qualificada para agentes de pastoral, sejam eles ministros
ordenados ou leigos/as. Sirvam as palavras do Papa Francisco para aler-
tar-nos dessa importância:
“quero mostrar desde o início como as convicções da fé oferecem aos cris-
tãos – e, em parte, também a outros crentes – motivações altas para cuidar
da natureza e dos irmãos e irmãs mais frágeis. Se pelo simples fato de ser
humanas, as pessoas se sentem movidas a cuidar do ambiente de que fazem
parte, ‘os cristãos, em particular, advertem que a sua tarefa no seio da cria-
ção e os seus deveres em relação à natureza e ao Criador fazem parte da sua
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fé’. Por isso, é bom, para a humanidade e para o mundo, que nós, crentes,
conheçamos melhor os compromissos ecológicos que brotam das nossas
convicções” (LS 64).
A presente reflexão está organizada em três passos. Em primeiro lugar,
uma visão panorâmica da Laudato Si’. Em seguida, uma rápida exposição
sobre a espiritualidade como experiência do seguimento de Jesus. E, como
terceiro passo, apontamentos para uma espiritualidade ecológica. Na breve
conclusão, insistirei sobre a importância de algumas atitudes que podem
fazer diferença no estilo de vida dos cristãos em meio a um mundo marcado
pela voracidade do consumo e de pessoas apressadas e autorreferenciadas.

1. Visão panorâmica da Laudato Si’


A segunda carta encíclica do Papa Francisco foi assinada na solenidade
de Pentecostes do ano 2015, precisamente no dia 24 de maio, e se intitu-
la Laudato Si’. Sobre o cuidado da casa comum. É a primeira vez que um
Papa dedica toda uma encíclica ao tema ecológico, embora existam muitos
pronunciamentos dos papas anteriores sobre essa questão. Encíclica é uma
carta aberta que o Papa endereça a toda a Igreja. Mas o Papa Francisco vai
além do ambiente eclesial e diz:
“... à vista da deterioração global do ambiente, quero dirigir-me a cada
pessoa que habita neste planeta. Na minha exortação Evangelii Gaudium,
escrevi aos membros da Igreja, a fim de mobilizá-los para um processo de
reforma missionária ainda pendente. Nesta encíclica, pretendo especial-
mente entrar em diálogo com todos acerca da nossa casa comum” (LS 3).
Título e subtítulo chamam bastante atenção. Laudato Si’ é uma explí-
cita referência, na língua italiana, ao Cântico das Criaturas de Francisco
de Assis e conhecido universalmente. “Sobre o cuidado da casa comum”
é uma expressão objetiva sobre o conteúdo da carta, numa perspectiva de
diálogo com todos os povos e culturas ao reconhecer a Terra como “casa
comum” e “o urgente desafio de [...] unir toda a família humana na busca
de um desenvolvimento sustentável e integral” (LS 13). O Papa lança
“um convite urgente a renovar o diálogo sobre a maneira como estamos
a construir o futuro do planeta. Precisamos de um debate que nos una a
todos, porque o desafio ambiental, que vivemos, e as suas raízes humanas
dizem respeito e têm impacto sobre todos nós. [...] Precisamos de nova
solidariedade universal. Como disseram os bispos da África do Sul, ‘são
necessários os talentos e o envolvimento de todos para reparar o dano cau-
sado pelos humanos sobre a criação de Deus’. Todos podemos colaborar,
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como instrumentos de Deus, no cuidado da criação, cada um a partir da


sua cultura, experiência, iniciativas e capacidades” (LS 14).
Além de citar seus predecessores, como tem sido próprio do Papa Fran-
cisco, ele valoriza a colegialidade episcopal, citando o ensinamento de al-
gumas conferências episcopais acerca do tema em questão e, inclusive, cita
o Patriarca Ecumênico de Constantinopla, Bartolomeu (LS 8).
Situando a encíclica no magistério social da Igreja (LS 15), dada a
complexidade da temática e a riqueza das abordagens, na introdução são
apresentados alguns eixos que permeiam todo o documento:
Embora cada capítulo tenha a sua temática própria e uma metodologia
específica, o sucessivo retoma, por sua vez, a partir duma nova perspecti-
va, questões importantes abordadas nos capítulos anteriores. Isto diz res-
peito especialmente a alguns eixos que atravessam a encíclica inteira. Por
exemplo: [1] a relação íntima entre os pobres e a fragilidade do planeta,
[2] a convicção de que tudo está estreitamente interligado no mundo,
[3] a crítica do novo paradigma e das formas de poder que derivam da
tecnologia, [4] o convite a procurar outras maneiras de entender a eco-
nomia e o progresso, [5] o valor próprio de cada criatura, [6] o sentido
humano da ecologia, [7] a necessidade de debates sinceros e honestos,
[8] a grave responsabilidade da política internacional e local, [9] a cul-
tura do descarte e a proposta dum novo estilo de vida. Estes temas nunca
se dão por encerrados nem se abandonam, mas são constantemente reto-
mados e enriquecidos (LS 16).
Do ponto de vista metodológico, pode-se dizer que o Papa Francisco
escolhe como estrutura de seu texto os passos do ver (capítulo 1), julgar
(capítulos 2, 3 e 4) e agir (capítulos 5 e 6). Vale conferir os títulos de cada
capítulo: 1. O que está a acontecer com nossa casa; 2. O Evangelho da cria-
ção; 3. A raiz humana da crise ecológica; 4. Uma ecologia integral; 5. Algu-
mas linhas de orientação e ação; 6. Educação e espiritualidade ecológicas.
Com a preocupação de identificar as principais características da crise
ecológica, são objeto de consideração no primeiro capítulo as mudanças
climáticas e a poluição, a água, a perda da biodiversidade, a desigualdade
planetária, a fraqueza das reações e a diversidade de opiniões. Como um
filão desse capítulo está a convicção de que “o ambiente humano e o am-
biente natural degradam-se em conjunto; e não podemos enfrentar ade-
quadamente a degradação ambiental, se não prestarmos atenção às causas
que têm a ver com a degradação humana e social. De fato, a deterioração
do meio ambiente e a da sociedade afetam de modo especial os mais frágeis
do planeta” (LS 48).
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Convencido de que a “a ciência e a religião, que fornecem diferentes


abordagens da realidade, podem entrar num diálogo intenso e frutuoso
para ambas”, Papa Francisco oferece, no segundo capítulo, o anúncio do
“Evangelho da criação”, com o intento de apontar, à luz da fé cristã, as mo-
tivações para o cuidado da natureza e das pessoas. Passando pelos textos do
Antigo e Novo Testamento e destacando a centralidade do olhar de Jesus,
formula-se a afirmação de que “nós e todos os seres do universo, sendo
criados pelo mesmo Pai, estamos unidos por laços invisíveis e formamos
uma espécie de família universal, uma comunhão sublime que nos impele
a um respeito sagrado, amoroso e humilde” (LS 89).
Onde estaria a raiz da crise ecológica? Papa Francisco, no terceiro ca-
pítulo da encíclica, identifica-a como uma raiz humana, ou seja, o modo
como a humanidade criou e assumiu o paradigma tecnocrático. Se, de um
lado, “a ciência e a tecnologia são um produto estupendo da criatividade
humana” (LS 102), de outro, “quando a técnica ignora os grandes prin-
cípios éticos, acaba por considerar legítima qualquer prática” (LS 136).
O ser humano não pode fugir da responsabilidade dos resultados de suas
escolhas. E, aqui, pesa sobre os que governam e sobre os grandes empreen-
dedores uma responsabilidade proporcional às suas decisões.
No capítulo quarto, a encíclica apresenta os elementos de uma ecolo-
gia integral, incluindo as dimensões humana e social. O ponto de partida
é a compreensão de que “não há duas crises separadas: uma ambiental e
outra social; mas uma única e complexa crise socioambiental” e, assim, “as
diretrizes para a solução requerem uma abordagem integral para combater
a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar
da natureza” (LS 139). Para isso, o texto abordará a ecologia em diferen-
tes perspectivas, tais como: ambiental, econômica, social, cultural, da vida
quotidiana, com destaque para o princípio do bem-comum e da justiça
intergeracional.
Considerando a necessidade de novas práticas, Papa Francisco apre-
senta no capítulo quinto, algumas linhas de orientação e ação. Ele fala de
“grandes percursos de diálogo que nos ajudem a sair da espiral da autodes-
truição” (LS 163). E insiste sobre a importância do diálogo sobre o meio-
-ambiente na política internacional e para as novas políticas nacionais e
locais, sempre com transparência nos processos decisórios e na perspectiva
de uma relação político-econômica. É preciso que o foco esteja na pleni-
tude humana. Reconhecendo que as religiões têm a contribuir no diálogo
com as ciências, o Papa afirma que “os princípios éticos, que a razão é capaz
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de perceber, sempre podem reaparecer sob distintas roupagens e expressos


com linguagens diferentes, incluindo a religiosa” (LS 199).
Finalmente, o capítulo sexto trata de dois eixos fundamentais para as
mudanças que a própria humanidade precisa passar: a educação e a espiri-
tualidade. Outro estilo de vida não surgirá, se não passarmos por uma edu-
cação que considere a necessária aliança entre a humanidade e o ambiente.
Junto à dimensão educativa, a dimensão espiritual tem muito a contribuir.
Por isso, Papa Francisco chega a falar de “conversão ecológica” e de “espi-
ritualidade ecológica” para designar a contribuição que os cristãos podem
oferecer à humanidade nesta hora de emergências. É sobre este último
ponto – espiritualidade ecológica – que o presente texto quer estender a re-
flexão. E, antes de tratar a especificidade de uma espiritualidade ecológica,
consideremos a espiritualidade a partir da perspectiva cristã.

2. Espiritualidade a partir da experiência de Jesus Cristo


A espiritualidade3 inscreve-se no momento anterior à teologia, pois é
coetânea à fé. A teologia é ato segundo, derivado, esforço de expressão
da experiência fundante e original da fé, e, como tal, pode ser formulada
como uma teologia espiritual. Espiritualidade, no âmbito da fé cristã, evo-
ca sempre o binômio Espírito Santo-santidade. No quadro da eclesiologia
do povo de Deus e no modelo de evangelização profético-libertadora, com
ênfase na práxis, a espiritualidade será sempre assinalada pelo clamor do
Espírito nos pobres. Na fé cristã, a paixão pelo pobre nasce da descoberta
de sua sacramentalidade crística. Porque sacramento de Cristo, do olhar
dos pobres grita o imperativo divino: Liberta-o! A libertação não é apenas
um problema histórico. Tem sua raiz numa sede de Deus, de sentido, de
liberdade que a caracteriza como problema também de alcance pneumáti-
co. A fé dos pobres é uma experiência mística, enquanto seu objeto é Deus
mesmo, o único “libertador confiável”.
A espiritualidade cristã privilegia a categoria de experiência para tradu-
zir o modo como a pessoa interioriza a realidade, isto é, como se situa no
mundo e sente o mundo em si. Alguém, para fazer a experiência de Deus
emergindo em sua vida, certamente haverá de se colocar a questão do sen-
tido radical de sua vida e percorrer com os próprios pés as vias da existência
com suas estações do Divino: a consciência dos limites e o sabor do amor

3. As reflexões iniciais desse item são tomadas de minha tese doutoral Pneumatologia e mariologia
no horizonte teológico latino-americano. Pontifícia Universidade Gregoriana, Roma 2003. p. 122-131.
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pelo outro até deparar-se com o Mistério. No cristianismo, o Mistério faz


sua kénosis, encarna-se, e Jesus Cristo torna-se ponto de encontro com o
Deus libertador. A espiritualidade cristã como experiência de vida no Espí-
rito nunca dispensa o encontro com Jesus Cristo.
Os evangelhos apresentam algumas cenas, nas quais Jesus explicita para
os seus seguidores seu modo de propor o discipulado. A espiritualidade
cristã, genuinamente falando, encontra nesses ensinos de Jesus seu especí-
fico. Como ação do Espírito, a pessoa faz a experiência do encontro com o
Senhor a partir da escuta de sua palavra e adere a seu chamado, dispondo-se
a tomar a cruz e seguir Jesus. Lucas pontua explicitamente o interesse do
povo em ouvir Jesus. Ele diz que “a multidão se comprimia ao redor dele
para ouvir a palavra de Deus, à margem do lago de Genesaré” (Lc 5,1).
Assim, podemos indicar como dinâmica fundante da espiritualidade do se-
guimento de Jesus os seguintes movimentos, que não podem ser separados,
mas apenas se distinguem para melhor explicitação:
1) Escutar a palavra. A primeira bem-aventurança no evangelho de Lu-
cas refere-se à escuta da palavra. Está na boca de Isabel ao receber Maria em
sua casa e exclamar: “Bem-aventurada aquela que acreditou que se cum-
prirá o que lhe foi dito da parte do Senhor” (Lc 1,45). Mais adiante, no
mesmo evangelho, Jesus responde aos que lhe traziam a notícia da chegada
de sua mãe e de seus irmãos: “Minha mãe e meus irmãos são os que escu-
tam a Palavra de Deus e a põem em prática” (8,21). Lucas narra ainda a
presença de Jesus na casa de Marta e Maria e a atitude desta que, “sentada
aos pés do Senhor, ouvia sua palavra” (10,39). E, diante da mulher que do
meio da multidão proclamou “Bem-aventurados o ventre que te gerou e
os seios que te amamentaram”, Jesus diz: “Melhor ainda: Bem-aventurados
os que ouvem a Palavra de Deus e a observam” (11,27-28). Essas passagens
são suficientes para compreender que a escuta da Palavra ocupa um lugar
central no encontro com o Senhor. É pela palavra que Jesus se revela e revela
o Pai, anuncia o Reino e apresenta as características e as atitudes de quem o
reconhece como Senhor. Daí nasce seu interrogativo: “Por que me chamais
‘Senhor, Senhor’, e não fazeis o que digo? Mostrar-vos-ei a que se assemelha
todo aquele que se aproxima de mim, escuta minhas palavras e as põe em
prática” (Lc 6, 46-47). O encontro e o reconhecimento do senhorio de Jesus
passam pela escuta de sua palavra e pelo agir iluminado pela palavra.
2) Tomar a cruz. Jesus é muito claro ao propor as condições do segui-
mento ou discipulado. Não faz rodeios. Diz abertamente: “Quem quiser
vir após mim negue-se a si mesmo, carregue cada dia sua cruz e siga-me.
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Pois quem quiser salvar a sua vida a perderá, mas quem perder a sua vida
por mim, esse a salvará” (Lc 9,23-24). De tal modo podemos dizer que não
existe Jesus sem cruz, não existe Evangelho sem a paixão de Jesus Cristo.
Aliás, em cada um dos evangelhos, o relato da paixão ocupa proporcio-
nalmente maior espaço que todos os outros acontecimentos da vida de
Jesus. Em outras palavras, mais se escreveu sobre a paixão do Senhor do
que sobre todos os anos de sua vida e de seu ministério. Carregar cada dia
a própria cruz aponta para o mistério da cruz de Jesus. Nenhum discípulo
de Jesus pode esquecer que segue um crucificado. Tomás Halík escreve:
“Para mim, não há outro caminho, não há outra porta para Ele, exceto
aquela que é aberta por uma mão chagada e um coração trespassado. Não
posso clamar ‘meu Senhor e meu Deus’, se não vir a ferida que chega
ao coração. Se ‘credere’ (crer) deriva de ‘cor dare’ (dar o coração), então,
devo confessar que o meu coração e a minha fé pertencem apenas ao Deus
que pode mostrar as suas chagas. [...] O meu Deus é um Deus ferido”.4 A
cruz é sinal desse Deus que se deixou ferir para manifestar seu amor e sua
misericórdia pela humanidade.
3) Seguir atrás. Esta é a indicação do que vem a ser o discipulado. Ir
atrás do mestre. Escute mais uma vez: “Quem quiser vir após mim negue-se a si
mesmo, carregue cada dia sua cruz e siga-me” (Lc 9,23). Quando fala dos
primeiros discípulos, Lucas registra: “Levando de volta as barcas à terra,
deixaram tudo e o seguiram” (5,11). Ao chamar Levi, coletor de impos-
tos, Jesus lhe diz: “Segue-me!” “Ele, abandonando tudo, levantou-se e o
seguiu” (Lc 5,27-28). Talvez, a melhor definição do discípulo esteja nesse
relato: “Enquanto iam pelo caminho, alguém lhe disse: ‘Eu te seguirei para
onde quer que vás’” (Lc 9,57). Seguir Jesus inclui deixar algo para trás.
Não há seguimento sem renúncia. Pedro explicita isso ao dizer a Jesus:
“Nós, tendo deixado nossos bens, te seguimos” (Lc 18,28). Isso, porque
Pedro presenciou a tristeza daquele homem rico e em dificuldade de deixar
suas riquezas para seguir Jesus. A esse, Jesus havia dito: “Ainda te falta uma
coisa: vende tudo o que tens e distribui aos pobres, e terás um tesouro nos
céus; depois, vem e segue-me” (Lc 18,22). O movimento é deixar algo e
seguir, abandonar e ir atrás de Jesus.
Esses movimentos do discipulado hão de tocar o coração de todos os
que desejam seguir Jesus. Discípulos e discípulas são forjados na escuta
da palavra, ao carregar a própria cruz, ao seguir o Senhor, fazendo a expe-
riência da renúncia, de deixar algo para trás. É preciso ser livre para viver e
pregar o Evangelho.

4. HALÍK, T. O meu Deus é um Deus ferido. Prior Velho: Paulinas, 2015. p. 18-19.
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3. Para uma espiritualidade ecológica


Voltemos agora à Laudato Si’. Papa Francisco reconhece o lugar pró-
prio para a espiritualidade na tentativa de solução da crise ecológica. Ele
diz: “Se tivermos presente a complexidade da crise ecológica e as suas múl-
tiplas causas, deveremos reconhecer que as soluções não podem vir duma
única maneira de interpretar e transformar a realidade. É necessário recor-
rer também às diversas riquezas culturais dos povos, à arte e à poesia, à vida
interior e à espiritualidade” (LS 63). Em se tratando da tradição espiritual
cristã, bebemos na fonte da Palavra de Deus. “Na verdade, toda a sã espi-
ritualidade implica simultaneamente acolher o amor divino e adorar, com
confiança, o Senhor pelo seu poder infinito. Na Bíblia, o Deus que liberta
e salva é o mesmo que criou o universo, e estes dois modos de agir divino
estão íntima e inseparavelmente ligados: ‘Ah! Senhor Deus, foste Tu que
fizeste o céu e a terra com o teu grande poder e o teu braço estendido! Para
Ti, nada é impossível! (...) Tu fizeste sair do Egito o teu povo, Israel, com
prodígios e milagres’ (Jr 32,17.21)” (LS 73), recorda a encíclica. O desejo
de ser como Deus, apontado nas primeiras páginas do Gênesis, revela o
resultado da inversão de lugares, a quebra da comunhão, da unidade, do
equilíbrio e da fraternidade.
“Não podemos defender uma espiritualidade que esqueça Deus todo-po-
deroso e criador. Neste caso, acabaríamos por adorar outros poderes do
mundo, ou colocar-nos-íamos no lugar do Senhor, chegando à pretensão
de espezinhar sem limites a realidade criada por Ele. A melhor maneira
de colocar o ser humano no seu lugar e acabar com a sua pretensão de ser
dominador absoluto da terra é voltar a propor a figura de um Pai criador
e único dono do mundo; caso contrário, o ser humano tenderá sempre a
querer impor à realidade as suas próprias leis e interesses” (LS 75).
Já vimos que a encíclica contém todo um capítulo dedicado à “educa-
ção e espiritualidade ecológicas”. Com a preocupação de que a humanida-
de precisa mudar para reajustar sua relação com a natureza e entre si, Papa
Francisco propõe linhas para uma espiritualidade ecológica:
A grande riqueza da espiritualidade cristã, proveniente de vinte séculos de
experiências pessoais e comunitárias, constitui uma magnífica contribui-
ção para o esforço de renovar a humanidade. Desejo propor aos cristãos
algumas linhas de espiritualidade ecológica que nascem das convicções da
nossa fé, pois aquilo que o Evangelho nos ensina tem consequências no
nosso modo de pensar, sentir e viver. Não se trata tanto de propor ideias,
como sobretudo falar das motivações que derivam da espiritualidade para
alimentar uma paixão pelo cuidado do mundo” (LS 216).
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Procuremos detalhar essas linhas de espiritualidade ecológica apre-


sentadas pelo Papa Francisco, para quem “não é possível empenhar-se em
coisas grandes apenas com doutrinas, sem uma mística que nos anima,
sem ‘uma moção interior que impele, motiva, encoraja e dá sentido à ação
pessoal e comunitária’” (LS 216).
1) Conversão ecológica “que comporta deixar emergir, nas relações com
o mundo que os rodeia [alguns cristãos], todas as consequências do encon-
tro com Jesus. Viver a vocação de guardiões da obra de Deus não é algo
de opcional nem um aspecto secundário da experiência cristã, mas parte
essencial duma existência virtuosa” (LS 217). O modelo é São Francisco
de Assis e sua sadia relação e sublime fraternidade com a criação inteira
(cf. LS 218; 221). Não são suficientes as ações individuais. Para haver um
influxo real e significativo na vida da sociedade em vista de uma mudança
duradoura é preciso articular ações comunitárias (cf. LS 219).
2) Cultivo da gratidão e da gratuidade: “um reconhecimento do mun-
do como dom recebido do amor do Pai, que consequentemente provoca
disposições gratuitas de renúncia e gestos generosos, mesmo que ninguém
os veja nem agradeça” (LS 220). Exortando à atitude de gratidão, propõe
aos crentes que retomem o hábito de “parar e agradecer a Deus antes e
depois das refeições”, gesto que, também, “reforça a solidariedade com os
necessitados” (LS 227).
3) Consciência de ser criatura de Deus Trindade: “a consciência de que
cada criatura reflete algo de Deus e tem uma mensagem para nos transmi-
tir, ou a certeza de que Cristo assumiu em Si mesmo este mundo material
e agora, ressuscitado, habita no íntimo de cada ser, envolvendo-o com o
seu carinho e penetrando-o com a sua luz; e ainda o reconhecimento de
que Deus criou o mundo, inscrevendo nele uma ordem e um dinamismo
que o ser humano não tem o direito de ignorar” (LS 221). “Para os cris-
tãos, acreditar num Deus único que é comunhão trinitária leva a pensar
que toda a realidade contém em si mesma uma marca propriamente tri-
nitária” (LS 238).
4) Comunhão de pertença universal: “Isto nos impede de considerar a
natureza como algo separado de nós ou como uma mera moldura da nossa
vida. Estamos incluídos nela, somos parte dela e compenetramo-nos” (LS
139). “O crente contempla o mundo, não como alguém que está fora dele,
mas dentro, reconhecendo os laços com que o Pai nos uniu a todos os se-
res” (LS 220). Na Evangelii Gaudium Papa Francisco havia expressado isso
de modo muito enfático: “Deus uniu-nos tão estreitamente ao mundo que
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nos rodeia que a desertificação do solo é como uma doença para cada um,
e podemos lamentar a extinção de uma espécie como se fosse uma mutila-
ção” (EG 215; LS 89). “Na verdade, a pessoa humana cresce, amadurece e
santifica-se tanto mais, quanto mais se relaciona, sai de si mesma para viver
em comunhão com Deus, com os outros e com todas as criaturas. Assim
assume na própria existência aquele dinamismo trinitário que Deus impri-
miu nela desde a sua criação. Tudo está interligado, e isto nos convida a
maturar uma espiritualidade da solidariedade global que brota do mistério
da Trindade” (LS 240).
5) Consciência da corporeidade como componente da própria vida espiri-
tual: “A espiritualidade não está desligada do próprio corpo nem da nature-
za ou das realidades deste mundo, mas vive com elas e nelas, em comunhão
com tudo o que nos rodeia” (LS 216). Citando São João Paulo II, Papa
Francisco acentua que “o cristianismo não rejeita a matéria; pelo contrário,
a corporeidade é valorizada plenamente no ato litúrgico, onde o corpo
humano mostra sua íntima natureza de templo do Espírito Santo e chega a
unir-se a Jesus Senhor, feito também Ele corpo para a salvação do mundo”
(LS 235).
6) Capacidade de conviver: “O cuidado da natureza faz parte de um
estilo de vida que implica capacidade de viver juntos e de comunhão. Jesus
lembrou-nos que temos Deus como nosso Pai comum e que isto nos torna
irmãos. O amor fraterno só pode ser gratuito, nunca pode ser uma paga
a outrem pelo que realizou, nem um adiantamento pelo que esperamos
venha a fazer. Por isso, é possível amar os inimigos” (LS 228).
7) Amor social e cultura do cuidado: “[...] juntamente com a impor-
tância dos pequenos gestos diários, o amor social impele-nos a pensar em
grandes estratégias que detenham eficazmente a degradação ambiental e
incentivem uma cultura do cuidado que permeie toda a sociedade. Quan-
do alguém reconhece a vocação de Deus para intervir juntamente com os
outros nestas dinâmicas sociais, deve lembrar-se que isto faz parte da sua
espiritualidade, é exercício da caridade e, deste modo, amadurece e se san-
tifica” (LS 231).
8) Eucaristia e criação: “A criação encontra a sua maior elevação na Eu-
caristia. [...] No apogeu do mistério da Encarnação, o Senhor quer chegar
ao nosso íntimo através dum pedaço de matéria. Não o faz de cima, mas
de dentro, para podermos encontrá-Lo a Ele no nosso próprio mundo. [...]
REB, Petrópolis, volume 77, número 307, p. 688-704, Jul./Set. 2017 699

Unido ao Filho encarnado, presente na Eucaristia, todo o cosmos dá graças


a Deus. Com efeito, a Eucaristia é, por si mesma, um ato de amor cósmico.
‘Sim, cósmico! Porque mesmo quando tem lugar no pequeno altar duma
igreja da aldeia, a Eucaristia é sempre celebrada, de certo modo, sobre o
altar do mundo’. A Eucaristia une o céu e a terra, abraça e penetra toda a
criação” (LS 236).
9) Repouso dominical: o domingo “é-nos oferecido como dia de cura
das relações do ser humano com Deus, consigo mesmo, com os outros e
com o mundo. [...] a espiritualidade cristã integra o valor do repouso e da
festa. O ser humano tende a reduzir o descanso contemplativo ao âmbito
do estéril e do inútil, esquecendo que deste modo se tira à obra realizada
o mais importante: o seu significado”. Com o repouso, “a ação humana é
preservada não só do ativismo vazio, mas também da ganância desenfreada
e da consciência que se isola buscando apenas o benefício pessoal. A lei do
repouso semanal impunha abster-se do trabalho no sétimo dia, ‘para que
descansem o teu boi e o teu jumento e tomem fôlego o filho da tua serva e
o estrangeiro residente’ (Ex 23,12). O repouso é uma ampliação do olhar,
que permite voltar a reconhecer os direitos dos outros. Assim, o dia de des-
canso, cujo centro é a Eucaristia, difunde a sua luz sobre a semana inteira
e encoraja-nos a assumir o cuidado da natureza e dos pobres” (LS 237).
10) Criatividade e entusiasmo: “para resolver os dramas do mundo, ofe-
recendo-se a Deus ‘como sacrifício vivo, santo e agradável’ (Rm 12,1). [O
crente] Não vê a sua superioridade como motivo de glória pessoal nem de
domínio irresponsável, mas como uma capacidade diferente que, por sua
vez, lhe impõe uma grave responsabilidade derivada da sua fé” (LS 220).
11) Cultivo de gestos quotidianos: recordando o exemplo de Santa Te-
resa de Lisieux, o Papa nos convida “a pôr em prática o pequeno caminho
do amor, a não perder a oportunidade duma palavra gentil, dum sorriso,
de qualquer pequeno gesto que semeie paz e amizade. Uma ecologia inte-
gral é feita também de simples gestos quotidianos, pelos quais quebramos
a lógica da violência, da exploração, do egoísmo” (LS 230). Exorta, ainda,
o Papa Francisco: “É muito nobre assumir o dever de cuidar da criação
com pequenas ações diárias, e é maravilhoso que a educação seja capaz de
motivar para elas até dar forma a um estilo de vida. A educação na res-
ponsabilidade ambiental pode incentivar vários comportamentos que têm
incidência direta e importante no cuidado do meio ambiente, tais como
evitar o uso de plástico e papel, reduzir o consumo de água, diferenciar
700 J.J. de M. Silva. Espiritualidade ecológica a partir da Laudato Si’

o lixo, cozinhar apenas aquilo que razoavelmente se poderá comer, tratar


com desvelo os outros seres vivos, servir-se dos transportes públicos ou
partilhar o mesmo veículo com várias pessoas, plantar árvores, apagar as
luzes desnecessárias… Tudo isto faz parte duma criatividade generosa e
dignificante, que põe a descoberto o melhor do ser humano. Voltar – com
base em motivações profundas – a utilizar algo em vez de o desperdiçar
rapidamente pode ser um ato de amor que exprime a nossa dignidade”
(LS 211).
12) Resistência: o desenvolvimento de uma cultura ecológica pede “um
olhar diferente, um pensamento, uma política, um programa educativo,
um estilo de vida e uma espiritualidade que oponham resistência ao avanço
do paradigma tecnocrático” (LS 111).
13) Sobriedade: nada tem sido mais perverso para a integridade da pes-
soa e da criação que a cultura consumista. A tradição cristã, em sintonia
com outras tradições religiosas, pode muito contribuir para a recuperação
do sentido da sobriedade no viver. “O consumismo obsessivo é o reflexo
subjetivo do paradigma técnico-econômico” (LS 203). Papa Francisco
adverte: “a acumulação constante de possibilidades para consumir distrai
o coração e impede de dar o devido apreço a cada coisa e a cada momento”
[...] “A espiritualidade cristã propõe um crescimento na sobriedade e uma
capacidade de se alegrar com pouco. É um regresso à simplicidade que nos
permite parar a saborear as pequenas coisas, agradecer as possibilidades
que a vida oferece sem nos apegarmos ao que temos nem entristecermos
por aquilo que não possuímos. Isto exige evitar a dinâmica do domínio e
da mera acumulação de prazeres” (LS 222). O parágrafo 223 é uma ma-
ravilhosa síntese a respeito da sobriedade e merece ser transcrito integral-
mente: “A sobriedade, vivida livre e conscientemente, é libertadora. Não
se trata de menos vida, nem vida de baixa intensidade; é precisamente o
contrário. Com efeito, as pessoas que saboreiam mais e vivem melhor cada
momento são aquelas que deixam de debicar aqui e ali, sempre à procura
do que não têm, e experimentam o que significa dar apreço a cada pessoa
e a cada coisa, aprendem a familiarizar com as coisas mais simples e sa-
bem alegrar-se com elas. Deste modo, conseguem reduzir o número das
necessidades insatisfeitas e diminuem o cansaço e a ansiedade. É possível
necessitar de pouco e viver muito, sobretudo quando se é capaz de dar
espaço a outros prazeres, encontrando satisfação nos encontros fraternos,
no serviço, na frutificação dos próprios carismas, na música e na arte, no
REB, Petrópolis, volume 77, número 307, p. 688-704, Jul./Set. 2017 701

contato com a natureza, na oração. A felicidade exige saber limitar algumas


necessidades que nos entorpecem, permanecendo assim disponíveis para as
múltiplas possibilidades que a vida oferece” (LS 223).
14) Admiração e apreço do belo: “Prestar atenção à beleza e amá-la aju-
da-nos a sair do pragmatismo utilitarista. Quando não se aprende a parar a
fim de admirar e apreciar o que é belo, não surpreende que tudo se trans-
forme em objeto de uso e abuso sem escrúpulos” (LS 215).
15) Cultivo da paz interior: “ninguém pode amadurecer numa sobrieda-
de feliz, se não estiver em paz consigo mesmo. E parte duma adequada com-
preensão da espiritualidade consiste em alargar a nossa compreensão da paz,
que é muito mais do que a ausência de guerra. A paz interior das pessoas
tem muito a ver com o cuidado da ecologia e com o bem comum, porque,
autenticamente vivida, reflete-se num equilibrado estilo de vida aliado com
a capacidade de admiração que leva à profundidade da vida” (LS 225).
16) Reverência pela pessoa: “Falamos aqui duma atitude do coração, que
vive tudo com serena atenção, que sabe manter-se plenamente presente
diante duma pessoa sem estar a pensar no que virá depois, que se entrega a
cada momento como um dom divino que se deve viver em plenitude. Jesus
ensinou-nos esta atitude, quando nos convidava a olhar os lírios do campo
e as aves do céu, ou quando, na presença dum homem inquieto, ‘fitando
nele o olhar, sentiu afeição por ele’ (Mc 10, 21)” (LS 226).
Estas linhas se tornam pistas bastante concretas que podem fazer
parte de um projeto pessoal de vida na perspectiva de uma espirituali-
dade ecológica.

Conclusão: Aprendei dos lírios dos campos...


A Carta encíclica Laudato sí’ é de incalculável pertinência para a ques-
tão ecológica e para todos os habitantes da Terra. Ao postular a espirituali-
dade ecológica e a necessidade de uma conversão ecológica, Papa Francisco
exorta a uma nova práxis, especialmente por parte dos cristãos, para que
se efetivem mudanças no “cuidado com a casa comum”. Há, em todo o
texto, o convite a um novo olhar. Seja o olhar crítico para a dura realidade
da crise ecológica, seja o olhar de esperança que contempla no horizon-
te possíveis ações capazes de produzir transformações. Aqui, vale recor-
dar a palavra de Jesus, verdadeira exortação ao aprendizado com a própria
natureza que tem muito a nos ensinar. Não nos esqueçamos de que boa
parte do conhecimento e da inventividade humana advém da observação
da natureza. Assim, ressoe uma vez mais para cada ser humano o convite
702 J.J. de M. Silva. Espiritualidade ecológica a partir da Laudato Si’

de Jesus: Aprendei com os lírios do campo... Contemplando os lírios dos


campos e as nossas cidades, ouso apresentar três atitudes que podem fazer
diferença no estilo de vida dos cristãos em meio a um mundo marcado pela
voracidade do consumo, sedento de conforto e avesso às renúncias, num
mundo de pessoas apressadas e autorreferenciadas. Com o Papa Francisco
compreendemos que “a doação de si mesmo num compromisso ecológico
só é possível a partir do cultivo de virtudes sólidas” (LS 211).
1) Dispor-se a aprender. É preciso disposição para viver a permanente
condição de aprendiz numa sociedade deseducada. Não há tempo em que
o ser humano não possa aprender. Do nascer ao morrer se aprende. Essa
é condição inscrita no ser que não é onisciente, mas, antes, está sempre
como discente na escola da história. Com Papa Francisco aqui recordamos
a importância da família onde “se cultivam os primeiros hábitos de amor e
de cuidado com a vida”, “pequenos gestos de sincera cortesia que ajudam
a construir uma cultura da vida compartilhada e do respeito pelo que nos
rodeia” (LS 213). Não obstante a condição de permanente aprendiz, vive-
mos numa sociedade que parece passar por um processo de “deseducação”,
ou seja, que tem perdido referenciais, linguagem, gestos que garantem a
respeitosa convivência e o sentido do outro. Ao mesmo tempo em que se
defende o respeito à diversidade, crescem a intolerância e o desrespeito às
diferenças. Nas redes sociais e nas ruas não poucas vezes nos deparamos
com agressões. Uma espiritualidade ecológica precisa garantir o permanen-
te exercício do aprendizado das virtudes sociais que nos permitem conviver
respeitosamente com todos e todas. Uma espiritualidade ecológica há de
ouvir a cada dia a palavra de Jesus: Aprendei com os lírios dos campos...
Na escola da história nenhum de nós recebe nota máxima. Antes, todos
nós temos sempre algo a recuperar. É preciso, pois, recuperar a capacidade
da escuta. Como o discipulado de Jesus nasce da escuta de sua Palavra, não
haverá espiritualidade sem escuta do Senhor. É pela escuta que se dá uma
das melhores oportunidades de aprendizado. A escuta de si mesmo e dos
outros é iluminada pelas palavras de vida e de verdade d’Aquele que é o
Verbo Encarnado.
2) Superar a cultura do conforto. A sociedade consumista vive das de-
mandas insatisfeitas do ser humano. Este sempre busca mais. De uma
parte, isso é importante, pois impulsiona para o desenvolvimento e para
o progresso. De outra parte, o desejo de sempre maior conforto pro-
duz uma série de bens de consumo e favorece uma cultura do descarte.
REB, Petrópolis, volume 77, número 307, p. 688-704, Jul./Set. 2017 703

“Quando as pessoas se tornam autorreferenciais e se isolam na própria


consciência, aumentam a sua voracidade: quanto mais vazio está o co-
ração da pessoa, tanto mais necessita de objetos para comprar, possuir e
consumir” (LS 204). Nesse ambiente, cada vez é mais imprópria a pa-
lavra renúncia, que parece ferir os ouvidos do mercado sempre cioso de
aumentar seus lucros. Uma espiritualidade ecológica precisa recuperar o
sentido da renúncia como possibilidade de crescimento e de liberdade.
A cruz de Jesus Cristo não pode se reduzir a objeto de adorno ou sinal
de fé cristã. Ela é bem mais que isso. Ela é a permanente lembrança da
oferta mais preciosa do coração do Pai, o Filho. Ela recorda também os
limites humanos e suas manifestações na história pessoal de cada um.
Sem a luminosidade da cruz, não haverá samaritanos para aproximar-se
dos caídos à beira do caminho e para derramar óleo em suas feridas. É
preciso saber distinguir o grau de conforto necessário para a dignidade
humana daquele que extrapola o bom senso e fere ainda mais a digni-
dade dos pobres e dos humilhados. É preciso saber renunciar ao conforto
das poltronas, para sair ao encontro dos outros.
3) Dar testemunho de fidelidade. A sociedade midiática acirrou o desejo
vaidoso de ser visto e admirado pelos outros. A cultura da imagem apon-
ta para uma era da iconofagia,5 isto é, alimentamo-nos todo o tempo de
imagens. As telas estão nas TVs onipresentes (inclusive nas igrejas), nos
celulares, smartfones e tablets, nos painéis dos automóveis, nos out-doors, nos
interfones e em tantos outros lugares e situações. Podemos ter a todo tempo
em nossas mãos uma pequena tela na qual estamos em contato com o mun-
do. Tudo pode ser transmitido, documentado, fotografado e cair na rede. E
nesse universo há coisas belíssimas e maravilhosas. O lado frágil dessa cultu-
ra da imagem é o enfraquecimento do testemunho de fidelidade. Testemu-
nho vem de martírio. Dar testemunho é dispor-se à dimensão martirial da
fidelidade, logo, da fé. O seguimento de Jesus não se faz por imagem nem
de modo virtual. Ele quer ser encontrado e reconhecido no cuidado dos
pequeninos: “Toda vez que fizestes isso a um desses meus irmãos menores,
a mim que o fizestes”! (Mt 25,40). Tocar a carne de Cristo nos pobres, de-
safia-nos o Papa Francisco. Uma espiritualidade ecológica precisa dar teste-
munho de cuidado com a pessoa e com a casa comum. Isso não apenas pelas

5. Cf. BAITELLO JUNIOR, N. A era da iconofagia. Reflexões sobre imagem, comunicação, mídia
e cultura. São Paulo: Paulus 2014.
704 J.J. de M. Silva. Espiritualidade ecológica a partir da Laudato Si’

imagens, pelos posts, pelos discursos, mas por ações efetivas que começam
em primeiro lugar pelo modo como eu pessoalmente dou testemunho da fé
em Jesus ao amar e servir as pessoas, ao cuidar da casa comum.
João Justino de Medeiros Silva*
Rua José Maria Alkimim, 27
Bairro Jardim São Luís
39401-047 Montes Claros – MG/BRASIL
E-mail: domjoaojustino@arquimoc.com

* É doutor e mestre em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma. Ingressou no Seminário


Arquidiocesano Santo Antônio, em 1984, onde cursou Filosofia e Teologia. Graduou-se em Ciências
Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora e em Pedagogia pelo Centro de Ensino Superior de
Juiz de Fora (CES/JF). Atuou como perito da Comissão Episcopal Pastoral para a Doutrina da Fé da
CNBB. Em 2015, foi eleito presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Cultura e Educação da
CNBB e membro do Conselho Episcopal Pastoral (Consep). Também foi eleito presidente da Comis-
são Episcopal para a Educação, do Regional Leste 2 da CNBB (Minas e Espírito Santo). Em março de
2016, foi nomeado membro da Comissão de Cultura e Educação do Setor Universidades do Celam e
responsável pelas pastorais de Educação e Cultura no Cone Sul.
Em maio de 2017, foi nomeado presidente da Comissão Episcopal Especial para os Bens Culturais
da CNBB. Bispo auxiliar de Belo Horizonte em 2011, foi nomeado Arcebispo Coadjutor de Montes
Claros, em fevereiro de 2017.

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