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MARINA COLASANTI
Sumário
Chega essa culpa pra lá
Amor, infinito enquanto dure
O direito de mudar de opinião
A tirania do bom desempenho sexual
Se todos vêm te contar seus dramas
Mulheres assassinadas
Dois estilos, um casamento
Por que estamos tirando a roupa
Meu marido não deixa
Pais e filhos: quem deve o que a quem
Amor de uma noite só
Chorar não é privilégio feminino
Os homens também fingem orgasmo
Solte as feras
Amor responsável
Contar tudo "ma non troppo"
Fantasiando um amante
O que há por trás da rivalidade feminina
Aborto sem aforismos
Quando a gente ama, mas nem tanto
O nó que o diálogo dá
Tentar de novo o mesmo amor
Daqui pra frente
Prefácio
Tenho pouca paciência para prefácios. Alheios, que freqüentemente
pulo, só voltando a eles depois de já ter lido o livro. Meus, que evito
sempre que possível. Hoje, porém, gostaria de dar algumas
explicações.
Primeiro, quanto à formulação deste livro. Ao contrário de A nova
mulher, que o antecede, não se trata exclusivamente de artigos
escritos para a revista Nova. Nele incluí vários textos inéditos, por
sentir necessidade de abordar temas que não havia tocado antes,
para avançar em atualidade, e mesmo para atender a pedidos de
leitoras.
Segundo, quanto ao conteúdo. Este livro é feito de uma presença e
uma ausência. Presença de mulheres semelhantes a mim, de
formação burguesa, que neste momento se interrogam sobre sua
posição no mundo, sua essência de mulher, e procuram novos
ângulos de visão. Ausência de mulheres esmagadas por problemas
de sobrevivência, operárias, domésticas, camponesas, prostitutas e
faveladas, para as quais o problema da condição feminina é menor
frente à necessidade de reformulações sociais.
Não há, nesta ausência, alienação. Embora o livro não se ocupe
dessas mulheres, elas são elemento dominante nas conferências è
nos contatos que venho realizando pre,valecen-temente junto ao
público universitário, não só no Brasil como no exterior. O que
ocorre é uma injunção profissional, dever de atendimento ao
público ao qual minha revista se dirige. E também uma natural
inclinação para tratar daquilo que melhor conheço.
Que este livro não seja visto, pois, como uma pretensão
totalizadora. Mulher, vou escrevendo meu caminho. Um caminho
que, para todas nós, é daqui pra frente.
Marina Colasanti
"Só os parvos não mudam", rebateu Rui Barbosa certa vez, ao ser
acusado de mudar de idéia. A frase certamente não agradou às
multidões, e muito menos a quem o acusava. Ninguém gosta de ser
chamado de parvo. Mas, apesar de ser um ato inteligente, qualquer
mudança de opinião encontra grandes resistências.
Resistências de fora, em primeiro lugar. Os outros, ou seja, a
sociedade como um todo não costuma gostar de pessoas
questionadoras. É o mesmo fenômeno da sala. Tudo é mais fácil
quando ocupa apenas um espaço já estabelecido. Tudo é mais
controlável. Uma pessoa que não questiona aquilo que aprendeu
desde pequena, uma pessoa que não pergunta o porquê das coisas,
uma pessoa que não procura a própria verdade é certamente uma
pessoa obediente, fácil de ser conduzida pelos caminhos que os
donos do poder houverem por bem lhe traçar.
Da mesma forma, uma pessoa que, embora tendo questionado
algumas verdades iniciais, "empaca" numa verdade que estabelece
como sendo a única verdadeira e imutável é uma pessoa previsível,
em relação à qual podem-se armar os esquemas.
Mas a pessoa questionadora, a que está sempre repensando as
coisas e procurando novos ângulos de visão, esta não é uma mobília
bem comportada, um sofá em esquadro, é um ponto de
interrogação no meio da sala, a exigir dos outros idêntica dinâmica.
E esta dinâmica os outros, enquanto maioria, não têm, e não querem
ter. Porque essa dinâmica assusta.
Mas antes de vermos por que assusta, quero fazer um desvio e dizer
que, se todos sofrem violenta repressão às suas mudanças, nós
mulheres sofremos muito mais. Em nós a mudança é logo vista
como futilidade, como falta de segurança. "La donna è mobile qual
piuma al vento", diz a ária de ópera ("a mulher é móvel, como pluma
levada pelo vento"). Ou seja, vai onde o vento sopra, onde é levada, e
não onde deseja ir, onde sua inteligência lhe diz que é o lugar.
Mudanças de opinião, em nós mulheres, são vistas com maior
espanto, porquanto é tido como certo que não temos opinião
alguma, e então, como mudar o que não existe? Hoje, até o fato de
reivindicarmos o direito de ter opiniões aparece como uma
mudança. E o quanto assusta estamos vendo por aí nas reações da
nossa sociedade ainda tão machista.
Feito o desvio, apreciada a paisagem que parece lateral mas que
para nós é talvez a mais importante, vamos voltar ao medo que
mudar de opinião desperta em todos nós.
Sim, todos nós temos dificuldade em pegar uma idéia que já
tínhamos e esquartejá-la, minuciosamente estudar-lhe as vísceras,
para depois decidir se é o caso de recompô-la ou de transformar o
exame em autópsia e enterrar logo o cadáver. Todos nós hesitamos.
Por quê?
a — Porque poucas coisas são tão confortáveis quanto uma idéia
velha. É feito chinelo que o pé já conhece, gato manso que
acariciamos sem olhar. Assim a idéia que já está conosco há muito
tempo. Sabemos de cor seus desvãos, seus argumentos. Não
precisamos quase raciocinar para defendê-la, basta desfiar o rosário
das frases com que a estruturamos ao longo dos anos, ou repetir os
conceitos de que ela veio acompanhada quando nos foi vendida.
Uma idéia já conhecida e explorada não nos causa ansiedade, não
nos ameaça, vem mansamente ao trote quando a convocamos, dócil
cavalo de batalha, e se insere sem alarde entre as outras rotinas da
nossa vida. Uma idéia velha não nos exige.
b — Abrir mão, seja do que for, sempre é difícil. E mais difícil fica
no caso das opiniões, quando, freqüentemente, sobre elas outras
coisas foram construídas. Abrir mão de uma opinião raramente
significa abrir mão apenas dela, mas sim dela e de outras que lhe
são ligadas, e, em cadeia, de um determinado comportamento.
Abrir mão de uma opinião é, em última análise, abrir mão de um
pedaço em si. Se, por exemplo, consideramos que ir à praia topless é
uma indecência, ao mudarmos de opinião não estamos mudando
somente em relação à parte de cima do biquíni, mas sim à exibição
do corpo, ao direito sobre esse corpo, à relação desse direito
confrontado com as expectativas do nosso grupo social, e ao próprio
conceito de decência. É uma mudança grande, bem maior do que
parece à primeira vista, e nada mais natural do que hesitar diante
dela.
c — Toda mudança causa conflito. Até a idéia de vender o carro
usado e comprar um novo nos transtorna. E isto porque toda
mudança implica em avaliação, julgamento. Se vou trocar meu
carro, preciso saber se o antigo era bom, e, sendo bom, se era melhor
do que as marcas todas que a publicidade tenta me impingir, se
houve alterações no mercado, e quais as minhas possibilidades
aquisitivas. Enfim, preciso analisar vários dados e confrontá-los.
Um processo idêntico ocorre em relação às opiniões. Para trocar
uma opinião por outra, preciso confrontar as duas, julgar sua vali-
dade, decidir qual me parece melhor. Esse julgamento, essa decisão
ao salto, assusta.
d — Se hoje penso de um jeito a respeito de determinada coisa e
amanhã decido mudar, será necessário reconhecer que meu
pensamento estava errado, ou que, pelo menos, tornou-se errado
em determinado momento. Será preciso reconhecer meu próprio
erro. E quantos gostam disso?
e — uma opinião importante é um modo de ser e de viver. Nossos
amigos, nosso grupo, nossos parentes estão acostumados com
nossas opiniões. Mudar uma opinião significa muitas vezes ter que
enfrentar o nosso grupo. E sabemos que o grupo tudo fará para nos
manter como éramos, do jeito que já nos conheciam, nos aceitavam,
do jeito que tornou possível nosso entrosamento. A mudança de um
dos elementos do grupo é vivida pelo grupo como ameaça de
desintegração, de modificação generalizada, e é conseqüentemente
combatida. Sabemos portanto que mudar de opinião nos exigirá
trabalho, explicações, discussões. Uma luta, enfim, pequena ou
grande, mas luta, uma oposição às pessoas que mais queremos.
f — E numa luta, por menor que seja, temos sempre duas
possibilidades: ganhá-la, ou perdê-la. Podemos, por causa de uma
opinião, perder o afeto ou até a estima de pessoas a nós ligadas.
Podemos dialogar, convencer, mas corremos sempre o risco de
subitamente perder a aceitação do outro e abrir distâncias
insuperáveis. O medo dessa possível perda está presente, ainda que
nem sempre conscientizado, ao enfrentarmos o processo de uma
mudança de opinião.
g — E outro medo se engancha no nosso pé. O medo do
desconhecido. Abro mão da idéia velha, meu confortável chinelo,
em troca de uma idéia nova. Não só terei que amaciá-la, e a mim
com ela, mas terei que reorganizar minhas idéias todas, rever o
resto. E certamente sairei mudada, ainda que um pouco apenas,
ainda que parcialmente. Que eu mudada serei então? Não sei, não
tenho como saber. E o não saber me assusta.
De tanto falar em medos, estou aqui quase espalhando o pânico.
Que essa conversa sirva para o entendimento, mas não nos assuste.
São vários medos, mas enfeixados em um só, e não tão forte a ponto
de impedir que as opiniões mudem, constantemente.
Tivemos medo, e quanto!, quando Galileu apareceu afirmando que
a Terra não só não era fixa, como girava em torno do Sol. Afinal,
Ptolomeu nos havia convencido do contrário, e a teoria dele era
mais bonita, nos conferia mais importância, com o Sol girando ao
nosso redor servilmente. Galileu foi processado, ameaçado de
morte. Mas aos poucos acabamos mudando de opinião e acatando
sua frase murmurada: "Eppur si muovel" (E no entanto se mexe!)
Hoje, até o Vaticano revê seu processo.
O Novo Testamento mudou opiniões formadas pelo Velho. E, não
fosse a onisciência, até Deus teria mudado sua opinião em relação a
Adão e a Eva depois do fato da maçã. Enfim, a nossa história é a
história das nossas mudanças de opinião.
"Quem pretende uma felicidade e uma sabedoria constante deveria
acomodar-se a freqüentes mudanças", dizia Confúcio. O problema é
que às vezes, embora pretendendo a felicidade, não queremos nos
adaptar. Duvido, por exemplo, que o próprio Confúcio, machista
convicto que definia a mulher como "um homem inferior" e que
estabeleceu um violento esquema de dominação da mulher na
China, conseguisse aceitar colocações mais feministas, as mesmas
que hoje estão criando uma modificação radical de comportamento.
Esquecidas das enormes mudanças de que fazemos parte, relutamos
às vezes em mudar uma nossa pequena opinião. Mas por que
estaríamos condenadas à prisão de idéias gradeadas, se tudo ao
redor anda?
Mudar nossa opinião em relação à conduta sexual, por exemplo, é
uma mudança individual. Mas é também parte da grande mudança
coletiva que a sociedade ocidental vem nas últimas décadas
formulando e que já chamamos Revolução Sexual. E o mesmo
acontece quando repensamos nossa relação com as minorias, ou
quando simplesmente decidimos parar de comer aqueles mesmos
enlatados que tanto nos seduziam. Mudamos individualmente, e
individualmente corremos os riscos de mudança, mas nosso
comportamento e nossa nova escolha se inserem no conjunto mais
amplo.
Precursoras, podemos viver nossa mudança em solidão, precisando
de mais energia para derrubar a reação ainda compacta contra
nosso gesto. Ou, mais prudentes, chegamos à mudança quando um
maior número de evidências se acumula e já encontramos vozes em
que nos apoiar. Tempo e momento, cada um faz o seu. Importante é
a convicção.
Taí uma palavra sem a qual se.invalida tudo o que dissemos:
convicção. Esta é a alavanca fundamental para qualquer,
verdadeira, mudança de opinião. Mudar de opinião por
insegurança, para acompanhar os outros, para não ficar por fora,
pode fazer de nós figuras patéticas.
Mas opinião não é honra, opinião não é jura, opinião não é
sobrenome, carga genética, nada que não se possa mudar. Se hoje
você diz uma coisa, e amanhã percebe que não concorda mais com o
que disse, pode não se tratar de inconstância, mas de lucidez. Isso, é
claro, se depois de amanhã você não pensar de outra maneira, e no
dia seguinte tornar a mudar, como uma ventoinha.
O normal, o saudável é mudar. Como exemplo nos sirva o livro de
Fernando Gabeira, Que é isso, companheiro?, cujo sucesso se deve em
grande parte ao fato dele rever, pública e honestamente, suas
opiniões vitais, seu comportamento, sua atuação política. Ao fazê-
lo, ele se torna mais humano e próximo do que a imagem
puramente heróica que dele se tinha.
Assim, também no amor nos tornamos mais acessíveis na medida
em que somos capazes de rever nossas posições, e de mudá-las
quando necessário. Temer que o outro viva nossas mudanças como
fraquezas e delas se aproveite contra nós ou contra a relação,
subjugando-nos, é não ter confiança no outro, nem em nós mesmas.
E, nesse caso, tampouco adiantaria cravarmos os pés
irredutivelmente numa única posição.
Mas, para mudar, é conveniente fazê-lo com justeza. E a justeza,
onde está?
Não sei, nem ninguém sabe, pois é preciso desencavá-la a cada vez,
entre pedras, cactos e tantos arremedos de justeza. Sei, talvez, como
me armar para procurá-la melhor. É meu armamento individual,
mas talvez sirva a outros.
Preciso, eu sei, ter confiança em mim, na minha capacidade de ver,
no meu discernimento. Sempre haverá quem queira me demover, e
com belos argumentos, cantos de sereia. Ao contrário de Ulisses que
botou cera nos ouvidoá para não ouvi-los, eu deverei abrir bem os
meus e deixar que entrem os cantos todos, para sopesá-los. A fé na
minha balança, a mim cabe.
Sei que até o fato de eu ser mulher será em algum momento usado,
direta ou indiretamente, para me demover. Tentarão me convencer
de que sou fraca, mais suscetível a engodos, inocente. Mas
exatamente o fato de ser mulher me servirá de fortalecimento. Pois
sei que por ser mulher tenho que ser mais aguerrida, e por ser uma
mulher que questiona sou mais lúcida do que tantos.
Preciso, eu sei, de dados. É com o conhecimento que consolido e
comprovo minha sensibilidade. É com o conhecimento que construo
argumentos. É com o conhecimento que armo o quadro e escolho as
minhas tintas.
E tendo os dados, preciso do hábito da análise para saber interrogá-
los. Se me acostumo a aceitar tudo o que me dizem, sem questionar,
sem elaborar, será difícil, impossível quase, encontrar caminhos
novos, que sejam os meus. A análise se afia na prática, no exercício
diário, na observação de análises alheias. A análise é pôr em dúvida,
submeter a exame, comparar. A análise é o jogo que realizamos
entre a tese e a antítese, para chegarmos à síntese. A análise é um
dos mais comoventes exercícios da mente.
Tendo fé em mim, tendo os dados e a capacidade de análise, que
não me falte ainda assim a humildade de pedir explicações. Não
entender, ou entender mal, é direito do qual não abro mão. E é
contingência da qual não devo me envergonhar. Quando alguma
verdade ou suposta verdade me for servida em belo prato, nunca
começar a comê-la sem antes verificar os ingredientes de que se
compõe.
Assim talvez seja mais possível o acerto nessa galeria de espelhos
que o mundo se esmera em fabricar para nós. Assim, pelo menos,
mesmo errando, poderei chegar a uma conclusão que seja a minha,
e que eu tenha não só forças como prazer em defender.
A tirania do bom desempenho sexual
Do sexo, o que queremos? Que seja bom, que nos dê prazer, que
acrescente à nossa vida momentos cantantes e uma espraiada
sensação de plenitude.
Ou, pelo menos, é o que queríamos "antes". Porque agora, mal
entendendo a meta da revolução sexual, ou tangidas por uma
exacerbação social, muitas se acreditam obrigadas a querer do sexo
um super-resultado, decorrente de um superdesempenho.
E o que seria um superdesempenho? Sem entrar na cabine
telefônica como Clark Kent, mas tirando a roupa para operar a
metamorfose, qualquer simples mortal deveria tornar-se capaz de
obter orgasmos múltiplos, bater recordes de freqüência, superar as
habilidades das gueixas, acrescentar novas e acrobáticas posições
àquelas já elencadas pelo Kama Sutra, não restringir-se à monotonia
monogâmica nem prender-se a relações, considerar-se disposta a
experimentar tudo além do já batido heterossexualismo. Assim,
acreditam, estariam provando a si mesmas e ao mundo sua
adequação aos novos padrões de eficiência sexual.
Resta ver se os padrões são realmente esses, e se, sobretudo, são
iguais para todos.
Temos, como ponto de partida, os anos 50, em que o Relatório
Kinsey, apresentando ao mundo a realidade das necessidades
sexuais humanas, invalidou a hipocrisia sexual até então
estabelecida através de repressões e um moralismo vitoriano. Não
há dúvida de que, a partir daí, e ajudada pela descoberta dos meios
anticoncepcionais, começou a se estruturar uma nova moral sexual.
E não há dúvida, também, quanto ao fato de que as mulheres foram
as mais beneficiadas. Para elas abriram-se as portas do orgasmo —
um direito que nem sabiam que tinham —, e romperam-se os cintos
de castidade. Já não seria preciso uma jovem conservar-se virgem
até o casamento, ou até a morte se não casasse. O sexo pré-
matrimonial passaria a fazer parte natural da sua vida, assim como
sempre havia feito parte da vida dos homens.
Nossas dúvidas se instalam, porém, quanto ao entendimento dessa
nova moral, e ao uso que nossa sociedade gerou para ela.
De sexo, todos falam. E como falam! Não ouço ninguém abrir a boca
para dizer que tem um rendimento modesto, que a média de uma
relação por semana lhe é perfeitamente satisfatória, que acha
orgasmo ótimo mas nem sempre consegue. Pelo contrário. Todos
são tão fogosos, que temos a impressão que bastaria encostar-lhes
um cigarro nas ventas, para acendê-lo.
Idem com as personagens de cinema, dentro e fora da tela. E bota
idem nisso! Se uma estrela tem cinco maridos, não é porque tenha
fracassado com todos, mas sim porque, idêntica às personagens que
interpreta, é tão sedutora e seduzível que torna-se impossível
resistir.
Idem também com as personagens de determinada faixa de
literatura, exatamente aquela de maior consumo. Vejamos, por
exemplo, como Harold Robbins, autor de best sellers devorados no
mundo inteiro, descreve uma cena de amor:
Começa quando a heroína desabotoa as calças do herói e: "ele
pulou-lhe em cima como um leão feroz". Prossegue, até nos revelar
que: "depois que orgasmo após orgasmo haviam transformado seu
corpo numa tempestade de chamas, ela suplicou: — Vem, vem
buscar o teu prazer comigo. . . depressa! Antes que eu morra!" E
finaliza: "Um rugido subiu do fundo da sua garganta e suas mãos
esmagaram-lhe os seios. Ela quase gritou, enquanto seus dedos
afundavam no pêlo do seu peito. Então todo seu peso pareceu cair
sobre ela, tirando-lhe o fôlego, e ela sentiu o jato quente do seu
sêmen derramar-se no seu interior, como uma viscosa torrente de
lava".
Imagino a perplexidade de milhares de mulheres, confrontadas com
esses exemplos alucinatórios e tentando em vão justapô-los à sua
própria experiência sexual. Aliás, não é preciso imaginar, pois elas
próprias nos contam. Diz uma noiva, de dezenove anos: "Leio
muitos livros e revistas sobre sexo. E quando estou com meu noivo
não consigo tirar da minha cabeça o que li. Fico o tempo todo me
preocupando se estou fazendo certo, se estou agindo como aprendi.
Nem sei se alcanço o orgasmo. E fico com medo de não ser uma boa
parceira para ele. Será que não estou tendo um bom desempenho
sexual?"
Entre as tantas coisas que esta moça lê nas revistas, está,
provavelmente, a recomendação de prestar atenção nas suas
sensações, de entregar-se e tentar acompanhar apenas os impulsos
do seu corpo. Mas não é isso o que mais chama a sua atenção.
Atraída por performances olímpicas enfeitadas de rugidos e de lava
ardente, ela se esforça para ouvir — ou fazer ouvir ao noivo — sinos
tocando, mundos despencando. Mas' se esforça no caminho errado.
Repete uma lição bem decorada, que pode não ter rigorosamente
nada a ver com ela e com suas necessidades sexuais. E, obcecada
nessa repetição, tranca as portas da sua sensibilidade.
Eu gostaria que, entre tantas coisas, esta moça lesse o que diz a esse
respeito John Messenger, antropólogo americano especializado no
estudo do comportamento sexual em diversas sociedades: "Eu gosto
de crer que o sexo deveria ser desfrutado por sua pura
magnificência, e nada mais do que isso. Mas sexo só é magnífico
quando você o faz do seu jeito e com a pessoa que você escolhe. Ou
seja, muito ou pouco, como você preferir, e de acordo com seus
gostos e preferências. Infelizmente, esse já não é o hábito de muitas
sociedades, e certamente não da nossa".
E acrescenta: "Muitos jovens, sobretudo, fazem sexo quando na
realidade não querem, e fingem gostar apesar de não obterem
realmente grande satisfação, só para garantir a aprovação do seu
grupo. Nesse caso a nova moralidade transformou-se num novo
tipo de conformismo, e o conformismo é sempre doloroso para a
maioria das pessoas às quais é imposto".
Não, você não atrai as desgraças, mas atrai, ah! com quanto poder
de sedução, os contadores de. Evidentemente, não é de propósito.
Você não circula pela vida como uma mulher-sanduíche
imprensada entre cartazes de Procuram-se Pessoas Aflitas. Nem sai
fazendo perguntas indiscretas, forçando confidências. Pelo
contrário, se há uma coisa que logo se percebe em você é sua
discrição, seu jeito de não querer invadir a vida de ninguém. Mas,
discreta como é, transmite aos outros, de imediato, uma série de
recados que, juntos, formam um chamariz bem mais poderoso do
que qualquer cartaz.
Começa que seu estilo é declaradamente maternal. Não só com as
crianças, ou com os mais necessitados, mas com a humanidade em
geral. Se o chofer de táxi puxa assunto e você não está com a menor
vontade de conversar, ainda assim responde delicadamente, e mais,
com um jeito inconfundível de quem queria mesmo ouvir. Você
nem se dá conta, mas antes de terminar a corrida estará quase
íntima, terá olhado o retrato do filho e dito que é uma gracinha,
terá, enfim, tentado ressarci-lo por alguns minutos de toda a
violência urbana e da sua dura profissão, deixando-lhe uma
imagem doce e protetora. Uma imagem de mãe.
Assim vai você, vida afora, pronta para alimentar os famintos,
disfarçando debaixo do chemisier seus incomensuráveis e
numerosos seios, generosamente cheios de leite. E ainda se
surpreende quando alguém (igualmente de fralda disfarçada
debaixo dos blue jeans ou da saia) bate à sua porta pedindo comida.
Acontece também que, expandindo ainda mais o seu espírito
maternal, existe em você uma verdadeira vocação para
compreender. Você, que entretanto, como todo mundo,
freqüentemente exprime conceitos morais, e julga, e critica, é
invadida por surpreendente elasticidade toda vez que alguém a
procura como confessora.
Você não acha que sua amiga deveria passar para trás o marido.
Más no momento em que ela vem lhe contar que está abafadíssima
porque arrumou um caso, você imediatamente esquece que o
marido é seu amigo, esquece o que você achava cinco minutos
antes, e passa a ver a coisa do ponto de vista dela, através dos
motivos dela, sem crítica e sem repreensão, apenas tentando
entender e ajudar.
Seria leviandade? De forma alguma. Apenas, confrontada com uma
posição diferente da sua, transmitida de forma sentida, você
percebe as duas faces de uma mesma moeda, e se esforça por
conviver com ambas.
Quando a amiga sair você ficará duplamente perturbada, por viver
o problema em si, e porque, encharcando-se do problema dela, você
lhe assumiu a visão, e agora precisa restabelecer o equilíbrio entre
as duas visões opostas. Mas em momento algum você repreendeu
ou criticou a amiga. Se ela hesitava no início, logo percebeu o sinal
verde, e certa de que ali seu adultério não era crime, pôde
transbordar livremente a narrativa.
Em suma, em momentos de confidências você está sempre do lado
do outro, ainda que, docemente, tentando mostrar-lhe alguns erros.
E o que uma pessoa procura quando precisa de alguém para aliviar
sua carga é um aliado, nunca um crítico.
Além disso tudo, convenhamos, você é simpática, mais que isso,
você é fácil de gostar. Também, pudera, não há esforço que não faça
para isso. Afinal, está sempre disposta a abrir espaço para o outro.
Você pára o trabalho no escritório, larga a panela no fogo, perde o
último ônibus da madrugada, tudo para emprestar seus ouvidos ao
próximo. E que ouvinte você é! Atenta, quase profissional. E
participante, emocionada, vibrando quando o outro vibra, torcendo
por ele a cada lance, vivendo de parceria tudo aquilo que ele conta.
Pode alguém querer mais de um confidente?
Muito bem, estamos até aqui só na base do elogio. Mas você bem
sabe que nem só de virtudes se faz uma personalidade, e o que a
gente quer, desde o início, é tentar ver por que você continua
atraindo queixosos, se isso de uma certa forma a sobrecarrega e a
faz sofrer.
Parece que uma razoável onipotência acena por cima do seu ombro.
Sim, você acha que, de tantos confidentes, ajudou a maioria. Sim,
você tem certeza de que, mesmo que seus conselhos não tenham
sido sempre fundamentais, seu carinho o foi. Sobretudo você sabe,
definitivamente sabe, que sua presença no momento necessário
ajudou a resolver muitos problemas, ainda que apenas pelo fato de
que o confidente, reforçado por seu apoio, recuperou o equilíbrio e
pôde destrinchar os nós.
O que você não sabe, ou talvez simplesmente não se diz, é que esse
hábito de querer resolver os dramas alheios corresponde a querer
resolver o mundo, salvar a humanidade. E que a isso se chama
onipotência.
A partir do momento em que alguém a procura queixando-se disso
e daquilo, você passa a considerar-se responsável pelo que vier a lhe
acontecer, como se, ao lhe entregar os detalhes de um caso
qualquer, ela tivesse lhe entregue as rédeas do seu comportamento
e a procuração do seu livre-arbítrio. Você, enfim, de simples ouvinte
passa a resolvente.
Mas por que onipotência?
É aí que a gente chega mais perto um pouco do miolo da questão.
Resolvendo, ainda que por parcelas, o problema do mundo, você
está distribuindo, ainda que por parcelas, um amor imenso, um
amor de ilimitada extensão territorial. E espera, evidentemente,
colher os frutos dessa gigantesca plantação.
A onipotência, no caso, não serviria para o gozo de altos poderes,
forças, comandos. Mas para garantir uma retribuição, mais do que
merecida, em moeda afetiva.
Ou seja, debaixo de tão amplo espírito maternal, de devoção amiga
e de amor ao próximo está uma grande necessidade de afeto.
E em cada pessoa que telefona, chama ou pede, você percebe nítido
um recado de amor. Porque é evidente que as pessoas só nos
escolhem para confidentes quando gostam de nós, só nos entregam
seus segredos quando nos consideram amigas. Alguém vem
perturbado, trazendo ao ombro sua sacola de dúvidas. E você mais
do que depressa o alivia do peso, tira a sacola do ombro dele e a
passa para o seu.
O que ele não sabe, e geralmente você também não, é que na sacola
você não pescou dúvidas, mas desembrulhou carinhos a serem
armazenados no quente depósito do seu inconsciente. Ele está
crente de ter lhe dado uma chateação, e fica grato. Você está crente
de ter recebido uma chateação, e em certos momentos secretos se
queixa por isso, aparente vítima de seu espírito acolhedor. Mas por
baixo do pano, sem que ninguém visse, um alto pagamento foi
efetuado, deixando as contas bem quites.
Eis aí a razão mais forte pela qual você fica lançando recados mudos
capazes de transformar o mais introvertido num confidente
derramado.
Um "Muro das Lamentações" amiga minha, ao pé da qual também
já tomei muito chá com limão e lágrimas, sabendo que eu ia
escrever este artigo, me disse: "Eu ouço, ouço, me abafo, sofro. Mas
a verdade é que de tanto ouvir percebi aos poucos que ali estão
ensinamentos valiosos, e agora, mais consciente, vou ouvindo e
aprendendo a vida". E uma outra, Muro profissional, psicóloga no
início da carreira, comentava comigo tempos atrás como, através
dos problemas dos outros, ela ia, mais e melhor, revendo os seus
próprios problemas.
Isso não quer dizer que os grandes confessores fiquem, como uma
estranha espécie de voyeurs, pendurados na janela da vida, vendo a
banda passar. Mas é claro que, acompanhando outros, e
participando tão de perto de várias óticas individuais, amplia-se o
conhecimento do semelhante, e, conseqüentemente, de si mesmo.
Além do mais, sentindo-se responsável pelo problema do
confidente, e munido da nossa já falada onipotência, o confessor,
mais do que ninguém, se esmera para analisar bem os dados,
obtendo, não raro, resultados melhores do que os do próprio dono e
capitalizando-os para si.
Isto tudo significa que, ao acolher as lamentações dos outros, não
estamos sendo tão generosos quanto parece, mas estamos apenas
efetuando mais uma das tantas trocas da vida.
Embora você esteja tirando proveito, a verdade é que isso não lhe
traz maiores alegrias, e a sua sensação mais forte é a de que as
pessoas a procuram quando precisam, afundam os caninos na sua
jugular, e quando estão alimentadas partem, desaparecendo até a
próxima temporada de fome. Você fica à espera, mas bufa.
Esta é uma situação que pode ser amplamente melhorada, desde
que você realmente o queira.
Antes de mais nada, saia do plantão. Se o telefone toca quando você
está no meio de um serviço, e do outro lado do fio lhe chega um
s.o.s. patético, diga a verdade: "Olha, eu estou no meio de um
serviço, e agora, neste momento, não posso atender você. Mas passa
aqui à noitinha, ou amanhã". O outro, ao contrário do que parece e
do que você acha, não vai morrer no curso dessas breves horas, e
você poderá atendê-lo melhor sem ter uma parte do seu
pensamento grudada no trabalho incompleto. Quanto a seu medo
maior, e inconfesso, de que, não sendo imediatamente atendido por
você, ele vá procurar, e achar, outro confidente (e outra amiga),
tranqüilize-se. Bons confidentes não abundam por aí e você,
certamente, é das melhores. Além disso, se a pessoa que a procura
pode "traí-la" por qualquer meia hora de espera, melhor que o faça
logo, num momento indolor, do que venha a fazê-lo mais tarde,
sabe-se lá com que conseqüências.
É assim, esquivando-se da eterna disponibilidade, que você pode
evitar a desagradável, e em parte justificada, sensação de estar
sendo usada.
Se você foge do "uso" físico, é importante que se afaste com a
mesma velocidade do "uso" moral. Sua alminha também não pode
ficar aí, à disposição de quem quiser aparecer e depositar nela
dramas e angústias. Uma das coisas básicas para um bom
confidente é o não-envolvimento, a não-apro-priação. É justo que
você participe vivamente, que tenha calor humano, mas isso não
significa que precisa sofrer junto com o outro, continuar remoendo
depois que o outro se vai, e, quantas vezes, preocupar-se quando o
outro já resolveu tudo. Você pode perfeitamente, e é a primeira
coisa que aprendem os profissionais, manter aquilo que se chama
"distanciamento crítico", ou seja, a distância que lhe permite ver a
verdade dos fatos, e não apenas sua primeira aparência. Seria mais
ou menos a mesma coisa que ler um texto com o nariz colado no
papel ou com o rosto afastado dois palmos; a segunda forma,
evidentemente, é bem melhor.
Na verdade, trata-se de um estabelecimento de posses.
Na hora em que você conseguir se convencer de que o seu tempo é
seu em primeiro lugar, e não dos problemas alheios; e na hora em
que você conseguir se convencer de que os problemas alheios não
são seus, uma ordem mais respirável começará a se fazer.
Temos ainda, para nos atrapalhar, a onipotência. Mas você já sabe
que não dá para resolver os problemas da humanidade toda. Nem é
isso que a humanidade pretende. Se você prestar bem atenção
perceberá que quem vem lhe contar dramas não está querendo
exatamente que você os resolva, aliás, não está querendo
absolutamente que você os resolva. Caso tente, de forma mais
concreta, são até capazes de se ofender. O que eles querem é
esvaziar ansiedade, botar em palavras o que lhes vai na cabeça,
repetir uma vez mais aquilo que os aflige, e que, muito
provavelmente, já contaram para outras pessoas. Podem aceitar
conselhos, mas a solução, por mais que você se esforce, terá que ser
a deles.
Abandonando o papel de Grande Solucionadora, você estará
também livrando-se da responsabilidade. E, com ela, de uma
grande parte da aflição. Assim, mortos os três coelhos numa única
cajadada, a leveza já estará bem mais perto de você.
Resta a sensação de descarte, inevitável quando aqueles mesmos
que tanto a procuraram de repente se evaporam na tranqüilidade
conquistada, inclusive graças a você.
Tenho alguma experiência no ramo, porque, embora não dissesse
até aqui, eu também tive minha fase de Muro das Lamentações. Mas
sendo igualmente um Muro Lamentoso, sempre com queixas de
que os outros eram sanguessugas egoístas, resolvi um dia tomar
vergonha e botar a coisa em muros limpos. Passei a cobrar dos
renitentes, e, conforme o grau de reincidência, a cortá-los. Eu me
forcei a isso no princípio, porque meu medo de perder amigos era
enorme. Mas tentei, e consegui, me convencer de que amigos não
eram se me largavam com tanta serenidade.
Então agora é assim: veio, falou, sumiu, eu telefono e pergunto,
como é que é? como ficou o tal caso? resolveu a questão? Pergunto
com o mesmo carinho com que ouvi, mas pergunto. E se de outra
vez também sumir, não haverá mais socorro quando o telefone
tocar.
Isso, nos casos mais importantes, naqueles sérios. Nos outros, nos
apoios menores que a toda hora a gente está dando por uma
mínima questão de fraternidade, o melhor é deixar correr no seu
próprio ritmo. Some um pouco, aparece um pouco, volta a
desaparecer. A elasticidade torna mais fácil o balanço da vida, e nos
permite, quando for a nossa vez, sermos elásticos também, com
carinho apenas e naturalidade.
E chegamos a um ponto de que eu quase me esquecia, o do oposto,
que sempre existe. A gente, você, se queixa porque todos vêm
depositar peso e lágrimas no seu ombro. Mas já pensou nas vezes,
quantas, em que foi você quem precisou de um chá e de um afeto?
Lembrou-se depois de telefonar, aparecer, mandar flores? Foi
absolutamente perfeita na retribuição? Espero que não, porque isso
a tornaria insuportável. Espero que para você também, como para
tantos outros, a alegria tenha vencido a contabilidade e, problema
resolvido, você se tenha concedido merecidas férias espirituais.
É provável que naquelas ocasiões seu Muro também tenha se
sentido rejeitado. Mas a verdade é que tanto para ele, quanto para
você, ou para nós, a vida é um jogo de trocas e como tal tem que ser
vivida, para que, no fim das contas, todos se beneficiem.
Mulheres assassinadas
"Ela havia saído e eu esperei no estacionamento da secretaria. Ela chegou,
eu disse que queria conversar e entramos no carro dela. Perguntei se ela
queria voltar, ela disse que não, e eu, então, disse que ia matá-la. Saquei o
revólver, o primeiro tiro pegou no ombro e ela tentou defender-se. Atirei
mais uma vez, ela saiu do carro, caminhou um pouco e caiu de bruços. Ai
eu gastei todas as balas." Assim, em Curitiba, no dia 25 de agosto de 1980
o advogado David Augusto Ferreira Neto, de quarenta e quatro anos,
assassinou com cinco tiros sua mulher Sônia Maria Soares Trevisan
Ferreira, de trinta e um anos, também advogada.
Cada pessoa tem uma rotina de vida. Não é arbitrária, não é leviana.
É o resultado de anos e anos de lutas e adaptação. Lutas para
manter a própria individualidade. E adaptação aos ensinamentos,
às pressões, às necessidades. Podemos mesmo dizer que a rotina de
vida de cada um é uma demonstração da criatividade com que o ser
humano sobrevive à tirania doméstica, ajeitando-se no cotidiano.
Exatamente por isso, por ser a soma de tantos elementos diferentes,
é impossível encontrarmos duas rotinas idênticas. E mais
impossível ainda é encontrarmos duas rotinas quase idênticas
casadas entre si. Em termos de pasta de dentes, por exemplo, é raro,
raríssimo casarem dois espremedores por baixo ou dois apertadores
pelo meio.
Querer, portanto, que a rotina de alguém que foi educado em
ambiente e de modo diferente do nosso se sobreponha com exatidão
àquela rotina que consideramos parte essencial de nós mesmos é
uma forma de delírio romântico que nada justifica. Gêmeas as
almas, ainda assim serão diferentes os modos de viver. Nem poderá
um mudar completamente seus jeitos, em favor do outro. A solução
terá que estar sempre no cruzamento dos dois modos, dando
origem a um terceiro: o modo conjunto.
Ele é calorento, sufoca debaixo da mais leve colcha, quer janelas
abertas, cortinas esvoaçantes. Ela está sempre na Sibéria, tiritando
debaixo de cobertores, protegida por meias e agasalhos, só a ponta
do nariz aparecendo como um periscópio. Mas é à noite, de volta de
um programa, alta madrugada, depois de muita conversa e alguma
bebidinha que ela está acesa para o amor, ansiosa para prolongar
em abraços a noitada, enquanto ele, morto de cansaço, está mo-
mentaneamente convencido de que ser bom de cama é deitar e
dormir.
Haveria algum erro básico neste casamento? Nenhum. Apenas,
sendo exigência do casamento que ele se realize entre duas pessoas,
vemos aí duas pessoas no modesto exercício das suas exigências
físicas.
Não é por achar a manhã bonita que ele acorda tão alegre. Nem é
por detestar a luz do sol, como um vampiro, que ela se nega a
acordar. O fenômeno é inverso. Ele gosta da manhã porque já abriu
os olhos cheio de disposição. E ela não os abre, ignorando os apelos
do dia, porque seu organismo não está disposto.
Trata-se simplesmente de uma questão de* tônus vital. O dele é
mais alto de manhã (e é provável que à noite seja um desastre),
enquanto o dela é mais baixo. Ou então ela necessita de mais sono
do que ele, e ainda não está "pronta" quando ele acorda. O ideal
seria que cada um pudesse fazer seu horário, acordar na hora em
que lhe apraz, deitar à hora em que o sono mandar. Mas a sociedade
não está estruturada para isso, e o próprio casal criaria um descom-
passo ainda mais difícil de contornar.
O mesmo vale para frio e calor. O magro é mais friorento que o
gordo, e o de pressão alta sente mais calor que o de pressão baixa.
E o mesmo vale para o amor.
No amor a coisa complica um pouco. Porque embora seja uma
função tão física quanto qualquer outra, vem revestida de
poderosos envolvimentos psíquicos e afetivos. Se a gente oferece
um copo d'água a alguém e este alguém diz que não está com sede,
tudo bem. Mas se a gente oferece sexo ao nosso alguém e ele diz que
não está com vontade, tudo mal. Não esperamos, não desejamos ver
negado nosso impulso.
No entanto o outro também não deseja fazer sexo quando está com
sono, quando está cansado, quando simplesmente não está com
vontade. Não deseja se submeter. Deseja participar. E participar é
impossível quando o físico não ajuda.
Então, para que um não se submeta nem o outro se prive, o melhor
em matéria de sexo é procurar a fórmula que atenda aos dois. Se for
à noite, que seja cedo, antes dos programas (uma amiga minha
utilizava com sucesso a hora em que, chegando do trabalho e, tendo
tomado um chuveiro, ele deitava para um pequeno repouso). Se for
de manhã, não precisa ser ao alvorecer. E, sobretudo, pode-se
explorar uma vasta gama de horários inesperados, com a vantagem,
para ambos, de estimular o senso lúdico, a criatividade e, conse-
qüentemente, o erotismo.
c — Tudo aquilo que possa ser considerado exclusivo dos homens. Este é
um capítulo amplo, porque cada homem estabelece de acordo com
seus critérios pessoais e os do seu círculo imediato de relações
aquilo que é gesto ou atividade exclusivamente masculina, devendo
portanto ser proibido à mulher.
"Minha mulher também não fuma", diz o mecânico orgulhoso
puxando funda tragada, depois que recusei gentilmente um cigarro.
"Eu não deixo. Tenho pavor de mulher que fuma. Cigarro é coisa de
homem." E vai em frente me contando os cuidados que tem para
manter firme sua proibição. Sim, porque a mulher gosta de fumar,
chegou a esconder um dinheirinho das compras da casa, só para
comprar cigarro. Mas ele inspeciona gavetas, fiscaliza o hálito, e
cortou o tal dinheirinho extra. Aí ela foi à casa da vizinha, fumar. E
ele cortou as visitas à vizinha. Agora parece que ela se conformou. E
é bom. "Porque bonito mesmo na mulher é a sua delicadeza." Uma
delicadeza sem cheiro de cigarro.
Beber, evidentemente, também é coisa de homem. E coisa de
homem é palavrão. E bar. Sinuca, nem pensar. Excluídos estão
também os jogos em geral. E sobretudo é coisa de homem,
exclusivamente de homem, reservadíssima aos homens, trabalhar.
"Foi uma opção. Foi meu marido, eu admito. Ele vai ficar danado,
mas eu admito. Ele me disse: a dança ou eu." O marido de Marly
Leal, que já dançava quando eles se conheceram e se apaixonaram,
que já era bailarina do Municipal e já havia dançado com Carlos
Machado, foi sutil. Ele não disse "não deixo", ele disse "ou o seu
trabalho ou eu". E Marly, como tantas e tantas mulheres, colocada
frente a este jogo de cartas marcadas pescou a carta correspondente
aos conceitos pré-fabricados de amor, dever, família, papel da
mulher. Hoje a filha de Marly, Adriana, inicia uma carreira de
bailarina. Mas os tempos são outros, e quero ter certeza de que no
baralho saberá escolher a carta da sua realização.
"Meu marido não me deixa trabalhar." Frase comum, frase de todo
dia, que corta milhares de carreiras, milhares de possibilidades,
milhares de talentos.
Quase cortou a de Wanda Sá, cantora que, depois de mais de dez
anos de afastamento, voltou aos shows e à música. Numa entrevista
Wanda explicou que durante aqueles anos todos não tinha feito
nenhum show "porque a cabeça dele não dava pra agüentar uma
mulher cantora". Ele é o marido, Edu Lobo, o qual certa vez,
durante um ensaio de um show que Wanda fazia com Marilda
Pedroso e Marcos Paulo, teria mandado que ela escolhesse entre o
show e ele. E ela escolheu.
Casos como os de Wanda e de Marly não são raros. Pelo contrário,
são a quase rotina que rege o momento da escolha de uma mulher
casada. Atualmente milhares delas transitam pelas faculdades,
cursos e cursinhos da vida, porque já é de bom-tom entre uma certa
classe de maridos não deixar trabalhar, mas deixar estudar. E assim
elas se instruem, se ilustram, aprendem ad nauseam, colecionando
diplomas que nunca poderão testar no campo profissional.
Mas por que aceitam as mulheres o categórico "não pode" dos
maridos? Por covardia? Por medo? Talvez em alguns casos, mas não
são estes os moventes da maioria. Não vejo medo nem
ressentimento no rosto simpático da moça que me conta um "meu
marido não deixa" qualquer. Vejo, pelo contrário, uma expressão de
quase satisfação, de bem-estar com o mundo, uma expressão, eu
diria, de orgulho. E se analisarmos de perto nossa convivência com
a frase castradora veremos as fundas raízes deste orgulho.
Quando o homem diz "Não quero que você faça aquilo", está na
verdade dizendo "Eu quero que você viva de acordo com as minhas
vontades; você me pertence como um objeto pertence ao seu dono;
eu sou o opressor e estou lhe oprimindo, porque seu é o papel do
oprimido". Mas não é isso que ela ouve. Estas são frases muito
violentas, brutais, que não fazem parte do seu universo. Este é um
código que ela desconhece, e do qual apenas algumas mulheres
começam a tomar conhecimento. Quando este código for
incorporado à sua vivência, é provável que as frases de mando se
tornem insuportáveis. Mas por enquanto o que ela ouve é muito
diferente.
Ela ouve as frases permitidas, as que ela deve ouvir, aquelas frases
agradáveis e gentis sob as quais durante séculos se escamoteou a
verdade, e que lhe foram ensinadas como certas. Em lugar de "não
quero", ela ouve este velho repertório: "Eu sou seu dono, porque
dono do seu amor; e como tal sou seu protetor; eu sou mais forte e
sábio do que você, e como tal sei melhor do que você o que lhe
convém; eu sou o chefe da família, o responsável, e como tal cabe a
mim tomar as decisões".
O que ela ouve, o que lhe fazem ouvir, é agradável, e se confunde
de forma aparentemente natural com diálogos semelhantes ouvidos
na infância, vindos do pai. Nada mais justo, portanto, do que repeti-
los com um sorriso.
Um homem faz a proposta. A moça não está a fim. Mas logo pensa
que ele vai achá-la careta, retrógrada, por fora e hesita. Erro. O que
ele pensa não interessa. Interessa somente dizer não, da forma mais
delicada possível, e ir em frente.
O mesmo vale se ela estiver a fim. Erro pensar que ele pode achá-la
assanhada, fácil, já muito circulada, e por isso desistir.
Idem, para as elucubrações posteriores: se ele achou seu corpo
lindo, se está pensando que ela é maravilhosa no sexo, se vai querer
repetir a experiência.
O que ele pensa não interessa por vários motivos. Porque ao tentar
acertar com o pensamento dele podemos estar desacertando o
nosso. Porque freqüentemente projetamos nele nossos próprios
preconceitos, nossa própria avaliação, que podem não ter nada a ver
com os dele. E sobretudo porque neste tipo de encontro o interesse
não está voltado para o outro, está voltado para nós, já que o que se
busca é uma satisfação pessoal e passageira.
"Pára de chorar", diz a mãe para o filho. "Chora, que alivia", diz o
amigo do herói ao herói no momento dramático. "Você fica tão
bonita quando chora!", diz o mocinho romântico à mocinha
romântica da novela romanticíssima. "Mulher vive chorando", diz o
homem muito másculo que só chora escondido. Entre estímulos e
repressões, o pranto ocupa nossa vida de tal modo, que esta já foi
chamada de "vale de lágrimas". Mas nos deixa bastante tempo livre
para, entre uma fungada e um soluço, investigar que atividade é
esta que só os seres humanos praticam, e perguntar em des-
confiança por que as mulheres choram mais do que os homens.
Por entre os joelhos abertos olho o meu bebê ainda molhado que o
obstetra segura pelos pés. E a primeira coisa que ouço é seu choro.
Chora de dor, pobre filhote, porque o ar queima seus pulmões
recém-inaugurados, descolando os alvéolos, e porque o obstetra,
para obrigá-lo a respirar logo, lhe deu um tapinha na bunda. É uma
menina, mas por enquanto ainda não sabe disso, e chora exatamente
como choraria um menino na mesma situação. Aprenderá mais
tarde que nem todos têm igual direito a este choro tão natural, e que
de uma forma geral ele terá que ser controlado e minimizado.
Mas não é de dor física que chora a jovem despedindo-se do amado
na estação. Nem está exatamente sofrendo a miss que derrama as
clássicas lágrimas na hora de receber cetro e coroa diante das
câmeras. Elas choram por outro mal bem humano, a emoção.
E olhando a secretária que ensopa o lencinho só porque recebeu
uma bronca do chefe — enquanto o colega dela, recordista em
bronca, nunca foi visto sequer fungando —, uma outra causa de
choro nos parece evidente; é o choro social, o choro/símbolo da
suposta fraqueza feminina.
Curiosamente, porém, o choro não foi feito para completar nem a
dor, nem a emoção, nem os estereótipos sociais. Pelo menos, não no
início.
No início, as glândulas e os dutos lacrimais destinavam-se apenas a
manter constante a umidade do globo ocular. Mesmo em dias
normais, quando nenhuma alegria excessiva ou nenhum sofrimento
vem solicitar nosso pranto, choramos uma discreta meia grama de
lágrimas, que pode aumentar um pouco se houver poeira, se a gente
usar lentes de contato ou descascar cebolas.
Esta umidade bem dosada e praticamente invisível não é porém
aquilo que chamamos choro. O choro com lágrimas e soluços,
aquele meio sacudido em que o rosto e a alma parecem
mancomunados num processo de liquefação, é coisa mais recente.
Na escala evolutiva, segundo o antropólogo Ashley Montagu,
aconteceu primeiro o choro seco. E só mais tarde, aprimorando o
modelo, a natureza introduziu a inovação das lágrimas. Na
verdade, as lágrimas eram indispensáveis para ajudar na
manutenção da espécie, pois o choro seco, feito só de soluços e
convulsões, levava a engolir grandes quantidades de ar, ressecando
as mucosas, e tornando-as sensíveis a infecções de todo tipo.
Para completar sua função profilática, as lágrimas, que basicamente
se compõem de soro fisiológico, foram dotadas de uma enzima que
estimula o muco nasal. Assim, abertas as comportas do choro
abrem-se contemporaneamente as corredeiras nasais, criando
aquela imagem patética da pessoa que não sabe se enxuga os olhos
ou o nariz, não sabe se soluça ou se funga, e acaba enxugando os
olhos na mão e o nariz na manga.
Solte as feras
Amor responsável
"Tenho uma coisa pra te contar. Você jura que não conta pra
ninguém?" Este é o intróito juvenil. Via de regra o ouvinte recalcitra,
quer ir logo aos fatos, acha o juramento dispensável, afinal, é de
confiança e por isso foi escolhido. Mas acaba jurando.
"Há uma coisa que preciso te contar. Mas é confidencial." Assim
começam os adultos. Não se pede o juramento formal. Porque seria
grosseiro; porque já não se acredita em juramentos. Em lugar de
juras, trocam-se olhares, às vezes uma curta afirmação em resposta:
"É claro".
E tanto na infância quanto na idade adulta, em pelo menos noventa
e nove por cento dos casos, os ouvintes repe-. tirão toda a cerimônia
a outros ouvintes, exigindo o silêncio que eles não souberam
manter, a respeito de um segredo que já não o é tanto.
A este recatado procedimento, chamamos fazer confidências.
Mas que coisa boa que é chegar perto da pessoa amiga e meter um
bom papel-carbono na alma, repetindo o que se passou, e aí ele me
disse, e aí eu respondi, aí aconteceu. Esvaziar tudo, contar nos
mínimos detalhes, repetir várias vezes as passagens principais. E
que tão melhor fica o fato contado assim por nós, rebordado de
ansiedade, cheio de idas e vindas, com flash-back, e o contracanto do
interlocutor.
Melhor que fazer uma boa confidência, só recebê-la. E passá-la
adiante ao nosso próprio confidente de estimação.
Uma confidente inveterada me dizia: "Quando conto uma coisa a
uma amiga, já não peço para ela guardar segredo absoluto. Peço
para ela só contar ao marido. E aí fico rezando pro marido dela não
ter uma amante, senão ele conta para ela, e ela conta. . . e por aí vai".
E queixava-se, confidente minha: "Contar coisas pra você não tem a
menor graça.
Você é um túmulo, não tem nunca nada dos outros pra contar".
Mas então, se a gente já sabe que o segredo não vai ser mantido, e se
o segredo é a alma do negócio, por que continuamos fazendo
confidências, mesmo as altamente confidenciais?
Fantasiando um amante
Fazer amor com o melhor amigo, com o chefe do escritório, com o
surfista, com o vizinho, com o galã da TV. Fazer amor com variados
parceiros. Esta é, segundo Masters e Johnson, a fantasia mais
comum das esposas americanas.
Já Nancy Friday, que coletou mais de trezentas fantasias eróticas
femininas no livro As flores proibidas do meu jardim secreto (My secret
garden forbidden flowers) afirma que a fantasia mais comum é a da
campainha que toca, do homem desconhecido que surge no umbral
entreaberto, do seu pé forçando a porta, e do "delicado" estupro que
se segue.
Numa coisa, porém, concordam os autores: as fantasias eróticas são
uma constante na quase totalidade dos casamentos, funcionando
como válvula de escape, elemento nivelador entre a realidade e o
sonho.
O que leva à fantasia de trair? A repressão sexual é sem dúvida uma
das principais razões. Não é à toa que Nancy utilizou a metáfora
"flores proibidas". São flores porque são agradáveis, naturais, mas
permanecem secretas no jardim porque são proibidas. E tão
proibidas, que até no sonho as podamos, como prova a fantasia da
violência: afinal, se um desconhecido invade a casa e violenta sua
proprietária, ela não tem culpa alguma, foi forçada, não seduziu, foi
dobrada, não se entregou. Ninguém poderia culpá-la, e muito
menos ela própria.
Fantasiamos aquilo que não temos, aquilo que só em sonho
podemos nos conceder. E se o casamento se revela insatisfatório,
deixando áreas de carência, sem nos levar entretanto ao extremo da
ruptura, a tendência mais comum é a de suprir as faltas com uma
boa dose de fantasias, realizando na imaginação a traição proibida.
A fantasia de trair tem suas vantagens em relação à traição
realizada. A principal é a de não colocar em risco o casamento, não
ferir o marido. A segunda é a de não constituir erro para a mulher,
pois desejar apenas, sem chegar às vias de fato, não é erro
qualificado. A terceira é a de ser impalpável, praticamente
impossível de provar.
Mas também tem suas desvantagens. Ela é basicamente uma atitude
não assumida, e como tal pode criar uma divisão interior perigosa.
Na verdade, não supre nossas carências, mas as ameniza e disfarça.
E como todas as fantasias, se muito repetida, corre o risco de nos
afastar da realidade, mergulhando-nos em um mundo ilusório,
enganoso.
Mas a maior utilidade da fantasia de trair está na compreensão dos
mecanismos internos que nos levam a ela e que a tornam
gratificante. Pois é através do entendimento das nossas fantasias
que podemos nos aproximar de nós mesmos.
"Fico até sem jeito de falar, porque ele é muito bom para mim, ele
não merece. Mas até pra ele eu já disse, e ele diz que não se importa,
que quer casar assim mesmo, que o amor cresce depois.
"Tivemos dois anos de namoro e são dois e meio de noivado. No
começo eu achava que gostava dele, que ia gostar mais. Mas não
gostei. Acho até, Deus me perdoe, que fiquei gostando menos. Quer
dizer, menos exatamente não, mas diferente, como se gosta de
parente, com carinho, com ternura, mas sem paixão. Eu quero bem a
ele, não queria que nada de ruim lhe acontecesse, às vezes até penso
que caso com ele por isso, para não magoar ele agora que já
aprontou tudo, até apartamento comprou.
"Meu medo é um dia aparecer para mim Um grande amor.
Daqueles violentos, que a gente não segura. Aí, eu não sei o que
faço. Tenho medo de perder a cabeça, de largar tudo, casa, marido,
tudo! Eu não sei se ia conseguir me segurar. E mesmo que
conseguisse, ia sofrer.
"Meu noivo me dá muita segurança. Com ele sei que estou
garantida, que ele vai cuidar de mim, ser um bom pai para nossos
filhos. Ele é sério, direito, trabalhador, nunca vai ser ruim para mim.
Disso eu tenho certeza. Todas as minhas amigas me invejam ele,
acham que é o tipo de marido que a gente pede a Deus, Eu também
acho. Só tem que eu queria gostar mais dele.
"Sabe o que é?, eu me sinto como se tivesse um buraco na minha
vida, uma coisa faltando. . . como se eu não tivesse, sei lá, nunca
comido sorvete, uma coisa que todo mundo conhece menos eu, que
todo mundo fala, só eu fico ouvindo, que parece que acontece com
todo mundo, menos comigo. Eu nunca amei de verdade. Eu acho
que nunca mesmo. Se tivesse amado eu saberia, não saberia? A
gente não tem dúvidas quando ama, tem? Pois é, isso é que me põe
angustiada. Acho até que eu poderia viver feliz com meu noivo se
não tivesse esse pensamento na minha cabeça me consumindo.
"Fui falar isso uma vez com a minha mãe, ela me disse que era
bobagem, que eu estava vendo muita novela, que esses amores
assim como eu queria são coisas de romance, de livro, que
casamento não precisa de nada disso para ser bom. Eu sei que se eu
quisesse romper com meu noivo ela nunca ia me perdoar, ela não ia
entender, ninguém ia, nem ele."
E para Silvinha, o que é que a gente diz? Que ela está certa? Que ela
está errada? Este amor manso, "de parente", que ela sente pelo
noivo não parece ser muita coisa, mas já é alguma coisa. E tem
gente, provavelmente a mãe dela, que se contenta com alguma
coisa, mas nós somos mais exigentes. Então, no problema de
Silvinha, vamos procurar um "rabo de fora". Quando as situações
parecem meio insolúveis, há sempre um detalhe qualquer que nos
ajuda a ver outros lados da história.
Nas palavras de Silvinha há realmente um detalhe curioso. Ela
nunca amou. Ora, não se trata de uma menina, Silvinha tem vinte e
cinco anos, sempre morou em cidade grande, tem uma família
numerosa, estudava, conhece uma porção de gente. Oportunidades
de encontrar homens interessantes não lhe faltaram, nem lhe faltam.
Como, então, nenhum despertou amor nela? E por que, entre tantos
que lhe eram indiferentes, escolheu este noivo?
Acho que é por aí que a gente poderia talvez entender este morno
amor. Um amor que não queima, que não oferece riscos, que não
exige nada. E que recebe tudo em troca. Um amor, afinal de contas,
muito conveniente. Pois o noivo, mesmo sabendo-se pouco amado,
dispõe-se a ser bom marido e bom pai, compra apartamento,
providencia 'tudo, e ama pelos dois.
Fica porém para Silvinha o desejo de um grande amor. E aí talvez a
gente tenha mais um "rabo de fora". Por que, tendo-se proibido um
grande amor até agora, ela receia tê-lo depois? Talvez por temer
que, garantida finalmente na vida, garantida a segurança, garantido
um ser amante a seu serviço, as suas defesas se enfraqueçam e ela se
deixe "escapar" finalmente um amor de verdade.
O que surpreendentemente parece se esboçar é que aquele morno
amor de que Silvinha se queixa é na verdade exatamente o morno
amor que ela quer, e que determinadamente procurou.
Aí está como três mulheres, três entre tantas, vivem meio tristonhas,
sem olhar muito para o lado, mas perscrutando o horizonte
ansiosamente, para ver se desponta ao longe o amor avassalador.
Querem o êxtase de Santa Teresa d'Ávila, vida e morte, a
iluminação. Esquecem que mesmo os santos, os abençoados, não
vêm andando distraidamente pelo claustro e, de repente, catrapum!,
lhes cai um êxtase em cima. Eles batalham a vida inteira para tê-lo,
jejuam, oram, se flagelam, e sobretudo amam, amam a natureza, o
próximo, o distante, amam tentando fortalecer seu amor a Deus,
para alcançar enfim a grande centelha. Como atletas, os santos
treinam.
Podem até não ganhar a olimpíada a que se propõem, mas estarão
sempre adiante dos outros.
O amor não é um privilégio. É uma escolha. Existem pessoas que
fazem tudo apaixonadamente, e nos dão a impressão de tropeçar
em amores apocalípticos. É só impressão. Na verdade elas não
tropeçam, procuram. Não de lanterna na mão, mas através de seu
próprio modo de viver, do arrebatamento com que se entregam a
tudo. Madame Bovary tinha pelo marido um morno amor e eis que
de repente uma paixão transformou sua vida. Foi por acaso?
Absolutamente. Ela era uma apaixonada vocacional, ardia de paixão
pela vida, a tal ponto que não suportava seu meio, queria mais de
tudo. E com essa ardência fabricou sua paixão. A Dama das
Camélias, outra grande amante, nunca tinha realmente amado até
encontrar Armand Duval. Caiu-lhe esse amor no colo? De modo
algum. Ela amava ardentemente a vida, o luxo, as jóias, o dinheiro.
Ela amava os homens pelo que eles podiam lhe dar. E quando teve
tudo, depois de treinar bastante em pequenos amores com seus
inúmeros amantes, deu a si mesma a totalidade por Armand.
Penso no amor. O amor que tenho por meu homem é acaso
diferente daquele que súbito me inspira a árvore que brota diante
da minha janela? Há o orgasmo, certo, e o orgasmo é vida e morte.
Não tenho orgasmo olhando para a árvore. Mas o orgasmo é físico,
acontece fisicamente, e eu apenas o enriqueço com o amor que
tenho pelo homem. E o enriqueço também com o amor que tenho
pela árvore.
Não quero complicar. Tento dizer que o amor é um só, aproximação
de ternura que nos liga a todas as coisas. E que o amor que sentimos
de repente voltado para uma só pessoa é resultado desse nosso
amor global.
Mas nós, ao contrário, somos criados na divisão do amor. Tudo bem
parceladinho, tudo ordenadamente posto em seus respectivos
escaninhos, com a intensidade já programada. Uma mulher deve
amar acima de tudo, e com intensidade nem comparável ao resto, o
seu homem. Isto, até a chegada dos filhos. Quando então deverá
amar os filhos mais do que o homem, e até mesmo amar o
fenômeno família mais dó que o próprio marido. A um homem
pede-se que ame o trabalho, ou o sucesso, acima de todas as coisas.
Tudo aparentemente estanque; nossa sociedade não se interessa
pelos vasos comunicantes do amor.
Nem Maria Clara, nem Silvinha, nem Elonice. Elas que se queixam
de que o grande amor não aparece, lamentam-se da tepidez de seus
amores. Ignoram, porque não lhes foi dito, que o grande amor não
surge no horizonte, fenômeno milagroso e resgatador, mas vem de
dentro, do lado, ramificação do amor pela árvore, pelo gato da
vizinha e, por que não?, frutificação do morno amor pelo namorado.
Amar é bom. Amar mesmo soltamente, sem grudar o amor a um
objeto, feito rótulo. Nada é melhor do que um fio de amor
escorrendo sempre pelo ladrão. Dele, desse fio, desse amor, desse
todo, fazem-se belas paixões.
Um morno amor, portanto, é melhor que amor nenhum. É um
começo, o fio da meada, o que pode nos ensinar a amar mais e
melhor. O objeto desse morno amor de hoje pode não ser o mesmo
da grande paixão de amanhã. Mas será sempre uma parte de nosso
querer bem, desse amor que é nosso e que mais cresce ao encontrar
a pessoa adequada.
O nó que o diálogo dá
Há muito digo e ouço dizer que o diálogo é a chave mestra do
entendimento, solução para o encontro a dois. Mas só recentemente
venho percebendo com mais clareza que há momentos em que o
diálogo dá um nó, e simplesmente não vai adiante.
Percebê-lo já pode ser considerado uma vitória. Acho que, assim
como durante tanto tempo eu teimei em levar o diálogo adiante
mesmo estando ele empacado, da mesma forma a maioria das
pessoas insiste e insiste, forçando uma situação verbal sem se dar
conta de que esta chegou ao seu ponto máximo. O fracasso é depois
debitado ao interlocutor, que "não entende", que "não aceita", que
"não abre mão".
Se pararmos de culpar o interlocutor e nos ocuparmos mais
atentamente do diálogo, perceberemos que nesses casos ele não
funciona porque, a partir do nó, simplesmente deixou de existir.
Fechou-se o canal de comunicação, e a conversa — porque virou
apenas conversa — passou a ocorrer em mão única, ou melhor, em
duas mãos únicas, uma para cada participante. Não há
possibilidade de encontro dessas duas conversas estanques, para a
elaboração de uma fala comum.
Num diálogo espinhoso, presto uma atenção de bode. Falo, ouço,
mas se de repente percebo que, plaft, o pente não passa, retido pelo
nó, começo a tomar minhas medidas.
Que medidas são essas? Depende. Mas a primeira é tentar perceber,
em silêncio mesmo, estudando a mim e ao outro, o que foi que
provocou o embaraçamento daquilo que eu havia previsto mais
fluente.
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