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MULHER DAQUI PRA FRENTE

MARINA COLASANTI

Para Ira e Sonia, amigas, mais que amigas.

Sumário
Chega essa culpa pra lá
Amor, infinito enquanto dure
O direito de mudar de opinião
A tirania do bom desempenho sexual
Se todos vêm te contar seus dramas
Mulheres assassinadas
Dois estilos, um casamento
Por que estamos tirando a roupa
Meu marido não deixa
Pais e filhos: quem deve o que a quem
Amor de uma noite só
Chorar não é privilégio feminino
Os homens também fingem orgasmo
Solte as feras
Amor responsável
Contar tudo "ma non troppo"
Fantasiando um amante
O que há por trás da rivalidade feminina
Aborto sem aforismos
Quando a gente ama, mas nem tanto
O nó que o diálogo dá
Tentar de novo o mesmo amor
Daqui pra frente

Prefácio
Tenho pouca paciência para prefácios. Alheios, que freqüentemente
pulo, só voltando a eles depois de já ter lido o livro. Meus, que evito
sempre que possível. Hoje, porém, gostaria de dar algumas
explicações.
Primeiro, quanto à formulação deste livro. Ao contrário de A nova
mulher, que o antecede, não se trata exclusivamente de artigos
escritos para a revista Nova. Nele incluí vários textos inéditos, por
sentir necessidade de abordar temas que não havia tocado antes,
para avançar em atualidade, e mesmo para atender a pedidos de
leitoras.
Segundo, quanto ao conteúdo. Este livro é feito de uma presença e
uma ausência. Presença de mulheres semelhantes a mim, de
formação burguesa, que neste momento se interrogam sobre sua
posição no mundo, sua essência de mulher, e procuram novos
ângulos de visão. Ausência de mulheres esmagadas por problemas
de sobrevivência, operárias, domésticas, camponesas, prostitutas e
faveladas, para as quais o problema da condição feminina é menor
frente à necessidade de reformulações sociais.
Não há, nesta ausência, alienação. Embora o livro não se ocupe
dessas mulheres, elas são elemento dominante nas conferências è
nos contatos que venho realizando pre,valecen-temente junto ao
público universitário, não só no Brasil como no exterior. O que
ocorre é uma injunção profissional, dever de atendimento ao
público ao qual minha revista se dirige. E também uma natural
inclinação para tratar daquilo que melhor conheço.
Que este livro não seja visto, pois, como uma pretensão
totalizadora. Mulher, vou escrevendo meu caminho. Um caminho
que, para todas nós, é daqui pra frente.

Marina Colasanti

Chega essa culpa pra lá


Culpa. Esta é uma palavra que tenho ouvido demais na boca das
mulheres. E incerteza. . .
Estamos, em bloco, culpadas. De quê?
Culpadas estão quase todas as que trabalham. Porque não estão em
casa, onde sempre lhes disseram que deveriam estar. Porque não
estão coladas nos filhos. Porque não estão à disposição dos maridos.
Porque, cumprindo a sua vida, não se sentem cumprindo à
perfeição aquelas que são consideradas suas atribuições
primordiais.
Mas culpadas estão também as que, em casa, ao lado dos filhos e
cuidando das camisas dos maridos, se perguntam se não estariam
deixando de preencher um destino maior. O seu vôo individual.
E culpadas nos sentimos todas se a nossa resposta sexual não é
completa. Assim como uma vaga culpa nos rói ao lado do parceiro
sexual insatisfatório, por não estarmos procurando outro. Culpa
menor, porém, do que aquela que nos ataca impiedosa, se afinal o
procuramos.
E em culpa, aflitas, nos perguntamos, será que estou fazendo bem?
Mas o que seria, meu Deus, fazer bem? Olho a mulher ao lado. Que
me olha. De frente ou enviesadas, em infindável cadeia, nos
olhamos todas, mulheres, procurando uma na outra a possibilidade
do acerto, a solução alcançada. E todas, cada uma no seu canto de
vida, nos achamos individualmente responsáveis, se não pelo erro,
pela sensação de erro. Pois além de todas as culpas, sofremos
também a de nos sentirmos culpadas de, apesar dos esforços, não
alcançar a serenidade.
Mas hoje, para a vizinha que me olha, para a mulher que me lê,
quero ter uma resposta. Não de acerto. Mas de caminho. Hoje quero
dizer, alto e bom som, que não, que não somos culpadas. Seja do
que for. Quero puxar o cordão das inocentes.
Digo logo: somos mutantes, mulheres em transição. Como nós, não
houve outras antes. E as que vierem depois serão diferentes.
Tivemos a coragem de começar um processo de mudança. E porque
ainda está em curso, estamos tendo que ter a coragem de pagar por
ele.
Que não seja porém individualmente, em tantos sofrimentos
calados. E sim em grupo, aos brados, como classe que reclama seus
direitos, e cobra das outras classes aquilo que lhe faz falta.
Saímos de um estado que, embora insatisfatório, embora
esmagador, estava estruturado sobre certezas. Isso foi ontem. Até
então ninguém duvidava do seu papel. Nem homens, nem muito
menos mulheres. Jamais passou pela cabeça da minha avó a
suspeita de que poderia ter sido profissional tão brilhante quanto
meu avô, e gostado disso. Era boa dona-de-casa, e quando nos
jantares o marido baixava de leve a cabeça aprovando a comida, ela
se considerava satisfeita. Tinha, na aprovação dele, a aprovação do
mundo. E se o molho dava certo era sinal de que tudo estava nos
seus devidos lugares.
Mas essa certeza nós a quebramos, para podermos sair do cercado.
Não fomos tão atiradas a ponto de quebrar tudo, sem ter o que
botar no lugar. Nós tínhamos, temos, uma nova certeza. Mais plena
e bonita. Mas a substituição leva tempo.
A certeza a que renunciamos estava solidificada através de séculos,
protegida por argumentações convincentes, que lançavam mão da
natureza, do instinto, das vontades divinas, da missão fundamental.
Se o ventre inchava, então não havia dúvidas, existíamos para ser
mães. Se a musculatura era menor, então não havia dúvida, a
natureza nos havia destinado a ser mais fracas. E se éramos mais
fracas, então não havia dúvida, o homem devia tomar conta de nós.
E tomar conta, nós sabemos o que significa. Se dúvidas havia, foram
devidamente sufocadas. Até chegar em nós. As viradoras de mesa.
Agora lá está a mesa virada, a louça toda no chão. Mas percebemos
que, enquanto duas pernas estão pro alto, as outras duas teimam
em ficar cravadas no chão, recusando o equilíbrio.
São, de alguma maneira, as correspondentes das nossas raízes.
Sim, nossa nova verdade é muito bonita. Achamos que existimos
não só para ser mães, como para muitas outras coisas mais.
Achamos que a cabeça, e não a musculatura, determina a força. E
que, com a cabeça que temos, não precisamos de ninguém tomando
conta da gente.
Temos certeza disso? Temos. Mas a certeza maior, aquela que
tranqüiliza, é feita também de vivência. E essa não temos.
Tudo começou tão ontem, que de fato ainda está começando. Se
olharmos para a frente, veremos apenas umas poucas pioneiras
antes de nós. E se olharmos para trás veremos uma grande multidão
que somente agora começa a acordar. A mudança não se fez. Está se
fazendo. E, no "durante" do processo, impossível ter as respostas e
as soluções já computadas.

No Canadá, num instituto ligado à educação, ocorria uma


importantíssima reunião. Uma amiga minha, Rosiska Darcy de
Oliveira, autora de Mulher, sexo no feminino, estava lá. Foi ela que me
contou. De repente, no acarpetado silêncio em que se tomam as
grandes decisões, explodiu alto, inesperado, o choro de um bebê.
Espanto. Levantam-se os componentes da mesa. Levantam-se as
secretárias. Viram a cabeça as telefonistas. Naquele lugar, por tão
improvável, o choro causava espanto. E foram todos procurar a
fonte de tanto estrépito. Fonte que logo foi encontrada, bebê rechon-
chudo, deitado em seu moisés, ao lado de uma funcionária.
O diálogo que se seguiu eu não ouvi, mas posso imaginar.
— Dona Fulana — deve ter perguntado indignada alguma chefe —,
o que significa isso?
— Isso significa um bebê. Meu filho.
— Mas o que ele está fazendo aqui?
— Está chorando, como a senhora pode ver.
E por que chorava ali o filho da funcionária? Porque tinha dor de
ouvido. E ela, a mãe, não podia deixar o filho doente na creche. Não
tinha com quem deixar em casa. Não tinha com quem deixar fora de
casa. Não tinha direito de faltar ao trabalho por doença de filho.
Então tinha resolvido o problema da única maneira possível,
trazendo o filho para o escritório.
A funcionária canadense era uma mutante, e tinha achado uma
solução mutante para o seu problema.
Como agiria a maioria das outras mulheres em situação
semelhante? Telefonando para uma amiga e pedindo para tomar
conta do bebê. Levando o bebê para a casa da vizinha e até pagando
para ela ficar com a criança. Faltando ao trabalho e sendo
descontada por isso. Ou seja, todas soluções individuais que, de
uma forma ou de outra, a deixariam em culpa.
É a isso que me refiro quando digo que não temos vivência da nossa
nova posição, ou da posição que estamos buscando. Porque,
colocadas diante de situações novas, tentamos resolvê-las à velha
maneira.
Não por falta de imaginação. Mas pela força da formação.
Educadas dentro dos antigos moldes, fomos por eles colocadas
numa direção. É de pequenino que se torce o pepino. E quando o
pepino, já grande, resolveu tomar seus próprios rumos, viu que
pelo. menos uma parte do feitio estava determinada. E era difícil
fugir dele.
Penso em nós, mulheres, e nos vejo como um bando de sereias, ou
centauros, seres estranhos formados de duas metades
absolutamente díspares, que lutam para chegar a uma convivência
pacífica, para juntar suas duas metades. Sem que ninguém nos
ajude nesse esforço. Muito pelo contrário.
Muito pelo contrário. O mundo ao nosso redor não virou mesa
nenhuma. A mesa estava posta por ele, e bem posta. Quem virou a
mesa fomos nós, à sua revelia. E agora, com certa candura,
esperamos que nos compreenda e nos ajude a completar o gesto.
Nem pensar. O grosso do trabalho teremos que fazê-lo sozinhas. O
mundo, por enquanto, embora sob disfarces de bonomia, ainda está
tentando nos trazer "de volta à razão". Sussurra palavras amáveis,
diz ao pé do nosso ouvido: "Está vendo só, olha no que deu teu
gesto. Você está assustada. Amedrontada. Você não está feliz.
Melhor como estava antes, quando, pelo menos, outros eram os
responsáveis". E muitas vezes, perplexas, confusas, quase
acreditamos, sem encontrar em nós as palavras para responder.
Sim, muitas de nós não estão felizes. Mas infelizes já éramos antes.
Infelizes institucionalizadas, e sem muito direito a choro. Agora
pelo menos, entre uma crise de culpa e outra, entre um momento de
insegurança e outro, temos uma esperança pela frente.
Mas as coisas tendem a melhorar. Ontem ainda os homens todos,
em massa, faziam parede contra nós. Eles ainda brandiam suas
certezas. E com elas nos ameaçavam. Hoje já se percebem nítidas
brechas nessa parede. E as certezas parecem menos veementemente
agitadas. Aos poucos alguns homens saem da massa e vêm
conversar conosco. Alguns se juntam a nós, trabalham ao nosso
lado. E parecem afinal perceber que não há nosso ou vosso lado, há
um lado comum.
Alguns. Não todos. A maioria o que faz? Nos proíbe de trabalhar,
nos cobra, nos humilha, nos despreza, quando não nos assassina. A
maioria diz: mulher minha não precisa trabalhar na rua. E o "não
precisa" significa "não pode". A maioria diz que a gente quer
trabalhar para abandonar os filhos, para se exibir para os outros
homens. A maioria diz que nossos salários são ridículos, que nossas
capacidades são diminutas, e que só nosso assanhamento é imenso.
A maioria diz não a nossos desejos de realização, porque a
realização de uma mulher está no lar.
E por que os ouvimos? Por que obedecemos? Por que deixamos que
minem nossa segurança? Porque conversamos mais com nosso
marido do que com outras mulheres. Porque sempre vivemos o
homem como pai, dador de ordens. Porque em muitíssimos casos
dependemos dele economicamente, socialmente. Porque temos
medo que nos tome os filhos. Porque, sobretudo, ainda não
crescemos o suficiente para recusar frontalmente o que ele diz.

A moça do Canadá tinha uma creche. Não podia deixar lá o filho


doente, mas a creche existe. As moças da Suécia têm padrões
sexuais definidos. A liberdade já se estabeleceu, fez seus limites.
Essas são condições bem melhores do que as nossas. Condições que
revelam um avanço na mutação.
Nós estamos ainda no limbo. E isso aumenta nosso mal-estar.
A mãe brasileira não tem onde deixar o filho pequeno para ir
trabalhar. Só as muito ricas. As outras não têm alternativa. São
obrigadas a recorrer a soluções precárias, que não solucionam nada,
que apenas remendam. Nem a situação melhora quando a criança
cresce, já que os horários escolares são breves, deixando a criança a
descoberto na metade do dia. No Brasil a criança ainda é um
problema exclusivo da mãe.
A moça brasileira não tem mais padrões sexuais. Estes variam de
acordo com a cidade, o bairro, a família, os amigos, a moda. E ela
pode se ver pressionada ao mesmo tempo por modelos antigos e
tradicionais, geralmente vindos da família, e pelo liberalismo total
do novo ambiente que escolheu. No Brasil a conduta sexual parece
não decorrer de um acordo social, mas depende3r exclusivamente
da mulher.
As mulheres do canadá e da suécia, assim como de tantos outros
países, t~em máquinas de lavar roupa, roupas que não se passam,
famílias que só fazem uma refeição completa por dia, hábito de
comer enlatados, filhos e maridos que partilham as tarefas
domésticas.
A mulher brasileira não tem implementos, tem familiares ociosos e
exigentes, todas as roupas para passar, tem que prover as três
refeições diárias. Algumas, para compensar, t~em empregadas
domésticas. Mas o lar é de sua exclusiva responsabilidade. E exige-
se que funcione à perfeição.
Procurando a nossa individualização, deveríamos portanto somar
ao trabalho na rua ( e o esforço profissional que tem que ser
colocado para ‘provar” nossa capacidade0: atividade de mãe
perfeita, atuação de dona-de-casa exemplar, segurança e excelência
no leito. E pensamos poder fazer isso tudo sem fraquejar, sem
cansar, sem duvidar, sem nos contradizer e nos culpar.
É demais !
Somos absolutamente inocentes. Disso tenho a certeza. Mas somos
uma geração intermediária, uma geração forçosamente esmagada.
Nossas novas exig~encias vieram se somar ao muito que de nós já se
exigia. Nada nos foi aliviado. E não podemos ser nós as culpadas
por esta sobrecarga.
A única culpa que talvez tenhamos, se culpa se pode chamar, é a de
não reconhecer isso. De não aceitar a insegurança como natural.
Estamos desmatando, abrindo caminho para as outras, e é apenas
justo que no traçado desse novo caminho tenhamos hesitações.
Precisamos, urgentemente, aprender a conviver com elas sem tanto
sofrimento.
E a usá-las a nosso favor, se, a cada vez que a incerteza aponta, a
jogamos para a frente, a passarmos adiante, outros serão obrigados
a participara dela, a fazê-la sua. Como no caso do beb~e canadense.
Os problemas, esses problemas todos que nós sofremos, até mesmo
envergonhadas de sofrê-los, não são pessoais. São coletivos. E cabe
à coletividade resolvê-los.
Mas não nos façamos ilusões. Os outros só seguram um problema
quando são obrigados, nunca espontaneamente. E quem tem que
criar a obrigatoriedade somos nós. A moça canadense se arriscou a
ser despedida. Mas ela sabia que se fosse despedida poderia criar
um caso jurídico, e venceria. Ela não foi vista com simpatia pela
chefe. Mas todas as outras mulheres do instituto se
identificaramcom seu problema e viram nela uma solução.A partir
daquela data, quem tiver um filho doente o trará para o trabalho,
porque há um precedente. E o instituto se verá na obrigação de criar
uma solução. O bebê da funcionária deixa assim de ser apenas o
bebê da funcionária, e se transforma no filho da sociedade, ao qual a
sociedade tem que prover.
Olho a mulher ao lado. Que me olha. Mas, enquanto uma procurar
na outra a receita para o seu problema, não chegaremos a conclusão
nenhuma. A conclusão virá quando, reconhecendo-nos
semelhantes, juntsrmos nossos dois problemas e exigirmos a
solução àqueles que absolutamente não estão nos olhando.

Amor, infinito enquanto dure


Eu possa me dizer do amor (que tive) Que não seja
imortal, posto que é chama, Mas que seja infinito
enquanto dure.

"Soneto da fidelidade" (Vinícius de


Morais)
Dito por Vinícius, e já dito antes por Goethe, fica bonito, fica
romântico. Um amor ardente, vivido como se eterno. Um amor
perecível que não se entrega à consciência do fim. Dá muita
literatura, dá poema, dá samba. Mas não dá felicidade.
Os vates que me perdoem, mas uma coisa é a métrica suave dos
sonetos e outra a batida da realidade. Debaixo das rimas, espanando
douradas poeiras românticas, descobrimos que o amor é mais
bonito quando o aceitamos pelo que é. Amor sem prazo marcado,
sem relógio de ponto, que fica quando quer e enquanto quer, que se
permite ser intenso e passageiro como um verão de cigarra, sem que
se queira metê-lo na prisão de eternidade. Amor que não sendo
medido pelo calendário, se mede pelo prazer.
É olhando mais de perto esse amor aliviado do peso do infinito, esse
amor/realidade, que percebemos os riscos do seu oposto, aquele que
vem e que nos consideramos na obrigação de conservar "até que a
morte nos separe".
Risco n.° 1 — dispostas a fazer daquele amor (ou de qualquer outro
que tivesse entrado primeiro em cena) o amor eterno dos nossos
devaneios românticos, passamos a idealizá-lo, a cobri-lo de glacê
cor-de-rosa, a revesti-lo de um valor e sabor que na verdade não
tem, mas que o tornariam capaz de vencer tempo e desgaste.
Risco n.° 2 — no esforço de idealização, ignoramos a realidade,
passando a enxergar apenas aquilo que nos interessa, que se encaixa
no modelo da alma gêmea total. Aos poucos, aceitamos como
verdadeira a falsa glacê, e ainda nos convencemos de que o melhor
está por baixo.
Risco n.° 3 — transformamos o amor num campeonato de
resistência, valorizando-o mais por sua duração do que por seu
conteúdo. É o perigoso "salvar meu amor acima de tudo", quando
nos agarramos a uma relação que já não nos convém, que se
transformou numa teimosia, da qual nos recusamos a abrir mão
"acima de tudo", acima até da nossa felicidade.
Risco n.° 4 — é um risco mesmo, do verbo riscar, risco que traçamos
na nossa contabilidade afetiva, dando por encerrado o balanço e
fechando a porta a qualquer possibilidade de um novo (e, por que
não, melhor) amor. Se o eterno chegou, não haverá mais espaço
para qualquer outro.
Perigoso, então, esse amor eterno tão cantado. E de pouca serventia.
Raro também, ao que tudo indica. Então por que teimamos em
encontrá-lo, e fazemos questão de confundir com ele qualquer outro
amor menos vital que se apresente? Por que nos é tão difícil aceitar
que o amor simplesmente acabe e se vá, como todas as outras
emoções?
Entenderíamos melhor, talvez, se soubéssemos ao certo o que é
amor.

Atrás desse conhecimento, decifração do grande momento do ser


humano, estamos todos, filósofos, literatos, amantes. De Platão a
Stendhal temos tentado respostas. Mas a pergunta continua no ar,
sem certezas para preenchê-la. Atualmente, fazendo jus à era
tecnológica, cientistas do comportamento alimentam computadores
com suspiros de amor, analisam doces frases, pesquisam lágrimas e
secreções glandulares. Há cerca de uma dúzia deles, só nos Estados
Unidos, onde até verbas federais foram concedidas para garantir o
prosseguimento dos estudos. E vagas respostas se delineiam.
Uma delas é a de Bernard Murstein, do Connecticut College, que
concentrou sua pesquisa na atração física, e após estudar duzentos
casais elaborou a teoria da eqüidade, segundo a qual as pessoas se
escolhem de acordo com uma certa equiparação física. Não parece
uma grande novidade, embora venha tão fundamentada. Os bonitos
sempre preferiram os bonitos, e os feios se acasalam
satisfatoriamente entre si. O belo que se casa com a horrenda, ou
vice-versa, constitui minoria, e está provavelmente preenchendo
necessidades psicológicas outras.
A teoria da eqüidade é reforçada pela psicóloga Elaine Hatfield, que
patrocinou um programa computadorizado de escolha de casais
(uma versão mais sofisticada do correio sentimental) entre
estudantes da Universidade de Minnesota, e verificou que a maioria
dos estudantes solicitava um companheiro parecido consigo
mesmo.'
A teoria da eqüidade explica em parte nossa relutância em romper.
Se procuramos alguém parecido conosco, estamos na verdade
procurando um espelho que nos reflita, uma duplicação. Queremos,
no outro, um pedaço de nós mesmos. E quando por fim o
encontramos, simplesmente o reincorporamos como parte
necessária. Abrir mão dessa parte se nos afigura então como abrir
mão de uma parte de nós mesmos. E sofremos pensando que nunca
mais recuperaremos esse fragmento de carne e sentimento, do qual
fomos obrigados a nos desfazer.
Duplo engano. Vai-se o objeto do amor, mas nem tudo vai com ele.
Fica o que dele aprendemos, o que com ele vivemos, ficam um
tempo e uma lembrança que em nossa memória não serão estáticos
nem desgastáveis, mas que continuarão agindo, em sucessivas
modificações.
Nem corresponde à verdade a sensação de "único" que nos aflige na
hora da ruptura. Aquele que se vai era um reflexo de nós, mas
apenas um reflexo, uma parte, um ângulo. Não encontraremos
outro como ele, é certo, mas encontraremos outros como nós. Vários
outros, todos os outros com os quais iremos compondo o mosaico
da nossa identificação amorosa.

O amor, porém, é bem mais do que apenas um jogo de espelhos. O


amor, ou melhor, o conceito de amor, obedece a ciclos culturais,
históricos. É aquilo que o filósofo José Ortega y Gasset, em seu livro
Estúdios sobre el amor, definiu como modas do amor. "A vida humana
é, em sua própria essência e em suas irradiações, criadora de modas,
ou, dito de outra forma, é essencialmente 'modificação'. . . O senti-
mento amoroso tem, como tudo o que é humano, sua evolução e sua
história, que se assemelham sobremodo à evolução e à história de
uma arte. Nela se sucedem os estilos. Cada época possui seu estilo
de amar. A rigor, cada geração modifica sempre, em maior ou
menor grau, o regime erótico da anterior."
Assim, no fluxo de suas "modas", o amor foi eterníssimo na Idade
Média, ao tempo do Amor Cortês, quando os menestréis e as damas
viviam paixões platônicas com o consentimento dos maridos. Era o
tempo em que toda a cultura se voltava para o espiritual, deixando
o físico de lado. Sem sexo, sem contatos, sem muitos encontros, o
amor ardia em chamas puramente mentais aspirando à eternidade.
(A qual, sem os desgastes e atritos da convivência, era até mais pos-
sível.)
Fim da Idade Média, início da Renascença, lá se vai a sede de
eternidade para o canto, enquanto a fome da carne toma o primeiro
plano. Descobriam-se as curvas do Barroco, desejavam-se as curvas
da anatomia, e o importante era o aqui e agora. Importância que
teria talvez chegado até nós intacta se não houvesse se intrometido
o Romantismo. Para os românticos a mulher amada é novamente
distante, e só há duas possibilidades para o amor: ou acaba em
casamento (leia-se felicidade eterna) ou em morte.
Hoje a nossa moda, a nossa descoberta, é o efêmero, a
transitoriedade de todas as coisas. Fazemos roupa de papel para ser
usada e jogada fora, substituímos filosofias no ritmo acelerado da
comunicação de massa, compramos eletrodomésticos e carros com
"obsolescência planejada", já feitos para durar pouco e obrigar à
reposição.
E no amor? No amor também descobrimos o efêmero, mas
continuamos presos ao eterno.
O amor não é mais obrigatoriamente eterno. Não é preciso amar um
só por toda a vida. A sociedade permite, e em certos casos até
estimula, que se ame mais de um, que se tenham experiências. E
muitos jovens já vivem o amor pelo que possa ser, sem maiores
preocupações com sua durabilidade, certos de que, como tudo mais,
ele também é descartável após o uso. Mas a maioria, a grande
maioria ainda se debruça sobre o espelho do amor preocupada
sobretudo em não quebrá-lo.

Queremos o amor eterno, apesar de sabê-lo tão improvável, porque


ele é a única maneira de evitar rupturas. E a ruptura nos assusta
desmesuradamente.
Romper é mais angustiante do que a realidade do fato em si. E
consegue ser angustiante até mesmo quando já não estamos
interessados no homem em questão, e nós próprias pedimos o
encerramento das contas.
É fácil deduzir que o que nos assusta não é exatamente a perda do
companheiro ou do amor, mas a perda, pura e simplesmente. Não
temos coragem de abrir mão de algo que conhecemos, algo que já
sabemos manobrar, para ficar com nada, enfrentar o vazio. E, diante
da opção, pesamos e repesamos mil vezes o pouco que temos,
cuidamos de valorizar aquilo que já sabemos sem valor, tentamos
nos convencer de que as coisas talvez consigam melhorar, de que
aquele amor tão sem jeito possa ser recuperado.
Ao medo da perda, soma-se o medo de ter que recomeçar. Encerrar
uma relação significa voltar para a sala de espera do amor, ficar na
rabeira da fila, desamparado e de lanterna na mão qual um
Diógenes, à procura do homem ideal. Significa reacender as
esperanças, arrumar tudo de novo, e de novo submeter-se ao risco
de encontros e desencontros. Significa viver mais uma vez a emoção
e os riscos da disponibilidade.
Significa também, é claro, a possibilidade de um novo e radioso
amor, de descobertas propícias, de horizontes mais amplos. Mas
isso dificilmente conseguimos ver, porque estamos de testa baixa,
carregando a culpa de um fracasso.
Aí está um dos mais graves problemas que o mito do amor eterno
nos criou. Imbuídos da obrigação de viver uma relação perfeita e
infinita, sentimos a ruptura como uma falha pessoal, um grave
fracasso. Se o amor não deu certo foi porque não soubemos
conduzi-lo de maneira apropriada, não soubemos amar ou fazer-
nos amadas. Nós somos responsáveis pela destruição do nosso
amor. E como tais nos culpamos vedando o caminho da esperança.
Parece um problema de lucidez. Mas é sobretudo um problema de
congestionamento de trânsito. Para a área do amor convergem
todas as emoções, todas as pressões sociais e familiares, as pequenas
e grandes neuroses, as carências. Há muito mais coisas envolvidas
do que apenas um homem, uma mulher, e o momento da sua
separação. Não é difícil, portanto, confundir aquele que seria o
desejo de continuar ao lado de alguém que se ama com a
necessidade de segurar alguém de quem se precisa. Ou considerar
como emoção de amor o medo de solidão que nos estremece. E é
nessas confusões que relutamos em partir, multiplicando a angústia.

Se um amor acaba, de uma coisa podemos estar certos: não tinha


vocação para a Academia do Amor, e por mais que nos
esforçássemos jamais chegaria à imortalidade. A verdade é que a
maioria dos amores não só não tem essa vocação, como prescinde
tranqüilamente dela.
Pelo contrário, a vocação do amor é, ao que tudo indica, ser
passageiro e tumultuado, furacão que com sua nova ordem altera
tudo, e passa. A confirmação recente desse conhecimento antigo
está nos estudos da psicóloga americana Dorothy Tennov, da
Universidade de Bridgeport, que lançou não só um livro sobre o
assunto como uma nova palavra que o define. Love and Umerence é o
nome do livro, sendo lime-rence o apelido com que doravante, pelo
menos durante algum tempo e nos círculos mais sofisticados, se
designará a paixão.
Segundo a Dra. Dorothy, os sintomas de Umerence são: pressão no
peito, desejo agudo de reciprocidade, medo da rejeição, mudanças
drásticas de humor, aumento dos sintomas mesmo na adversidade,
e pensamento constantemente voltado para o OL , ou objeto limerente.
Este quadro clínico nos permite identificar a nova síndrome com o
nosso velho conhecido mal de amor.
Mas eis que outros dados elucidativos se acrescem. Os estudos
realizados permitem à psicóloga afirmar que a Umerence tem um
prazo de vida previsível, inscrito na modesta média de dois anos. E
mais, que é vizinha muito próxima da loucura e que pode, entre
outros dramas menores, nos levar a casamentos errados cujo fim
natural será o divórcio.
Aí está, dito por uma autoridade no assunto, aquilo que tantas
vezes teimamos em escamotear. O amor é basicamente uma
emoção, e das mais fortes. Não fazem parte das emoções nem a
durabilidade, nem o controle. A emoção dita seu próprio tempo,
que escapa a todas as juras e boas intenções. E, portanto, embora
apaixonadíssimos, estamos freqüentemente envolvidos em relações
cuja característica verdadeira é a precariedade. Precariedade que
melhor seria aceitar desde o início.

Viver todo amor como se infinito pode parecer ideologicamente


bonito. Mas nem isso é. Porque equivaleria, em princípio, a viver
todos os amores como se fossem idênticos, cópia carbono um do
outro. Não só, como equivaleria também a negar as experiências
anteriores, o aprendizado amoroso todo, as justas desconfianças que
a vivência nos dita. Viver todo amor como se infinito não é, em
suma, viver o amor, mas perseguir um inútil sonho de perfeição.
Cada amor é um novo acontecimento. Pode ser circunstancial, preso
a um conjunto de situações momentâneas que ao se desfazer o
levará consigo. E ser assim mesmo ótimo. Pode ser intenso, mas
desencontrado, de um desencontro que aumenta com a convivência
e com o tempo, colocando o fim como melhor solução. Pode ser
maravilhoso, aparentemente perfeito, e ir mudando aos poucos, à
medida que nós mesmos mudamos. Pode, apesar de impetuoso,
começar em bases erradas, e mais adiante pedir trégua. Ou pode,
desde o início, estar destinado a ter a duração de uma viagem ou de
um período de férias. Enfim, um amor pode ser maravilhoso, gra-
tificante, apaixonado, sem precisar ser eterno.
E será mais intensamente aproveitado se reconhecido pelo que é, ou
se, mais simplesmente, tirarmos de nossa cabeça essa terrível
preocupação temporal.
Está certo, fomos todas criadas na convicção de que um marido é
fundamental, e por trás do romântico "amor eterno" visualizamos
freqüentemente o prosaico "marido garantido". Mas de que vale a
garantia de um marido se nele já não está mais a nossa felicidade?
Defender o casamento, ou mesmo a possibilidade de casamento, a
qualquer preço é uma perigosa faca de dois gumes que geralmente
se volta contra nós. Pois não estamos mais defendendo o amor ou
sequer a possibilidade de amor, mas usando-o como desculpa para
escamotear nosso medo de enfrentar a vida com seus vãos de
desconhecido e seus momentos de solidão.
Lutar para conservar um amor que existe e que está ameaçado é
bonito e justo. Mas é preciso examinar bem esse amor, confirmar
sua força e sua validade, para não quebrar lanças na defesa de um
fantasma. Pois lutar para preservar apenas uma relação da qual o
amor já desapareceu é um erro que não podemos de modo algum
computar na conta do querer bem.
Assim como deixamos abertas as portas e disponíveis os sentidos
para receber a chegada de um amor, devemos deixar livre a
passagem para que serenamente se vá quando chegada a hora.
O direito de mudar de opinião
Opinião é feito navio: a gente não abandona, afunda com ela se for
preciso. Foi o que pensei desde criança, desde quando me
convenceram de que assim estava certo. A vida, pensava eu, era
para ser levada na base do "repete se você é homem", e a gente ali,
homem paca, repetindo incansável e heroicamente, agarrada
naquele ponto de vista, fazendo da manutenção da opinião uma
questão de honra, quando honra ainda era fundamental.
Foi isso que me disseram, e foi nisso que acreditei até certa hora.
Depois pulei fora. Agora convivo serenamente com a evidência de
que as minhas opiniões não são definitivas. E como o poeta
americano Walt Whitman, tenho repetido freqüentemente: "Você
diz que eu me contradigo. Sim, eu me contradigo mesmo".
"A melhor surpresa", segundo o slogan de uma grande cadeia de
hotéis americana, "é não ter surpresa nenhuma." É encontrar tudo
como esperávamos. Gostamos de chegar em casa e deparar com as
coisas nos seus devidos lugares. O jarro no centro da mesa, sofá e
poltronas em esquadro bem comportado. Qualquer quebra nessa
arrumação é suficiente para nos mergulhar no espanto. O mesmo
com as idéias. Gostamos da nossa cabeça bem arrumada. Opiniões
já conhecidas, nos seus conhecidos lugares. Pensar parece assim
mais fácil, viver parece mais seguro. Basta estabelecer os parâmetros
iniciais, e tocar o bonde.
Os trilhos da vida, porém, não são tão paralelos. Crescemos,
aprendemos, e de repente aquela bitolinha fica estreita demais, e o
caminho traçado, que acreditávamos tão exclusivo, revela-se apenas
um, entre tantos. É hora de mudar.
É hora mas hesitamos: é? seria? não é? A incerteza nos pega pelo pé,
o medo nos abocanha pelo estômago. E os preconceitos cravados na
nuca, no pé do ouvido, murmuram que mudar de opinião é
sinônimo de inconstância, que o bonito é manter-se firme nas
próprias opiniões.
Altissonante, mas falso e perigoso. Pois o mundo não se fez ficando
parado, nem é ancoradas a idéias já superadas que encontraremos
nosso crescimento.

"Só os parvos não mudam", rebateu Rui Barbosa certa vez, ao ser
acusado de mudar de idéia. A frase certamente não agradou às
multidões, e muito menos a quem o acusava. Ninguém gosta de ser
chamado de parvo. Mas, apesar de ser um ato inteligente, qualquer
mudança de opinião encontra grandes resistências.
Resistências de fora, em primeiro lugar. Os outros, ou seja, a
sociedade como um todo não costuma gostar de pessoas
questionadoras. É o mesmo fenômeno da sala. Tudo é mais fácil
quando ocupa apenas um espaço já estabelecido. Tudo é mais
controlável. Uma pessoa que não questiona aquilo que aprendeu
desde pequena, uma pessoa que não pergunta o porquê das coisas,
uma pessoa que não procura a própria verdade é certamente uma
pessoa obediente, fácil de ser conduzida pelos caminhos que os
donos do poder houverem por bem lhe traçar.
Da mesma forma, uma pessoa que, embora tendo questionado
algumas verdades iniciais, "empaca" numa verdade que estabelece
como sendo a única verdadeira e imutável é uma pessoa previsível,
em relação à qual podem-se armar os esquemas.
Mas a pessoa questionadora, a que está sempre repensando as
coisas e procurando novos ângulos de visão, esta não é uma mobília
bem comportada, um sofá em esquadro, é um ponto de
interrogação no meio da sala, a exigir dos outros idêntica dinâmica.
E esta dinâmica os outros, enquanto maioria, não têm, e não querem
ter. Porque essa dinâmica assusta.
Mas antes de vermos por que assusta, quero fazer um desvio e dizer
que, se todos sofrem violenta repressão às suas mudanças, nós
mulheres sofremos muito mais. Em nós a mudança é logo vista
como futilidade, como falta de segurança. "La donna è mobile qual
piuma al vento", diz a ária de ópera ("a mulher é móvel, como pluma
levada pelo vento"). Ou seja, vai onde o vento sopra, onde é levada, e
não onde deseja ir, onde sua inteligência lhe diz que é o lugar.
Mudanças de opinião, em nós mulheres, são vistas com maior
espanto, porquanto é tido como certo que não temos opinião
alguma, e então, como mudar o que não existe? Hoje, até o fato de
reivindicarmos o direito de ter opiniões aparece como uma
mudança. E o quanto assusta estamos vendo por aí nas reações da
nossa sociedade ainda tão machista.
Feito o desvio, apreciada a paisagem que parece lateral mas que
para nós é talvez a mais importante, vamos voltar ao medo que
mudar de opinião desperta em todos nós.
Sim, todos nós temos dificuldade em pegar uma idéia que já
tínhamos e esquartejá-la, minuciosamente estudar-lhe as vísceras,
para depois decidir se é o caso de recompô-la ou de transformar o
exame em autópsia e enterrar logo o cadáver. Todos nós hesitamos.
Por quê?
a — Porque poucas coisas são tão confortáveis quanto uma idéia
velha. É feito chinelo que o pé já conhece, gato manso que
acariciamos sem olhar. Assim a idéia que já está conosco há muito
tempo. Sabemos de cor seus desvãos, seus argumentos. Não
precisamos quase raciocinar para defendê-la, basta desfiar o rosário
das frases com que a estruturamos ao longo dos anos, ou repetir os
conceitos de que ela veio acompanhada quando nos foi vendida.
Uma idéia já conhecida e explorada não nos causa ansiedade, não
nos ameaça, vem mansamente ao trote quando a convocamos, dócil
cavalo de batalha, e se insere sem alarde entre as outras rotinas da
nossa vida. Uma idéia velha não nos exige.
b — Abrir mão, seja do que for, sempre é difícil. E mais difícil fica
no caso das opiniões, quando, freqüentemente, sobre elas outras
coisas foram construídas. Abrir mão de uma opinião raramente
significa abrir mão apenas dela, mas sim dela e de outras que lhe
são ligadas, e, em cadeia, de um determinado comportamento.
Abrir mão de uma opinião é, em última análise, abrir mão de um
pedaço em si. Se, por exemplo, consideramos que ir à praia topless é
uma indecência, ao mudarmos de opinião não estamos mudando
somente em relação à parte de cima do biquíni, mas sim à exibição
do corpo, ao direito sobre esse corpo, à relação desse direito
confrontado com as expectativas do nosso grupo social, e ao próprio
conceito de decência. É uma mudança grande, bem maior do que
parece à primeira vista, e nada mais natural do que hesitar diante
dela.
c — Toda mudança causa conflito. Até a idéia de vender o carro
usado e comprar um novo nos transtorna. E isto porque toda
mudança implica em avaliação, julgamento. Se vou trocar meu
carro, preciso saber se o antigo era bom, e, sendo bom, se era melhor
do que as marcas todas que a publicidade tenta me impingir, se
houve alterações no mercado, e quais as minhas possibilidades
aquisitivas. Enfim, preciso analisar vários dados e confrontá-los.
Um processo idêntico ocorre em relação às opiniões. Para trocar
uma opinião por outra, preciso confrontar as duas, julgar sua vali-
dade, decidir qual me parece melhor. Esse julgamento, essa decisão
ao salto, assusta.
d — Se hoje penso de um jeito a respeito de determinada coisa e
amanhã decido mudar, será necessário reconhecer que meu
pensamento estava errado, ou que, pelo menos, tornou-se errado
em determinado momento. Será preciso reconhecer meu próprio
erro. E quantos gostam disso?
e — uma opinião importante é um modo de ser e de viver. Nossos
amigos, nosso grupo, nossos parentes estão acostumados com
nossas opiniões. Mudar uma opinião significa muitas vezes ter que
enfrentar o nosso grupo. E sabemos que o grupo tudo fará para nos
manter como éramos, do jeito que já nos conheciam, nos aceitavam,
do jeito que tornou possível nosso entrosamento. A mudança de um
dos elementos do grupo é vivida pelo grupo como ameaça de
desintegração, de modificação generalizada, e é conseqüentemente
combatida. Sabemos portanto que mudar de opinião nos exigirá
trabalho, explicações, discussões. Uma luta, enfim, pequena ou
grande, mas luta, uma oposição às pessoas que mais queremos.
f — E numa luta, por menor que seja, temos sempre duas
possibilidades: ganhá-la, ou perdê-la. Podemos, por causa de uma
opinião, perder o afeto ou até a estima de pessoas a nós ligadas.
Podemos dialogar, convencer, mas corremos sempre o risco de
subitamente perder a aceitação do outro e abrir distâncias
insuperáveis. O medo dessa possível perda está presente, ainda que
nem sempre conscientizado, ao enfrentarmos o processo de uma
mudança de opinião.
g — E outro medo se engancha no nosso pé. O medo do
desconhecido. Abro mão da idéia velha, meu confortável chinelo,
em troca de uma idéia nova. Não só terei que amaciá-la, e a mim
com ela, mas terei que reorganizar minhas idéias todas, rever o
resto. E certamente sairei mudada, ainda que um pouco apenas,
ainda que parcialmente. Que eu mudada serei então? Não sei, não
tenho como saber. E o não saber me assusta.
De tanto falar em medos, estou aqui quase espalhando o pânico.
Que essa conversa sirva para o entendimento, mas não nos assuste.
São vários medos, mas enfeixados em um só, e não tão forte a ponto
de impedir que as opiniões mudem, constantemente.
Tivemos medo, e quanto!, quando Galileu apareceu afirmando que
a Terra não só não era fixa, como girava em torno do Sol. Afinal,
Ptolomeu nos havia convencido do contrário, e a teoria dele era
mais bonita, nos conferia mais importância, com o Sol girando ao
nosso redor servilmente. Galileu foi processado, ameaçado de
morte. Mas aos poucos acabamos mudando de opinião e acatando
sua frase murmurada: "Eppur si muovel" (E no entanto se mexe!)
Hoje, até o Vaticano revê seu processo.
O Novo Testamento mudou opiniões formadas pelo Velho. E, não
fosse a onisciência, até Deus teria mudado sua opinião em relação a
Adão e a Eva depois do fato da maçã. Enfim, a nossa história é a
história das nossas mudanças de opinião.
"Quem pretende uma felicidade e uma sabedoria constante deveria
acomodar-se a freqüentes mudanças", dizia Confúcio. O problema é
que às vezes, embora pretendendo a felicidade, não queremos nos
adaptar. Duvido, por exemplo, que o próprio Confúcio, machista
convicto que definia a mulher como "um homem inferior" e que
estabeleceu um violento esquema de dominação da mulher na
China, conseguisse aceitar colocações mais feministas, as mesmas
que hoje estão criando uma modificação radical de comportamento.
Esquecidas das enormes mudanças de que fazemos parte, relutamos
às vezes em mudar uma nossa pequena opinião. Mas por que
estaríamos condenadas à prisão de idéias gradeadas, se tudo ao
redor anda?
Mudar nossa opinião em relação à conduta sexual, por exemplo, é
uma mudança individual. Mas é também parte da grande mudança
coletiva que a sociedade ocidental vem nas últimas décadas
formulando e que já chamamos Revolução Sexual. E o mesmo
acontece quando repensamos nossa relação com as minorias, ou
quando simplesmente decidimos parar de comer aqueles mesmos
enlatados que tanto nos seduziam. Mudamos individualmente, e
individualmente corremos os riscos de mudança, mas nosso
comportamento e nossa nova escolha se inserem no conjunto mais
amplo.
Precursoras, podemos viver nossa mudança em solidão, precisando
de mais energia para derrubar a reação ainda compacta contra
nosso gesto. Ou, mais prudentes, chegamos à mudança quando um
maior número de evidências se acumula e já encontramos vozes em
que nos apoiar. Tempo e momento, cada um faz o seu. Importante é
a convicção.
Taí uma palavra sem a qual se.invalida tudo o que dissemos:
convicção. Esta é a alavanca fundamental para qualquer,
verdadeira, mudança de opinião. Mudar de opinião por
insegurança, para acompanhar os outros, para não ficar por fora,
pode fazer de nós figuras patéticas.
Mas opinião não é honra, opinião não é jura, opinião não é
sobrenome, carga genética, nada que não se possa mudar. Se hoje
você diz uma coisa, e amanhã percebe que não concorda mais com o
que disse, pode não se tratar de inconstância, mas de lucidez. Isso, é
claro, se depois de amanhã você não pensar de outra maneira, e no
dia seguinte tornar a mudar, como uma ventoinha.
O normal, o saudável é mudar. Como exemplo nos sirva o livro de
Fernando Gabeira, Que é isso, companheiro?, cujo sucesso se deve em
grande parte ao fato dele rever, pública e honestamente, suas
opiniões vitais, seu comportamento, sua atuação política. Ao fazê-
lo, ele se torna mais humano e próximo do que a imagem
puramente heróica que dele se tinha.
Assim, também no amor nos tornamos mais acessíveis na medida
em que somos capazes de rever nossas posições, e de mudá-las
quando necessário. Temer que o outro viva nossas mudanças como
fraquezas e delas se aproveite contra nós ou contra a relação,
subjugando-nos, é não ter confiança no outro, nem em nós mesmas.
E, nesse caso, tampouco adiantaria cravarmos os pés
irredutivelmente numa única posição.
Mas, para mudar, é conveniente fazê-lo com justeza. E a justeza,
onde está?
Não sei, nem ninguém sabe, pois é preciso desencavá-la a cada vez,
entre pedras, cactos e tantos arremedos de justeza. Sei, talvez, como
me armar para procurá-la melhor. É meu armamento individual,
mas talvez sirva a outros.
Preciso, eu sei, ter confiança em mim, na minha capacidade de ver,
no meu discernimento. Sempre haverá quem queira me demover, e
com belos argumentos, cantos de sereia. Ao contrário de Ulisses que
botou cera nos ouvidoá para não ouvi-los, eu deverei abrir bem os
meus e deixar que entrem os cantos todos, para sopesá-los. A fé na
minha balança, a mim cabe.
Sei que até o fato de eu ser mulher será em algum momento usado,
direta ou indiretamente, para me demover. Tentarão me convencer
de que sou fraca, mais suscetível a engodos, inocente. Mas
exatamente o fato de ser mulher me servirá de fortalecimento. Pois
sei que por ser mulher tenho que ser mais aguerrida, e por ser uma
mulher que questiona sou mais lúcida do que tantos.
Preciso, eu sei, de dados. É com o conhecimento que consolido e
comprovo minha sensibilidade. É com o conhecimento que construo
argumentos. É com o conhecimento que armo o quadro e escolho as
minhas tintas.
E tendo os dados, preciso do hábito da análise para saber interrogá-
los. Se me acostumo a aceitar tudo o que me dizem, sem questionar,
sem elaborar, será difícil, impossível quase, encontrar caminhos
novos, que sejam os meus. A análise se afia na prática, no exercício
diário, na observação de análises alheias. A análise é pôr em dúvida,
submeter a exame, comparar. A análise é o jogo que realizamos
entre a tese e a antítese, para chegarmos à síntese. A análise é um
dos mais comoventes exercícios da mente.
Tendo fé em mim, tendo os dados e a capacidade de análise, que
não me falte ainda assim a humildade de pedir explicações. Não
entender, ou entender mal, é direito do qual não abro mão. E é
contingência da qual não devo me envergonhar. Quando alguma
verdade ou suposta verdade me for servida em belo prato, nunca
começar a comê-la sem antes verificar os ingredientes de que se
compõe.
Assim talvez seja mais possível o acerto nessa galeria de espelhos
que o mundo se esmera em fabricar para nós. Assim, pelo menos,
mesmo errando, poderei chegar a uma conclusão que seja a minha,
e que eu tenha não só forças como prazer em defender.
A tirania do bom desempenho sexual
Do sexo, o que queremos? Que seja bom, que nos dê prazer, que
acrescente à nossa vida momentos cantantes e uma espraiada
sensação de plenitude.
Ou, pelo menos, é o que queríamos "antes". Porque agora, mal
entendendo a meta da revolução sexual, ou tangidas por uma
exacerbação social, muitas se acreditam obrigadas a querer do sexo
um super-resultado, decorrente de um superdesempenho.
E o que seria um superdesempenho? Sem entrar na cabine
telefônica como Clark Kent, mas tirando a roupa para operar a
metamorfose, qualquer simples mortal deveria tornar-se capaz de
obter orgasmos múltiplos, bater recordes de freqüência, superar as
habilidades das gueixas, acrescentar novas e acrobáticas posições
àquelas já elencadas pelo Kama Sutra, não restringir-se à monotonia
monogâmica nem prender-se a relações, considerar-se disposta a
experimentar tudo além do já batido heterossexualismo. Assim,
acreditam, estariam provando a si mesmas e ao mundo sua
adequação aos novos padrões de eficiência sexual.
Resta ver se os padrões são realmente esses, e se, sobretudo, são
iguais para todos.
Temos, como ponto de partida, os anos 50, em que o Relatório
Kinsey, apresentando ao mundo a realidade das necessidades
sexuais humanas, invalidou a hipocrisia sexual até então
estabelecida através de repressões e um moralismo vitoriano. Não
há dúvida de que, a partir daí, e ajudada pela descoberta dos meios
anticoncepcionais, começou a se estruturar uma nova moral sexual.
E não há dúvida, também, quanto ao fato de que as mulheres foram
as mais beneficiadas. Para elas abriram-se as portas do orgasmo —
um direito que nem sabiam que tinham —, e romperam-se os cintos
de castidade. Já não seria preciso uma jovem conservar-se virgem
até o casamento, ou até a morte se não casasse. O sexo pré-
matrimonial passaria a fazer parte natural da sua vida, assim como
sempre havia feito parte da vida dos homens.
Nossas dúvidas se instalam, porém, quanto ao entendimento dessa
nova moral, e ao uso que nossa sociedade gerou para ela.

O que estabelecia a nova moral? Basicamente, o direito de cada um


reconhecer e atender, na medida do possível, os seus desejos
sexuais. Era a complementação do direito à busca da felicidade de
que fala a Declaração dos Direitos Humanos.
Mas direito é uma coisa e obrigação é outra.
"A princípio", diz o Dr. Paul Gebhard, sucessor do Dr. Kinsey na
direção do Instituto de Pesquisas Sexuais, "ficamos muito contentes
ao ver que o pêndulo da moral se movia em direção a uma maior
permissividade. Pensávamos sobretudo nas mulheres, que sempre
foram as maiores vítimas da repressão. Mas agora preocupa-me ver
que o pêndulo tenha ido tão longe."
E outro membro do Instituto acrescenta: "Antigamente uma moça
era obrigada a permanecer virgem até o casamento, quer ela
quisesse, quer não. Hoje acontece exatamente o oposto. Ela tem que
deixar de ser virgem, mesmo que não queira. A nossa sociedade não
está dando às pessoas uma liberdade sexual".
"Sou virgem", me escreve uma leitora, "e gostaria de ficar assim até
o casamento. Sempre achei que ia guardar minha virgindade para o
homem com que fosse me casar. Mas agora não tenho mais tanta
certeza. As minhas amigas debocham, riem de mim. E muitas vezes,
para não me aborrecer, até escondo minha condição. Será que estou
errada? Será que 'virgindade é doença', como elas dizem?"
E outra moça, de dezoito anos, me conta: "Me sinto na obrigação de
'ir' com o sujeito, só porque ele pagou meu jantar e me convidou
para sair. Acho que se eu disser que não ele vai ficar furioso, vai me
chamar de careta, dizer que tá assim de mulheres que achariam
ótimo. E fico com medo dele espalhar que eu não topo, e ninguém
mais me procurar".
"Há muita diferença", explica o Dr. Gebhard, "entre a liberdade de
usufruir do sexo e a obrigação de fazê-lo. Chegamos a tal ponto que
as pessoas se sentem obrigadas a demonstrar uma sexualidade
constante, ou a fingi-la. A nossa atmosfera sexual tornou-se muito
nociva."
É isso que está no ar. Uma espécie de radioatividade do sexo, de
estímulo exacerbado. Sexo é in. Sexo vende qualquer produto. Sexo
é o melhor tópico de conversação. Estamos todos, bem e mal,
contaminados. Mas podemos, em busca do prazer à nossa justa
medida, empreender uma tarefa ecológico-sexual, saneando nossa
atmosfera interna, e transformando as partículas nocivas em
biodegradáveis.

De sexo, todos falam. E como falam! Não ouço ninguém abrir a boca
para dizer que tem um rendimento modesto, que a média de uma
relação por semana lhe é perfeitamente satisfatória, que acha
orgasmo ótimo mas nem sempre consegue. Pelo contrário. Todos
são tão fogosos, que temos a impressão que bastaria encostar-lhes
um cigarro nas ventas, para acendê-lo.
Idem com as personagens de cinema, dentro e fora da tela. E bota
idem nisso! Se uma estrela tem cinco maridos, não é porque tenha
fracassado com todos, mas sim porque, idêntica às personagens que
interpreta, é tão sedutora e seduzível que torna-se impossível
resistir.
Idem também com as personagens de determinada faixa de
literatura, exatamente aquela de maior consumo. Vejamos, por
exemplo, como Harold Robbins, autor de best sellers devorados no
mundo inteiro, descreve uma cena de amor:
Começa quando a heroína desabotoa as calças do herói e: "ele
pulou-lhe em cima como um leão feroz". Prossegue, até nos revelar
que: "depois que orgasmo após orgasmo haviam transformado seu
corpo numa tempestade de chamas, ela suplicou: — Vem, vem
buscar o teu prazer comigo. . . depressa! Antes que eu morra!" E
finaliza: "Um rugido subiu do fundo da sua garganta e suas mãos
esmagaram-lhe os seios. Ela quase gritou, enquanto seus dedos
afundavam no pêlo do seu peito. Então todo seu peso pareceu cair
sobre ela, tirando-lhe o fôlego, e ela sentiu o jato quente do seu
sêmen derramar-se no seu interior, como uma viscosa torrente de
lava".
Imagino a perplexidade de milhares de mulheres, confrontadas com
esses exemplos alucinatórios e tentando em vão justapô-los à sua
própria experiência sexual. Aliás, não é preciso imaginar, pois elas
próprias nos contam. Diz uma noiva, de dezenove anos: "Leio
muitos livros e revistas sobre sexo. E quando estou com meu noivo
não consigo tirar da minha cabeça o que li. Fico o tempo todo me
preocupando se estou fazendo certo, se estou agindo como aprendi.
Nem sei se alcanço o orgasmo. E fico com medo de não ser uma boa
parceira para ele. Será que não estou tendo um bom desempenho
sexual?"
Entre as tantas coisas que esta moça lê nas revistas, está,
provavelmente, a recomendação de prestar atenção nas suas
sensações, de entregar-se e tentar acompanhar apenas os impulsos
do seu corpo. Mas não é isso o que mais chama a sua atenção.
Atraída por performances olímpicas enfeitadas de rugidos e de lava
ardente, ela se esforça para ouvir — ou fazer ouvir ao noivo — sinos
tocando, mundos despencando. Mas' se esforça no caminho errado.
Repete uma lição bem decorada, que pode não ter rigorosamente
nada a ver com ela e com suas necessidades sexuais. E, obcecada
nessa repetição, tranca as portas da sua sensibilidade.
Eu gostaria que, entre tantas coisas, esta moça lesse o que diz a esse
respeito John Messenger, antropólogo americano especializado no
estudo do comportamento sexual em diversas sociedades: "Eu gosto
de crer que o sexo deveria ser desfrutado por sua pura
magnificência, e nada mais do que isso. Mas sexo só é magnífico
quando você o faz do seu jeito e com a pessoa que você escolhe. Ou
seja, muito ou pouco, como você preferir, e de acordo com seus
gostos e preferências. Infelizmente, esse já não é o hábito de muitas
sociedades, e certamente não da nossa".
E acrescenta: "Muitos jovens, sobretudo, fazem sexo quando na
realidade não querem, e fingem gostar apesar de não obterem
realmente grande satisfação, só para garantir a aprovação do seu
grupo. Nesse caso a nova moralidade transformou-se num novo
tipo de conformismo, e o conformismo é sempre doloroso para a
maioria das pessoas às quais é imposto".

A verdade é que, explodindo a repressão que nos sufocava, e


transformando o sexo numa das maiores preocupações da nossa
era, acabamos estabelecendo padrões sexuais altíssimos, muito
acima do que a maioria pode alcançar. E aos poucos criamos a
ditadura desses padrões.
Um dos exemplos mais recentes é o do orgasmo múltiplo. Antes do
Relatório Kinsey e das experiências cientificamente acompanhadas e
comprovadas pelos sexólogos Masters e Johnson em sua clínica,
sequer sabia-se da sua existência. Ou seja, algumas poucas
felizardas sabiam, e alguns poucos acompanhantes desconfiavam,
mas não era certamente assunto de salão. Quem não tinha, portanto,
nem sabia que não tinha, e dava-se por muito satisfeita com aquele
único orgasmo que conseguisse obter.
Mas de repente o orgasmo múltiplo é comentado até nos velórios. E
o número de mulheres que os tem parece multiplicar-se como
cogumelos. Já vi até um cartoon de duas garotinhas se defrontando,
uma dizendo para a outra: "Minha mãe tem mais orgasmos
múltiplos que a tua!" Ter orgasmos múltiplos virou proeza.
E quem não tinha nem sentia falta passou a considerar-se algo
próxima da deficiente sexual, e a desprezar aquele mesmo orgasmo
único que até então parecia lhe dar tanto prazer. E muitas
começaram a mentir.
Diz o Dr. Gebhard: "Mentir, inventando proezas sexuais, costumava
ser um hábito masculino. Pode-se apostar que cinqüenta por cento
das vantagens ouvidas nos vestiários masculinos são pura fantasia.
Mas agora as mulheres também aderiram. Quando a gente ouve
uma mulher gabar-se do número de orgasmos que consegue, tem o
direito de desconfiar tanto quanto desconfiava dos homens".
Às vezes, nem é preciso mentir, basta dar a entender. Uma moça
minha amiga, cujo nome omito, nunca se declarou explicitamente
um vulcão sexual. Mas dava a entender. E eu e várias outras
pessoas achávamos, ou melhor, tínhamos certeza de que cada um
de seus embates com qualquer dos numerosos cavalheiros que
arrebanhava era não apenas um sucesso absoluto, mas algo mais,
uma espécie de inesquecível demonstração de sensualidade. Pois
estávamos enganados, conforme descobri um dia quando, num
momento de depressão, ela me confessou que, daquelas relações
todas, só algumas eram coroadas de sucesso, e que a maioria não
fazia mais do que preencher, temporariamente, sua carência.
Na verdade, o que minha amiga acabou me confessando era apenas
um comportamento — e um resultado — normal. Mas o curioso é
que nós todos projetássemos nela nossas fantasias de uma mulher
supersensual, e que ela, com risinhos e trejeitos, assumisse
prazerosamente esse papel. Ao que parece, a supermulher era
necessária a nós todos, para corporificar um mito que povoa nossos
dias, o da devoradora de homens, da eterna disponível, da mulher
que só se considera feliz se puder, em cada dia, alinhavar uma
fileira retumbante de orgasmos. Na realidade a única vítima era ela,
obrigada a fingir, a representar um papel que ao que tudo indica
não lhe cabia, e a dividir-se entre o conhecimento da própria,
mansa, sensualidade, e o fogo que os outros precisavam lhe atribuir.

"Em questões de sexo", diz o Dr. Messenger, "acredito muito nas


variações individuais. E isto porque todas as pesquisas
demonstraram que não existem duas pessoas iguais em relação ao
que sentem na experiência sexual, à quantidade de sexo de que
necessitam, e ao que as excita ou esfria. Sabemos que o tipo de
comportamento sexual ideal para um pode ser um total desastre
para outro."
O curioso é que esta nova moral que corre sérios riscos de se tornar
niveladora tenha, embora originando-se no trabalho de Kinsey,
ignorado exatamente a mensagem mais clara desse trabalho, a de
que existem tantos tipos de sexualidade quanto existem pessoas no
mundo. Pois cabe a ele ter mostrado que, ao alcançar a maturidade,
as pessoas têm uma variedade infinita de comportamentos sexuais.
Alguns podem se excitar violentamente apenas pensando numa
pessoa do sexo oposto — quando não do mesmo sexo. Outros têm
enorme dificuldade em se excitar. E enquanto uns ficam nervosos e
irritadiços se privados de sexo por um dia, outros vivem
perfeitamente felizes sem sexo durante semanas, meses, ou até anos.
Kinsey decidiu medir a capacidade sexual individual, através do
número de orgasmos de cada um. E encontrou um leque de
comportamentos praticamente infinito. Entre os homens na faixa
dos vinte até os trinta anos, por exemplo, verificou que num
extremo havia homens que nunca tinham experimentado um
orgasmo, enquanto no outro extremo havia homens que tinham
cerca de quatro por dia, todos os dias. Entre estes, situava-se aquilo
que poderia ser considerado como uma média nesta faixa de idade,
a de dois orgasmos por semana.
Entre as mulheres, as diferenças eram ainda maiores. Kinsey
descobriu mulheres que nunca haviam experimentado qualquer
tipo de excitação sexual, quanto mais orgasmo. Encontrou também
mulheres casadas há muitos anos que tinham tido apenas um ou
dois orgasmos em sua vida. Mas no outro extremo havia mulheres
cujo desejo era tão freqüente e intenso que só conseguiam satisfazer-
se através de masturbação — em alguns casos até trinta ou mais
vezes por semana, com centenas de orgasmos em sucessões rápidas
assim que o clímax era alcançado.
Tentar nivelar diferenças tão grandes de necessidade pode ser
muito prejudicial. Diz o Dr. Gebhard: "É terrível incutir nas pessoas
a idéia de que elas devem estar prontas e ansiosas para ter sexo a
qualquer hora do dia e da noite, todos os dias da semana, e com
qualquer parceiro que aparecer. Há quem possa fazê-lo. Mas a
maioria não pode. E isto está em grande parte determinado desde o
nascimento: o complicado trabalho da hereditariedade nos fornece
padrões individuais de capacidade sexual, de apetites e limitações.
Existem, além disso, os fatores psicológicos".
A experiência clínica mostrou ao Dr. Gebhard que as mulheres são
vítimas mais fáceis do contraste entre a atual propaganda sexual e a
realidade de sua própria natureza sexual. "Uma mulher não deveria
sentir-se inferior por não estar muito interessada em sexo, ou por se
interessar apenas raramente. Existem numerosas mulheres que não
têm muito desejo sexual. Dormem com homens assim mesmo, pelo
prazer amoroso da coisa, e isto está certo. Mas não deveriam se
desapontar quando a experiência não fosse exatamente
deslumbrante."
E outra pesquisadora do assunto, a antropóloga Jennifer James, da
Universidade de Washington, acrescenta: "Sobretudo no caso de um
primeiro encontro. É muito difícil para a maioria das mulheres ter
uma relação sexual bem-sucedida com um estranho. A maioria das
mulheres foi 'treinada' diferente dos homens. Ela precisa ter uma
atração, uma ligação amorosa. Se não conhece o homem, não há
possibilidade de uma conversa realmente íntima, e sem intimidade
torna-se difícil uma relação plena. Além do mais, muitos homens
não estão sintonizados com as necessidades sexuais da mulher;
podem ser ótimos sujeitos e péssimos amantes. E a mulher que não
escolhe acaba incorrendo em muitos parceiros de terceiro time".
A Dra. James calcula que, entre as mulheres que levam uma vida
sexual mais ou menos livre, cinqüenta por cento estão fingindo
orgasmo cinqüenta por cento das vezes.
Fingindo orgasmos, alardeando orgasmos, e sofrendo em silêncio
por não tê-los tido, culpando-se por não alcançar a mirabólica meta
sexual desejada.
Sim, os altos, altíssimos padrões acabaram ficando para muitas tão
tirânicos quanto os antigos cintos de castidade.
Agora, quando sexo tornou-se sinônimo de vida, o não-sexo, ou o
pouco sexo parecem identificar-se com a morte.
E no entanto, diz o Dr. Gebhard: "Um casal pode ser tão feliz tendo
uma relação sexual por mês — se é isto que ambos preferem —
quanto tendo sexo todas as noites".
"Sexo não é tudo", continua ele. "Se há uma coisa de que temos
absoluta certeza no Instituto de Pesquisas Sexuais, depois de todos
os casamentos e outras formas de relacionamento que estudamos, é
que a quantidade de sexo numa relação não tem ligação com a
felicidade do casal."
O que interessa é que esta quantidade, seja ela qual for, satisfaça
ambos, e seja condizente com suas necessidades e possibilidades.
O superdesempenho inventado pela nossa sociedade é uma
fantasia, e, como todas as fantasias, bela e perigosa. Bela, porque
nos levaria ao Nirvana dos sentidos. Mas perigosa porque
inesgotável, a nos exigir tiranicamente sempre mais e mais. Mais,
sobretudo, do que podemos dar.
Felizmente, não é preciso muito para escapar dela. Basta parar de
procurá-la fora, pautando pelo dos outros o nosso comportamento.
E estabelecer o desempenho a partir de nós mesmos, da satisfação
do nosso corpo. Quando ele estiver apascentado, quando ele estiver
feliz só ou ao lado de outro corpo, então poderemos ter certeza de
ter alcançado um bom desempenho. O melhor. O nosso.
Se todos vêm te contar seus dramas
Você está no meio de um serviço, quando o telefone toca. É uma
amiga. Fala do tempo, disfarça um instante, mas quando você
pergunta como vai a vida ela entrega logo a rapadura, e diz que não
vai nada bem, complicou, aconteceram coisas. . . mas assim pelo
telefone não dá para contar, será que ela podia dar um pulo aí?
Coisa rápida, ela está pertinho, quase na esquina. Pode? Você estava
no meio de um serviço, um serviço que supostamente deveria
chegar ao fim. Mas nem hesita. Diz que sim, que venha, que venha
logo, você está esperando. È, interrompendo o andamento natural
do seu dia, você se prepara para recebê-la, dando início a mais um
"Plantão Afetivo" em prol dos necessitados.
Você gosta disso? Não exatamente. Às vezes, muitas vezes, já se
queixou de ser o Muro das Lamentações, onde todo mundo vem
derramar seu pranto e buscar alívio.
Mas é com um sorriso e cheia de afetuosa disposição que recebe a
amiga. Ela chega afobada, com o problema quente, já pronto para
passar à sua mão. E você, estafeta perfeita, o recebe imediatamente.
A amiga choraminga no seu ombro, pede conselhos. Tomará chá, se
você oferecer, pingado de lágrimas e limão. E, tendo depositado
toda a carga no seu colo, irá embora aliviada. Ficará você, enchar-
cada de um problema que quinze minutos antes não tinha,
remoendo crises e dramas e brigas que preferiria não ter adotado.
Nem acaba aí seu envolvimento. Tendo ajudado a amiga no
momento pior, tendo aconselhado como melhor sabia, você poderia
perfeitamente esquecer a coisa toda no dia seguinte, e tocar a vida
— a sua vida — para a frente. Mas não é isso que faz. Em vez de
arquivar tudo até segunda ordem, fica relembrando, sopesando,
analisando, criticando sua própria atuação, achando que não foi
suficientemente generosa, e, o que é pior, preocupando-se com o
que estará acontecendo com a amiga.
E a amiga, enquanto isso? Há duas possibilidades. Se o problema
dela continuar mal resolvido, atormentando-a, virá para uma
segunda, uma terceira, várias sessões. Haverá telefonemas, recados,
pedidos. E você, desvelada, se manterá à disposição, atendendo,
carinhando, colocando sua vida de lado para atender à dela.
Mas se o problema se desfizer, levando-a, e a suas emoções, para
um plácido remanso, o mais provável é que ela não telefone nem
para dizer isso. Desaparecida a dor, desaparece a urgência. E, sem
urgência, pra que ligar? Deixará que passe algum tempo, não por
maldade, mas por descaso, e só então tornará a procurá-la.
Solicitada, contará o que se passou. Enquanto você se preocupava
tanto, ela já tinha até esquecido o drama todo, aquele mesmo drama
"insolúvel" que a levou a procurá-la de forma tão alarmista.
E você, que provavelmente já tem outra situação semelhante no
circuito, se sente um pouco usada, um pouco lesada, e pela
centésima vez se pergunta: — Por que é que todo mundo vem
contar para mim suas desgraças?

Não, você não atrai as desgraças, mas atrai, ah! com quanto poder
de sedução, os contadores de. Evidentemente, não é de propósito.
Você não circula pela vida como uma mulher-sanduíche
imprensada entre cartazes de Procuram-se Pessoas Aflitas. Nem sai
fazendo perguntas indiscretas, forçando confidências. Pelo
contrário, se há uma coisa que logo se percebe em você é sua
discrição, seu jeito de não querer invadir a vida de ninguém. Mas,
discreta como é, transmite aos outros, de imediato, uma série de
recados que, juntos, formam um chamariz bem mais poderoso do
que qualquer cartaz.
Começa que seu estilo é declaradamente maternal. Não só com as
crianças, ou com os mais necessitados, mas com a humanidade em
geral. Se o chofer de táxi puxa assunto e você não está com a menor
vontade de conversar, ainda assim responde delicadamente, e mais,
com um jeito inconfundível de quem queria mesmo ouvir. Você
nem se dá conta, mas antes de terminar a corrida estará quase
íntima, terá olhado o retrato do filho e dito que é uma gracinha,
terá, enfim, tentado ressarci-lo por alguns minutos de toda a
violência urbana e da sua dura profissão, deixando-lhe uma
imagem doce e protetora. Uma imagem de mãe.
Assim vai você, vida afora, pronta para alimentar os famintos,
disfarçando debaixo do chemisier seus incomensuráveis e
numerosos seios, generosamente cheios de leite. E ainda se
surpreende quando alguém (igualmente de fralda disfarçada
debaixo dos blue jeans ou da saia) bate à sua porta pedindo comida.
Acontece também que, expandindo ainda mais o seu espírito
maternal, existe em você uma verdadeira vocação para
compreender. Você, que entretanto, como todo mundo,
freqüentemente exprime conceitos morais, e julga, e critica, é
invadida por surpreendente elasticidade toda vez que alguém a
procura como confessora.
Você não acha que sua amiga deveria passar para trás o marido.
Más no momento em que ela vem lhe contar que está abafadíssima
porque arrumou um caso, você imediatamente esquece que o
marido é seu amigo, esquece o que você achava cinco minutos
antes, e passa a ver a coisa do ponto de vista dela, através dos
motivos dela, sem crítica e sem repreensão, apenas tentando
entender e ajudar.
Seria leviandade? De forma alguma. Apenas, confrontada com uma
posição diferente da sua, transmitida de forma sentida, você
percebe as duas faces de uma mesma moeda, e se esforça por
conviver com ambas.
Quando a amiga sair você ficará duplamente perturbada, por viver
o problema em si, e porque, encharcando-se do problema dela, você
lhe assumiu a visão, e agora precisa restabelecer o equilíbrio entre
as duas visões opostas. Mas em momento algum você repreendeu
ou criticou a amiga. Se ela hesitava no início, logo percebeu o sinal
verde, e certa de que ali seu adultério não era crime, pôde
transbordar livremente a narrativa.
Em suma, em momentos de confidências você está sempre do lado
do outro, ainda que, docemente, tentando mostrar-lhe alguns erros.
E o que uma pessoa procura quando precisa de alguém para aliviar
sua carga é um aliado, nunca um crítico.
Além disso tudo, convenhamos, você é simpática, mais que isso,
você é fácil de gostar. Também, pudera, não há esforço que não faça
para isso. Afinal, está sempre disposta a abrir espaço para o outro.
Você pára o trabalho no escritório, larga a panela no fogo, perde o
último ônibus da madrugada, tudo para emprestar seus ouvidos ao
próximo. E que ouvinte você é! Atenta, quase profissional. E
participante, emocionada, vibrando quando o outro vibra, torcendo
por ele a cada lance, vivendo de parceria tudo aquilo que ele conta.
Pode alguém querer mais de um confidente?

Muito bem, estamos até aqui só na base do elogio. Mas você bem
sabe que nem só de virtudes se faz uma personalidade, e o que a
gente quer, desde o início, é tentar ver por que você continua
atraindo queixosos, se isso de uma certa forma a sobrecarrega e a
faz sofrer.
Parece que uma razoável onipotência acena por cima do seu ombro.
Sim, você acha que, de tantos confidentes, ajudou a maioria. Sim,
você tem certeza de que, mesmo que seus conselhos não tenham
sido sempre fundamentais, seu carinho o foi. Sobretudo você sabe,
definitivamente sabe, que sua presença no momento necessário
ajudou a resolver muitos problemas, ainda que apenas pelo fato de
que o confidente, reforçado por seu apoio, recuperou o equilíbrio e
pôde destrinchar os nós.
O que você não sabe, ou talvez simplesmente não se diz, é que esse
hábito de querer resolver os dramas alheios corresponde a querer
resolver o mundo, salvar a humanidade. E que a isso se chama
onipotência.
A partir do momento em que alguém a procura queixando-se disso
e daquilo, você passa a considerar-se responsável pelo que vier a lhe
acontecer, como se, ao lhe entregar os detalhes de um caso
qualquer, ela tivesse lhe entregue as rédeas do seu comportamento
e a procuração do seu livre-arbítrio. Você, enfim, de simples ouvinte
passa a resolvente.
Mas por que onipotência?
É aí que a gente chega mais perto um pouco do miolo da questão.
Resolvendo, ainda que por parcelas, o problema do mundo, você
está distribuindo, ainda que por parcelas, um amor imenso, um
amor de ilimitada extensão territorial. E espera, evidentemente,
colher os frutos dessa gigantesca plantação.
A onipotência, no caso, não serviria para o gozo de altos poderes,
forças, comandos. Mas para garantir uma retribuição, mais do que
merecida, em moeda afetiva.
Ou seja, debaixo de tão amplo espírito maternal, de devoção amiga
e de amor ao próximo está uma grande necessidade de afeto.
E em cada pessoa que telefona, chama ou pede, você percebe nítido
um recado de amor. Porque é evidente que as pessoas só nos
escolhem para confidentes quando gostam de nós, só nos entregam
seus segredos quando nos consideram amigas. Alguém vem
perturbado, trazendo ao ombro sua sacola de dúvidas. E você mais
do que depressa o alivia do peso, tira a sacola do ombro dele e a
passa para o seu.
O que ele não sabe, e geralmente você também não, é que na sacola
você não pescou dúvidas, mas desembrulhou carinhos a serem
armazenados no quente depósito do seu inconsciente. Ele está
crente de ter lhe dado uma chateação, e fica grato. Você está crente
de ter recebido uma chateação, e em certos momentos secretos se
queixa por isso, aparente vítima de seu espírito acolhedor. Mas por
baixo do pano, sem que ninguém visse, um alto pagamento foi
efetuado, deixando as contas bem quites.
Eis aí a razão mais forte pela qual você fica lançando recados mudos
capazes de transformar o mais introvertido num confidente
derramado.
Um "Muro das Lamentações" amiga minha, ao pé da qual também
já tomei muito chá com limão e lágrimas, sabendo que eu ia
escrever este artigo, me disse: "Eu ouço, ouço, me abafo, sofro. Mas
a verdade é que de tanto ouvir percebi aos poucos que ali estão
ensinamentos valiosos, e agora, mais consciente, vou ouvindo e
aprendendo a vida". E uma outra, Muro profissional, psicóloga no
início da carreira, comentava comigo tempos atrás como, através
dos problemas dos outros, ela ia, mais e melhor, revendo os seus
próprios problemas.
Isso não quer dizer que os grandes confessores fiquem, como uma
estranha espécie de voyeurs, pendurados na janela da vida, vendo a
banda passar. Mas é claro que, acompanhando outros, e
participando tão de perto de várias óticas individuais, amplia-se o
conhecimento do semelhante, e, conseqüentemente, de si mesmo.
Além do mais, sentindo-se responsável pelo problema do
confidente, e munido da nossa já falada onipotência, o confessor,
mais do que ninguém, se esmera para analisar bem os dados,
obtendo, não raro, resultados melhores do que os do próprio dono e
capitalizando-os para si.
Isto tudo significa que, ao acolher as lamentações dos outros, não
estamos sendo tão generosos quanto parece, mas estamos apenas
efetuando mais uma das tantas trocas da vida.
Embora você esteja tirando proveito, a verdade é que isso não lhe
traz maiores alegrias, e a sua sensação mais forte é a de que as
pessoas a procuram quando precisam, afundam os caninos na sua
jugular, e quando estão alimentadas partem, desaparecendo até a
próxima temporada de fome. Você fica à espera, mas bufa.
Esta é uma situação que pode ser amplamente melhorada, desde
que você realmente o queira.
Antes de mais nada, saia do plantão. Se o telefone toca quando você
está no meio de um serviço, e do outro lado do fio lhe chega um
s.o.s. patético, diga a verdade: "Olha, eu estou no meio de um
serviço, e agora, neste momento, não posso atender você. Mas passa
aqui à noitinha, ou amanhã". O outro, ao contrário do que parece e
do que você acha, não vai morrer no curso dessas breves horas, e
você poderá atendê-lo melhor sem ter uma parte do seu
pensamento grudada no trabalho incompleto. Quanto a seu medo
maior, e inconfesso, de que, não sendo imediatamente atendido por
você, ele vá procurar, e achar, outro confidente (e outra amiga),
tranqüilize-se. Bons confidentes não abundam por aí e você,
certamente, é das melhores. Além disso, se a pessoa que a procura
pode "traí-la" por qualquer meia hora de espera, melhor que o faça
logo, num momento indolor, do que venha a fazê-lo mais tarde,
sabe-se lá com que conseqüências.
É assim, esquivando-se da eterna disponibilidade, que você pode
evitar a desagradável, e em parte justificada, sensação de estar
sendo usada.
Se você foge do "uso" físico, é importante que se afaste com a
mesma velocidade do "uso" moral. Sua alminha também não pode
ficar aí, à disposição de quem quiser aparecer e depositar nela
dramas e angústias. Uma das coisas básicas para um bom
confidente é o não-envolvimento, a não-apro-priação. É justo que
você participe vivamente, que tenha calor humano, mas isso não
significa que precisa sofrer junto com o outro, continuar remoendo
depois que o outro se vai, e, quantas vezes, preocupar-se quando o
outro já resolveu tudo. Você pode perfeitamente, e é a primeira
coisa que aprendem os profissionais, manter aquilo que se chama
"distanciamento crítico", ou seja, a distância que lhe permite ver a
verdade dos fatos, e não apenas sua primeira aparência. Seria mais
ou menos a mesma coisa que ler um texto com o nariz colado no
papel ou com o rosto afastado dois palmos; a segunda forma,
evidentemente, é bem melhor.
Na verdade, trata-se de um estabelecimento de posses.
Na hora em que você conseguir se convencer de que o seu tempo é
seu em primeiro lugar, e não dos problemas alheios; e na hora em
que você conseguir se convencer de que os problemas alheios não
são seus, uma ordem mais respirável começará a se fazer.
Temos ainda, para nos atrapalhar, a onipotência. Mas você já sabe
que não dá para resolver os problemas da humanidade toda. Nem é
isso que a humanidade pretende. Se você prestar bem atenção
perceberá que quem vem lhe contar dramas não está querendo
exatamente que você os resolva, aliás, não está querendo
absolutamente que você os resolva. Caso tente, de forma mais
concreta, são até capazes de se ofender. O que eles querem é
esvaziar ansiedade, botar em palavras o que lhes vai na cabeça,
repetir uma vez mais aquilo que os aflige, e que, muito
provavelmente, já contaram para outras pessoas. Podem aceitar
conselhos, mas a solução, por mais que você se esforce, terá que ser
a deles.
Abandonando o papel de Grande Solucionadora, você estará
também livrando-se da responsabilidade. E, com ela, de uma
grande parte da aflição. Assim, mortos os três coelhos numa única
cajadada, a leveza já estará bem mais perto de você.
Resta a sensação de descarte, inevitável quando aqueles mesmos
que tanto a procuraram de repente se evaporam na tranqüilidade
conquistada, inclusive graças a você.
Tenho alguma experiência no ramo, porque, embora não dissesse
até aqui, eu também tive minha fase de Muro das Lamentações. Mas
sendo igualmente um Muro Lamentoso, sempre com queixas de
que os outros eram sanguessugas egoístas, resolvi um dia tomar
vergonha e botar a coisa em muros limpos. Passei a cobrar dos
renitentes, e, conforme o grau de reincidência, a cortá-los. Eu me
forcei a isso no princípio, porque meu medo de perder amigos era
enorme. Mas tentei, e consegui, me convencer de que amigos não
eram se me largavam com tanta serenidade.
Então agora é assim: veio, falou, sumiu, eu telefono e pergunto,
como é que é? como ficou o tal caso? resolveu a questão? Pergunto
com o mesmo carinho com que ouvi, mas pergunto. E se de outra
vez também sumir, não haverá mais socorro quando o telefone
tocar.
Isso, nos casos mais importantes, naqueles sérios. Nos outros, nos
apoios menores que a toda hora a gente está dando por uma
mínima questão de fraternidade, o melhor é deixar correr no seu
próprio ritmo. Some um pouco, aparece um pouco, volta a
desaparecer. A elasticidade torna mais fácil o balanço da vida, e nos
permite, quando for a nossa vez, sermos elásticos também, com
carinho apenas e naturalidade.
E chegamos a um ponto de que eu quase me esquecia, o do oposto,
que sempre existe. A gente, você, se queixa porque todos vêm
depositar peso e lágrimas no seu ombro. Mas já pensou nas vezes,
quantas, em que foi você quem precisou de um chá e de um afeto?
Lembrou-se depois de telefonar, aparecer, mandar flores? Foi
absolutamente perfeita na retribuição? Espero que não, porque isso
a tornaria insuportável. Espero que para você também, como para
tantos outros, a alegria tenha vencido a contabilidade e, problema
resolvido, você se tenha concedido merecidas férias espirituais.
É provável que naquelas ocasiões seu Muro também tenha se
sentido rejeitado. Mas a verdade é que tanto para ele, quanto para
você, ou para nós, a vida é um jogo de trocas e como tal tem que ser
vivida, para que, no fim das contas, todos se beneficiem.
Mulheres assassinadas
"Ela havia saído e eu esperei no estacionamento da secretaria. Ela chegou,
eu disse que queria conversar e entramos no carro dela. Perguntei se ela
queria voltar, ela disse que não, e eu, então, disse que ia matá-la. Saquei o
revólver, o primeiro tiro pegou no ombro e ela tentou defender-se. Atirei
mais uma vez, ela saiu do carro, caminhou um pouco e caiu de bruços. Ai
eu gastei todas as balas." Assim, em Curitiba, no dia 25 de agosto de 1980
o advogado David Augusto Ferreira Neto, de quarenta e quatro anos,
assassinou com cinco tiros sua mulher Sônia Maria Soares Trevisan
Ferreira, de trinta e um anos, também advogada.

Os jornais noticiam, a população se indigna, parentes desfeitos


acompanham o caixão. O julgamento é coisa para muito tempo
depois.
Como em qualquer investigação criminal, e apesar de termos um
réu confesso, a pergunta se impõe: a quem interessa o crime?
Que a resposta não nos espante, por terrível e dolorosa: o crime
interessa à sociedade.
Sim, exatamente por seu poder de choque, ele é muito conveniente à
sociedade como está constituída e como luta por se manter. Um
assassinato brutal concentra a atenção. Há um corpo de mulher
ensangüentado no chão. E um homem de pé, com o revólver
fumegante na mão, soluça. (O assassino sempre soluça, faz parte do
seu papel.) Todos os olhos se voltam para a cena patética. E se
desviam do resto. Ali está um crime concreto, bem à mostra,
iluminado pelos flashes da imprenpa. Ali está um belo
crime/biombo, anteparo de todos os outros crimes que contra a
mulher se praticam em silêncio. O culpado está ali, e é o único. A
sociedade indignada lava suas mãos. O sangue se confunde com o
sangue.
"Vou transformar a minha vida e o trágico amor com Ângela em livro e
samba-canção. É a homenagem à única mulher que amei em toda a minha
vida." Assim falava Doca Street à imprensa em 78, dois anos após ter
assassinado Ângela Diniz em sua casa de Búzios, com três tiros na cabeça.
A liberdade, obtida após uma condenação inferior a dois anos, fez com que
Doca esquecesse o livro, o samba e Ângela.

Mas seria mesmo culpado aquele homem que se declara ainda


apaixonado pela vítima? Passado o primeiro espanto, Justiça e
sociedade — que são afinal uma única coisa, a primeira apenas
codificando os desejos da' segunda — tratam de ajudá-lo.
Senão, vejamos: o pobre está transtornado, amigos recomendam-lhe
que tome tranqüilizantes, um médico é convocado para assisti-lo.
Fácil ver que ele está tomado de forte emoção, emoção tão forte,
certamente, quanto aquela que lhe fez extrair o revólver e
descarregá-lo sobre a vítima. (Vítima que, aliás, deixará logo logo de
ser designada deste modo, e evitando comoções reassumirá, na boca
dos advogados da defesa, apenas seu nome de batismo.) Sim, ele
está emocionado. E uma emoção desta ordem, sabemos, é consi-
derada atenuante. Se ele não agiu friamente, ou se ninguém puder
provar isso, já é meio inocente. Pelo que deduzimos que culpada é a
emoção.
A partir desse momento o assassinato transforma-se em crime
passional. A paixão, que tudo transforma e alucina, êxtase a que
todos aspiram, excedeu-se mais uma vez. O homem já não é
culpado de matar. É culpado de muito amar. O grande, o
verdadeiro culpado, é o amor. Mais uma atenuante se acrescenta ao
dossiê.
Mas, se o amor é o culpado, convém olhar mais de perto o objeto do
amor. Que mulher é essa que através de suas artimanhas de
sedução enlouqueceu um homem a tal ponto? "Existe um princípio
bom que criou a ordem, a luz e o homem", dizia Pitágoras. "E um
princípio mau que criou o caos, as trevas e a mulher."
Fiel a seus filósofos, a sociedade volta um olho acusador para
aquela mulher, ex-vítima, já nesse momento avançando
rapidamente para o banco dos réus.
Foi ela, sem dúvida, quem, com seu comportamento, exasperou o
homem. Foi ela quem, de provocação em provocação, o levou à
perda momentânea da razão. E por isso então ele merece mais uma
atenuante.

No dia 27 de julho de 1980, o engenheiro Márcio Stancioli desferiu sete


tiros à queima-roupa em sua mulher Eloisa Ballestreros Stancioli,
precisando para isso, segundo afirmações dos peritos, recarregar o revólver.
Em seu depoimento, o engenheiro alegou como motivo o fato de ter, por
duas vezes, suspeitado da conduta moral de sua mulher.

Conduta moral duvidosa. Eis aí um movente capaz de alegrar


qualquer advogado de defesa. Foi ele que permitiu ao advogado
Ariosvaldo Campos Pires um dos momentos mais brilhantes da sua
carreira, a absolvição de Roberto Lobato, assassino de Josefina
Souza Lima. Foi ele que permitiu ao Pedro Aleixo brilhar na defesa
do assassino da colunável mineira Jô Lobato. Foi ele quem forneceu
chave de ouro para encerrar a carreira de Evandro Lins e Silva no
julgamento de Doca Street pela morte de Ângela Diniz. Qualquer
advogado sabe que, havendo "conduta moral duvidosa", a
absolvição "está no papo". Preciso é prová-la.
Esforçam-se os advogados dos assassinos para juntar evidências, ou
depoimentos, de que a morta antes de ser morta era coisa pior, era
leviana, quando não devassa, quando não quase prostituta.
Vasculha-se sua vida pregressa, passa-se pente fino no seu passado.
E o marido assassino, que de réu assume o papel de vítima,
acrescenta dados, afirma que no dia tal a viu com fulano, que sabia
de suas relações com cicrano. No caso de Eloisa Ballestreros, seu
marido invocou até um corrimento vaginal que, segundo ele, teria
sido provocado por doença venérea contraída através de relações
ilícitas.
E as relações ilícitas do marido? E o seu passado? E os seus
antecedentes? Servem, em geral, para suavizar sua posição. Se é
alcoólatra, como David Augusto Ferreira Neto, isso será usado a seu
favor. Afinal, um alcoólatra é obviamente pessoa desequilibrada,
que não pode responder por seus atos. (E por isso apressou-se
Ballestreros a afirmar que, antes dos disparos, havia tomado vários
litros de vodca e uísque.) Se é violento, como Eduardo de Souza
Rocha, pede-se logo um exame de sanidade mental, destinado a
livrá-lo da cadeia, permitindo um manicômio judicial, e mais
atenuantes. Enfim, o passado também conta a favor do homem e
contra a mulher.
E isto porque é no comportamento da mulher que se procuram as
manchas à honra do homem.

Durante a madrugada de 13 de setembro de 73, Erivaldo Liberal Xavier,


executivo da Xerox S.A., matou sua mulher, Zélia da Silveira, com oito
facadas, quatro pelas costas, e quatro no peito. Em seu primeiro
julgamento, realizado em 1975, foi absolvido por quatro a três. Seu
advogado, Mariago Gonçalves Neto, sustentou a tese de legítima defesa da
honra, alegando adultério da mulher.

Nada parece ser mais grave para a honra de um homem do que o


fato de sua mulher, ou mesmo a mulher que ele simplesmente ama,
dormir com outro homem. Nem é preciso dormir, basta desejá-lo.
Suspeitar uma traição já é suficiente para justificar um crime de
morte. A honra de um homem se mancha com o sangue do hímen e
se lava com o sangue da carótida.
"É preciso afastar o preconceito infame que coloca a honra do
homem entre as pernas da mulher", afirmou em 79 o Promotor João
Marcelo Araújo, ao obter pelo I Tribunal do Júri a condenação de
Erivaldo a quinze anos de prisão. Mas poucos ouviram sua voz.
O direito à reparação da honra ofendida é coisa que vem de longe e
que irmana os homens além de bandeiras e fronteiras. Na Itália, até
1977, o crime de honra constava do Código Penal e previa penas
leves, de três a cinco anos de prisão, para os culpados pelo
assassinato de filhas, irmãs e mulheres descobertas em "flagrante
delito" sexual. A cláusula, generosa, permitia matar também os
companheiros de crime. E segundo um relatório apresentado à ONU
no mês de agosto de 1980, centenas de mulheres são assassinadas
diariamente em países árabes para proteger a honra da família. As
mulheres do Egito, Iraque, Jordânia, Arábia Saudita e territórios
árabes ocupados por Israel são degoladas, enterradas vivas,
envenenadas ou estripadas por irmãos, pai, um primo, ou um
assassino pago. Sua culpa: manterem relações extraconjugais —
livremente ou mesmo violentadas — "ou simplesmente terem sido
vistas quando conversavam com algum rapaz, tornando-se assim
suspeitas de manterem relações mais íntimas".
A honra, assim como tantas outras coisas, parece ser privilégio
exclusivo dos homens. No recente julgamento de Elisabeth Godinho
Carvalho da Silva, que há três anos atrás matou seu marido Sílvio
de Carvalho com quatro tiros, o Tribunal do Júri de Belo Horizonte
acatou a tese de que o crime foi praticado sob violenta emoção, em
seguida a injusta provocação da vítima. Elisabeth foi condenada a
seis anos de reclusão. De honra ninguém falou.

No dia 22 de julho de 77, uma lancha do Salvamar encontrou um corpo de


mulher preso entre as pedras na Avenida Niemeyer e amarrado com arame
a uma mala contendo vinte quilos de pedras. Era Cláudia Lessin
Rodrigues, morta por sevícias, asfixia e espancamento. Pelo crime, foram
acusados Michel Erank e o cabeleireiro George Khour. O primeiro está livre
e próspero na Suíça. O segundo compareceu recentemente à boate
Hippopotamus para celebrar sua libertação.
Os tiros, as facadas, a degola não são os únicos meios de matar uma
mulher. São os mais evidentes, porque deixam um corpo e a certeza
da putrefação. Mas não são nem os mais numerosos nem os mais
eficientes. O assassinato mais comum é aquele em que se amputa a
mente sem se amputar a cabeça. E em que só a sociedade apodrece.
Matam-se mulheres antes mesmo do nascimento. Matam-se
literalmente, abortando-as, apenas porque cometeram o erro grave
de não serem homens, e foram "denunciadas" pelo exame do
líquido amniótico. E matam-se no não desejo, em todas as crendices
negativas que logo as rodeiam. Se a gravidez é boa, diz-se que é um
menino, se há náuseas, vômitos, então com certeza é uma menina.
Se o feto, esperto, se movimenta a partir do quadragésimo dia, é
homem e o parto será fácil; se porém demora até o nonagésimo dia
para se mexer, é menina e o parto será doloroso. Se o seio direito (o
lado "nobre" do corpo) incha mais, é garantia de filho homem. O
mesmo se o ventre for mais cheio do lado direito. E também se a
barriga for pontiaguda (afinal um homenzinho e seu fallus são
desde o início mais proeminentes). Enfim, já é universalmente
famosa a saudação italiana, endereçada mesmo a quem espirra:
Salute e figli maschií (Saúde e filhos homens!)
Matam-se as mulheres desejando que não venham ao mundo. Como
na China pré-revolucionária, onde um caloteiro americano ficou
milionário vendendo um tônico que garantia o nascimento de filhos
homens. Como no Irã, onde o Xá Reza Pahlavi repudiou a Rainha
Soraya porque esta não lhe dava um filho homem. Como na India,
onde a mulher é coisa tão inútil que, morto o marido, incendiava-se
(e incendeia-se apesar de proibido por lei) o corpo vivo da esposa
na pira funerária. Como no Brasil, onde o filho homem é muito mais
valorizado, por "transmitir o nome da família".
E matam-se mulheres já nascidas, sufocando-as desde o berço com
uma educação destinada a enfraquecer-lhes a personalidade, a
convencê-las de sua inferioridade física e mental, a castrar-lhes o
sexo, a mantê-las para sempre numa postura de subserviência.
Por volta dos três anos as meninas já descobriram que o mundo não
as olha com benevolência. Uma pesquisa realizada pelo italiano
René Zazzo (autor do trabalho A evolução da criança dos dois aos seis
anos) revelou que num grupo de crianças de três anos e meio
interrogadas, nenhum dos meninos queria ser menina, mas quinze
meninas em cada cem desejavam ser meninos.
E a certeza de sua inferioridade será devidamente reforçada daí
para a frente, dificultando seu acesso à educação (havendo pouco
dinheiro são só os filhos homens que estudam, porque as meninas
"não precisam"), ou usando a educação como reforço da rígida
divisão de papéis (nos livros escolares a mãe é sempre apresentada
em posição passiva e as profissões mais atraentes aparecem
desempenhadas por homens).

No dia 11 de agosto de 1980, Eduardo Souza Rocha, dono da mais


importante floricultura de Belo Horizonte, matou sua mulher Maria
Regine Santos de Souza Rocha, com seis tiros de revólver, calibre 22.
Ciumento, Eduardo não permitia que sua mulher saísse de casa
desacompanhada, arrancasse sobrancelhas, usasse calças justas, visse TV,
usasse esmalte de unhas, fosse a cabeleireiro, se consultasse com
ginecologista do sexo masculino, visitasse a casa da mãe.
À polícia, Eduardo revelou a causa do crime: "Ela queria liberdade".

Não tendo mais o que proibir a Maria Regine, Eduardo proibiu-lhe


a vida. Usou o revólver como arma da sua violência. Outros, muitos
outros, utilizam o fallus com igual eficiência.
Nas grandes cidades brasileiras ocorrem, registrados, mais de dez
estupros por dia. Outros tantos, e talvez mais, acontecem sem
registro. "Na grande maioria dos casos", diz o Juiz Alyrio Cavallieri,
titular da 18.a Vara Criminal do Rio de Janeiro, "as mulheres
preferem não se submeter ao vexame do inquérito e do processo em
si." E com razão. Porque não só a grande maioria dos estupradores é
absolvida, como a mulher é freqüentemente acusada de ter pro-
vocado o estupro.
E isso acontece, no mundo inteiro, como testemunham as palavras
do Juiz Archie Simonson, de cinqüenta e dois anos, ao absolver um
jovem estuprador de quinze: "Eu estou dizendo às mulheres para
pararem de provocar. Quer elas queiram, quer não, são objetos
sexuais. E deveríamos por acaso pegar um rapaz impressionável, de
quinze ou dezessete anos, e castigá-lo severamente porque reagiu
normalmente a esta provocação?"
Estranho conceito de normalidade. Reage normalmente o marido
que, bêbado, espanca a mulher. Reage normalmente o homem que,
sabendo-se dono do corpo da amante, lhe proíbe o uso de roupas
reveladoras. Reage normalmente o pai que mantém a filha em
cárcere privado para que não namore. Reage normalmente o
assaltante que, tendo roubado todos os objetos da casa, leva
também a mulher. Reage normalmente o irmão que diz para a irmã:
cale a boca, a conversa ainda não chegou na cozinha. Reage
normalmente o policial que arrasta a prostituta para o camburão, e
louva a virilidade dos seus usuários. Reage normalmente a socie-
dade que absolve os Docas, os Michels, os Trevisans, os Márcios, os
Robertos, os Erivaldos, os Eduardos, e as centenas de anônimos
Joões que, impune e anonimamente, trucidam suas Marias.
Sim, os homens têm razão quando dizem que a mulher é um corpo
morto na sociedade. Morto assassinado, porém. Não morto
inoperante. Porque a consciência das mulheres está se fazendo, e as
reúne, donas de uma nova força.
Os homens vão continuar nos matando por algum tempo. A
sociedade vai continuar nos esmagando por algum tempo. Mas por
pouco. Porque nós vamos tornar isso cada vez mais difícil. Até a
total impossibilidade.
Dois estilos, um casamento
Ler. É disso que ele gosta mais. Ler em silêncio, bem instalado numa
poltrona, com uma leve música ao fundo. Conversar. É disso que
ela mais gosta. Conversar de tudo, contar casos, comentar o dia,
sentada pertinho dele no sofá, carinhando, lambiscando beijos e
salgadinhos.
Ele é introvertido, desligado da realidade enquanto vagueia num
mundo interior, desarrumado não por preguiça mas por pura
distração. Ela é extrovertida, com os pés bem na terra, nas
novidades da terra, nos prazeres da terra, e na ordem em que a terra
tem que ser mantida para não virar um caos.
Este é um tipo de diferença que não deveria pegar ninguém
desprevenido. É aquela que se conhece antes do casamento, e que,
em última análise, nos leva a casar. Mas há diferenças, básicas, que
só aparecem depois do casamento.
Ela é apressada, dinâmica, de manhã faz tudo correndo, e correndo
espreme o tubo de pasta de dentes pelo meio, dando um bom
apertão, daqueles que deixam o tubo vasando e tornam impossível
colocar bem a tampa de volta. Ele é cuidadoso, metódico. De manhã
levanta mais cedo para fazer tudo a tempo e hora, assim como
espremer a pasta de dentes, o que no seu entender deve ser feito de
baixo para cima, regular e progressivamente, enrolando-se a parte
de baixo do tubo à medida que se esvazia e recolocando a tampa de
modo a deixar tudo bem limpinho.
Então todas as manhãs ele se irrita porque encontra o tubo torto,
amassado, lambão, ela se irrita porque não vê necessidade de tantos
cuidados com um tubo de pasta de dentes. E a simples higiene
bucal se transforma em pomo da discórdia enquanto impropérios
são lançados com sabor de hortelã.
O problema é que as pessoas não costumam apertar pasta de dentes
juntas antes do casamento. Ou seja, as diferenças de convívio só se
percebem a partir do momento em que o convívio existe. E o
convívio, no Brasil, numa regra quase geral, costuma acontecer
apenas depois do casamento.
Ao casar, as pessoas dispõem-se então a partilhar aquilo que na
verdade desconhecem. É um admirável atestado de confiança (ou
uma prova de inconsciência) cujos frutos se colhem logo no início
da safra conjugal.
Pois é nos primeiros dias que (por maiores que tenham sido as
intimidades amorosas anteriores) começa a se estabelecer a
verdadeira intimidade, aquela da pasta de dentes, a do ronco, a do
espirro, a dos pequenos cacoetes. E se descobrem diferenças que, se
mal resolvidas, podem transformar a vida em comum em comum
desgraça.

Cada pessoa tem uma rotina de vida. Não é arbitrária, não é leviana.
É o resultado de anos e anos de lutas e adaptação. Lutas para
manter a própria individualidade. E adaptação aos ensinamentos,
às pressões, às necessidades. Podemos mesmo dizer que a rotina de
vida de cada um é uma demonstração da criatividade com que o ser
humano sobrevive à tirania doméstica, ajeitando-se no cotidiano.
Exatamente por isso, por ser a soma de tantos elementos diferentes,
é impossível encontrarmos duas rotinas idênticas. E mais
impossível ainda é encontrarmos duas rotinas quase idênticas
casadas entre si. Em termos de pasta de dentes, por exemplo, é raro,
raríssimo casarem dois espremedores por baixo ou dois apertadores
pelo meio.
Querer, portanto, que a rotina de alguém que foi educado em
ambiente e de modo diferente do nosso se sobreponha com exatidão
àquela rotina que consideramos parte essencial de nós mesmos é
uma forma de delírio romântico que nada justifica. Gêmeas as
almas, ainda assim serão diferentes os modos de viver. Nem poderá
um mudar completamente seus jeitos, em favor do outro. A solução
terá que estar sempre no cruzamento dos dois modos, dando
origem a um terceiro: o modo conjunto.
Ele é calorento, sufoca debaixo da mais leve colcha, quer janelas
abertas, cortinas esvoaçantes. Ela está sempre na Sibéria, tiritando
debaixo de cobertores, protegida por meias e agasalhos, só a ponta
do nariz aparecendo como um periscópio. Mas é à noite, de volta de
um programa, alta madrugada, depois de muita conversa e alguma
bebidinha que ela está acesa para o amor, ansiosa para prolongar
em abraços a noitada, enquanto ele, morto de cansaço, está mo-
mentaneamente convencido de que ser bom de cama é deitar e
dormir.
Haveria algum erro básico neste casamento? Nenhum. Apenas,
sendo exigência do casamento que ele se realize entre duas pessoas,
vemos aí duas pessoas no modesto exercício das suas exigências
físicas.
Não é por achar a manhã bonita que ele acorda tão alegre. Nem é
por detestar a luz do sol, como um vampiro, que ela se nega a
acordar. O fenômeno é inverso. Ele gosta da manhã porque já abriu
os olhos cheio de disposição. E ela não os abre, ignorando os apelos
do dia, porque seu organismo não está disposto.
Trata-se simplesmente de uma questão de* tônus vital. O dele é
mais alto de manhã (e é provável que à noite seja um desastre),
enquanto o dela é mais baixo. Ou então ela necessita de mais sono
do que ele, e ainda não está "pronta" quando ele acorda. O ideal
seria que cada um pudesse fazer seu horário, acordar na hora em
que lhe apraz, deitar à hora em que o sono mandar. Mas a sociedade
não está estruturada para isso, e o próprio casal criaria um descom-
passo ainda mais difícil de contornar.
O mesmo vale para frio e calor. O magro é mais friorento que o
gordo, e o de pressão alta sente mais calor que o de pressão baixa.
E o mesmo vale para o amor.
No amor a coisa complica um pouco. Porque embora seja uma
função tão física quanto qualquer outra, vem revestida de
poderosos envolvimentos psíquicos e afetivos. Se a gente oferece
um copo d'água a alguém e este alguém diz que não está com sede,
tudo bem. Mas se a gente oferece sexo ao nosso alguém e ele diz que
não está com vontade, tudo mal. Não esperamos, não desejamos ver
negado nosso impulso.
No entanto o outro também não deseja fazer sexo quando está com
sono, quando está cansado, quando simplesmente não está com
vontade. Não deseja se submeter. Deseja participar. E participar é
impossível quando o físico não ajuda.
Então, para que um não se submeta nem o outro se prive, o melhor
em matéria de sexo é procurar a fórmula que atenda aos dois. Se for
à noite, que seja cedo, antes dos programas (uma amiga minha
utilizava com sucesso a hora em que, chegando do trabalho e, tendo
tomado um chuveiro, ele deitava para um pequeno repouso). Se for
de manhã, não precisa ser ao alvorecer. E, sobretudo, pode-se
explorar uma vasta gama de horários inesperados, com a vantagem,
para ambos, de estimular o senso lúdico, a criatividade e, conse-
qüentemente, o erotismo.

Entretanto, um tipo de erro pode se estabelecer entre duas pessoas


de temperamento diferente, já antes do casamento — e se agravar
depois. É a falsificação, combinada com a aposta no futuro.
Namorada, noiva, ela se adapta aos gostos dele, finge adorar o
Maracanã aos domingos, fica durante horas de caniço nas mãos em
penhascos ventosos. Conta seduzi-lo com sua mimetização, faz-se
de igual para que ele a queira. Casada, porém, revela-se a diferença.
Já não é mais preciso seduzir. O ódio ao futebol pode explodir cla-
ramente, nem ninguém a verá nunca mais exposta às intempéries
em busca de um mísero peixinho.
Assim também ele, apaixonado aspirante a marido, submete-se
dócil aos desejos dela. O beijo é precedido de longas carícias,
olhares românticos, frases doces. A necessidade de carinho dela é
preenchida. Nem se atreve ele a ficar lendo enquanto ela quer
conversar. Recita atento o papel do amante perfeito, aceitando todas
as exigências, certo de que depois de casados saberá fazer valer sua
voz de dono e a modificará de acordo com seus moldes.
Nos dois casos temos aquilo que se chama "crime com
premeditação". Só que não há um réu e uma vítima. Há duas
vítimas, entaladas num mau casamento.
Gostar da montanha enquanto o outro gosta de mar pode complicar
um pouco a vida, mas não é grave. Demorar horas no banheiro
enquanto o outro espera do lado de fora pode irritar um pouco, mas
não é grave. Diferenças de humor e de timing atrapalham pouco e
até bastante, mas não são graves. Graves são outras diferenças, que
também existem, e que, estas sim, pesam no equilíbrio matrimonial.
Eu vejo, por exemplo, com incredulidade e apreensão o casamento
entre uma feminista e um machista, um conservador e uma liberal,
um vanguardista e uma acadêmica, um anárquico e uma
tradicionalista. Ou seja, acho difícil acreditar nas possibilidades de
convivência amorosa e harmoniosa entre duas pessoas cujos ideais
são antagônicos.
Se o meu marido explode pasta de dentes até no espelho, isso pode
me irritar. Mas é só passar uma ponta de toalha ou um pedacinho
de papel higiênico para que tudo volte ao normal (ao meu normal).
Não houve agressão. E é provável que após algum tempo eu
automatize o gesto de limpeza, assim como ele automatizou seu
apertão, e nem me aborreça mais com isso.
Mas ideal não é pasta de dentes, não é reflexo condicionado. É a
resposta mais plena que cada um consegue dar às indagações da
vida, ao porquê do próprio ato de existir. É a maneira com que
tentamos nos inserir neste ato e justificar nossa presença. E é o
ponto em que concentramos nossa capacidade de luta.
Como, então, partilhar o campo oposto ao nosso? Seria o mesmo
que fazer bivaque nas tendas do inimigo em plena batalha. Eu, que
há anos tento refletir sobre o problema da mulher e defender seus
direitos, não suportaria dividir cama e mesa com um homem que
negasse esses direitos e me considerasse de alguma forma um ser de
segunda categoria. Ou então poderia dividi-los literalmente, er-
guendo muros. E já não teríamos um casamento.
Esse tipo de convivência, porém, pode funcionar dentro de outros
esquemas, e nos trazer às vezes dados muito reveladores sobre as
pessoas. Se vejo o anárquico apregoando viver feliz ao lado da
senhora indubitavelmente conservadora, respeitadora dos usos e
das tradições, sou levada a crer que não existe ali um milagre de
adaptação e equilíbrio, mas sim que o cavalheiro não é tão
anárquico quanto gostaria ou quanto apregoa, e que o
conservadorismo da mulher lhe serve de âncora e proteção.
Teríamos aí um esquema de "apoio". Ele, que não é
fundamentalmente anárquico, se apoia nela para ousar o
anarquismo que habita suas fantasias. E se lança tranqüilo, sabendo
que, como um elástico, as convicções dela o trarão de volta a lugar
seguro toda vez que ele for além da conta.
Ao contrário de mim, entretanto, há quem afirme não só a
possibilidade de sucesso, como a excelência de se escolher para
parceiro uma pessoa diametralmente oposta. Seria o que se pode
chamar de "teoria dos opostos", segundo a qual o resultado melhor
pode ser obtido somando-se as extremidades. Um casal formado
por dois vanguardistas, por exemplo, levaria ao estabelecimento de
uma família van-guardérrima, e como tal ameaçada de excessos e
de cegueira em relação às outras realidades da vida. Já uma
vanguardista e um acadêmico casados somariam suas visões opos-
tas, chegando a um resultado mais equilibrado, e como tal mais
propenso à duração.
Seria o caso, por exemplo, de Janete Clair e Dias Gomes,
reconhecidamente um dos casais mais felizes do nosso mundo
artístico. Em recente entrevista, Janete declarou que, enquanto ela é
católica praticante, Dias é ateu; ela é uma autora romântica, e ele é
realista; ele adora comida baiana, ela gosta mesmo de comida árabe;
ele é fanático por futebol e ela não sabe nem o que deva ser feito
com a bola. "Mas apesar disso tudo", esclareceu, "ele é o homem da
minha vida." E isso, há vinte e nove anos.
Grandes ou pequenas, o fato é que as diferenças existem, e são parte
de qualquer casamento. Se bem tratadas, porém, deixam de
constituir uma ameaça, para se transformarem em tempero de um
cotidiano que, muito plano, poderia ser monótono. E bom trato, no
caso, equivale a bom senso.
Há três premissas para estabelecer o bom senso:
Premissa n.° 1 — Você não casou consigo mesma. Porque seria
narcisismo querer alguém igual a você. Porque este alguém não
existe. Porque se existisse o mais provável é que você não gostasse
dele.
Premissa n.° 2 — Ele é ele. Ou seja, uma outra pessoa, com seus
modos e suas necessidades.
Premissa n.° 3 — É dele que você gosta e portanto quer entender seus
modos e aprender a operacionalizá-los.
Estabelecido isso, o resto é mera decorrência.
Se, por exemplo, ele é esportivo e você se sente preguiçosa como um
gato, a primeira etapa é entender as causas da diferença. Refletindo,
você perceberá logo que ele tem muita vitalidade física que
necessita ser desgastada, coisa que a vida normal urbana com carros
e escritórios não permite; represado, contido fisicamente, ele se
sente mal, fica irritadiço, tenso. Refletindo mais você chegará à con-
clusão de que um companheiro irritadiço é pior que um
companheiro esportivo. Refletindo mais ainda, você concluirá que
embora sua vitalidade e seu grau de excitação sejam menores que os
dele, um pouco de exercício não vai lhe fazer mal, muito pelo
contrário. Enfim, o resultado natural de tanta reflexão será você
fazer um pouco de esporte com ele, deixar que ele faça o resto
sozinho, e viver a vida em comum mais harmoniosamente.
O mesmo esquema funciona para detalhes como cobertores (use um
de solteira e deixe ele só de lençol), para a famosa pasta de dentes
(que tal ter dois tubos?), para a hora de levantar (o madrugador
pode fazer cooper de manhã cedo e voltar quando o outro já estiver
desperto), e para as inevitáveis reclamações.
Sim, porque reclamações sempre existem. No meu caso, por
exemplo, eu sou muito reclamona, a que mais reclama dos dois.
Houve um momento em que decidi não reclamar mais, para não
atormentar meu marido. Mas aí quem se atormentava era eu,
violentando meu modo de ser. Então estabelecemos o regime dos
cinqüenta por cento. Eu voltaria a reclamar, mas só a metade do que
séria meu natural. Ele em compensação deixaria de fazer a metade
das pequenas coisas que me irritam. No uso diário não fica assim
tão matemático, podemos ir de vinte por cento a noventa e nove por
cento. Mas a média dá um total bem mais equilibrado, sem grandes
sofrimentos de parte a parte.
O que conta, enfim, é viver as diferenças de forma dinâmica,
procurando soluções para elas, em vez de transformá-las em cavalos
de batalha e justificativas para irritação. Avaliando os valores,
cedendo onde se pode, brincando onde dá, as diferenças podem
perfeitamente ser incorporadas ao patrimônio familiar, abrindo
espaço para a respiração de um casamento mais feliz.

Por que estamos tirando a roupa


Noite quente. Festa simpática em casa com piscina. De repente
alguém dá a idéia, que tal um banho? Um segundo de hesitação, e
logo as pessoas começam a desabotoar a roupa, despem-se, e
alegremente entram n'água.
Escândalo? Dissipação? Não. Os participantes da festa estão talvez
experimentando algo que nunca fizeram antes, na tentativa de se
entrosarem com aquilo que pressentem como um novo tipo de
comportamento. Afinal, eles não estão mais nus do que as
personagens de tantos e tantos filmes, do que os modelos das capas
de revistas, do que atores e bailarinos que fazem do corpo despido
mais um momento de sua arte.
É moda então estar-se nu? Nem tanto. Mas é certo que a nudez vem
ganhando novas características, e já não nos espanta como antes.
Total, velada, parcial ou insinuada, ela ingressa no nosso dia-a-dia
e, nas nossas possibilidades, ela é mais um fato a ser repensado.
Fique claro desde o início: nudez e seminudez são fenômenos da
moda, e como tais se inserem dentro de um sério e complicado
processo social. Que inclui também a nudez pornográfica, embora
de forma tangencial, e embora sendo bem diferente daquela de
decotes e minissaias, de topless e de tangas, e até mesmo daquela da
festinha com piscina, formas de nudez para consumo, em que o
erotismo ocupa uma parte, mas não é o único movente.
Pode-se dizer que as pessoas se despem pela mesma razão que se
vestem. Ou seja, o fenômeno de usar pouca, ou nenhuma roupa, é
decorrente do fato de que, um dia, alguma roupa foi usada.
E para explicar por que o ser humano abriu mão de sua nudez,
existem três teorias principais: a — a teoria do pudor; b — a da
ornamentação; c — a da função protetora da vestimenta.
A teoria do pudor começa em Adão e Eva, seus inventores. Andavam
os dois nus pelo jardim do paraíso, felicíssimos apesar de serem
junto com os vermes os seres mais despidos da criação, sem
escamas, penas ou pêlos. Até o momento em que, instigados pela
serpente, cometeram o pecado original. Aí: "Os olhos de ambos se
abriram, e eles conheceram que estavam nus, e tendo costurado
folhas de figueira, fizeram com elas vestimenta".
Estar nu ou seminu tornou-se repentinamente desagradável, e, pior
que isso, perigoso. Pois a partir daquele momento a nudez
identificava-se com o pecado e passava a merecer castigo. "Toda
nudez será castigada!", vociferaria séculos mais tarde a voz
brasileira do dramaturgo Nelson Rodrigues. E de fato, antevendo a
frase fatídica, Adão foi correndo esconder-se com Eva no mato. E
quando Deus chamou exigindo-lhe a presença, respondeu: "Escutei
vossa voz no jardim, e tive medo, porque estava nu".
Este medo seria chamado depois, eufemisticamente, de vergonha, e
a vergonha, por sua vez, se transformaria em pudor. E o pudor seria
visto pelos teólogos como um privilégio da espécie humana, que,
cobrindo-se, diferenciava-se dos animais.
Já que o sexo era considerado pecado, e tendo estabelecido que toda
atenção para o corpo era nociva à salvação da alma, nada mais
lógico do que esconder o objeto do desejo, forrando-o com panos, e
se possível disfarçando-lhe as formas.
A teoria do pudor já conheceu melhores dias, embora ainda hoje,
frente à queda de baluartes morais da indumentária, como por
exemplo o sutiã, vozes indignadas gritem ao despudor.
É claro que agora, condicionados, deformados por séculos de
repressão, sentimos pudor do nosso corpo nu. Mas é sobretudo uma
questão gregária. A falta de sapatos num ambiente em que todos
estão calçados cria um imediato desconforto — e não é à toa o
hábito de certas polícias de descalçar o prisioneiro, ou até mesmo
despi-lo, para reforçar de imediato sua posição de inferioridade. Da
mesma forma, porém, nos sentimos altamente inconfortáveis se
estivermos vestidos em meio a pessoas nuas. "Fomos levados por
um colega, que já conhecia o lugar", diz um cavalheiro que cha-
maremos Fernando, relatando sua visita a um clube nudista; "logo
na entrada nos deram um cabide e nos indicaram o lugar de tirar a
roupa. Achei que ia ficar no maior constrangimento. Imagina, eu,
nascido e criado em Minas, sair andando nu por aí. Mas não tinha
outro jeito, e saí. O engraçado é que dez minutos depois, olhando
aqueles senhores pelancudos, aquelas senhoras de barriguinha,
jovens e velhos, todos na maior em volta da piscina e andando pelos
jardins, até esqueci que estava sem roupa. E dizer que a princípio
cheguei a temer uma ereção!"
Como os nudistas, os índios também são imunes ao pudor, tal qual
o conceberam os teólogos. E foi justamente o estudo de povos
primitivos que conduziu à segunda teoria, a da ornamentação.

A teoria da ornamentação baseia-se no fato de que, embora existam


povos que não se vestem, não há conhecimento de povos que não se
ornamentem.
Jóias, adornos, pinturas, tatuagens e até mesmo cicatrizes revelam
um conteúdo simbólico poderoso, em tudo oposto ao pudor. Pois se
o pudor quer esconder, o adorno tem por finalidade máxima
exatamente o oposto: exibir.
Os defensores da teoria da ornamentação afirmam que o uso da
roupa aconteceu como decorrência do adorno, e que sua finalidade
primeira era fortalecer a atração sexual, chamando a atenção para os
órgãos genitais. Pois é justamente nessas áreas que se concentram,
nos povos primitivos, as tatuagens, as pinturas, e aqueles adornos
que de alguma forma poderíamos considerar como vestimenta.
"Roupa é convenção", diz o antropólogo João Vieira, que há anos
acompanha os índios da região mato-grossense, "é um código como
outro qualquer. Nós achamos que os índios estão nus, porque sua
vestimenta não acompanha o nosso código, porque eles não usam o
nosso tipo de roupa. Mas um índio xavante, por exemplo, não está
nu, está 'vestido' com o estojo peniano. Tire-se o estojo, e ele se
sentirá realmente despido."
A mesma função de "roupa" que entre os homens xavantes é
representada por um capuz, feito de folha de babaçu enrolada, que
recobre a ponta do pênis, pode, entre outros povos, ser
desempenhada por uma pulseira, por um fio passado ao redor dos
quadris, por um desenho pintado no corpo. E aquilo que parece
apenas um enfeite tem na verdade funções muito complexas.
Poderíamos até dizer que os enfeites substituem no ser humano as
plumas e os pêlos que a natureza não lhe deu. Já que não possui
penas como o pavão, que lhe permitam abrir a roda encantadora
chamando a atenção da companheira, ele arranca as penas coloridas
de uma arara e as coloca ao redor da cabeça. Já que não tem a juba
do leão para fazer-se rei, ele tosquia um leão morto e tece um manto
real com seus pêlos.
E aqui é preciso fazer uma ressalva. Embora a finalidade sexual seja
preponderante no código da ornamentação, não podemos esquecer
que esta tem também outras funções importantes, como a
necessidade de diferenciar o nível social ou a ocupação, de
atemorizar o inimigo (as máscaras do teatro japonês o demonstram
fartamente), de fazer ostentação, e de demonstrar riqueza. As
mesmas características afinal que a ornamentação mantém até hoje,
entre os povos ditos civilizados. Pois é isto que está por trás do
brilhante da madame (a representar a riqueza do marido), da
camiseta da adolescente onde se lê Coca-Cola (bebida símbolo da
sua idade), do brinquinho na orelha do músico (código de iniciado),
e de tantos enfeites que erroneamente nos acostumamos a
considerar como futilidades.

A terceira teoria, da proteção do frio, é a que menos se sustenta. De


fato, existem povos que vivem em lugares quentíssimos, como os
beduínos do deserto, e que andam envoltos em panos, inclusive
panos de lã. Em contrapartida, há povos que vivem em regiões frias,
como os habitantes da Terra do Fogo, que mal se cobrem, andando
seminus.
E bastaria, para invalidar a teoria do frio, olharmos a evolução do
maio feminino. Do conjunto de meias, calção, camiseta,
sobrecamisa, touca e sapatinho das nossas bisavós, passamos ao
recatado maio inteiro com saiote, pulamos para o duas-peças,
explodimos com o biquíni, passamos pelo monoquíni, criamos a
tanga, e estamos agora arvorando o topless. Ou seja, estamos cada
vez mais nuas, bem próximas da indumentária xavante, sem que
haja qualquer registro de aumento na temperatura dos mares.
"Eu poso nua porque acho que o corpo é uma coisa bonita. É como
se tentasse dizer às pessoas: 'Veja como é bom, gostem do seu corpo
também'." Cada vez mais as pessoas parecem pensar como Sônia
Braga, atriz que à beleza do corpo e ao prazer de mostrá-lo deve boa
parte da sua popularidade. Mas, depois que vimos a densidade das
motivações que o fenômeno roupa encobre, justificar a nova nudez
apenas com o amor pelo corpo nos parece pouco. Afinal, vestidas
ou não, as pessoas sempre amaram seu corpo, não fosse por ser ele
o veículo do amor.
Já dissemos que tirar ou botar a roupa é um fenômeno da moda. Ou
seja, é um dos elementos que formam o conjunto de alterações
contínuas às quais os seres humanos de determinada sociedade
submetem suas vestimentas. E estas alterações são decorrentes das
modificações de toda a estrutura social, que não apenas se refletem
nos trajes, como geram novas modas capazes de simbolizá-las.
A nova nudez então não é como querem alguns uma "pouca-
vergonha", não é uma coisa solta no ar, é a decorrência de todo um
longo processo, e como tal deve ser encarada. Dentro desse enfoque,
afirmava com lucidez no auge da polêmica acerca do topless o
Desembargador Agamenon Duarte Lima, em Recife: "A moda do
topless não infringe nenhuma lei. Trata-se de um problema de
hábito. Como todas as mulheres civilizadas costumam cobrir os
seios, criou-se um tabu, segundo o qual quem mostra essa parte do
corpo atenta contra o pudor. Pessoalmente não vejo nada de mau na
nova moda. Até considero interessante que as mulheres resolvam
bronzear os seios".
Na realidade, nossa sociedade atravessa, já há mais de duas
décadas, um processo geral de desnudamento. A divulgação das
teorias psicanalíticas, a procura do eu, o desejo de fugir da mentira
geraram uma espécie de striptease social, visível em todas as áreas.
Multiplicam-se as autobiografias, os depoimentos em que as
pessoas entregam suas verdades mais íntimas. No teatro, na
literatura, as críticas ao sistema se fazem contundentes. E as
personagens arrancam de si suas roupas exibindo o corpo nu,
simbolizando seu desejo de arrancar de si as falsas verdades e exibir
sua alma. A sociedade, o todo social, é um corpo; e quando parte
desse corpo se desnuda, é o todo que se sente nu.
Levantam-se então vozes clamando modéstia, gritando ao pecado,
alertando para a ameaça à sociedade. Vozes semelhantes às que se
fizeram ouvir quando as damas deixaram de usar espartilho,
quando surgiu o primeiro biquíni, quando Marilyn Monroe posou
com a saia esvoaçando ao vento que vinha de um bueiro, toda vez,
enfim, em que o mundo abriu mão de um costume em troca de
outro, mostrou mais uns centímetros de pele, e não caiu. São vozes
de medo e negação, vozes daquele segmento mais tradicional da
sociedade que se recusa a aceitar uma verdade óbvia: a de que a
roupa é reflexo, não é motivação, e não dita os costumes, mas os
denuncia.
O mundo, portanto, não vai se modificar porque estamos tirando a
roupa. Ao contrário, tiramos a roupa porque o mundo se modificou.
Outros fatores entram na balança. Há, por exemplo, um inegável
elemento exibicionista. O exibicionismo, já vimos, está na própria
origem da roupa, porquanto ornamento. A ele se acresce hoje um
novo prazer, o de mostrar um corpo que sabemos mais saudável,
que aprendemos a tratar, de quem cuidamos com toda a fartura de
meios que a sociedade de consumo nos fornece. É sabido que na
orla litorânea o nudismo sempre foi maior, e o Rio de Janeiro, por
exemplo, se orgulha dos belos corpos de ambos os sexos que
ornamentam suas praias. No Rio apareceu a tanga, no Rio apareceu
a primeira moça topless, no Rio, dizem todos, as pessoas andam
mais nuas. Seria uma questão de permissividade ou seria porque o
contato constante com o sol e o mar permitem um corpo mais
bonito, mais agradável de exibir? A lógica nos faz crer na
combinação dos dois fatores.
Devemos considerar também o atual desnudamento do ponto de
vista econômico, porque, se moda é reflexo das estruturas sociais,
ela o é também da situação econômica. A roupa, como já dissemos,
serve, e sempre serviu, como elemento revelador do status de quem
a usa, para dizer ao primeiro olhar qual sua posição, sua
importância, sua riqueza. O rei não se veste como o lacaio, o general
não se veste como o soldado. O bispo não se veste como o padre. E
houve períodos, como na Idade Média, em que certos detalhes da
indumentária eram proibidos aos plebeus (durante muito tempo
estes não puderam usar botões ou trajes de cor vermelha). Ora,
acontece que os países mais desenvolvidos diminuíram, graças à
distribuição de renda, o desnível social. Justamente esses países, que
são geradores de modas, passam por um processo de nivelamento.
E isto se traduz na indumentária.
Hoje, em muitos países o blue jeans é a roupa do patrão e do
empregado, da elegante compradora de butique e da vendedora
que a atende. A roupa já não serve tanto para distinguir, sobretudo
porque não queremos mais ser tão distinguidos. E se estamos
procurando uma igualdade, se ansiamos pelo encontro, se lutamos
contra as discriminações, que haveria de mais igualitário e fraterno
do que nosso corpo despido?

O sexo, é claro, desempenha papel fundamental na relação do ser


humano com sua indumentária.
"Se não forem colantes, ninguém compra", explica o confeccionador
de calças compridas. E a secretária de uma agência de publicidade,
respondendo a uma enquete sobre lingerie, afirma: "Para mim o
importante é que ela agrade aos homens, que seja bem sexy". A
roupa, o adorno, tem como uma das suas principais finalidades
atrair o sexo oposto, estimular para o encontro físico. Esta atração
vive exatamente do jogo dinâmico entre o mostrar e o esconder, en-
tre o pudor e o exibicionismo. E o limite do que "se pode" mostrar
varia constantemente, modificando ao longo da história a moral
vigente.
Na Renascença, por exemplo, os homens exibiam seus dotes viris
ostentando braguilhas rígidas, do tamanho de um pequeno melão.
E meias colantes modelavam reveladoramente não só as pernas,
como os glúteos. Isso para não falarmos da época em que o decote
das senhoras terminava exatamente abaixo dos seios, mostrando-os
e acolhendo-os como um pequeno balcão. Ou da moda pós-
revolucionária francesa, quando desapareceu a roupa de baixo; e o
elegante era que um vestido não pesasse mais de duzentos gramas,
e fosse tão leve "a ponto de passar por uma aliança".
Às épocas de maior nudez no vestir corresponderam sempre
períodos de maior liberalização no amor e no comportamento em
geral. Sendo a roupa a representação das estruturas, ao
enfraquecimento dessas estruturas corresponde um progressivo
desaparecimento de peças de roupa.
Uma vez mais, não nos erotizamos por usarmos pouca roupa, mas
sim diminuímos a roupa porque houve um aumento de erotização.
De fato, a moda das transparências, a queda inicial do sutiã, o
desaparecimento da cinta, da anágua, da combinação, datam
aproximadamente de meados da década de 50. E é justamente na
década de 50 que o Relatório Kinsey surpreende o comportamento
sexual dos americanos, abrindo as portas para uma progressiva
liberalização. Logo após, a descoberta da pílula aceleraria o
processo. E o surgimento dos movimentos de contracultura faria do
nu um elemento de crítica e de agressão ao establishment.
Quando mulheres queimaram sutiãs em praça pública, não era um
fato isolado. Era um elo da longa corrente de protestos com que as
minorias rompiam sua submissão. E na ruptura da submissão
feminina incluía-se a submissão sexual, que o sutiã representava.
Sim, a nudez é símbolo de sensualidade, de intimidade com o
corpo, de busca do prazer. E, como tal, é um gesto político, assim
como político é o próprio sexo. Porque sexo pleno, sexo liberado, só
acontece entre seres liberados. Aos regimes totalitários repugna o
sexo. Hitler decretava o comportamento da mulher: casa, igreja,
berço. E na China de Mao reprimiu-se o sexo. E na Argentina dos
generais a virgindade é virtude. E moral é uma palavra que aflora
com constância à boca dos ditadores.
Estamos tirando a roupa porque estamos fazendo amor, porque
estamos dando importância ao amor. E isso não é causa. É
decorrência, fruto da liberdade que estamos conseguindo e que
lutaremos para manter.

Meu marido não deixa


Na ginástica, no trabalho, nos jantares, pingada com naturalidade
no meio das conversas, ouço com freqüência esta frase: "Meu
marido não deixa". E com naturalidade quase surda eu a ouvi
durante muito tempo sem questioná-la, assim como a ouve e vive a
quase totalidade das mulheres.
Mas há um momento em que a gente "ouve", e se espanta, um
momento em que finalmente entende o que está sendo dito.
Que significa ela? Que o marido tem o poder de veto. Que tem o
direito de estabelecer tudo aquilo que a mulher pode ou não fazer. E
que este direito é tacitamente reconhecido pelos dois elementos do
casal.
Não é, porém, um direito recíproco. A mulher não veta. A mulher,
no máximo, azucrina. Um homem não diz, a sério e impunemente,
"Minha mulher não deixa". Seria ridicularizado se o fizesse. Um
homem diz, e assim mesmo em tom de brincadeira ou de lamúria —
mas nunca de medo —: "Se eu fizer isso minha mulher me enche o
saco". Ou: "Se eu fizer isso vou ter que ouvir minha mulher". Ouvir
a mulher é o castigo máximo pelo qual passa o "infrator" masculino.
A que se aplica o sinistro "Meu Marido não Deixa"? À vida, poderia
dizer eu para ser abrangente. Ele não deixa que a mulher viva na
sua plenitude, ou seja, de acordo com os seus desejos. Mas sejamos
mais detalhistas, já que o que nos interessa é destrinchar essa frase,
esquartejá-la bem, na tentativa de nos livrarmos dela. A frase se
aplica basicamente a tudo aquilo que poderia representar
independência para a mulher, ou de alguma maneira indicar que
ela está se assumindo como ser adulto. De um modo geral,
podemos dividir esta ingerência por setores:

a — Liberdade de movimento. A frase visa a proibir que a mulher se


desloque com desenvoltura e por sua própria conta. Dizia-me o
chofer de táxi enquanto rumávamos para o aeroporto, em São
Paulo: "A senhora mora no Rio e vem trabalhar aqui, sozinha!?. . . E
o seu marido deixa?" Era um espanto para ele que um marido sério
deixasse a própria mulher, mãe de seus filhos, tomar um avião no
Rio, vir trabalhar em São Paulo e tomar outro avião de volta, tudo
isso sem babá ou mãe acompanhando. Mesmo sem ter visto o filme
Emmanuelle, o chofer desconfiava — ou tinha certeza — dos terríveis
perigos que nos aviões cercam a castidade das damas. E reprovava a
liberalidade do meu marido.
Na categoria do movimento, as proibições mais freqüentes
costumam ser: viajar sozinha, sair sozinha à noite, e, por mais
espantoso que pareça, dirigir automóvel. Quanto ao carro, os
maridos parecem não chegar a um consenso: alguns não deixam
que a mulher dirija na cidade, outros proíbem na estrada, há os que
deixam dirigir de dia mas não deixam dirigir de noite. E a maioria
argumenta: "É muito perigoso. E se acontecer alguma coisa. . .?" Ai
da mulher a quem alguma coisa acontece quando seu poderoso
marido não está junto para protegê-la!
b — Administração do próprio corpo. Oficialmente o corpo da mulher
pertence ao marido, a partir da mão que lhe foi dada em casamento.
É qualquer coisa semelhante a um anexo fisiológico, do qual ele se
utiliza para satisfazer seus desejos e para garantir sua reprodução. E
como tal ele o administra. É o marido quem determina a
profundidade do decote que a mulher pode usar, quem demarca as
bainhas das saias e a exata dimensão do biquíni.
A Marina Morena de Dorival Caymmi não podia pintar o rosto,
que, embora seu biologicamente, era só dele. E inúmeras mulheres
casadas não podem dançar com outros homens porque "Em mulher
minha ninguém põe a mão". Há as que não podem pintar os cabelos
e as que não podem fazer plástica. E há ainda um número imenso
que enfrenta proibição bem mais dramática: o marido não deixa
usar anticoncepcional. E para que uma mulher ligue as trompas é
necessária a aquiescência, para não dizermos permissão, do marido.

c — Tudo aquilo que possa ser considerado exclusivo dos homens. Este é
um capítulo amplo, porque cada homem estabelece de acordo com
seus critérios pessoais e os do seu círculo imediato de relações
aquilo que é gesto ou atividade exclusivamente masculina, devendo
portanto ser proibido à mulher.
"Minha mulher também não fuma", diz o mecânico orgulhoso
puxando funda tragada, depois que recusei gentilmente um cigarro.
"Eu não deixo. Tenho pavor de mulher que fuma. Cigarro é coisa de
homem." E vai em frente me contando os cuidados que tem para
manter firme sua proibição. Sim, porque a mulher gosta de fumar,
chegou a esconder um dinheirinho das compras da casa, só para
comprar cigarro. Mas ele inspeciona gavetas, fiscaliza o hálito, e
cortou o tal dinheirinho extra. Aí ela foi à casa da vizinha, fumar. E
ele cortou as visitas à vizinha. Agora parece que ela se conformou. E
é bom. "Porque bonito mesmo na mulher é a sua delicadeza." Uma
delicadeza sem cheiro de cigarro.
Beber, evidentemente, também é coisa de homem. E coisa de
homem é palavrão. E bar. Sinuca, nem pensar. Excluídos estão
também os jogos em geral. E sobretudo é coisa de homem,
exclusivamente de homem, reservadíssima aos homens, trabalhar.

"Foi uma opção. Foi meu marido, eu admito. Ele vai ficar danado,
mas eu admito. Ele me disse: a dança ou eu." O marido de Marly
Leal, que já dançava quando eles se conheceram e se apaixonaram,
que já era bailarina do Municipal e já havia dançado com Carlos
Machado, foi sutil. Ele não disse "não deixo", ele disse "ou o seu
trabalho ou eu". E Marly, como tantas e tantas mulheres, colocada
frente a este jogo de cartas marcadas pescou a carta correspondente
aos conceitos pré-fabricados de amor, dever, família, papel da
mulher. Hoje a filha de Marly, Adriana, inicia uma carreira de
bailarina. Mas os tempos são outros, e quero ter certeza de que no
baralho saberá escolher a carta da sua realização.
"Meu marido não me deixa trabalhar." Frase comum, frase de todo
dia, que corta milhares de carreiras, milhares de possibilidades,
milhares de talentos.
Quase cortou a de Wanda Sá, cantora que, depois de mais de dez
anos de afastamento, voltou aos shows e à música. Numa entrevista
Wanda explicou que durante aqueles anos todos não tinha feito
nenhum show "porque a cabeça dele não dava pra agüentar uma
mulher cantora". Ele é o marido, Edu Lobo, o qual certa vez,
durante um ensaio de um show que Wanda fazia com Marilda
Pedroso e Marcos Paulo, teria mandado que ela escolhesse entre o
show e ele. E ela escolheu.
Casos como os de Wanda e de Marly não são raros. Pelo contrário,
são a quase rotina que rege o momento da escolha de uma mulher
casada. Atualmente milhares delas transitam pelas faculdades,
cursos e cursinhos da vida, porque já é de bom-tom entre uma certa
classe de maridos não deixar trabalhar, mas deixar estudar. E assim
elas se instruem, se ilustram, aprendem ad nauseam, colecionando
diplomas que nunca poderão testar no campo profissional.
Mas por que aceitam as mulheres o categórico "não pode" dos
maridos? Por covardia? Por medo? Talvez em alguns casos, mas não
são estes os moventes da maioria. Não vejo medo nem
ressentimento no rosto simpático da moça que me conta um "meu
marido não deixa" qualquer. Vejo, pelo contrário, uma expressão de
quase satisfação, de bem-estar com o mundo, uma expressão, eu
diria, de orgulho. E se analisarmos de perto nossa convivência com
a frase castradora veremos as fundas raízes deste orgulho.
Quando o homem diz "Não quero que você faça aquilo", está na
verdade dizendo "Eu quero que você viva de acordo com as minhas
vontades; você me pertence como um objeto pertence ao seu dono;
eu sou o opressor e estou lhe oprimindo, porque seu é o papel do
oprimido". Mas não é isso que ela ouve. Estas são frases muito
violentas, brutais, que não fazem parte do seu universo. Este é um
código que ela desconhece, e do qual apenas algumas mulheres
começam a tomar conhecimento. Quando este código for
incorporado à sua vivência, é provável que as frases de mando se
tornem insuportáveis. Mas por enquanto o que ela ouve é muito
diferente.
Ela ouve as frases permitidas, as que ela deve ouvir, aquelas frases
agradáveis e gentis sob as quais durante séculos se escamoteou a
verdade, e que lhe foram ensinadas como certas. Em lugar de "não
quero", ela ouve este velho repertório: "Eu sou seu dono, porque
dono do seu amor; e como tal sou seu protetor; eu sou mais forte e
sábio do que você, e como tal sei melhor do que você o que lhe
convém; eu sou o chefe da família, o responsável, e como tal cabe a
mim tomar as decisões".
O que ela ouve, o que lhe fazem ouvir, é agradável, e se confunde
de forma aparentemente natural com diálogos semelhantes ouvidos
na infância, vindos do pai. Nada mais justo, portanto, do que repeti-
los com um sorriso.

Assim, iludidas debaixo da proteção institucionalizada vivemos


feroz ditadura. Ter um homem que "não deixa", ou um melhor
ainda, liberal, "que deixa", significa estar incluída na sociedade. Pois
a sociedade nos ensina que uma mulher só tem valor e só merece
respeito quando devidamente avalizada por um homem, seja ele
pai, marido, ou até mesmo irmão.
Ao contar que ele não deixa, a mulher está orgulhosamente
contando seu próprio valor. Ela é, através da proibição, uma mulher
de bem, respeitadora das regras, temente a Deus (pois não é Deus
aquele homem investido de todos os poderes e de todos os dons?).
Ela pode se permitir arroubos infantis, pode correr o risco de fazer
as "bobagens típicas do seu sexo", porque tem um homem que não a
deixará ir além da conta, e que, vigilante, a trará sempre no bom
caminho.
E sobretudo, ao dizer recatada "meu marido não deixa", ela está se
livrando dos anátemas da coletividade, porque em sua frase está
explícito: "eu não sou uma solteirona, uma mal-amada, uma jogada-
fora. Eu tenho um homem que me ama e zela por mim. Eu tenho
um homem que não quer que nenhum outro homem me olhe, que
não quer que nenhum outro homem me queira. Um homem que me
quer só para si!"
Aí estão justificados não só o sorriso, como a docilidade. Não há
covardia, há falta de conhecimento. Não há fraqueza, há um engodo
bem engendrado. Não há submissão, há uma grande vontade de
acertar, e uma imensa confusão sobre o que seja acerto.

Nem todas, é verdade, avançam às cegas. Pararam para refletir e


procuraram as causas. Como diz Wanda Sá, "a cabeça dele não dava
pra agüentar cantora".
A cabeça de grande parte dos homens brasileiros ainda não dá para
agüentar mulher independente. O hábito, os preconceitos os levam
a confundir liberdade com liberalidade. Para estes, a proibição atua
como um cinto de castidade, garantindo a exclusividade de sua
posse.
Sim, a mulher independente causa medo no homem que não está
seguro de si mesmo. Ela pode a qualquer momento escolher ir ou
ficar, pois não está presa a ele economicamente. Ela pode questioná-
lo em suas atividades e em suas opiniões, pois é dona de suas
próprias colocações e atitudes. Ela é, enfim, um pensamento vivo
com o qual terá que conviver em igualdade de forças. E para quem
se sente sem força, este é um susto.
Detectar a eventual insegurança do marido significa ter na mão um
elemento muito importante. Não para usá-lo como arma agressiva,
atirando-o ao rosto dele em tom de acusação e insulto. Mas para
conviver com ela reconhecidamente, trabalhando com delicadeza
até torná-la visível e aceita. É um longo trabalho, mas em amor não
conheço outro meio. Aceitar imposições apenas para que ele não
desmonte (e o desmonte pode ser até muito agressivo, destruindo
não só ele, mas a relação) implica um cego sacrifício de nós mesmas,
sacrifício que um dia acabaríamos cobrando, e com juros.
O que importa é ajudá-lo a fortalecer seu ego e a solidificar a
relação, sem que para isso seja necessário nos imolar no altar
matrimonial. Um pouco de reforço, um pouco de avanço, um tanto
de docilidade, um tanto de determinação alternados e bem
trabalhados podem formar aquilo que um teórico chamaria de força
conjunta.

Os homens, é claro, estão com a faca e o queijo na mão. Donos


oficiais da situação, tentam manobrar de modo a manter o barco no
rumo que lhes convém. E nesta tarefa se vêem geralmente apoiados
pelo resto da família, pais e mães que, criados dentro dos velhos
padrões, defendem ferrenhamente sua validade.
Eles têm a chave da porta, e tratam de mantê-la bem fechada. Se a
mulher não tem profissão, impedem que venha a tê-la. Afinal, uma
mulher sem qualificação profissional tem mais dificuldade em
arranjar trabalho, sobretudo trabalho bem remunerado. Se a mulher
rumava para uma profissão, tratam logo de colocar todo o
fenômeno casamento (e leia-se aí casa, filhos, marido) como
obstáculo intransponível. A toda hora ouvimos de mulheres que
iam se formar, ou que estavam no princípio de uma carreira, que
casaram. . . e largaram tudo.
Mas se a mulher tem sua profissão, tem uma carreira já definida e
bem-sucedida, e insiste em mantê-la, então o jeito é apelar para o
indefectível "Ou a sua carreira ou eu".
O apelo, convenhamos, é dramático. O eu não é só eu, é toda uma
estrutura familiar, às vezes filhos, casa, e mais os planos em comum,
os projetos e desejos todos. O eu é muito forte, -e do seu lado,
reforçando ainda mais o prato da balança, está a opinião social
segundo a qual o primeiro papel da mulher, o único aliás que
dignifica sua existência, é o de esposa e mãe. Desbalançado assim,
nosso amor à profissão, nosso desejo de carreira e independência já
não nos parecem justos anseios de realização e plenitude. Trans-
formaram-se em caprichos egoístas. E, como tais, são quase sempre
abandonados.
Sim, o "ele ou eu" é difícil de enfrentar, doloroso. Melhor seria não
chegar a ponto tão exagerado, evitando desde o início do
casamento, desde antes, o estabelecimento de uma relação de
mando e obediência. Pois é repelindo as pequenas proibições que se
evitam as grandes.
Pais e filhos: quem deve o que a quem
"Honrarás pai e mãe" está na Bíblia, é um dos dez mandamentos da
Lei de Deus. Honrar significa: estimar, respeitar, acatar, venerar.
Mas não há, na Lei de Deus, nenhum mandamento exigindo dos
pais que protejam, respeitem, venerem, seus filhos.
Podemos então deduzir que é natural aos pais amarem e
protegerem os filhos, enquanto os filhos só respeitarão os pais se
forem obrigados por mandamento divino? De forma alguma. A
Associação Humanitária Americana assinala o aparecimento anual,
nos Estados Unidos, de dez mil crianças vítimas de sérios
espancamentos, pelos quais os pais, isoladamente ou em conjunto,
são responsáveis diretos em setenta e cinco por cento dos casos.
Dessas crianças, cinqüenta e cinco por cento estão abaixo dos quatro
anos. Por outro lado, naquele mesmo país, os velhos, quando
abandonados pelos filhos, têm forte amparo governamental.
Podemos, a partir daí, deduzir que é necessário à sociedade o
respeito aos mais velhos, produtores e administradores das leis e do
dinheiro? Podemos. Mas o crescente aumento do poder jovem e o
decréscimo de autoridade dos mais velhos demonstram uma
alteração de base na relação pais-filhos.
Então, quem deve o que a quem?
"Cala a boca, menino!", todos nós crescemos com essa frase nos
ouvidos. Menino deve silêncio aos pais. Fala quando lhe é
permitido falar. "Não responda assim pra sua mãe!" Menino deve
ouvir sem responder, a não ser quando a resposta for gentil e de
agrado do adulto. Menino deve agrado. "Não interrompa conversa
de adulto!" Menino não deve interromper, deve saber qual é o seu
lugar. E qual é o lugar de menino? Todos e nenhum; afinal, "onde já
se viu criança mais metida?"
Dever dos pais seria em princípio dar condições de sobrevivência,
tendo em vista que a sobrevivência tem limites mínimos mas não
tem limites máximos, que vive-se de comida; mas também de
educação, de formação e sobretudo de amor, de muito amor.
— Vou fazer como? O pai desapareceu e não me dá um tostão.
Chega o fim do mês e de onde vou tirar o dinheiro? Preciso
trabalhar, e não tenho mãe ou avó ou tia, para deixar as crianças.
Deixo mesmo com a empregada, o dia inteiro. E quando chego do
trabalho elas já estão dormindo, nem dá para ver. Sobra algum
tempo de manhã, mas foi o horário em que consegui vagas no
colégio, e lá se vão eles. Teria os fins de semana para a gente ficar
junto, mas aí também tem meus dias de plantão. Enfim, faço o que
posso.
Telma trabalha num jornal. Teve o primeiro filho muito cedo.
Grávida aos dezoito anos, casou com o namorado, embora não
tivessem condições econômicas ou psicológicas para o casamento. A
mãe de Telma foi contra o casamento e contra o nascimento do neto,
achava que, sem condições, melhor seria esperar algum tempo. Mas
Telma queria o filho, achava que algum jeito se daria, que algum
jeito sempre se dá. Infantil, vivia a maternidade como mais uma
brincadeira. Uma brincadeira que, pela falta de recursos e de
experiência, custou ao bebê vários problemas, entre os quais uma
infecção crônica no ouvido e problemas cardíacos.
Telma bem que gostava do filho. Mas o leite logo secou, e brincar de
mãe perdeu a graça nos primeiros meses. O bebê chorava, o marido
passava o dia inteiro fora de casa, deixando-a sozinha, e voltava à
noite sem dinheiro sequer para o leite da criança. Muitas vezes
Telma desmanchou farinha na água com açúcar para dar a ele. E já
não era brincadeira de "comidinha".
Assim mesmo, no ano seguinte teve outro filho. Acrescida às brigas,
a chegada deste novo encargo foi o suficiente para o pai
desaparecer. E a situação de Telma certamente não melhorou.
Assim que pôde, arrumou um emprego, contratou uma empregada
e deixou os filhos em casa para ir trabalhar.
O que deve Telma aos filhos? E com que direito utilizar a palavra
"dever" em condições tão limitadas?
Bem ou mal, crescem os filhos de Telma. Um dia serão homens. O
que deverão a ela esses homens criados sem afeto, sem presença, e
às vezes mesmo sem as condições econômicas necessárias?
— Eu faço por eles o impossível. Mas estou cansada demais. Vou
trabalhar até eles crescerem. Depois paro e não quero saber, eles que
me sustentem, que cuidem de mim.
Telma acha que os filhos são seus devedores. Assim que for possível
ela inverterá os papéis, e caberá então aos filhos pagar, com juros e
dividendos, todo o sacrifício que ela faz por eles. Nada garante,
porém, que uma vez crescidos os filhos de Telma estejam dispostos
a "assumir" a mãe da forma absoluta que ela pretende. Começará
então a disputa interminável, cuja arma básica é a chantagem
emocional.
Como negar proteção e afeto contínuos a uma mãe "santa" como
Telma? Ela "que fez tudo pelos filhos" merece tudo em troca. E
assim para Pedro e Antônio só haverá duas escolhas possíveis: ou
continuar para sempre presos a todos os caprichos, a todos os
desejos, a todas as exigências da mãe, sem nunca alcançar a
emancipação adulta, ou então enfrentar a culpa e as acusações, para
sempre tachados da mais negra ingratidão, da falta de sentimento
com que um filho esquece sua dívida e abandona a mãe.
A dívida de Telma, anterior até ao nascimento dos filhos, quando
apenas lhes devia o respeito de só trazê-los ao mundo com melhores
condições, esta não será posta na balança.
Quem deve? Quem paga? Você está pagando alguma coisa quando
vai àquele almoço chato dos domingos, só para alegrar seus pais?
Ou vai por carinho? E quando eles reclamam porque você não foi,
até onde é carinho e até onde é cobrança de dívida? Não, ninguém
deve nada a ninguém. Mas quando você de repente exclama "puxa,
meu pai nunca foi me dar boa-noite na cama", é com tom de
ressentimento que você fala, é com tom evidente de cobrança.
— Ele nunca me pediu nada, nem pediria, é muito orgulhoso. Meu
pai é sensacional, tudo o que sou devo a ele, tudo o que sei foi ele
quem me ensinou. Não é agora que ele está velho que vou
abandoná-lo.
Com estas palavras, Jorge "impôs" o pai à noiva na época do
casamento. Não morariam juntos, não, apenas em apartamentos
contíguos, e, claro, o velho faria as refeições com o jovem casal.
Faria as refeições, assistiria a televisão, iria ao cinema, participaria
da vida, daria palpites em tudo. Ele não pedia, era muito orgulhoso,
fingia até não perceber quando estava sendo reverenciado. Jorge é
que pedia, insistia mesmo, e a nora Teresa fazia coro para agradar
ao marido. Isso nos primeiros tempos.
Jorge e Teresa são jovens, vinte e dois e dezoito anos. Têm gostos
jovens, anseios jovens. Seu Juvenal tem setenta e cinco anos, seus
gostos são bem diferentes. Mas Jorge "deve" tudo a seu pai. Então
muda o canal de televisão para o jogo, interrompendo a novela de
Teresa, e vai à reunião da igreja com ele em vez de ir ao cinema com
ela, e leva o velho a Petrópolis em vez de levar Teresa à praia.
Seu Juvenal mora no apartamento ao lado, mas as portas estão
sempre abertas, e, quase sem querer, é normal que ele se meta numa
discussão, a favor de Jorge, é claro; é normal que ele palpite no
menu do jantar. E com o pai ali perto, é natural que Jorge lhe peça
conselho quando está em dúvida sobre alguma coisa, e até mesmo
que desabafe com ele quando briga com a mulher. É natural. Afinal
de contas, Seu Juvenal é um homem fantástico.
— Até o dia em que descobri que Teresa e eu estávamos nos
afastando cada vez mais. Foi de repente, porque um sujeito
começou a se engraçar pro lado dela e eu me vi morto de ciúme e
fui falar com ela, e na briga, no amor, até no ódio, vimos o quanto
estávamos nos afastando, o quanto a presença de papai envenenava
nossas vidas. Eu reconheço: por gratidão, por dever filial mesmo, eu
dava sempre razão a ele, dava sempre a ele o primeiro lugar. Teresa,
coitada, acabava ficando num canto, meio esquecida, meio
preterida. Foi preciso o tranco, o ciúme. Não fosse isso, corria o risco
de deixar meu casamento acabar sem nem perceber.
Quando percebeu o exagero da situação, Jorge providenciou um
outro apartamento para ele e Teresa. Seu Juvenal ficou morando
onde estava.
— A gente visita toda semana, telefona sempre. Mas nada mais de
portas abertas. No fundo, porém, eu sei que ele ficou magoado.
Seu Juvenal nunca pedia nada. Era um "santo homem". E porque ele
era tão perfeito, tão maravilhoso, Jorge não se sentia digno de
sequer chegar a seus pés ("tudo o que sou devo a ele, tudo o que sei
foi ele que me ensinou"), não tinha como preencher o poço sem
fundo da sua dívida.
Como negar afeto, proteção, ajuda, a quem fez tudo por nós?
— Tua mãe te carregou nove meses na barriga e você faz uma coisa
dessas?
Na boca do meu pai os nove meses de gestação de minha mãe se
transformavam num suplício tremendo, tornando ainda mais
imperdoável a má-criação que eu havia feito.
— Tua mãe cansou de lavar tuas fraldas no tanque! E as minhas
fraldas se tornavam coisas nojentas cuja
imundície minha mãe esfregava e esfregava, sem saber que um dia
eu, ingrata menina, deixaria de fazer os deveres do colégio!
— Como é que você tem coragem de roubar açúcar, sabendo que
tua mãe gosta tanto?
Como era que eu tinha essa coragem, eu, monstro de ingratidão
com sete anos, que em plena guerra, quando o açúcar era um
gênero raro e precioso, me atrevia a roubá-lo, por gula e desejo,
mergulhando no açucareiro uma colherinha de boneca?
Nove meses de suplício, o calvário do parto, o monte das fraldas.
Não era ela quem cobrava. Não era ela que o vivia assim. Era meu
pai, tentando facilitar sua tarefa de educador. E quantas vezes eu
argumentei em silêncio no mais fundo de mim com a frase
definitiva que sucessivamente me esmagaria de culpa: "Mas eu não
pedi para nascer!"
Ninguém nunca pediu para nascer. Mas a gente nasce, se cria, sofre
mais, muito mais, do que gostaria, não tem coragem de creditar esse
sofrimento na conta dos pais, e, querendo ou não, com todo ou com
pouco afeto, sente-se na obrigação de zelar por eles quando a hora
chega.
— Olha, não é fácil. Aqui em casa somos eu, meu marido e as
crianças. O que a gente ganha daria com alguma folga, enfim daria
para viver bem, para nós quatro, sobrava até alguma coisa. Mas a
pensão que meu pai deixou é mínima e não dá para minha mãe
viver dela. Então, já há três anos, ela veio morar conosco. Foi até
bom, ela toma conta das crianças e eu pude voltar ao emprego. Com
o que passei a ganhar dava para cobrir os gastos dela, e fomos
vivendo mais ou menos na mesma. Mas este ano meu cunhado fale-
ceu num acidente de automóvel. Era ele quem cuidava dos meus
sogros. Agora os pobrezinhos continuam morando com a cunhada,
mas quem dá o dinheiro somos eu e meu marido. E de repente tudo
ficou muito difícil, até a compra de um sapato tem que ser
planejada, e qualquer aumento no custo de vida é um sobressalto.
A palavra "dever" não entra no depoimento de Eneida. Ela está
implícita. Assim como o marido amparou e recebeu em casa sua
mãe, Eneida aceita tacitamente a sobrecarga dos dois sogros. Tão
tacitamente quanto cumprem seu dever, Eneida e o marido sabem
que a situação é provisória. Mas é um provisório que pode se
alongar, dominando o período mais vital de suas vidas, justamente
aquele período em que, responsáveis pela educação dos filhos, o
dinheiro lhes é fundamental. Por outro lado, o afeto impede sequer
o desejo de abreviar este período de sobrecarga, pois isto significa
desejar o término da vida dos pais.
Os sogros de Eneida sabem perfeitamente que a partir do acidente
passaram a representar uma sobrecarga muito pesada para o filho,
cujo orçamento era apenas razoável. Mas não têm, eles próprios,
qualquer recurso. A idade de trabalhar passou há muito, agora
estão fracos e necessitados como crianças. E como crianças querem
ser atendidos. Se não o forem, se sentirão frustrados no seu afeto,
rejeitados pelo filho.
Entretanto, somente no ano de 1966, os Estados Unidos registraram
quatrocentos e noventa e sete assassinatos de crianças, mortas por
seus próprios pais. E, em julho de 1973, realizou-se na UNESCO, em
Paris, o primeiro congresso internacional da Organização Mundial
para o Estudo e Prevenção do Filicídio.
"As causas principais da perturbação mental dos jovens (distúrbios
que levam à delinqüência e às drogas) residem no rompimento da
relação pais-filhos", afirmava naquela ocasião o psiquiatra argentino
Arnaldo Rascovsky, presidente daquela organização. E acrescentava
que, "levando em conta a extensão que atingiram o assassínio, o
abandono e as ofensas aos filhos", era necessário que esta relação so-
fresse uma profunda modificação.
É, evidentemente, mais fácil para um pai maltratar o filho,
sobretudo enquanto criança, do que vice-versa. O filho é indefeso, e
não reage. É dependente, e não foge. É inocente, e desconhece a lei.
Uma criança não vai à polícia para dar queixa da própria mãe que a
espancou. Mesmo porque não sabe que a mãe não tem esse direito.
É de pequenino que se torce o pepino. Porque é de pequenino que ele se
deixa torcer. Com a desculpa da educação, descarregam-se na
criança os ódios reprimidos, as frustrações, a tensão toda
acumulada. Uma boa surra nunca fez mal a ninguém, dizem os adultos,
esquecidos das surras que levaram, mas nunca ninguém ouviu uma
criança dizer essa frase. E, precedidos pelo clássico intróito Agora
você vai ver o que é bom, muitos pais mostram aos filhos apenas sua
ferocidade.
Honrarás pai e mãe, diz a Bíblia.
— Ele me batia, sim — diz Wilma —, me batia de cabo de vassoura,
de cinto, do que tivesse na mão. Era só beber. Me trancava em casa,
não queria nem que fosse ao colégio para não encontrar.os colegas.
Uma vez me quebrou o nariz com um tapa. Mas, que jeito? Agora
está velho, doente. Arranjei vaga para ele no INPS, internei, vou lá,
levo dinheiro para ele, levo cigarro, e ainda pago o aluguel de uma
casinha que ele tem no subúrbio, para o caso de ficar bom. Só não
dou meu endereço, não quero que ele vá lá, beber, fazer arruaça,
atormentar minha vida.
Quem deve o que a quem?
A sociedade, a bem da verdade, sempre se interessou mais em
estimular a dívida dos filhos. Pois o pai representa a Ordem, e um
filho obediente ao pai será mais facilmente um homem observante
das leis.
E os próprios pais semeiam desde cedo os conceitos de dívida filial,
"Você vai ser o bastão da minha velhice", garantindo seu futuro.
Mas a psicanálise de Freud veio alterar muito da ordem
estabelecida. Hoje pede-se que se dê aos filhos bem mais do que o
simples sustento material, ao mesmo tempo em que a consciência
do sentimento de culpa torna possível vivenciar abertamente o
ressentimento contra os pais. Tenta-se, na abertura da relação pais-
filhos, uma distribuição mais equitativa dos deveres.
É possível, porém, que o empecilho maior esteja na própria
existência de contabilidade. Suprimindo a palavra "dever",
suprimindo o conceito de dívida, tudo teria que ser reelaborado.
Talvez tivéssemos, então, como eixo, apenas a palavra "afeto".

Amor de uma noite só


Um homem que a gente mal conhece e subitamente deseja. Olhares,
primeiras aproximações, e logo os corpos, o quarto de hotel, o
prazer. Depois cada um para o seu lado, sem precisar dar adeus.
Sorriso na pele. Mais um homem passou, e a vida segue.
Qual a mulher que ainda não criou esta fantasia?
Poder dormir com um homem sem compromisso de amor, sem
compromisso social, sem envolvimento de espécie alguma. Quem
não quer? Quem não gostaria de amar fisicamente apenas, solta e
natural, como fisicamente se nada e se mergulha?
Entretanto, se a fantasia é comum a todas, a realidade é vivência de
poucas. E mesmo no nosso mundo que se quer tão liberado, o amor
de uma noite só continua sendo bem mais problemático do que
seria desejável.

1. Eu não fui criada para isso

É o que está cravado na cabeça de qualquer mulher. Desde


pequenas ouvimos dizer que isso "não é direito". Pai, mãe, a
estrutura familiar toda se ergue em muralha para que tamanha
iniqüidade jamais viesse a nos acontecer. Não fomos criadas para
cair nos braços de "qualquer um". E "qualquer um" significa
exatamente aquele homem sem compromisso que poderia nos fazer
muito felizes por uma noite.
O problema não é entregar-se sem amor. É entregar-se sem garantia.
É dar-se hoje a um, amanhã a outro, e acabar falada, desonrada, sem
que ninguém mais queira casar com a gente. Assim nos foi
ensinado, porque assim se acreditava que fosse.
Agora porém, até a expressão "dar-se" está sendo questionada. A
mulher está saindo da posição passiva. Ela não quer mais apenas
conceder-se. Ela quer participar, escolher. Quer brincar.
Mas a mulher de hoje é a menina de ontem. Aquela mesma que foi
tão castamente educada, e para quem o lobo do sexo sempre foi
mau.
Livrar-se disso não é fácil. E não pode ser feito só na cabeça. É
preciso consultar o sentimento, aquele que às vezes parece tão
distante do nosso pensamento lógico, mas que melhor sabe das
nossas delicadezas.

2. Nem sempre é sexo o que a gente quer

A moça está sozinha numa festa. Não tem namorado. Há algum


tempo vive sua solidão afetiva. É sábado, todos estão se divertindo
ou fingindo que estão se divertindo. O mundo está cheio de casais.
E de repente um rapaz vem conversar com a moça.
No meio da conversa, olhando para ele como se estivesse prestando
atenção nas palavras, a moça mergulha naquela que podemos
chamar a fantasia número 1: tenta se visualizar mais intimamente
com ele. E se pergunta: — Por que não?
Suponhamos que a resposta seja sim. Moça e rapaz saem da festa e
vão para um motel ou um apartamento. A moça está
deliberadamente disposta a ter um amor de uma noite só. Uma
noite de sexo, finda a qual tornará a vestir suas roupas de festa e,
com a maquilagem desfeita, se despedirá do parceiro.
Era só sexo o que ela queria?
Neste caso, eu diria que não.
Ela estava sozinha. Já vinha sozinha há algum tempo. Estava
cansada de estar sozinha. Queria sexo, sim, mas também queria
amor. Queria sexo e amor, sexo e afeto, sexo e calor. Mas quando a
possibilidade de sexo apareceu, sem nenhum dos outros
componentes, ela o aceitou fingindo que não precisava do resto,
negando as outras necessidades todas. Ou aceitou fantasiando — e
esta é a fantasia número 2 — que o resto viria junto, que talvez,
quem sabe, depois de uma noite juntos pudessem descobrir algo
mais em comum.
Num quadro como este, dificilmente a experiência será gratificante.
A falta de tudo aquilo que se queria e que não se recebeu torna-se
mais flagrante depois que o corpo foi satisfeito. E o mais provável é
acordar de manhã com a "ressaca do dia seguinte".
3. Mas sexo também pode ser uma maneira de obter
coisas que a gente quer

Suponhamos que a moça, naquela festa, depois da fantasia e da


pergunta, tenha respondido não para si mesma.
Não quis, mas bem que tinha criado a fantasia. Ou seja, não aceitou,
mas bem que uma parte dela queria, bem que uma parte se excitou
com a idéia. Por um ifistante a moça pacata desejou ser uma
Messalina. E não foi-
A divisão manifesta-se geralmente num diálogo interno que
funciona mais ou menos assim:
Aspirante a Messalina — Eu sou uma idiota! Devia ter aceito. Afinal,
o que é que tem? ele não ia me tirar pedaço.
Moça pacata — Mas eu nem conheço esse cara.
AM — E precisa conhecer? Tem que pedir carteira de identidade
antes de ir para a cama? Não conhece, fica conhecendo. Se disser
sempre não, aí é que nunca vai conhecer nenhum.
MP — Tá louca, mulher, ir pra cama assim, sem mais nem menos. .*.
o que é que minha mãe ia pensar. . .
AM — Isso é que é o diabo: meus preconceitos. Uma porção de
gente faz isso, vai e dorme, por cjue eu não? Eu não sou melhor que
ninguém, nem quero ser- Quero é fazer o que me dá na telha, sem
tantas encucações!
Isso é o que a moça em questão e tantas outras moças pensam
quando dizem não. E por aí a gente vê que aceitar um sexo
descompromissado pode ser também uma maneira de: ajudar-se a
diluir os preconceitos de formação, afirmar os próprios desejos,
reforçar um processo de libertação, preencher as noites de sábado
da vida e, last but not least, conceder-se a alegria de um orgasmo.

4. E o sexo propriamente, como é que fica?

A tendência geral é dizer que tudo foi uma maravilha, que o


cavalheiro era um artista do leito, que a noite se escoou entre
suspiros de felicidade, que ninguém dormiu. E mesmo as pessoas
mais discretas, as que não falam, tratam logo de dar um sorriso
mais revelador do que qualquer palavra, truncado ao fim por uma
risadinha de suposto constrangimento.
A fantasia do prazer total é reforçada pelo mito das "devoradoras de
homens", hoje feito mais concreto através de entrevistas,
depoimentos, memórias. No dizer da famosa Mae West, por
exemplo, não houve um único homem (e a conta se perdeu nas
brumas do tempo) que não a levasse aos mais altos píncaros da
satisfação.
Esta pode ser a realidade de certas pessoas. Pessoas que, porém, são
raras, pois a maioria das mulheres se satisfaz menos facilmente.
Sobretudo no primeiro encontro.
Sabemos que a primeira noite de um casal tem um rendimento
reduzido. Há um mínimo, por mínimo que seja, constrangimento.
Há uma tensão natural. O pas-de-deux a ser encenado nunca foi
ensaiado antes com aquela parceria. E há, sobretudo, mesmo para as
pessoas mais descontraídas, o desconhecimento dos corpos. Nunca
antes aqueles corpos se encontraram, se tocaram. Impossível saber
de antemão os pontos mais sensíveis, conhecer o lugar em que a
resposta à carícia é mais imediata. Difícil, na necessidade de ritmos
perfeitos, adquirir tão rapidamente a adequação ao ritmo do outro.
A probabilidade maior portanto é que, no encontro passageiro que
visa sobretudo à satisfação sexual, essa satisfação seja precária.

5. Mas os homens acham ótimo

Esta é outra lenda, e das mais perigosas.


Temos, como único dado realmente concreto, o fato de que os
homens costumam completar o ato sexual com mais freqüência do
que as mulheres. Por completar entende-se chegar à ejaculação. Mas
seria apenas a ejaculação equivalente a um orgasmo pleno? E seriam
todas as ejaculações igualmente prazerosas? Tudo nos leva a crer
que não.
Existe, para os homens, uma facilidade social. Eles, ao contrário das
mulheres, são preparados para a quantidade, e toda noite, por mais
passageira que seja, conta ponto favorável em seu curriculum sexual.
Eles, ao contrário das mulheres, foram "criados para isso".
Mas no fundo, o amor de uma única noite não agrada a eles mais do
que agrada a nós.
Para eles também pode ser uma experiência frustrante.
Para eles também a manhã pode ter gosto de ressaca. Não fosse
assim, passariam a vida pousando de boca em boca, sem se prender
em nenhuma.

6. Reivindicação também entra nisso

Durante séculos a iniciativa nos foi proibida, a escolha nos foi


proibida, a experimentação nos foi proibida. Virgindade longa,
casamento casto, para algumas a glória de um amante, para a
maioria a curiosidade silenciosa. O sexo, uma grande interrogação.
Isto, até hoje. Hoje porém, as primeiras rupturas, os direitos
reivindicados, a consciência de que o sexo nos é permitido. Hoje
podemos procurar respostas.
Mas onde estão elas?
A sociedade não sabe nos responder, calcificadora em seus
preconceitos. Os homens não sabem nos responder, temerosos em
sua hegemonia. É preciso então descobrirmos sozinhas nossas
próprias respostas.
E nesta procura, entre acertos e quebrações de cara, se inclui o amor
de uma noite só.
Tentá-lo pode ser uma maneira de afirmar igualdade, buscando a
alegria onde os homens sempre disseram que estava. Mas os
homens, vimos antes, mentiam. Não buscavam a alegria, cumpriam
um ritual de virilidade.
Seguir seus passos reforça em nós a nova certeza de que também
podemos usufruir livremente do sexo, sem pecado, sem anátema,
sem apedrejamento em praça pública. Mas pode nos levar a repetir
seu erro, caindo no exagero oposto, transformando-nos de usadas
em usuárias.

7. O importante é pensar antes

Pensar antes é pensar antes mesmo. Não é aquela pensadinha


rápida, já na hora de dar a resposta, fulminante vou-não-vou. É
refletir antes do encontro, antes mesmo que qualquer candidato
apareça, quando a dúvida começa a se esboçar. E é importante não
para fazer ou deixar de fazer, mas para evitar escoriações
desnecessárias.
Refletir, no caso, significa perguntar a si mesma o que se quer
realmente. O mais comum é uma parte querer, a outra não querer, e
o todo ir se contentando com fantasias.
É preciso então tentar saber qual das duas partes é mais forte, e
atender àquela, sem porém abandonar a mais fraca. Se mais forte é
o desejo inovador, convém explicar bem as coisas à parte
conservadora, para que não venha a alimentar perigosos remorsos.
Se, ao contrário, é ela a mais forte, torna-se necessário explicar à
desejosa que quando se fortalecer e estiver em condições de assumir
os seus desejos, terá o que quer.
Restam as fantasias. Costumam ser delirantemente românticas,
delirantemente sensuais, ou delirantemente romântico-sensuais.
Nunca são delirantemente realistas. Mas a vida é.
Provavelmente ele não será na realidade tão bonito quanto se
imaginou. Nem tão cavalheiro. Nem tão másculo. Nenhum
relâmpago místico traspassará seus corpos revelando que nasceram
um para o outro, nem ele perceberá que ela é a única mulher sobre a
terra. E se afinal ele pedir seu telefone como ela imaginava, pode ser
que nunca venha a usá-lo.
Desbastadas as fantasias românticas, baixa naturalmente o nível das
exigências, e. há mais condições para apreciar a realidade.
O que se quer de uma aventura passageira? Uma alegria passageira,
uma companhia passageira, um prazer passageiro. Se é isso que
espera, fica mais fácil consegui-lo.
Ao contrário, as expectativas altas aumentam o risco de decepção.
Se a gente espera, num rápido encontro ou mesmo em vários
rápidos encontros, preencher vãos imensos de carência, abastecer-se
de afeto, ou até encontrar o companheiro ideal para toda a vida, está
se expondo à frustração, à ressaca.

8. O que ele pensa não interessa

Um homem faz a proposta. A moça não está a fim. Mas logo pensa
que ele vai achá-la careta, retrógrada, por fora e hesita. Erro. O que
ele pensa não interessa. Interessa somente dizer não, da forma mais
delicada possível, e ir em frente.
O mesmo vale se ela estiver a fim. Erro pensar que ele pode achá-la
assanhada, fácil, já muito circulada, e por isso desistir.
Idem, para as elucubrações posteriores: se ele achou seu corpo
lindo, se está pensando que ela é maravilhosa no sexo, se vai querer
repetir a experiência.
O que ele pensa não interessa por vários motivos. Porque ao tentar
acertar com o pensamento dele podemos estar desacertando o
nosso. Porque freqüentemente projetamos nele nossos próprios
preconceitos, nossa própria avaliação, que podem não ter nada a ver
com os dele. E sobretudo porque neste tipo de encontro o interesse
não está voltado para o outro, está voltado para nós, já que o que se
busca é uma satisfação pessoal e passageira.

9. Considerações soltas sobre uma noite só

— Nunca ter feito uma coisa da qual todos falam e a respeito da


qual a gente tem tanta curiosidade é péssimo. Mas é igualmente
péssimo a gente fazer mal, só por fazer, uma coisa tão natural; e
ainda ter que carregar pesos na consciência.
— É uma experiência que faz parte da vida, ainda que mais não
seja, para saber do que se trata, para limpar uma área de
curiosidade fundamental.
— Mas é uma experiência para se tomar com bom humor. Embora
fartamente previsível (afinal todos os quartos de motel são
semelhantes, e com suas inúmeras variantes os atos sexuais também
o são), o amor de uma única noite pode apresentar surpresas. É
como navegar em barco desconhecido. Pode haver mar
tempestuoso, pode a vela murchar em calmaria, pode-se
suavemente navegar e chegar a bom porto. O inesperado, portanto,
deve ser levado em consideração. E para enfrentá-lo o melhor salva-
vidas é o bom humor.
— Pode ser eventualmente um jogo saudável. Mas raramente é uma
boa prática de vida. Conheço inúmeras pessoas satisfeitas com um
ou outro encontro. Mas não conheço ninguém, homem ou mulher,
que fazendo da sua vida uma interminável seqüência de encontros
fortuitos extraia disso a plenitude. Na verdade trata-se de um
comportamento don-juanístico, que mais trai um desajuste do que
um violento apetite sexual. E como tal é desgastante, sem que a
satisfação maior, aquela que se encontra numa relação amor/ sexo,
seja jamais alcançada.
— Exige, como tudo, o seu momento certo. Pode-se dizer não
inúmeras vezes, pode-se durante muito tempo achar que a
experiência não interessa. E de repente, por uma série de
conjunturas imprevisíveis, dizer sim. Ou pode-se dizer sim com
freqüência e serenidade, até aquele dia insuspeitado em que se diz
não, e não será para todo encontro que se oferecer sem amor, sem
seqüência ou conseqüência.
É ao conhecimento preciso desse momento que se chama
maturidade. Pode-se tê-lo aos vinte ou aos quarenta. Mas é a partir
dele que nos tornamos donas da nossa escolha.
Chorar não é privilégio feminino

"Pára de chorar", diz a mãe para o filho. "Chora, que alivia", diz o
amigo do herói ao herói no momento dramático. "Você fica tão
bonita quando chora!", diz o mocinho romântico à mocinha
romântica da novela romanticíssima. "Mulher vive chorando", diz o
homem muito másculo que só chora escondido. Entre estímulos e
repressões, o pranto ocupa nossa vida de tal modo, que esta já foi
chamada de "vale de lágrimas". Mas nos deixa bastante tempo livre
para, entre uma fungada e um soluço, investigar que atividade é
esta que só os seres humanos praticam, e perguntar em des-
confiança por que as mulheres choram mais do que os homens.

Por entre os joelhos abertos olho o meu bebê ainda molhado que o
obstetra segura pelos pés. E a primeira coisa que ouço é seu choro.
Chora de dor, pobre filhote, porque o ar queima seus pulmões
recém-inaugurados, descolando os alvéolos, e porque o obstetra,
para obrigá-lo a respirar logo, lhe deu um tapinha na bunda. É uma
menina, mas por enquanto ainda não sabe disso, e chora exatamente
como choraria um menino na mesma situação. Aprenderá mais
tarde que nem todos têm igual direito a este choro tão natural, e que
de uma forma geral ele terá que ser controlado e minimizado.
Mas não é de dor física que chora a jovem despedindo-se do amado
na estação. Nem está exatamente sofrendo a miss que derrama as
clássicas lágrimas na hora de receber cetro e coroa diante das
câmeras. Elas choram por outro mal bem humano, a emoção.
E olhando a secretária que ensopa o lencinho só porque recebeu
uma bronca do chefe — enquanto o colega dela, recordista em
bronca, nunca foi visto sequer fungando —, uma outra causa de
choro nos parece evidente; é o choro social, o choro/símbolo da
suposta fraqueza feminina.
Curiosamente, porém, o choro não foi feito para completar nem a
dor, nem a emoção, nem os estereótipos sociais. Pelo menos, não no
início.
No início, as glândulas e os dutos lacrimais destinavam-se apenas a
manter constante a umidade do globo ocular. Mesmo em dias
normais, quando nenhuma alegria excessiva ou nenhum sofrimento
vem solicitar nosso pranto, choramos uma discreta meia grama de
lágrimas, que pode aumentar um pouco se houver poeira, se a gente
usar lentes de contato ou descascar cebolas.
Esta umidade bem dosada e praticamente invisível não é porém
aquilo que chamamos choro. O choro com lágrimas e soluços,
aquele meio sacudido em que o rosto e a alma parecem
mancomunados num processo de liquefação, é coisa mais recente.
Na escala evolutiva, segundo o antropólogo Ashley Montagu,
aconteceu primeiro o choro seco. E só mais tarde, aprimorando o
modelo, a natureza introduziu a inovação das lágrimas. Na
verdade, as lágrimas eram indispensáveis para ajudar na
manutenção da espécie, pois o choro seco, feito só de soluços e
convulsões, levava a engolir grandes quantidades de ar, ressecando
as mucosas, e tornando-as sensíveis a infecções de todo tipo.
Para completar sua função profilática, as lágrimas, que basicamente
se compõem de soro fisiológico, foram dotadas de uma enzima que
estimula o muco nasal. Assim, abertas as comportas do choro
abrem-se contemporaneamente as corredeiras nasais, criando
aquela imagem patética da pessoa que não sabe se enxuga os olhos
ou o nariz, não sabe se soluça ou se funga, e acaba enxugando os
olhos na mão e o nariz na manga.

Até aqui, observando o choro do ponto de vista meramente


biológico, nada nos levaria a crer que ele devesse ser tão abundante
nas mulheres e tão raro nos homens.
Pendurada pelos pés, minha filha chorava pela primeira vez na
vida. Eu, mais do que ela, sabia que estávamos apenas no primeiro
pranto de uma longa série. E eu, mais do que ela, sabia o quanto
esses prantos seriam usados, por ela, para ela e contra ela, na
assustadora selva social na qual acabava de ingressar.
Eu sabia, por exemplo, que terminado aquele primeiro pranto e
tomado o primeiro banho, algo cor-de-rosa seria provavelmente
preso a seu berço no berçário, para distingui-la dos ocupantes dos
bercinhos marcados em azul. Começaria aí, inevitavelmente, uma
educação destinada a deixar bem claro que homens e mulheres,
meninos e meninas, são diferentes, e diferentes devem ser os seus
comportamentos.
No princípio, ainda sem saber ao certo que parte lhe estava
destinada na meticulosa divisão, choraria igualzinho a todos os
outros bebês, para me avisar da sua fome, do seu desejo de ter a
fralda trocada, das suas eventuais pequenas dores ou desconfortos.
Choraria para se comunicar e para fazer valer seus direitos
elementares.
Com o passar do tempo, porém, e sendo devidamente amestrada,
aprenderia que a fatia dos seus direitos já havia sido cortada,
constituindo a parte menor do grande bolo. E aprenderia também
que, como a fada madrinha da Bela Adormecida, a sociedade já
havia estabelecido seus dotes. Seria frágil "por natureza", e sensível
"por natureza", seria dependente, abrigando-se à força "natural" dos
homens, que a protegeriam. A Natureza, infelizmente, não havia
sido convidada para o batizado.
De posse desses conhecimentos, o choro nunca mais seria para a
minha filha como aquele dos primeiros meses. Gradativa e
insensivelmente se transformaria no símbolo da delicadeza que lhe
havia sido imposta, e na única arma defensiva que lhe seria
permitida. Como o lacinho cor-de-rosa pendurado sobre o berço, o
choro marcaria sua diferenciação.

Repreendida pelo chefe, a secretária chora num canto do escritório,


espremendo sua dor entre o arquivo e a máquina. Chora como uma
criança, de forma sentida. Chora porque, como uma criança, levou
um carão e se sentiu humilhada, desamada, errada. É o choro
desconsolado, porque justamente não busca outro consolo além do
choro em si, válvula de escape que, como um bom chuveiro, tudo
lava. Chorará assim durante alguns minutos, enquanto o pessoal do
escritório finge não ver e apenas uma ou outra amiga mais chegada
tenta consolá-la. Depois irá ao banheiro, diluirá as últimas lágrimas
na água da torneira, passará pó-de-arroz, renovará o batom, e
voltará suspirosa ao trabalho. O chefe, chamando-a em seguida, e
vendo os olhos vermelhos, pensará "Chorou de novo!", e com
aquela bonomia paterna que o papel de homem lhe impõe fingirá
não dar pela coisa, iniciando o ditado de mais uma carta.
A situação é típica do choro filial, tão erroneamente confundido
com o natural feminino.
Ser repreendida não significa para a secretária que ela apenas
cometeu um erro funcional. E isso porque a relação entre ela e o
patrão é bem mais complexa do que uma relação funcional. Ele é o
homem, ela a mulher. E como mulher ela se acredita
constantemente em falta. Por ser a "pior", a "menor" dentro da
escala social, deve eterna gratidão a todos os homens, que a
protegem, que orientam os destinos do mundo para que ela possa
sobreviver. E agradecida, se esforça durante a vida toda para
agradá-los, para adequar-se ao modelo que eles estabeleceram, para
ser o que esperam dela.
Assim, ao errar, mesmo que seja só na arrumação da
correspondência, ela errou em seu objetivo maior, em sua própria
finalidade como mulher. Ela não agradou ao homem.
Mas que defesa lhe resta se sua força física foi sempre
ridicularizada, e sua força mental considerada inexistente?
Resta-lhe, como à criança à qual é socialmente equiparada,
manifestar seu desagrado através do choro. Um choro que a essa
altura o "pai" já rotulou de manha, e ao qual não presta a menor
atenção.
Se é verdade que no dia-a-dia os homens não se abalam com o
choro feminino, é verdade também que, em ocasiões
emocionalmente mais densas, este choro os perturba, despertando
reações por vezes contraditórias.
Por um lado, aquela fragilidade aquática que a eles se volta em
busca de força e socorro é um prodigioso reforço de ego.
Espelhados nos olhos lacrimejantes, eles se vêem fortes e poderosos
como sempre desejaram ser. E enamorados da sua imagem podem
ter reações carinhosas e doces em relação à mulher.
Por outro lado, o choro é uma queixa e uma expectativa. A mulher
chora porque não está feliz, e porque espera que ele tome alguma
providência. A culpa estoura primeiro. Se ele é o pai todo-poderoso
e ela está infeliz é sinal insofismável de que ele, pai, é responsável
por essa tristeza. Ele não soube fazê-la feliz, ele é culpado, mau. Ela
é a vítima indefesa.
E logo vem o peso da responsabilidade. Se as coisas não estão bem e
ela chora impotente, está implícito que se espera dele a ação, a
solução dos problemas.
Ele então está sendo ao mesmo tempo bajulado, cobrado e exigido.
É muito fator contraditório em jogo, para lhe permitir reação serena.
Mas há um outro elemento, talvez o mais importante. O choro
feminino é uma séria ameaça para a maioria dos homens, sobretudo
para o tipo machão que frutifica ao sol dos trópicos. Ele representa a
emoção solta, a emoção vivida plenamente, não mais represada no
inconsciente, mas trazida à boca, aos olhos, à aceitação do corpo
todo. Uma emoção tão viva que pode provocar a emoção deles,
peremptoriamente negada, e arrancá-la de seu sarcófago para fazê-
la jorrar — oh! suprema humilhação — em idênticas lágrimas.
Ameaçado, espremido entre motivações diversas, o homem tende
portanto a não gostar do confronto direto com o choro feminino,
vivendo-o mais como uma chantagem emocional do que como uma
expressão espontânea de sentimentos.
Segundo a Dra. Gertrude Weilbrun, professora clínica de psiquiatria
na Universidade de Washington, o choro é um consolo que a gente
merece em tempos de stress. "As lágrimas", diz ela, "são uma espécie
de bálsamo, confortantes, quentes, úmidas e macias." Não é por
simples coincidência que a composição química das lágrimas é
quase idêntica à do fluido embrional no qual o feto se sente tão
beatífico antes de nascer. De acordo com os estudos da Dra.
Weilbrun, ao chorar num momento de sofrimento profundo
estamos procurando reencontrar a paz ideal do ventre materno.
Tanto assim que é comum a pessoa dobrar-se sobre si mesma,
encolhendo a cabeça na proteção de braços e pernas, exatamente
como se posiciona o bebê durante a gestação.
As lágrimas nos aliviam, porque funcionam exatamente como a
válvula da panela de pressão. Acumulamos frustrações, agressões,
aborrecimentos que vão de forma quase insensível pontuando nosso
cotidiano. Reagimos pouco, engolimos muito. E a cada nova
engolida vamos aumentando a pressão interna. Mas o nosso sistema
emocional tem seus limites. E um dia, quando o limite está sendo
atingido e a pressão ameaça explodir com tudo, libertam-se
salvadoras as cataratas do choro, ecoam os soluços evitando males
maiores. "Reter as lágrimas, principalmente as que se originam de
uma situação frustrante", diz o médico e jornalista irlandês Dr.
Brian Englis, "pode resultar numa série de males físicos, como acne,
úlceras e obesidade." E mais males se acrescentam no entender do
Dr. Edward Weiss, professor clínico de psiquiatria na Georgetown
University, segundo o qual suspiros de asma podem muitas vezes
ser soluços reprimidos.
Chorar pode ser muito saudável também como forma de ligação
com as próprias emoções. Inúmeras vezes, as lágrimas que afloram
nos revelam a intensidade de uma emoção que, sem elas, correria o
risco de passar despercebida e, portanto, desaproveitada.
Não se trata, é claro, de fazer aqui a posologia do pranto, indicando
seu uso três vezes ao dia, depois de agitar bastante. Mas é
profilático lembrar que não há nada degradante no choro, nem ele
representa um atestado de fraqueza. Pode, quando na justa medida,
testemunhar apenas a nossa sensibilidade e a normalidade
assumida das nossas emoções.

A justa medida. Está aí um ponto difícil de estabelecer. Cada pessoa


é de um jeito, cada pessoa tem sua medida de acordo com seu jeito.
Conheço pessoas que choram muito raramente, outras que têm
lágrimas sempre disponíveis, sem que por isso se possa dizer que
umas estejam certas ou erradas as outras. A medida possivelmente
certa seria a de nível pluviométrico médio, com precipitações
maiores nas passagens borrascosas da vida, e secas eventuais nos
momentos de calmaria.
A alteração deste quadro para longos períodos de seca pode indicar
um temperamento muito contido, uma perigosa repressão interna.
Não há falta de vontade de chorar ou falta de motivos para isso. Há
a negação desses motivos e desse desejo, a incapacidade de assumir
a própria fragilidade e de conviver normalmente com ela.
Vimos acima os males que a contenção do pranto pode causar ao
físico. Mas não convém esquecer o grande mal que o procedimento
reprimido causa à convivência. Contendo nossas lágrimas estamos
negando ao outro — e sobretudo ao ser amado — a participação nas
nossas emoções. Estamos afastando o outro da parte mais sensível
de nós, justamente aquela com que ele precisa e quer se relacionar.
Estamos cortando a intimidade. E estamos também, tacitamente,
estabelecendo uma censura às suas lágrimas, projetando nele nossa
própria inibição.
Do mesmo modo, o excesso de choro tem o seu significado. Pode ser
sinal de imaturidade, quando é utilizado como o faria uma criança
de até seis anos, que chora egoisticamente toda vez que quer obter
alguma coisa. Ela se acostumou a relacionar choro e atendimento,
porque foi obedecendo ao seu choro que a mãe pôde atender a suas
necessidades primeiras. Amadurecendo, ela começa a articular as
suas necessidades, ao invés de simplesmente abrir o berreiro. Não é
mais o "quero porque quero". É "quero, por isso e por aquilo", ou
melhor ainda, "será que dá pra querer, por isso e por aquilo?"
O adulto que não amadureceu suficientemente pode manter o choro
em sua forma inicial. É o mal acostumado, o eterno bebê da mamãe,
que ao invés de viver o choro de dentro para fora — como explosão
emocional —, o vive de fora para dentro, como chantagem
emocional.
Mas o excesso de choro pode ser também sintoma de desequilíbrio
emocional. Se é acompanhado de longos períodos de insónia; se
irrompe constantemente sem qualquer motivação aparente; se é
companheiro da inapetência; se acontece juntamente com
comportamento destrutivo (quebrar pratos, rasgar roupas) ou
autodestrutivo (arranhar-se, ranger dentes, puxar os cabelos, etc); se
é incoercível e só termina com a exaustão física, então está
denunciando algum problema maior — esgotamento, depressão —,
e será melhor procurar a ajuda de um especialista.

Os homens também fingem orgasmo

Que os homens tivessem orgasmo numa relação sexual sempre


pareceu às mulheres coisa natural e absolutamente simples. O
problema, de forma notória, estava conosco, mais trituradas por
preconceitos, mais afastadas daquele que seria em princípio um
fluir normalmente biológico. Para os homens, pensávamos, uma vez
obtida a ereção, não havia mais qualquer dificuldade; a ejaculação
ocorreria inevitavelmente. E mais, muitas mulheres, desconhecendo
o funcionamento do aparelho genital masculino, chegavam a
acreditar que a ereção só cessaria após ocorrer a descarga
espermática.
Hoje, porém, esta redução está sendo desfeita. Os estudos de
sexologia demonstram que existem diferenças fundamentais entre
ereção, ejaculação, orgasmo e potência. E as mulheres se deparam
com uma nova realidade: os homens também fingem orgasmo.
A princípio parece pouco provável que uma mulher se deixe
enganar num assunto tão importante e aparentemente tão evidente.
Toda uma longa mitologia desenvolvida pelos próprios homens nos
levou a crer que o jato do esperma, lançado com força pelo macho
no momento do orgasmo, é vivamente sentido pela mulher. Todas
nós já lemos em algum ou em muitos textos a respeito da "onda
quente" que invade a mulher, da "lava ardente" que nela se
derrama. A realidade, porém, não é bem esta.
A Dra. Helen Kaplan, sexóloga americana que já visitou o Brasil e
que dirige o Programa de Sexualidade Humana do New York
Hospital, no Centro Médico de Cornell, é taxativa: "A mulher não
sabe se o homem ejaculou ou não. Não há modo algum de saber".
E outra médica, Dra. Shirley Zussman, que juntamente com seu
marido dirige há dez anos a clínica sexual do Jewish-Hillside
Hospital, em Long Island, reforça essa tese: "Entrevistamos centenas
de mulheres, e quase todas declararam que não sentem a ejaculação.
Podem, quando o homem retira o pênis, perceber o esperma que
escorre da vagina. Mas, no caso de mulheres que possuem uma
lubrificação abundante, até isso é duvidoso".
E explica: "A vagina não tem terminações nervosas. Sabemos que as
paredes vaginais não têm estímulos suficientes para causar o
orgasmo: razão pela qual a mulher necessita de estimulação
clitoridiana. Portanto, as possibilidades de que a ejaculação seja
percebida ao bater nas paredes da vagina são remotas. E embora
algumas mulheres insistam em que sentem o fluido, nós
continuamos céticos".
Segundo depoimentos, entretanto, existe uma outra maneira de
perceber o momento exato da ejaculação, e até mesmo de medir a
intensidade do orgasmo do parceiro. É o que nos diz uma mulher
de trinta e cinco anos, casada, que chamaremos Carmem Lúcia:
"Tive vários amantes antes de encontrar aquele que se tornaria meu
marido. Nunca, em qualquer dessas relações anteriores, percebi a
ejaculação do parceiro. Mas com meu marido é diferente. Eu não
sinto o esperma. Mas sinto, muito claramente, as contrações do
pênis no momento em que o expele. São espasmódicas e ocorrem na
parte de baixo do pênis, ou, pelo menos, eu as percebo como se
latejassem contra a parte mais baixa da minha vagina".
Pela intensidade dessas contrações, pelo tempo que se prolongam,
Carmem Lúcia tem inclusive uma medida da intensidade do
orgasmo do seu companheiro. Assim mesmo, porém, ela acha que
uma falsificação seria possível.
— Há ocasiões, de cansaço dele, de pouco estímulo, ou talvez até
mesmo de um certo desligamento meu, em que as contrações se
tornam mais fracas, quase imperceptíveis. Neste caso, eu poderia
me enganar, mesmo porque a poucas contrações corresponde
sempre pouco esperma. Mas isso acontece muito raramente. E, de
qualquer maneira, ele não poderia nunca fingir um "grande"
orgasmo, porque senão eu saberia.
O caso de Carmem Lúcia, porém, não é freqüente, e ela mesma
afirma que com os amantes anteriores este tipo de conhecimento
não ocorria, como não ocorre com a grande maioria das mulheres.
Em termos quantitativos, portanto, somos levadas a guardar a tese
do fingimento possível.
Mas por que fingiriam os homens?
João Pedro não finge. Pelo menos, ele nunca o reconheceria nesses
termos. Foi ele mesmo, porém, que, quase se gabando, contou a um
amigo: "Estou saindo com uma garota nova. Um barato, coisa fina.
A gente nunca fica na primeira". E explicou que, após as
preliminares, ele deixava que a parceira se satisfizesse.
Descansavam, e depois de algum tempo recomeçavam. Ele,
entretanto, não buscava seu orgasmo da primeira vez: "Preciso me
guardar", explicou com ar experto.
João Pedro não é nenhum garoto. Passou bastante dos quarenta.
Sabe, ou desconfia, que se satisfizer da primeira vez, corre o risco de
não estar apto para a segunda. Mas quer transmitir à moça esse ar
de superpotência. Então, se possível, deixa que ela se engane. E
tudo fica mais fácil porque, em clima de repetição, o mais provável
é que ela nem se levante para ir ao banheiro, não percebendo
portanto se houve, ou não, ejaculação.
O motivo de João Pedro é evidente: ele quer se mostrar mais potente
do que sua natureza e idade lhe permitem. Mas — como na maioria
das motivações profundas — está escamoteado debaixo de uma
justificativa elegante. Perguntado, ele responderia certamente que
está apenas, como bom cavalheiro, garantindo o máximo de prazer
à sua dama.
A necessidade de aparentar potência estaria na origem da maioria
dos fingimentos, e poderia ser equiparada ao desejo de simular
sensualidade, que faz com que a mulher finja em situação análoga.
Mas sabemos que em nossa sociedade falocêntrica a capacidade do
homem dar prazer à mulher transformou-se em obrigação,
confundindo progressivamente ereção, potência, ejaculação e
orgasmo.
De certa forma, a necessidade de potência tornou-se ilimitada,
estabelecendo para os homens metas difíceis de alcançar. Para
muitos, não basta obter a ereção, penetrar a mulher, demorar-se
algum tempo e alcançar o orgasmo; consideram que é necessário
demonstrar potência através de vários atos sexuais seguidos, e
alguns acham que é preciso fazê-lo sem mesmo retirar o membro da
vagina. Ter orgasmo a cada um desses atos passou a fazer parte da
verdadeira maratona sexual que estabelece os altos padrões de
virilidade, assim como oferecer (ou obter?) à mulher múltiplos
orgasmos em cada ato.
É evidente que o estabelecimento de performances tão olímpicas só
poderia conduzir ao fingimento, de parte a parte.
Por outro lado, o homem se vê freqüentemente convocado, sem
maior desejo específico, e considera também o atendimento a esta
convocação como seu dever. A falta de entusiasmo pela parceira
pode levar a uma relação sexual precária, com decorrente ansiedade
e dificuldade de obtenção de orgasmo.
A verdade porém é que, embora possam ser numerosas as
motivações, a ausência de ejaculação não costuma ser um fenômeno
comum. A pressão cultural sempre localizou o desempenho
masculino na obtenção e manutenção da ereção, presumindo uma
facilidade orgástica que, em condições normais, realmente existe.
Se fingimentos ocorrem, e se tornam possíveis, devem ser
tributados sobretudo a falhas de entrosamento no casal e ao
desconhecimento que grande parte das mulheres tem do aparelho
genital masculino e do seu funcionamento.

Em termos puramente fisiológicos, o orgasmo se resume à


ejaculação espermática, que se realiza em dois tempos. No primeiro,
a próstata e as vesículas seminais se contraem a fim de impulsionar
o sêmen para o bulbo da uretra. Este triplica o seu volume (não
confundir com o aumento de volume do pênis, que configura a
ereção) e se distende. Nesse momento o homem tem a sensação de
que o orgasmo é iminente e irreversível.
No segundo tempo, as contrações rítmicas se propagam ao pênis,
percorrendo o ureter e expulsando o esperma sob forte pressão. Não
estando o pênis impedido dentro da vagina, o jato espermático
pode alcançar de trinta a sessenta centímetros de distância da fonte
de emissão. (E até isso foi transformado num dado de potência, que
os meninos não raro disputam em roda, como um campeonato.)
Numa relação sexual prolongada, que pode produzir mais de uma
ejaculação, verifica-se que a quantidade de sêmen diminui
progressivamente a cada orgasmo. Desta forma, a quantidade
inicial, que corresponde aproximadamente, em média, a uma colher
de chá, pode ser reduzida a quantidades praticamente
imperceptíveis. Nesse caso, realmente, ficaria quase impossível para
uma mulher verificar se houve ou não ejaculação.
É o caso de que nos dá testemunho Selma, trinta e cinco anos e boa
experiência sexual: "Eu não posso jurar que ele fingiu, mas foi a
impressão que tive na hora. Era o início de uma relação, em que não
havia ainda muita intimidade. A gente tinha tido um primeiro
orgasmo recíproco, e sem quase esperar para descansar
recomeçamos. Percebi que estava difícil para ele, que se esforçava
muito, sem conseguir chegar ao prazer. Fui ficando aflita com
aquilo. Aí, de repente, ele pareceu ter tido o orgasmo. Pareceu, mas
foi esquisito, não foi igual ao primeiro, e ficou no ar um
constrangimento indisfarçável. Tive certeza de que tinha fingido
para não 'ficar mal', e que ele próprio estava chateado com a falsifi-
cação. Ficou de mau humor, e a noite resultou perdida".

A parte os homens que em determinada ocasião encontram


dificuldade em atingir o orgasmo, existe um tipo de exceção clínica
bastante rara, chamada anejaculação. Trata-se da impossibilidade de
ejacular, embora ocorrendo a ereção. E existe também a ejaculação
retardada, ou dificuldade de ejacular. Homens portadores desses
tipos de disfunção são às vezes considerados supermachos, como
foi Rasputin, pois mantendo a ereção durante horas seguidas
podem levar suas companheiras a orgasmos múltiplos.
Na verdade, num relacionamento mais longo este tipo de
capacidade mecânica acaba gerando frustração na mulher, que
necessita, para completar seu prazer, do prazer do companheiro.
Como escreve Avodah K. Offit, coordenadora de Terapia Sexual no
Lenox Hill Hospital, no seu livro The sexual self: "As mulheres
gostam de homens capazes de manter a ereção o tempo suficiente
para lhes proporcionar um orgasmo, ou de preferência mais de um.
. . Entretanto, as mulheres de homens com dificuldade orgástica
tornam-se freqüentemente nervosas, tensas, desgastadas pela
contínua demanda e pela constante frustração. Muitas se tornam
multiorgásticas. . . mas perderam interesse no sexo e no orgasmo".
A dificuldade ou impossibilidade de ejacular tem causas nebulosas.
Segundo a Dra. Kaplan pode ser ocasionada por traumas
psicológicos, ou pode acompanhar um indivíduo desde a
adolescência, sem qualquer motivação aparente. E a Dra. Zussman
afirma: "Temos pouquíssimas informações acerca dessa disfunção. É
muito mais difícil de tratar do que a maioria das disfunções sexuais
masculinas e exige uma demorada psicoterapia".
De acordo com os analistas freudianos, a origem do problema
estaria num péssimo relacionamento com as mulheres, e englobaria
diversos tipos de homens. Os que têm literalmente medo da vagina,
um medo profundo que os impede de ejacular. Os que, vivenciando
o sexo como pecado, consideram, inconscientemente, que
ejaculando numa mulher a estariam "sujando", contaminando (e
estes às vezes obtêm o orgasmo facilmente com prostitutas, pois as
consideram já "sujas"). E por fim aqueles que, hostis às mulheres,
não querem lhes dar a graça do seu esperma, não querem lhes
conceder seu prazer. Para estes, num esquema sexual inteiramente
deformado, não ter orgasmo pode se configurar como uma vitória
não só sobre a natureza como sobre a parceira.
A teoria freudiana é reforçada por estudos realizados na Clínica
Masters e Johnson, com cinco pacientes vítimas de anejaculação.
Embora nenhum deles conseguisse ejacular na vagina da esposa (os
cinco eram casados), todos eles ejaculavam através de masturbação,
e relatavam emissões noturnas ocasionais. Um deles havia tido
quatro sucessos ejaculatórios com mulheres que não a própria
esposa, mas não conseguiu mais do que uma ejaculação com cada
mulher, embora tentasse repetidas vezes. O quadro parece demons-
trar de forma bastante evidente que não havia disfunção orgânica
(já que eles obtinham ejaculação através de auto-manipulação), mas
sim uma disfunção psicológica, que instituía uma espécie de
"impedimento" à ejaculação realizada dentro da mulher.

Existe, nessa história de fingimento, um outro fator importante que


só recentemente tem sido levantado, e que diz respeito à qualidade do
orgasmo. Ou seja, na medida em que o orgasmo é um assunto
discutido, e as mulheres reclamam seu quinhão, estabelece-se
também uma diferenciação qualitativa no orgasmo masculino, que
faz com que nem toda ejaculação possa ser considerada exatamente
um orgasmo, mas se chame orgasmo somente àquele pleno, total,
envolvendo fisiologia e psique, corpo e alma.
— Posso perfeitamente ter ejaculações que não consideraria
orgasmos — diz Vítor, um belo homem de quarenta anos. — São o
que eu chamo de "orgasmos brancos", uma ejaculação que acontece
quase sem que eu sinta. Não é um jato, uma coisa forte. É um
líquido que sai de mim, uma espécie de extravasamento. Quando
isso acontece, em geral quando estou muito cansado, nem sei ao
certo se gozei. É uma espécie de "meio orgasmo", sem nenhuma
sensação de pique*.
É no caso de um "meio orgasmo", de uma ejaculação sem alegria,
que um homem pode, para agradar à companheira ou para exibir-se
como macho, fingir um êxtase maior, um clímax emocional que na
verdade não aconteceu. E nesse caso ela não teria como detectar a
fraude.
Mais grave é a possibilidade relatada por Gilbert Tordjman em seu
livro Chaves da sexologia. Segundo ele, alguns homens, apesar da
normalidade da ereção e da ejaculação, não obtêm do sexo um
prazer intenso: "Na melhor das hipóteses, suas sensações são
medíocres; na pior, o orgasmo eja-culatório provoca. . . por vezes,
até certo nojo". Nesse caso, a encenação viria acobertar aquela que,
sem o devido apoio terapêutico, pode ser vivida como uma
inadequação grave.
Enfim, ao contrário do que a maioria das mulheres pensa, nem a
ejaculação é tão fácil, nem toda ejaculação pode ser considerada um
orgasmo. Para os homens também existem inúmeros problemas
nessa área, problemas que, estranhamente, os aproximam de nós.
Pois afinal, o que significam esses fingimentos, senão a necessidade
de mascarar uma fraqueza, o medo de não estar à altura do próprio
papel? E não são esses também os motivos que nos levam, em tantas
ocasiões, a fingir um êxtase que não experimentamos?
Mas não é no fingimento que está o caminho do encontro, e sim na
identidade que o fingimento só faz encobrir. Nós, que aos poucos
estamos deixando de fingir, sabedoras agora de que os homens
também se escondem atrás de encenações, podemos, com carinho e
diálogo, imprimir um rumo novo ao prazer sexual. Um rumo de
sinceridade mútua onde o orgasmo possa alcançar enfim o máximo
de sua qualidade. Para ambos.

Solte as feras

A mesa estava posta, porcelanas, talheres, cálices, as travessas.


Comíamos, e minha avó se queixando. Que isso, que aquilo. Meu tio
tentou apaziguar, desconversar. E minha avó se queixando. E se
queixando. Meu tio não tentou nada mais. Fez. Segurou de repente
as pontas da toalha, deu um puxão pro lado, e lá se foi em cacos o
jantar. Que beleza! Entre minha avó emudecida e meu tio
triunfante, eu menina me extasiava com a força vital daquela cena.
Assim se faz, zapt!, e os cacos. Esta é a teoria que nunca mais
esqueci, o belo gesto da fúria. Mas entre saber e fazer existe poder.
Posso eu, quando necessário, meter um bom zapt na vida? Quem
me dera. Ouço os rugidos abafados lá no quarto escuro, ouço
minhas queridas feras que cainham pedindo passagem, e fico: abro?
não abro? com a inútil chave na mão, até que o momento passa e lá
se vai o zapt para novo adiamento.
Tigres, leões, onças, panteras. São estas as feras que tenho dentro de
mim? Não. As feras que me ensinaram a prender e que agora me
mandam soltar são a raiva, a agressividade, e também o medo e sua
companheira, a insegurança. Feras porque arranham, mordem,
rugem, porque assustam em sua natural ferocidade. Feras também
porque são poderosas e senhoras de sua força. Mas as feras não são
más. E aí está, não tão ledo, o engano.
Como às crianças na escola, pretendeu-se dividir as emoções:
boazinhas de um lado, perversas do outro. E lá ficaram o amor, a
comoção, a ternura, a saudade, tudo com cara de primeira da classe,
angélicas e inofensivas, postas em bela ordem do lado luminoso da
vida, enquanto, emboladas no canto escuro, com o queixo grudado
no peito e o olhar culposo, ficavam a raiva, o ódio, a fúria, o medo e
a insegurança.
"De castigo!", decretou a sociedade fingindo-se de professora.
"Trancadas!" E nunca mais as quis soltar.
Deu certo? Não podia. Pelas frinchas, pelas frestas, pelos buracos
abertos a golpes de unha escapavam as emoções. Mas estranhadas,
escondidas, pouco afeitas à liberdade, acabavam cometendo
exageros, devorando quem não deviam, e assustadas voltavam
sozinhas para o quarto escuro, enquanto suas doces irmãs de ar
compungido, por falta de companhia e de contraste, mal
conseguiam exercer suas virtudes.
Agora, "Solte as feras!", me dizem. E eu nem sei mais como é que
faço.
RAIVA, é por ela que devo começar. A mais forte, a mais temida, a
que vive mais próxima ao amor.
Por que me assusta tanto a minha raiva? Porque não lhe conheço a
cara, o corpo, a força toda. Nunca deixei que se mostrasse inteira, a
coitada. Permito pedaços apenas, e logo retenho o resto, seguro as
rédeas, trato de botar tudo em seu calmo lugar. Durante um tempo
só aceitei o pouco que deixava aparecer, e me iludi (mas me iludi
mesmo?) de ter uma raiva pequena, disponível para momentos de
necessidade, mas já perfeitamente domesticada. Pensei, quis pensar,
que não gostava da raiva alheia porque, tendo amansado a minha, a
dos outros solta e atuante me parecia uma demonstração de
selvageria.
Mentira, e das graves. Se vejo uma pessoa agredindo outra, se
assisto, no cinema mesmo, a cenas de violência e fúria, amolecem as
juntas dos meus joelhos, meu coração bate num ritmo semelhante
ao de agressores e agredidos, e eu só quero fugir, sair, acabar com
aquela cena. Não é por medo do que se passa com os outros. É por
medo do que se passa em mim. Porque no ódio alheio vejo a cara do
meu próprio ódio, aquela cara que sempre tentei ignorar. E sou
obrigada a admitir que eu também agrediria, eu também bateria, eu
também, sim, eu também muito provavelmente mataria.
"Não matarás", diz o mandamento. Não matarás!, sempre disse eu à
minha raiva. Mas que garantia tinha eu de que, livre, ela não
cumprisse seu destino? Então a tranquei, a escondi, e com ela
sepultei por muitos anos minha única verdadeira defesa: a
capacidade de conhecê-la, de dialogar com ela, de saber do que é
capaz e o que quer, de usá-la a meu favor e não contra mim.
Durante anos, mas não para sempre. O mundo avança, muda, e a
professora/sociedade descobriu aos poucos que talvez a divisão não
fosse justa, nem a melhor para ela. Estudando mais de perto o amor
viu que sem ódio ele não estava completo, procurando a valentia
deu-se conta de que ela só existe em companhia do medo, e olhando
mais de perto as emoções todas não teve como negar que em cada
uma convivia a insegurança. Não havia, afinal, emoções boas e emo-
ções más. Havia somente emoções, interagindo umas com as outras
numa manifestação indispensável de nossos instintos de vida e de
morte. Então, também aos poucos, saímos todos à procura das
nossas emoções negadas.
Mas como são elas? Reprimida, a raiva assumiu muitos disfarces, e
é atrás deles que vamos encontrá-la.
Mais velho, mais forte, meu irmão me agredia nas nossas brigas
juvenis, gritava, ameaçava me bater. Eu não gritava nem
esbugalhava os olhos; punha na boca um meio sorriso irônico,
punha no corpo uma atitude de serenidade e desprezo, e lançava-
lhe pequenas frases de deboche. Era inglesa, por acaso? ou
fleumática por natureza? Absolutamente. Era uma furiosa,
habilmente disfarçada. Meu único desejo era derrubar meu irmão,
aniquilar sua força e seu poder. Eu queria vencer. Mas se soltasse a
raiva toda que sentia e partisse pra cima dele acabaria apanhando,
ou (e é este o medo mais profundo e irracional) poderia perder meu
controle e feri-lo, feri-lo demais. Então, contida a raiva, eu a
disfarçava de ironia. E me iludia pensando ser, dos dois, a menos
feroz.
Outro elegante disfarce é o falso diálogo. Quantas vezes, furiosos
por dentro, sorrimos melífluos dizendo: "Então, vamos conversar".
Mas não é diálogo o que queremos, esclarecimento ou troca de
opiniões. Queremos mesmo é puxar de dentro da manga o curinga
de um argumento acusador e com ele derrubar o adversário.
Queremos, escondida e elegantemente, exercer o ódio.
Às vezes, nem isso é possível. A repressão foi tão violenta que até
mesmo pequenas solturas da raiva se tornam por demais difíceis e
ameaçadoras. Mas a raiva existe, premente. Então, para não
explodir arrumamos gavetas que não precisam de arrumação,
levamos e levamos e levamos o cachorro para passear, bordamos,
tricotamos, datilografamos furiosamente, transferindo para os
objetos nossa raiva. É a compulsão.
Que faz dentro de mim esta raiva negada, que no entanto não
some? Age. E certamente faz mais mal do que faria se solta. Como
uma fera presa, ataca a jaula/corpo que a contém. E é forte a raiva.
Pode vazar-me o estômago em úlceras. Pode marcar-me o rosto ou o
sexo com herpes. Pode voltar-se contra a minha pressão,
levantando-a ou abaixando-a. E pode, já que ela está presa, prender
com artrite minhas articulações. Mas não é só a mim que ela
prejudica. À distância agride quem me ama.
Se eu agir com o homem amado assim como agia com meu irmão,
breve não serei mais sua mulher amada. Serei uma debochada,
agressiva metida a superior, que não só o ridiculariza como o
impede de exercer saudavelmente suas emoções (e entre elas, o
amor). Se eu fingir o diálogo, breve não terei mais possibilidades de
diálogo verdadeiro, e terei matado a relação.
Mas se, ao contrário, eu for soltando minha raiva, ousando, zapt!
puxar a toalha, se eu fizer volta e meia meus bons cacos, estarei
usando a raiva para mim e evitando males maiores. Uma coisa pelo
menos já aprendi: quem tem medo da minha raiva não são os
outros, sou eu.

MEDO. É ele que me retém, meu constante companheiro. Não é


elegante, não é nobre, não faz parte do decálogo dos vencedores,
num mundo que de vencedores se alimenta. Mas faz parte de mim.
Estou deitada no jardim com minha família, debaixo da falsa
proteção das árvores. Há uma guerra, que nesse momento ocorre
precisamente acima da minha cabeça, onde um avião bombardeiro
acaba de soltar uma bomba. Não é um eufemismo, uma imagem
poética, não, é uma bomba mesmo que saiu do ventre do avião e
agora vem caindo, parece até que lentamente, rumo à minha
fragilidade. E eu choro, choro espatifada de terror, enquanto o
vento e a força da inércia levam a bomba a cair quilômetros adiante,
no seu verdadeiro alvo. "Que menina medrosa!", ri a família à mi-
nha volta. E ao medo da bomba se acrescenta o medo do medo.
Só depois dos trinta eu ia descobrir a verdade. Medrosa, não. Eu
estava certa, certíssima. Meu instinto de conservação, a quem devo
a vida, estava me dando o recado certo e transmitindo o certíssimo
medo. Errados estavam os outros, os adultos ao meu redor, que
para mascarar seu próprio medo e ansiedade debochavam de uma
menininha.
Todo mundo tem medo. De avião, de assalto, de desastre, de cobra,
do inesperado e de gente. É o medo que nos defende colocando
mais alerta nossos sentidos, em situações de perigo. O medo é
indispensável. E o corpo, que não tem tantos fricotes sociais, sabe
disso. Se algo me assusta de repente, ele entra em ação, joga
adrenalina no sangue, bombeia mais rápido o coração e me dá
condições de força e agilidade que normalmente não tenho. Meu
corpo dispara para que eu possa me defender. E isto é muito lindo.
Mas se venho pela rua, um carro de repente dá uma buzinada e
meu corpo com todas as suas reações me leva a dar um bom pinote
à procura da salvação, todo mundo ri, e eu me sinto atolar no
ridículo.
Risível, mandaram o medo para o quarto escuro, tentando em vão
uma população de heróis.
Eu própria, se não fui heroína, cheguei perto. Morei praticamente
sozinha em casas mal-assombradérrimas. E se ouvia ruídos
suspeitos à noite, saía com lanterna e cão para vistoriar o escuro.
Enfrentei situações e pessoas, me atirei às correntezas onde a vida
me chamava. E nesse falso heroísmo quase me quebrei toda.
Não era nada disso, heroína nenhuma. Sou um coelho como todo
mundo, um justo e humaníssimo coelho. Mas enganei um bocado
de gente, e sobretudo enganei a mim mesma durante muito tempo.
Os outros, vendo-me tão corajosa, me jogavam à frente nas
situações de risco, se apoiavam em mim, e ninguém pensava (muito
menos o amado) em me proteger. E lá ia eu, perfil ao vento,
enfrentando as piores situações só para acreditar-me valente,
enquanto meu santo pavor tentava em vão chamar-me à razão.
Demorei a aceitar que aquele suor nas mãos era a voz calada do
medo. Custei a reconhecer que aquela espécie de eletrificação
interior não era excitação, mas tremor mesmo. E sobretudo relutei
muito em me convencer de que o medo não deve ser vencido, mas
aceito.
É mais fácil conviver com o medo do que com a raiva, reconheço.
Mas já que uma das razões principais pelas quais não soltamos a
raiva é o medo que temos dela, o simples fato de aceitar e soltar
nossos medos prenuncia um alvará de soltura para a raiva.

INSEGURANÇA, eis aí uma das fortes raízes do medo. Temo cair no


abismo porque não tenho a segurança de poder dar o pulo. Temo
falar em público porque não tenho a segurança de fazer um bonito
papel. Temo declarar-me a um homem que me agrada porque não
tenho segurança de estar lhe agradando. Temo, enfim, e quanto!,
porque não tenho a segurança de acertar.
E acertar é preciso. Nas tábuas da lei não estava escrito "Acertarás",
mas os homens trataram logo de remediar aquele que lhes parecia
um esquecimento divino e acrescentaram mais esse mandamento.
Toda a nossa organização mental parece apoiar-se nessa
necessidade absoluta de acerto. E toda a nossa insegurança nela se
origina.
Não ruge a pobrezinha misturada às outras feras, mas parece
igualmente aterradora, e fazendo questão de que não se veja. Se vou
pleitear um emprego é fundamental que o futuro chefe não veja a
mancha de suor que se alastra na blusa; perceberia que estou
insegura, deduziria que não tenho firmeza para o cargo, que não
conheço o serviço, e o daria para outra pessoa. Se saio com um
homem pela primeira vez, morro mas não deixo que perceba que
por baixo da mesa enxugo a palma das mãos na saia; perceberia
minha insegurança, acharia que sou uma boba, que nunca saí com
homem antes, e imediatamente eu perderia pontos na sua avaliação.
Se danço, se canto, se represento, se datilografo ou construo, faça o
que fizer, é importante manter a insegurança escondida, que não me
faça tremer a mão, que não me faça hesitar o gesto, que não me
denuncie. Assim, me foi garantido, se vence na vida.
Sim, mas depende do conceito de vencer. Se o que se quer é tirar
medalhas de ouro, realmente a insegurança pode atrapalhar. Mas se
o que se pretende é ser uma pessoa melhor na convivência, para si e
para os outros, a insegurança torna-se uma tranqüila companhia, a
partilhar.
Não estou eu, nem ninguém, sozinha na insegurança. Todos a
temos, em maior ou menor grau. Deixá-la aparecer permite aos
vizinhos soltar a sua. E de repente, o simples fato de termos
companhia na insegurança faz com que ela pareça menor, menos
perigosa, passe de tigre a gato, um manso gato que aconchegamos
no colo. E nada aproxima tanto as pessoas quanto estar juntas numa
mesma emoção.

SOLTE AS FERAS!, me dizem. E eu passo adiante, não como uma


ordem, mas como uma senha capaz de nos tornar mais sinceros, de
nos ajudar na procura de nós mesmos.
Solte as feras!, repito para me encorajar. Não sei bem como se faz,
mas estou tentando. Abrir a porta de estalo e deixar todas elas
soltas, nem pensar. Eu não agüentaria com elas, nem elas comigo.
Preciso antes abrir devagar, por partes, para que possamos nos
conhecer, eu e essas emoções que me compõem. Vou cortejá-las um
pouco, procurar onde se escondem, medir sua força, descobrir ao
certo sua importância. Elas têm certa pressa, eu sei, mas irei
devagar. Como no surf, vou aprender a cavalgar suas ondas, a
entrar no tubo e a sair inteira do outro lado, a descer do alto até che-
gar ao raso sem me esborrachar. E aos poucos mesmo, na medida
do que eu tiver aprendido com elas, deixarei que engrossem suas
espumas.
Sim, eu vou me destrancar, amorosamente me abrir. Vou dar
passagem ao ódio, à raiva, ao medo, à insegurança. Porque o amor,
o carinho e a ternura estão esperando por eles do lado luminoso da
vida.

Amor responsável

O amor não é um fenômeno eqüestre. Não começa no dorso de um


cavalo, preferivelmente branco, que vai passando pela floresta da
nossa juventude, e no qual tomamos uma carona em rumo direto
para a felicidade. Nem é obra do acaso, golpe de sorte,
predestinação. O amor, aquele amor maior que faz do casal uma
unidade, é fruto da dedicação e do cuidado com que o construímos,
em suas várias etapas. Um longo trabalho de aprimoramento e
entrega, que começa no conhecimento e que, se bem conduzido,
nunca acaba.

No encontro de dois futuros amantes é pouco provável que um


clarão rasgue o ar, que clarins toquem na cabeça dos eleitos, ou que
qualquer outro sinal celeste lhes dê a certeza de que finalmente ali
está o ser gêmeo tão esperado.
O que costuma acontecer é bem mais terreno, e prático. Alertados
por uma atração que de imediato não saberíamos sequer justificar,
começamos a rodear o indivíduo que nos atrai, exibindo nossa mais
colorida plumagem e nosso mais belo canto para atraí-lo, ao mesmo
tempo em que o estudamos tentando descobrir quem ele é.
O que nos levou a preferir aquele a tantos outros? Uma soma muito
complexa de fatores. Podemos nos sentir atraídas por um homem
até mesmo sem tê-lo ouvido falar. E não são poucos os casos de
amor que começaram por correspondência. Isso poderia nos
conduzir à conclusão errada de que o pensamento não é
fundamental, ou de que o físico é supérfluo. O que acontece é que
para cada pessoa existe uma diferente chave de atração, espécie de
centelha que desencadeia o processo. A inteligência pode ser fator
preponderante para uma mulher, enquanto outra se sente atraída
pelo dinamismo, outra se liga no senso de humor, e outra ainda só
se interessa pelo físico.
A chave funciona como o tiro do juiz numa competição, para dar a
saída. Mas a partir daí, outros fatores entram em campo
completando um vasto quadro de exigências. E, justamente a partir
daí, deveria entrar em campo também a primeira grande dose de
atenção.
Atenção para verificar se a primeira impressão estava certa, e se
aquele é, realmente, um homem cujo arcabouço principal nos
interessa. Atenção e sinceridade para não forçar um julgamento,
para não fazê-lo servir meio à força, apenas porque estamos tanto
querendo quem nos sirva. Atenção, carinhosa atenção, para aqueles
elementos todos que aos poucos se revelam e que, mesmo
parecendo às vezes desimportantes para nós, não o são para ele, e
constituem o conjunto da sua personalidade. Atenção para ver se
algum elemento imprevisto não se torna de repente mais
importante que o dote positivo inicial. Por exemplo: ele é
inteligente. . . mas egoísta demais; ou, ele é lindíssimo. . . mas a
única mulher que considera realmente maravilhosa é a própria mãe;
ou, ele tem um raro senso de humor. . . pena que o use sempre
contra os outros. Apesar de a chave de atração ter funcionado,
podemos às vezes encontrar além da porta algo que não nos
interessa.
E atenção também para não prestar atenção demais. Correríamos o
risco de transformar os primeiros embates num inquérito policial,
perdendo o melhor da fase do encontro, que são o encantamento, a
surpresa, a esperança meio cega do acerto.
Existe algo mais complementar que os dois sexos? Parece
improvável. Entretanto, esta complementaridade que deveria ser a
base da harmonia do casal foi transformada, por nossa estrutura
social, em antagonismo.
Divididos os papéis sexuais de forma tão injusta, rompeu-se a
unidade. Coube à mulher ser passiva e submissa, enquanto o
homem a dominava através de uma posse que facilmente se
transforma em violência.
Estabelecido de antemão o que cada um haveria de sentir, e não
havendo lugar algum para a mulher depositar sua agressividade
natural, ela acabou lançando-a na corrente do amor. É lá que vamos
encontrá-la tão freqüentemente, voltada para o amado sob o
disfarce da possessão, do ciúme, do "domínio amoroso", ou voltada
contra si mesma, no quadro clássico da amante sofredora, doce
Amélia que tudo suporta, fustigando-se com a própria paixão. '
Por outro lado, os homens, obrigados a reforçar o papel biológico
em que penetram na integridade física da mulher e a engravidam
com seu esperma, passaram a penetrar também na sua integridade
mental e a impor-lhe a procriação das suas idéias. Ditaram seus
padrões, estabeleceram sua moral, formularam seus pensamentos. E
a posse física foi gradativamente transformada num estupro
legitimado, em que o homem violentava o individualismo da
mulher, apropriando-se de todos os seus bens.
As grandes paixões da história armaram-se nesse quadro, usando
de preferência a moldura do "amor submisso". Maior era a amante
quanto mais ela sofria. Um exemplo típico é o do romance que ligou
Victor Hugo à atriz e cortesã Juliette Drouet.
Juliette era rica (às custas de um príncipe), vivia aplaudida no palco
e nas festas. Até que conheceu Victor. Tomada de irrefutável paixão,
trocou o palácio por um quartinho e, como disse André Maurois,
"passou a viver a vida mais penitente e recolhida jamais aceita por
uma mulher fora dos muros do claustro".
Estava feliz? As dezoito mil cartas que endereçou a seu amado nos
dizem que não. E que sim. Ela se queixa da falta absoluta de
liberdade, do isolamento, da solidão, da falta de fidelidade dele. E
ao mesmo tempo entoa hinos à felicidade de sofrer assim por ele, de
iluminar toda a sua vida através desse amor radioso. E Victor, ao
mesmo tempo em que a traía com outras, fazia-lhe juras de paixão e
de dedicação eterna (e não sem verdade, pois a relação dos dois
durou a vida toda).
Seriam dois loucos que falsificaram uma paixão? Absolutamente.
Foram dois amantes perfeitos, dentro do esquema do seu tempo.
Mas hoje o tempo começa a ser outro, e é outra a paixão que
queremos viver, livre do antagonismo dos sexos.
É por isso que logo após o encontro começa a delicada fase em que
estabelecemos as bases para a igualdade, em que criamos condições
para que o amor nascente não seja apenas um amor romântico,
enfeitado de sonhos, mas um amor real estruturado para durar.
Ao falarmos em igualdade não estamos dizendo que ele e ela devem
se tornar idênticos, descaracterizados das possíveis diferenças
homem/mulher. Queremos dizer que cada um deverá encontrar sua
identidade masculina ou feminina não na caixinha dos rótulos, mas
dentro de si. E que estas duas identidades por sua vez procurarão
estabelecer a convivência dentro de iguais direitos e deveres
partilhados.

Bonita, essa conversa de partilhar! Não há quem não goste. Mas só


da conversa, porque na hora de partilhar mesmo, de dividir, metade
pra cá, metade pra lá, a coisa parece bem mais difícil.
Partilhar, por quê? Porque em amor as pessoas querem dar e
receber. E o melhor é que isso seja feito na mesma medida.
Ainda que inconscientemente, começamos a partilhar desde o início
de uma relação de amor. Pois procuramos a identidade, a pessoa
que, parecida conosco, nos complete, e só há um meio para testar
essa identidade: entregar nossos pensamentos, nossos desejos,
nossos projetos, e ver se coincidem ou se aproximam dos desejos,
pensamentos, projetos dele. Isso é o começo do partilhar. É um
momento emocionante da relação, quando do alto do nosso
penhasco lançamos a mensagem para o penhasco dianteiro, e
esperamos em ânsia que o eco anule aos poucos a distância.
É também o mais espontâneo, momento de falar muito, de contar o
passado, as reminiscências infantis. No desejo totalizador do amor,
parece-nos difícil aceitar que tenha havido um tempo em que o
amado não fazia parte da nossa vida, um tempo em que sequer nos
suspeitava. E contando-lhe esse tempo tentamos integrá-lo nele,
como se, ausente então, estivesse, porém, em suspensão no nosso
futuro, predestinado para vir.
Isso, no início. Porque logo coisas mais concretas e às vezes bem
mais prosaicas têm que ser partilhadas, pondo à prova a nossa real
capacidade de conviver.
Uma coisa é, no início do namoro, afirmar "Eu adoro homem-
pássaro!" e suspirar estática diante do Ícaro que à nossa frente
parece realmente descido do céu. Outra coisa é conviver com um
homem que passa o sábado e o domingo, de manhã à tarde,
subindo ao alto de um pico, para descer em curvas pelo céu, e
tornar a subir. Uma coisa é ele nos dizer, no começo da relação,
"Essa de machismo não é comigo". E outra é conviver serenamente
com uma divisão de tarefas que pode implicar para ele também
lavar a louça ou fazer as compras do supermercado, ou cozinhar.
Isso não signifique que, tendo dito uma coisa, seja necessário mantê-
la até a morte. Todos podem e devem mudar.
Signifique, porém, mais sinceridade na hora das afirmações, ou seja,
afirmar aquilo que realmente se pensa e não aquilo que, sabemos,
irá agradar o outro. E signifique também uma certa, realística,
elasticidade na hora de concretizar os sonhos, de morar juntos.
Se foi um homem-pássaro o que escolhemos, será preciso passarar
com ele, criar pelo menos asas na alma, se não temos a coragem de
carregá-las às costas. Subir de carro ao alto do morro levando a
tralha dele, e descer para esperá-lo na térrea chegada é uma forma
direta de partilhar. Mas partilhar pode ser também ficar em casa, ou
fazer qualquer outra coisa que nos agrade, antevendo com prazer a
hora do reencontro, os relatos dos vôos.
Partilhar será também por parte do nosso heróico albatroz desistir
vez por outra das nuvens, e fazer com ela o que ela gosta de fazer,
com interesse igual ao que ela dispensa às suas atividades.
Partilhar é, enfim, viver em harmonia com o outro. É como andar de
tandem, aquela bicicleta para dois ciclistas que só funciona
realmente se as pedaladas estão no mesmo ritmo, e se, sobretudo, os
dois querem ir na mesma direção.
Partilhar, portanto, não é apenas dividir tarefas e ocupações, é estar
junto no modo de ver a vida, é fazer dos próprios sentimentos uma
área livremente transitável. E isso só se consegue com intimidade.

Intimo, muita gente pensa que é de muita gente, "Amigo íntimo",


dizemos de qualquer pessoa que freqüentou algumas vezes a nossa
casa. É basta chamar o outro de "você" para estar lhe dando
intimidade. A intimidade da qual falamos, porém, é coisa muito
diferente. Tão diferente que quem realmente a tem não o diz.
Mesmo porque não precisa.
Um amor pode ser intenso, sem ser íntimo. Fazer sexo juntos não
implica forçosamente intimidade. Não aquela intimidade de
sentimentos à qual a gente está se referindo. E embora um casal
chegue até mesmo a usar a mesma escova de dentes, pode, no
fundo, não ter intimidade nenhuma. Aliás, grande parte dos
casamentos não a tem, nem nunca a teve.
Que intimidade é essa então? Ela começa no desejo de realmente
conhecer o amado, e profundamente dar-se a conhecer. Pudor
nenhum pode barrar-lhe o passo. Nem medo.
E se estabelece aos poucos, à medida em que os amantes se
interpenetram.
Intimidade não é invasão. Não é comportamento persecutório que
prenda nossos dentes no calcanhar do amado, tentando arrancar-lhe
todo fiapo de privacidade. Intimidade é justamente saber respeitar a
privacidade do outro, conhecendo, porém, o material de que é feita.
Intimidade é também aquilo que nos vem do reconhecimento e
aceitação dos defeitos, nossos e dele. Um conhecimento que elimina
a necessidade de esconder-se, a tentação de qualquer fingimento.
Não é preciso fingir, se o outro nos ama exatamente pelo que somos.
Há casais que não agüentam a intimidade, não querem se ver frente
a frente, preferem não falar dos seus problemas mais profundos.
Então fingem não tê-los. Protegem-se na rotina, nas conversas de
superfície, nos gestos sem atrito. Ou então rodeiam-se de amigos,
estabelecem uma vida em turbilhão, que não deixe vaga para
reflexões, que não permita longos encontros em solidão.
Por isso dissemos que um amor pode ser intenso sem ser íntimo. A
intimidade não é indispensável ao amor/ paixão. Mas o é ao
amor/vida, aquele amor que se pretende mais sólido do que apenas
uma labareda, que se quer responsável.

No amor/responsável está a grande possibilidade de sucesso para o


casal. Não se trata de compromisso, porque compromisso encerra
um ar de obrigatoriedade, comprometimento quase legal. É
sobretudo uma intenção, uma consciência de que este amor é bom e
deve ser protegido.
O amor responsável sabe que tem um raro tesouro nas mãos, mas
sabe igualmente que ele não é dado de presente pela sorte. É
construído a cada dia, pelos dois juntos, numa obra que não é
somente vertical — espécie de empilhação de experiências —, que
pode também ser demolição para reconstruir, que é feita de muitas
reformas, e que, sobretudo, nunca tem um projeto definitivo e
fechado.
Amor/responsável é, como diria Umberto Eco, uma "obra aberta".
Que se modifica constantemente, em que os dois parceiros atuam o
tempo inteiro, agindo um sobre o outro, colaborando um no
fortalecimento do outro, abrindo questionamentos. Uma obra que,
através de todos os legítimos estremecimentos, mantém a
consciência de sua importância e o desejo de preservar seu núcleo
de união.
O amor pode existir, e ser agradável, agradabilíssimo até, sem ser
responsável. Mas é um outro tipo de amor. É o amor-festival, um
amor inconseqüente, que não busca a perenidade mas tão-somente
a satisfação do eros. E pode ser considerado de alguma maneira um
amor escapista, porque se estabelece na periferia da realidade,
ignorando qualquer intenção mais profunda.
Incluir o amor no dia-a-dia, fazer dele matéria primeira do nosso
viver, é o passo inicial em direção ao amor/responsável. Vivido
profundamente, ele se irradia em todas as direções, permeia todas
as atividades, tornando-nos pessoas melhores e mais receptivas.
Não há como garantir a duração de um amor. É certo que não basta
a entrega. Responsabilizar-se por ele, devotar-lhe luta e atenção
pode não eternizá-lo, mas nos dá a certeza de uma qualidade
melhor e mais sólida de amor, a única capaz de realmente
configurar um casal.

Contar tudo "ma non troppo"

"Tenho uma coisa pra te contar. Você jura que não conta pra
ninguém?" Este é o intróito juvenil. Via de regra o ouvinte recalcitra,
quer ir logo aos fatos, acha o juramento dispensável, afinal, é de
confiança e por isso foi escolhido. Mas acaba jurando.
"Há uma coisa que preciso te contar. Mas é confidencial." Assim
começam os adultos. Não se pede o juramento formal. Porque seria
grosseiro; porque já não se acredita em juramentos. Em lugar de
juras, trocam-se olhares, às vezes uma curta afirmação em resposta:
"É claro".
E tanto na infância quanto na idade adulta, em pelo menos noventa
e nove por cento dos casos, os ouvintes repe-. tirão toda a cerimônia
a outros ouvintes, exigindo o silêncio que eles não souberam
manter, a respeito de um segredo que já não o é tanto.
A este recatado procedimento, chamamos fazer confidências.
Mas que coisa boa que é chegar perto da pessoa amiga e meter um
bom papel-carbono na alma, repetindo o que se passou, e aí ele me
disse, e aí eu respondi, aí aconteceu. Esvaziar tudo, contar nos
mínimos detalhes, repetir várias vezes as passagens principais. E
que tão melhor fica o fato contado assim por nós, rebordado de
ansiedade, cheio de idas e vindas, com flash-back, e o contracanto do
interlocutor.
Melhor que fazer uma boa confidência, só recebê-la. E passá-la
adiante ao nosso próprio confidente de estimação.
Uma confidente inveterada me dizia: "Quando conto uma coisa a
uma amiga, já não peço para ela guardar segredo absoluto. Peço
para ela só contar ao marido. E aí fico rezando pro marido dela não
ter uma amante, senão ele conta para ela, e ela conta. . . e por aí vai".
E queixava-se, confidente minha: "Contar coisas pra você não tem a
menor graça.
Você é um túmulo, não tem nunca nada dos outros pra contar".
Mas então, se a gente já sabe que o segredo não vai ser mantido, e se
o segredo é a alma do negócio, por que continuamos fazendo
confidências, mesmo as altamente confidenciais?

As muitas vantagens de contar nossos casos


"Navegar é preciso", diz o poeta. Pois é. Há que singrar o
acontecimento, passear por ele, arar-lhe as vísceras, estudar-lhe as
transparências. Só assim podemos entendê-lo melhor. E, através do
entendimento, possuí-lo. Mas como habitar algo tão etéreo quanto
um fato?
Pela palavra. Há quem escreva, mas é trabalhoso, não tem eco, e,
convenhamos, não é tão divertido. O melhor sistema mesmo é
contando a alguém. A confidência atua como uma lente de
aumento. Contando, descobrimos coisas que não tínhamos visto
antes. Exatamente como, vendo um filme pela segunda ou terceira
vez, se enriquece insuspeitadamente o trabalho da câmara, a
expressão dos protagonistas. O fato, na narrativa, se expande. Suas
beiras começam a encostar no antes e no depois. A reflexão a que
cada frase nos obriga atua como uma grande-angular.
Contar tem um outro efeito, assaz mágico. Fixa a verdade. Não a
verdade absoluta, porque essa não existe, mas a verdade do
narrador. Explico: o fato, embora estejamos acostumados a pensar o
contrário, não acontece de uma única maneira. Ele acontece de um
modo diferente para cada um dos protagonistas, ou participantes. E
acontece de um modo específico na hora exata do acontecimento. À
medida que o tempo passa, e ele se afasta, muda sua verdade, muda
a verdade de cada um. Contar o fato a outra pessoa, que não par-
ticipou dele, é portanto uma forma de lançar as âncoras do fato, de
prendê-lo no tempo. Temos uma testemunha, relatamos aquilo que
para nós é, naquele momento, a sagrada verdade. Dali para a frente,
pelo menos para nós, será aquela a verdade oficial. As outras todas
taxaremos de mentirosas.
Saí para jantar com uma amiga minha, ela se desentendeu com o
marido por causa de ciúmes, foram para casa discutindo. No dia
seguinte, viajei. Quando voltei ela me telefonou: "Fiquei tão aflita
aquela noite, sem ter ninguém com quem falar, que no dia seguinte
de manhã cedo liguei para um colega meu de grupo, tirei ele da
cama pra contar". Contar para o amigo deu-lhe, pelo menos, uma
meia solução. Havia, a respeito do acontecimento, somente duas
impressões, a dela e a do marido. E, obviamente, eram antagônicas.
Ela precisava de um "perito desempatador", alguém que a ouvisse
com simpatia, predisposto a dar-lhe razão, a reforçar seus
argumentos.
Com a confidencia e o mais que previsível apoio do confidente, ela
passou de parte titubeante e insegura para maioria esmagadora.
Conquistou assim a razão que não tinha conseguido obter durante a
discussão. E, sentindo-se superior, nem precisou voltar ao assunto
com o marido.
Não só. Contar aliviou sua pressão interna. Ela estava tão carregada
que não conseguiu esperar a minha volta. Se não contasse a alguém,
corria o risco de explodir, provavelmente pra cima do marido,
gerando nova briga. Ela realmente precisava falar, como medida
terapêutica. E assim como tomamos o mesmo remédio várias vezes
por dia, tenho certeza de que ela recorreu a outros confidentes
depois daquele, sacudindo bem a briga dentro de si antes de cada
uso, até acabar por gastar-lhe o gás, despressurizá-la. O resto, aos
poucos, o organismo absorveu.
Nem ela, nas sucessivas confidências, preocupou-se excessivamente
com discrição. Não cabia esse item nas suas preocupações. O fato,
alastrante, não deixava espaço para mais nada. Ela precisava contar.
O que os outros fossem fazer com seu relato pertencia ao capítulo
seguinte da novela, sem que ela estivesse sequer interessada no
trailer.

Ah! como é bom ser escolhido como confidente

"Eu estava dormindo quando ela telefonou. Me arrancou da cama


dizendo que tinha uma coisa pra contar. Não levei nem um segundo
para acordar." Isso o confidente da minha amiga não me disse,
porque nem o conheço. Mas é o que teria me dito se tivesse
oportunidade, porque obviamente foi o que aconteceu.
A cena de ciúmes da minha amiga não lhe dizia respeito. Ele nem
conhece o marido dela. Provavelmente não tem maior interesse em
brigas conjugais. No entanto, ouviu atentamente, emocionado até,
prestando atenção, interferindo, interpretando. Assumiu com
prazer inequívoco, desde o primeiro instante, seu papel de
confidente. E generosidade entra muito pouco nisso. O rapaz não
saiu de seus lençóis por espírito caritativo, ou puramente caritativo.
Tinha seus lucros a auferir.
Ele, que na noite anterior talvez tivesse ido dormir cedo, após um
dia rotineiro, viu-se de repente participando de um fato ocorrido
naquela dita noite. Lá estava ele contemporaneamente à uma da
madrugada e às oito da ma tina, sentado num Opala e diante de um
telefone, de pijama e traje formal, em meio ao calor de uma
discussão. De repente, era participante do fato, chamado a palpitar,
tomar partido. Era, de uma hora para outra, aliado indispensável.
Despertas por essa convocação matutina, suas emoções entram em
jogo. Na briga da amiga, na violência ou submissão da amiga,
revive violências e submissões muito suas, brigas que já estavam até
empoeiradas. O fato da outra entra-lhe pelas veias adentro como
uma transfusão. Já não é da outra apenas. É dele também.
Mais do que dele, está sendo posto à sua disposição para
julgamento. Desta maneira, ele assume no fato a posição suprema
de juiz. Ah! que situaçãozinha revigorante para qualquer ego, que
alimentaçãozinha nutritiva para qualquer onipotência.
Honrado, já ajeitando as pregas da invisível beca, o confidente
estimula, pede detalhes, quer ouvir novamente determinado trecho,
esquadrinhar os autos. É juiz comprado, mas que importância tem
isso? Sabe que quando for a sua vez de contar, quando for ele o
narrador, terá por sua vez um juiz favorável de antemão, aquela
mesma amiga que ora lhe derrama no colo sua intimidade, pronta a
inverter os papéis assim que necessário.

A confidência vai, mas corre o risco de voltar


Muito bem, o fato mudou de mãos. Pertence agora com igual
propriedade ao amigo da minha amiga. O qual, coitado, arrancado
do sono, martelado com detalhes, excitado em seus sentimentos,
está totalmente aceso. E aceso desliga o telefone, vai cuidar da vida.
Uma vida repentinamente ocupada pelo fato que acabou de lhe cair
em cima.
Vai o rapaz ao trabalho, mas com a cabeça metida na briga da qual
se sente absoluto participante. E no trabalho, ou onde quer que ele
vá, encontrará, é forçoso, alguém da sua confiança, um dos seus
confidentes habituais. Haveria algo mais natural do que, após
ligeira introdução, estatelar-lhe a frase: "Olha, você não sabe o que
aconteceu!", entregando em seguida toda a história?
É apenas justo. O pobre estava sufocado. E se minha amiga se acha
no direito de estufar-lhe os sentimentos, para esvaziar os seus, deve
dar-lhe direito a idêntico processo. Ninguém traiu ninguém. Mas
um acontecimento inicialmente parado começou seu longo e já
agora incontrolável curso.
A água descendo o rio bate nas pedras, faz espuma, ganha oxigênio,
ganha lata de cerveja vazia, folha morta, poluição. O mesmo
acontece com o fato. Pois se a verdade inicial da minha amiga não
era igual à do marido, nem era igual à verdade que ela entregou ao
confidente, é óbvio que o confidente, entre ouvir e absorver, entre
identificar-se e repetir, já estabeleceu a verdade lá dele, acrescida de
particularidades que ele conhece da narradora, de ilações que ele
próprio extraiu da sua amizade. O que ele conta é, portanto, bem di-
ferente daquilo que o marido da minha amiga pensa ter vivido.
Se a história e seus protagonistas não forem muito palpitantes, é até
provável que o seu trânsito pare, ou se dilua muito até o terceiro ou
quarto confidente. Mas suponhamos que seus participantes tenham
algum brilho, que a história permita ramificações picantes. Rolará
então indefinidamente. Até voltar, completamente modificada, a
seu emissor de origem, a minha amiga, que certamente ficará
furiosa, podendo até invectivar seu confidente, aquele santo rapaz
que dormia tão tranqüilamente quando este romance todo começou.
Está aí, linearmente traçado, o processo boomerang das confidências,
único detalhe que torna insidioso este encantador carrossel social.

O exagero é capaz de estragar tudo

Eu sei disso tudo, e continuo fazendo confidências. E depois de ler


isso tudo, você também continuará fazendo confidências. Porque
fazer confidências é não só gostosíssimo, como indispensável. Não
fosse, ninguém faria, guardando bem guardados seus segredos. E,
apesar do que pensam pessoas mais cautelosas — como os mineiros,
por exemplo —, não há dano maior em contarmos a outrem nossa
intimidade. Isso porque, via de regra, nossa intimidade não contém
nada de tão terrível que não possa vir à luz da narrativa.
Mas até aqui falamos de um modus vivendi confidencial corriqueiro,
uma confidenciazinha hoje, outra amanhã, coisa pouca, coisa leve.
Há porém o perigo do excesso, da confidência compulsiva,
desenfreada, em que só não se agarra o transeunte desconhecido
porque este reagiria pensando tratar-se de um assalto. Essa aumenta
as margens do risco, até transformar-se num risco só.
Já não se escolhe o confidente. Qualquer um serve, desde que esteja
fisicamente ao alcance. E este qualquer-um não tem obrigação de ser
um bom juiz, ainda que comprado. Pode entrar pela vida do
narrador adentro, derrubando móveis e pisoteando canteiros, sem
que haja sequer direito a reclamação. Ele não pediu para ninguém
lhe contar coisa alguma, e está simplesmente reagindo dentro das
suas possibilidades. Pelo que, embora demolidor, ainda lhe
devemos agradecimento.
Mais do que qualquer outro, o confidente pego a esmo tem poderes
deformantes. Pois não tendo especial vínculo de amizade com o
narrador, conhecendo-o pouco e sem maior afeto, é naturalmente
levado a botar mais de si no subseqüente relato, de modo a torná-lo
mais divertido, ou pelo menos mais próximo da sua verdade.
Compromisso com o narrador, ele não tem nenhum. Tem com a
pessoa que ele for escolher para seu próprio confidente, à qual
quererá impressionar, ou simplesmente divertir. Para o quê, achará
oportuno e natural temperar o relato com bastante pimenta.
A história do confidente compulsivo rola de boca em boca. Quem a
conhece, e vai contá-la a alguém, percebe que esse alguém já a sabia.
É um Segredo de polichinelo, que logo perde qualquer valor. E com
ela, perde valor e credibilidade o autor primeiro.
O valor do segredo é justamente sua qualidade de peça única,
disputada talvez, mas com mínimos donos. Possuí-lo é possuir o
que os outros querem e não podem obter. É ser, por um instante
misterioso, nu is rico e mais forte do que todos. Por isso também
recebemos ungidos as confidências. E ungidos e parcimoniosos as
passamos adiante. Mas se o confidente é um reconhecido
boquirroto, se o que ele me entrega já foi ou será entregue a legiões
de outros, seu valor é idêntico ao de um palito de picolé chupado. E
com esse conceito o atirarei à malta.
A vida particular do confidente compulsivo vira assim pública,
perdendo qualquer particularidade e qualquer interesse. As
distorções se multiplicam, cada eco chega de um jeito. Mais simples
e direto seria então fazer como fazem as grandes empresas, que em
vez de passarem boca a boca seus acontecimentos, os estampam em
jornaizinhos regulares.

O ledo engano do confidente compulsivo

Basta ela me ver chegar, para pegar firmemente em meu pulso e


começar a me contar, com fartura de detalhes, sua última paixão. E
ela me vê chegar com muita freqüência. Pensei a princípio que me
considerasse uma boa confidente, de julgamento abalizado, capaz
de ajudá-la. Descobri depois que eu era a sua qüinquagésima sétima
confidente na mesma roda. (Evitei pedir um IBOPE de audiência em
níveis externos.) Mas ela já tinha conseguido o que queria: éramos
íntimas.
Contando-me sua vida, ela estabeleceu um grau de amizade que de
outra maneira levaria talvez anos para acontecer. E o mesmo,
certamente, ocorria com os outros ouvintes. Ela era, ainda que de
forma ilusória, íntima de muitos. O que lhe permitia alimentar seu
sonho de ser uma pessoa popular, benquista, cheia de amizades.
Mas há momentos em que, ao manietar nosso pulso, o confidente
compulsivo não tem nada para contar. Afunda então seus olhos nos
nossos e pergunta: "E você, como vai?" Ele não quer exatamente
saber da marcha de nossa ,vida. Quer que lhe façamos confidências.
Afinal, no mercado de trocas afetivas, ele teria direito a isso, ou pelo
menos considera tê-lo conquistado, após tantas horas de vôos
confidenciais unilaterais. Pelo que contou, quer pagamento na
mesma moeda. E geralmente o recebe.
Dessa forma terá munições para despejar sobre a próxima vítima. E
terá possuído um confidente que vinha "trabalhando" com tanto
afinco.
O confidente é também a gentil muleta de que lançamos mão em
determinada hora. Mas se a insegurança é muita, se as pernas estão
constantemente bambas, torna-se gesto instintivo trocar uma muleta
por outra, de modo a não depender nunca, exclusivamente, das
próprias forças. O confidente compulsivo não toma nem uma Coca-
Cola sem contar ao vizinho. Nada lhe acontece, que alguém não o
ajude a carregar. A vida, partilhada, parece-lhe mais leve.
E ao mesmo tempo sua insegurança se disfarça atrás de um biombo
de poder. Pois não tem ele sempre as melhores novidades para
contar? Não é íntimo de tanta gente importante? Não monopoliza a
atenção e o afeto de todos? Aos olhos dos outros — pensa ele —, lá
está uma pessoa importante e poderosa, uma pessoa que vale a
pena conhecer e admirar.
Doce ilusão. É exatamente o contrário que acontece. Falante, falado,
o confidente exaustivo perde rapidamente seu valor. O interlocutor
já não se sente valorizado pela escolha, sabe que está sendo usado,
que é apenas um ouvido a serviço do outro. Irrita-se. O fato contado
não desperta emoções, nem chama à identificação, porque é
recebido com desprezo e desconfiança. Nem alimenta a onipotência,
porque ninguém pode sentir-se onipotente quando se sabe
explorado. O fato confiado deixa o ouvinte absolutamente
indiferente. E como tal, é chatíssimo.
O próximo passo da possível vítima será a fuga. Nunca aproximar-
se desacompanhado do confidente compulsivo. Alegar falta de
tempo, mantendo os olhos ostensivamente cravados no relógio.
Fingir dor de cabeça, indisposição. E sobretudo evitar, evitar, evitar.
Do que se ressentirá o compulsivo, como de uma traição. Por que
abandoná-lo assim, depois de tudo o que ele já contou? Por que
afastar-se depois de ele ter manifestado tanta confiança?
E sai ele então à procura de novo pulso ainda dócil, para agarrá-lo e
murmurar ao pé do ouvido: "Sabe, fulano? Não tem nenhum
caráter". Começando outro, deletério, circuito boomerang.

Fantasiando um amante
Fazer amor com o melhor amigo, com o chefe do escritório, com o
surfista, com o vizinho, com o galã da TV. Fazer amor com variados
parceiros. Esta é, segundo Masters e Johnson, a fantasia mais
comum das esposas americanas.
Já Nancy Friday, que coletou mais de trezentas fantasias eróticas
femininas no livro As flores proibidas do meu jardim secreto (My secret
garden forbidden flowers) afirma que a fantasia mais comum é a da
campainha que toca, do homem desconhecido que surge no umbral
entreaberto, do seu pé forçando a porta, e do "delicado" estupro que
se segue.
Numa coisa, porém, concordam os autores: as fantasias eróticas são
uma constante na quase totalidade dos casamentos, funcionando
como válvula de escape, elemento nivelador entre a realidade e o
sonho.
O que leva à fantasia de trair? A repressão sexual é sem dúvida uma
das principais razões. Não é à toa que Nancy utilizou a metáfora
"flores proibidas". São flores porque são agradáveis, naturais, mas
permanecem secretas no jardim porque são proibidas. E tão
proibidas, que até no sonho as podamos, como prova a fantasia da
violência: afinal, se um desconhecido invade a casa e violenta sua
proprietária, ela não tem culpa alguma, foi forçada, não seduziu, foi
dobrada, não se entregou. Ninguém poderia culpá-la, e muito
menos ela própria.
Fantasiamos aquilo que não temos, aquilo que só em sonho
podemos nos conceder. E se o casamento se revela insatisfatório,
deixando áreas de carência, sem nos levar entretanto ao extremo da
ruptura, a tendência mais comum é a de suprir as faltas com uma
boa dose de fantasias, realizando na imaginação a traição proibida.
A fantasia de trair tem suas vantagens em relação à traição
realizada. A principal é a de não colocar em risco o casamento, não
ferir o marido. A segunda é a de não constituir erro para a mulher,
pois desejar apenas, sem chegar às vias de fato, não é erro
qualificado. A terceira é a de ser impalpável, praticamente
impossível de provar.
Mas também tem suas desvantagens. Ela é basicamente uma atitude
não assumida, e como tal pode criar uma divisão interior perigosa.
Na verdade, não supre nossas carências, mas as ameniza e disfarça.
E como todas as fantasias, se muito repetida, corre o risco de nos
afastar da realidade, mergulhando-nos em um mundo ilusório,
enganoso.
Mas a maior utilidade da fantasia de trair está na compreensão dos
mecanismos internos que nos levam a ela e que a tornam
gratificante. Pois é através do entendimento das nossas fantasias
que podemos nos aproximar de nós mesmos.

Fantasias que funcionam num esquema de vingança e são contidas


pelo medo

— Eu me acho com direito. Mas chega na hora, me sinto culpada de


tudo.
Dulce (digamos que se chame assim) se acha com direito ao
adultério porque o marido a trai freqüentemente.
— No princípio eu não me incomodava muito, não, achava que
homem é assim mesmo, todo marido trai. Mas quando soube que
ele tinha deitado com uma amiga minha, na minha casa, aí achei
que era muito desaforo.
Aparentemente Dulce aceitava os preconceitos sociais segundo os
quais o homem tem o direito de trair e a mulher tem a obrigação de
suportar. Mas no fundo se magoava. E quando ele rompeu o tabu
de respeito ao lar, ela acreditou poder romper seu tabu de
fidelidade.
— Foi feito um impulso. Gostei do rapaz. Começamos uma espécie
de flerte, sorrisos pra cá, sorrisos pra lá. Aí uma tarde saí mais cedo
do escritório e fui tomar um chope com ele.
Dulce, cujo marido é muito ciumento, já se sentia em clima de
adultério por apenas desejar outro homem.
— Conversamos, bebericamos mais ou menos uma hora. Não sei se
eu estava mesmo interessada nele ou se estava só com raiva do meu
marido. Quando cheguei em casa me senti vitoriosa. Ele me
beijando todo carinhoso, e eu pensando "puxa, quando me
comporto direito ele não é carinhoso assim, e hoje que saí com outro
até parece que ele está farejando alguma coisa, algum cheiro de
homem".
A sensação de vitória, de trazer para dentro de casa um cheiro de
homem assim como o marido havia trazido para dentro de casa
uma outra mulher, foi suficiente para realizar a vingança de Dulce.
Ela não precisava ir mais além. E só voltaria a fantasiar traição a
cada nova transgressão grave do marido.
Por que as traições fantasiosas de Dulce não se concretizam, se ela
afirma achar que "tem direito"?
— Ele já me disse uma porção de vezes que se eu o passar para trás
ele me mata. Chegou a falar pra minha irmã.
Dulce tem medo. Medo físico do marido. Mas atrás desse
sentimento lógico e real abriga uma verdade secreta que nem ela
mesma reconhece: Dulce não se acha realmente com direito de trair,
e vincula o castigo à traição.
A duplicidade de Dulce tem raízes fundas na história da mulher.
Uma história feita de agressões, em que o adultério era o pior crime,
punível com a morte. Na Roma do Imperador Augusto o pai tinha
direito de matar a filha surpreendida na prática do adultério em sua
própria casa ou na do genro. Deveria matá-la imediatamente. E
poderia matar também o amante, desde que a filha morresse. O
mesmo direito era reconhecido ao marido. No século III tribunais
especiais ditavam a morte das adúlteras por afogamento ou pelo
fogo. Em 1446 Portugal degredava a esposa adúltera para a África
por dez anos ou permitia que o marido a matasse. Em 1810 a esposa
adúltera era passível de pena de prisão de até dois anos. E ainda
hoje, segundo o sociólogo Richard J. Gelles, da Universidade de
Rhode Island, cinqüenta por cento das esposas americanas
apanham dos maridos, sendo o ciúme a causa mais freqüente.
Dulce não precisa desses dados para justificar seu medo e sua culpa.
Eles estão entranhados nela, assim como o estão em todas nós,
criadas à sombra da cena bíblica em que a adúltera é apedrejada em
praça pública. Dulce interiorizou a tal ponto essa herança cultural,
que chega a assumir a culpa por um ato que nem chegou a cometer,
que apenas imaginou ou desejou cometer.
Ela sabe que não vai trair, mas comporta-se como se fosse

— O meu encantamento por um outro homem não tem nada a ver


com algum momento especial na relação com meu marido. Eu
posso estar muito bem com ele e de repente partir para uma das
minhas caçadas. Não tem nada a ver com brigas, desentendimentos.
Simplesmente, numa hora qualquer, um homem me parece muito
fascinante.
O estímulo de Márcia é tão interior, tão recôndito, que ela nem sabe
a que atribuí-lo. Fala de suas fantasias amorosas como se fossem
obras do acaso.
— Sentir-se desejada é excitante. Você de repente escolhe um cara,
acha ele bacana e começa a se exibir para ele de alguma forma, a
chamar a atenção dele, e percebe que ele está reparando, que
também está achando você bacana. Ele está ali, ligado em você.
— Não, não é como se eu estivesse apaixonada. Na verdade, eu sei
que não estou apaixonada. Eu estou ligada, é diferente. Mas ele me
ocupa os pensamentos durante várias horas por dia.
Pensa nele, no que ele estará pensando dela. Fantasia um encontro,
uma relação. Imagina os abraços, os beijos. E assim, aos poucos, vai
diluindo a coisa bem devagar.
— Nunca chego ao ponto de ter que ir para a cama. Tudo termina
sempre bem antes do momento dele chegar, me pegar pelo braço e
dizer "bom, agora vamos". Eu não deixo chegar nesse ponto, porque
aí eu ia ter que dizer não, e ia ser um tremendo mal-estar.
Assim como deu início à sua fantasia, Márcia retira-se sem sinal
prévio, discretamente. Entre ela e o eventual ele fica a sensação
simpática de uma coisa que poderia ter acontecido mas não
aconteceu, e que justamente pela não realização se mantém como
possibilidade muito agradável.
— Eu nunca fantasio com desconhecidos. O homem que passa e que
eu não sei quem é não me interessa. Ele nunca ia entender. E
quando a coisa não fosse adiante ficaria com raiva de mim, achando
que eu sou louca, que o tentei para nada. Eu só faço minhas
fantasias com amigos, pessoas próximas. E depois, quando tudo
deu em nada, fica sempre uma ligação meio subterrânea com o cara.
Ele e eu sabemos que houve um momento especial. . . em que quase.
. . talvez . . .
Márcia não se arrisca. Não se arrisca a brigas com o marido, porque
de fato nada acontece entre ela e o outro, nem mesmo encontros a
dois.
Nem se arrisca com o pseudo-amante, porque nada físico acontece,
e ele não tem assim material de espécie alguma para julgá-la.
— Pode ser que eu tenha medo dele não me achar legal, ou de eu
não achar legal, e de tudo ser um fracasso. Tenho medo da
decepção, por isso não chego até lá.
O que acontece na verdade é que Márcia não está interessada em
sexo. Ela está interessada em aproximação. Como ela mesma diz:
"Tenho uma curiosidade enorme de saber como ele é. E para saber,
só chegando mais perto, vendo como ele corteja, imaginando como
ele beija". Márcia não sabe lidar normalmente com a sua
afetividade. Ela tem até medo de reconhecer seu afeto. Então, em
vez de se aproximar como amiga, e como amiga tentar conhecer o
lado afetivo do outro, ela encena toda uma comédia de romance. Só
assim consegue abrir sua afetividade.
E porque seu intuito não é sexual, não se sente culpada.
— Culpa nenhuma, é claro. Nem em relação a meu marido. Isso não
tem nada a ver com ele. Se o homem é casado posso me sentir mal
em relação à mulher dele, com medo dela sentir alguma coisa e me
agredir, ou ficar chateada. Mas não em relação ao meu marido. Ele
tem o lugar dele, o amor garantido. Eu não tiro nada dele, não tomo
nada que lhe pertença.
Com o marido, através de um bom relacionamento sexual, Márcia
consegue deixar fluir seu afeto. Afeto e sexo neste caso se
confundem numa coisa só, muito completa. Uma coisa que Márcia
não partilha com ninguém.
As fantasias de trair de Márcia são o mecanismo que ela armou para
não sufocar o afeto represado. Paralelamente, é através delas que
reafirma seus encantos, minimizando a insegurança. Um esquema
engenhoso que lhe permite satisfazer duas necessidades imperiosas,
sem carregar-se de culpas, e mantendo-se fiel ao marido.

O desejo refreado por medo da paixão

— Como posso, se sou casada? Nem quero pensar nisso. Imagine.


Trair meu marido! E se ele soubesse?
A idéia de adultério parece a Fernanda inconcebível. Entretanto,
mais de uma vez, freqüentemente até, alimentou uma "fantasia de
trair", com outros homens.
— É verdade. Mas nunca passei disso! Não sei o que acontece
comigo. De repente percebo que olho e penso demais num
determinado homem. E penso em coisas íntimas. Nele me beijando.
Nele ordenando-me que eu tire a roupa. Em nós dois juntos, nos
amando.
Fernanda se desculpa: "Não sei o que acontece comigo". Mas não
seria difícil. Suas amigas sabem que ela não é bem casada. Sabem
que não ama o marido. E sabem também que defende aquela morna
relação com unhas e dentes.
-— Nunca deixaria que meu marido soubesse. Eu respeito muito
nosso casamento. Mas é verdade que muitas vezes me entreguei a
ele pensando que era outro que me apertava. Eu fico de um jeito
que só consigo pensar nisso. Chego a sonhar noites seguidas, e a
querer ir para a cama para sonhar.
Fernanda troca uma realidade desagradável por uma fantasia
agradabilíssima. Troca o marido que não ama pelo homem que
pensa que ama. Troca sua imagem real de dona-de-casa pela
imagem noturna de amante fogosa.
— Acho que fico até mais bonita quando estou assim. Eu me acho
mais bonita. Olho no espelho, vejo meus olhos brilhando. E de
repente tenho medo.
Fernanda tem medo da felicidade maior. E não quer se arriscar. Sua
felicidade doméstica é pouca, mas é garantida. Sua rotina afetiva
não lhe traz grandes sobressaltos de amor, mas nunca a deixará
desamparada. Fernanda é atraída pela luz, mas tem medo de se
queimar.
— Não, nunca levei nenhuma dessas minhas fantasias adiante. Nem
mesmo os homens que as causavam souberam disso. Sempre fui
muito discreta. Tenho certeza de que se um dia acontecesse de eu ir
mais além, eu ia me apaixonar. E apaixonada eu ia querer largar
tudo, o marido, os filhos. Eu não tenho esse direito. Eu respeito
muito meu marido.
O respeito ao marido é a válvula de segurança com que Fernanda
controla seus impulsos, domina sua sensualidade.
Insatisfeita, subalimentada sexual e afetivamente, Fernanda não tem
força para exigir aquilo que lhe falta. Nem agüenta viver em tão
grande carência. Então "rouba" seu alimento, sem fazer vítimas, sem
deixar rastros. O equilíbrio que a vida doméstica representa para ela
é preservado. Ela consegue viver a paixão em fantasia, sem ser
arrastada.
— Aos poucos a coisa vai diminuindo. Sem que eu perceba, outros
pensamentos começam a ocupar meus devaneios eróticos. O
homem parece afastar-se. Eu fico quase triste, quando me dou
conta, porque no fundo aquele amor todo era bom. Mas também me
sinto aliviada, descansada. Enfim, mais uma vez, escapei.
Uma sensação de alívio acompanha o encerramento das crises
fantasiosas de Fernanda. Ela aliviou sua tensão. Ainda que de forma
irreal, ela soltou sua sensualidade. E escapou de simplesmente
apagar-se ao lado do marido, ou de explodir, vítima de suas
pressões internas. Povoar suas noites de sexo e erotismo faz dela
pelo menos uma mulher viva, palpitante. E ela emerge da crise
pacificada.
À medida que pensamentos mais prosaicos vão se sobrepondo ao
objeto da sua paixão, ela percebe que perdeu um amante, mas
reforça a certeza de que pode vir a ter outro e mais outro, sem
destruir o equilíbrio da casa, sem sucumbir a si mesma.

As fantasias de Fernanda, Márcia e Dulce são basicamente iguais;


um homem diferente em sua vida, um amante, uma outra vivência.
E para as três, o homem em si não tem muita importância, o que
conta é o papel que desempenha em seus devaneios. Diferentes,
porém, são as motivações que as levam a "construir" esses amantes.
Nenhuma das três decidiu de repente inventar uma linda fantasia
de traição para se gratificar. Nenhuma das três escolheu essa
solução. A fantasia se impôs, criada por forças internas muito mais
profundas do que elas sequer suspeitam. E por ter motivações tão
profundas tornou-se indispensável.
A fantasia de trair não é solução ideal, assim como não o são em
geral as fantasias. Melhor seria certamente para Dulce rever sua
relação com o marido e sua própria relação com a vida, para livrar-
se de culpas que não tem e parar de viver à sombra do medo e da
sujeição. Sem necessidade de vingança perderia a necessidade de
falsos amantes e poderia reconquistar a realidade.
Para Márcia também haveria outra solução. A de encarar
diretamente seus problemas de afetividade e lutar para soltá-la de
forma mais direta, em vez de canalizá-la ambiguamente através de
suas fantasias de traição.
E Fernanda talvez devesse procurar sua gratificação em outra área,
a das realizações pessoais, do trabalho, da criação, da atividade.
Além de se gratificar, estaria reforçando seu ego, podendo um dia
questionar seu casamento de forma mais objetiva.
Nem sempre, porém, as soluções melhores são possíveis. E ao
reconhecer o valor das fantasias de trair, cumpre fazer a ressalva:
elas serão tanto mais úteis quanto forem passageiras, estágio
intermediário para compreensões mais definitivas.

O que há por trás da rivalidade feminina


Se vou a uma festa e subitamente percebo que a minha melhor
amiga está muito mais elegante do que eu, é provável que tenha um
estremecimento. As mulheres — dizem os homens — não se vestem
para os homens, mas para as outras mulheres.
É isto então que configura a famosa rivalidade? Uma comparação
de guarda-roupas?
Ou seria a disputa pelo homem, cena como aquela já quase antiga
de duas mulheres pegando-se de bolsadas na Av. Rio Branco e o
escritor Rosário Fusco no meio dizendo: "Vocês não têm vergonha,
duas mulheres brigando por causa de um mulato feio que nem eu?"
Ou seria a receita do bolo escamoteada, para evitar confrontações?
O guarda-roupa, o homem, a cozinha. Em volta deste triângulo as
mulheres supostamente se digladiam, sempre prontas ao bote
traiçoeiro, sempre cheias de desconfiança, melhores inimigas de si.
Este é o mito que nos acostumamos a aceitar.
Mas há uma realidade. E para chegar a ela vamos primeiro mexer
com palavras.
Não é em volta do triângulo que a disputa feminina se realiza. É
dentro dele, contida por seus estreitíssimos lados. E justamente por
isso, não se trata de rivalidade, trata-se de competição limitada.
Rivalizar e competir não soam como palavras gêmeas, embora o
sejam. A primeira adquiriu, através do seu uso, um ar mais rasteiro,
mais agressivo, até mais pessoal. Rivaliza-se com determinada
pessoa, não de forma generalizada. Já competir transformou-se em
algo quase nobre, em que, graças às próprias qualidades, se tenta
vencer não esta ou aquela pessoa exatamente, mas os obstáculos
que impedem a chegada aos primeiros lugares da vida.
E de modo muito evidente, nesta divisão dos significados, ficou
convencionado que os homens competem, enquanto as mulheres
rivalizam.

Stravinski ofereceu-lhe a partitura original de Le sacre du printemps,


Ravel dedicou-lhe A valsa, Cocteau usou-a como modelo para uma
de suas personagens, Proust tomou suas características emprestadas
para descrever Mme Verdu-rin; Toulouse-Lautrec, Renoir, Bonnard
e outros mestres do impressionismo a retrataram numerosas vezes.
Chamava-se Misia Sert, viveu na Belle Époque, e durante cerca de
quarenta anos foi amiga e protetora dos maiores artistas de Paris.
Após a primeira juventude, porém, Misia adquiriu o hábito peculiar
de atrair para seu círculo jovens mulheres, para em seguida,
delicadamente, tomar-lhes os homens. Até o dia em que o feitiço
virou contra o feiticeiro. Uma jovem mulher introduziu-se não só no
círculo de Misia, como em seu próprio quarto, tomando-lhe o
marido, o elegante pintor José-María Sert.
Eis aí, para deleite dos cavalheiros, um caso histórico típico da
"rivalidade feminina".
Seria mesmo?
Misia viveu no século passado, mas seu exemplo nos serve
perfeitamente porque os elementos que o constituem continuam
praticamente imutados.
Hoje como ontem (ou melhor, hoje ainda mais do que ontem) somos
uma sociedade delirantemente competitiva. Estimula-se o avanço,
para estimular o consumo, para estimular a produção, para gerar
riquezas. Riquezas que serão repartidas entre os vencedores. Assim,
é preciso estar entre os primeiros, para ter os melhores salários, e é
preciso ter os melhores salários para ter as melhores coisas, e é
preciso ter as melhores coisas para que todos saibam que se está nos
primeiros lugares, fato que, automaticamente, nos levará a subir
cada vez mais, obtendo cada vez mais.
Este é o mecanismo que rege nossa sociedade. Este é portanto o
mecanismo para o qual somos orientados desde o início da nossa
formação.
Mas, hoje como ontem, a formação não é idêntica, e enquanto a
combatividade e a garra dos meninos é orientada para a conquista
do poder público, a das meninas é endereçada quase
exclusivamente para o poder doméstico.
Misia Sert era mulher. E como nossas avós, nossas mães e a maioria
de nós mesmas, foi educada para ser aquilo que hoje podemos
pomposamente chamar de executiva do lar, mas que continua
sendo a "prendas domésticas" de sempre. Competitiva, sim, mas
disputando o título de melhor mãe, santa esposa, rainha do
forno/fogão, estrela dos salões. Competitiva, sim, mas apenas no
âmbito de suas semelhantes.
Aos homens caberia concorrer pelo resto. O resto todo.
Misia Sert era brilhante. Estudava piano, pretendia ser concertista.
Mas aos vinte anos cumpriu seu dever social, e casou-se. Estava
encerrada a carreira nunca começada.
O marido trouxe para casa todo um mundo de artistas, escritores,
pintores, músicos, bailarinos, logo subjugados pelos encantos de
Misia. Mas os escritores escreviam, os pintores pintavam, os
músicos compunham, os bailarinos dançavam. E Misia encantava.
Porque era mulher. A ela só o papel de musa era permitido.
É assim que se fabrica uma "rival". Quando todos os campos estão
barrados e ser encantadora é a única forma de se afirmar, a
afirmação terá que ser feita às custas de outra mulher,
"encantadora" mais fraca. Foi o que fez Misia. É o que fazem até hoje
incontáveis mulheres. É do que vive o mito da rivalidade feminina.
E é o que eu chamo de "competição limitada".
Mudou muito o mundo, de Misia para cá?
Acelerou-se, industrializou-se. Mas vejamos, por exemplo, o que diz
a Professora Ecléa Bosi a respeito das mulheres operárias em seu
livro Cultura de massa e cultura popular — leituras operárias: "A mulher
é, na indústria, aquele operário designado como 'sem qualificação',
o que executa operações simples e repetidas que exigem apenas
atenção e coordenação motora. . . Sua remuneração é menor que a
do homem. . . As perspectivas de promoção são praticamente nulas
e o trabalho doméstico noturno impede que ganhem horas extras".
A modificação está em que a mulher passou a ter acesso ao campo
de trabalho. Mas o aprisionamento permanece, porque dentro do
trabalho criou-se um "espaço" para a mulher, pior e mal
remunerado, capaz de utilizar sua força de produção, mas estudado
de forma a impedir o florescimento da sua personalidade e seu
conseqüente avanço no "espaço" dos homens.
Como a elegante Misia da Belle Époque, também as nossas
operárias têm sua área de competição bem circunscrita. Ao lar, ao
berço, e, sobretudo, ao grupo feminino.
Este é o ponto fundamental. Enquanto os homens competem com o
todo social, exercendo sua combatividade entre produções de
petróleo, distribuições de mercados e verdades teológicas, as
mulheres, declaradas inferiores, foram virtualmente retiradas da
corrida. Cercadas num gueto de pensamento, restou-lhes apenas
competir entre si.
Hoje, se me preocupo com a roupa que minha amiga vai usar na
festa, o homem a meu lado sorri com bonomia da minha pequenez,
e minha excessiva preocupação com roupas vai juntar-se a todos os
conceitos de futilidade e de "rivalidade" que através dos séculos me
foram sendo atribuídos.
Esquece que a roupa foi o que ele, homem, me deixou como
preocupação transcendental. É um item da sedução. E a sedução é
uma das atribuições sociais mais importantes, minha e da minha
amiga. Ao me vestir para, teoricamente, seduzir os homens, é
forçoso que minha preocupação vá mais além e eu me volte para as
outras, as outras todas com as quais estou disputando o lugar de
sedutora-mor, o meu primeiro lugar.
"Rivalizar", entre mulheres, por uma receita de torta parece bastante
ridículo. "Competir", entre homens, por uma ínfima promoção
dentro de uma ínfima seção já não o parece tanto. A burocracia de
um escritório é mais importante que o paladar de uma sobremesa?
Provavelmente não. Mas a torta tem um caminho delimitado e
curto: por melhor que seja a banqueteira, jamais chegará à chefia do
país. Enquanto o escritório, mesmo o mais obscuro, é sempre elo da
longa corrente do poder que o homem se sente na possibilidade de
percorrer.

As mulheres — dizem os homens — não têm o sentido profundo da


amizade. As mulheres — dizem os homens — vivem se criticando
umas às outras. Não se pode confiar em mulher — dizem os
homens.
Mas aquilo que os homens dizem já não é mais a verdade divina, e
recebemos suas palavras com desconfiança.
As mulheres — digo eu que sou mulher — são esplêndidas amigas.
Rivalizam nas roupas, rivalizam nas receitas e, muito
saudavelmente, disputam os homens. Porque para a rivalidade
foram treinadas. Mas são solidárias entre si, e se ajudam e se
amparam. Quem durante séculos extraiu entre as pernas abertas das
mulheres seu fruto? Não foram os médicos, foram as parteiras,
mulheres ajudando mulheres em seu ofício de mulher. A quem
recorre a mulher em dificuldade, a moça grávida, a casada com mal
de amor, a mãe preocupada com seus filhos? A outra mulher, capaz
de entendê-la, capaz de viver com ela aquilo que os homens en-
globam, com algum desprezo, debaixo do rótulo "coisas de mulher".
Há sempre uma mulher ao lado de outra mulher, confidente,
ajudante, apoio fundamental num mundo que, certamente, não lhe
facilita as coisas.
As mulheres — digo eu que sou mulher — se criticam sim, porque a
crítica faz parte do processo de avaliação. Mas se admiram e se
estimulam mutuamente. Não é o homem quem louva uma
inteligência de mulher. Não é o homem quem a coloca acima de si
mesmo. Porque não é costume do colonizador estimar seu
colonizado. Mas são as mulheres que entre si se valorizam e se
prezam, sem vergonha de reconhecer as que são superiores.
E deve-se, muito, confiar em mulher — digo eu que como mulher
confio. Confiar na sua lealdade, tão ampla e generosa quanto
possível num ser humano. Confiar, por que não? na sua capacidade
de guardar segredos, tão denegrida; afinal, todos os grandes
segredos dos homens passam pelo silêncio protetor de suas
mulheres. E deve-se confiar em questões de amor. Há mulheres que
tomam os homens de outras, assim como há homens que tomam as
mulheres de outros. Mas na verdade ninguém toma ninguém. Há
trocas, porque as relações não são estáticas. Querer culpar as mu-
lheres por isso é colocar a maçã da tentação na sua mão, e
novamente declará-la artífice do Pecado Universal.
E deve-se, acima de tudo, confiar no seu potencial.
Este é o nosso trunfo, tão maior do que as rivalidades e as pequenas
vilezas que nos são atribuídas. O potencial que pouco a pouco se
evidencia derrubando as estreitas paredes do triângulo
lar/marido/filhos. O potencial que, juntas, estamos usando como
aríete para sair do gueto.
Juntas. Eis aí a palavra que desfaz o mito da nossa rivalidade. Se
não estivéssemos juntas, se fôssemos realmente rivais, nenhuma de
nossas vitórias teria sido possível, e não estaríamos hoje tão cheias
de planos e de esperanças.
O mito da rivalidade parecia o golpe de mestre, porque além de nos
isolar ainda mais, nos jogava umas contra as outras. Dividir para
vencer. Mas os golpes falham e os mestres mudam. Agora, mestras
de nós mesmas, podemos a cada dia com mais segurança aplicar o
nosso golpe.
Um golpe de união e de entendimento, capaz de demonstrar que
estamos sim dispostas à rivalidade, mas àquela rivalidade mais
ampla que se chama competir. Um golpe chamado irmandade.
Único suficientemente forte para nos tirar das pequenas rivalidades,
e lançar a nossa combatividade na grande corrente comum.

Aborto sem aforismos


Duas coisas me pegam pelo pé quando o assunto do aborto aflora: a
indignação e a piedade. Quando uma empregada doméstica vem
me contar que fez um aborto de puro terror, sem nem saber se
realmente estava grávida, aceitando o que o "médico" lhe disse, sem
comprovação de exames, sem sequer tempo hábil para que ela
tivesse certeza da gravidez. Quando ela me diz que o homem
simplesmente lhe apalpou o ventre e, com apenas uma semana de
atraso na menstruação, lhe diagnosticou a gravidez. Quando ela
conta que se endividou com as amigas para juntar o dinheiro, e foi
lá, tomou a anestesia, acordou e foi para casa, sem san-gração nem
nada. Quando ela me diz que tem quase certeza de que foi
enganada, não estava grávida, nem lhe fizeram aborto nenhum, mas
bem que lhe tomaram o dinheiro. E quando ela diz que na hora
estava apavorada demais para perceber, apavorada não do aborto
em si, mas de estar grávida e ter que enfrentar outro filho. Quando
ela me conta isso com a trágica naturalidade de quem não tem
escolha, eu tenho vontade de chorar e de gritar. Tenho amor, pena e
uma raiva infinita.
A não-escolha é a ferida que nossa bem-pensante sociedade não
quer aceitar. Que escamoteia atrás de nobres preceitos morais. Mas
para a qual não abre saída.
A grande maioria das mulheres a quem a lei antiaborto atinge não
tem condição de escolher de outra forma. Mas nem se criam
condições, nem se permite que elas sigam o único rumo que lhes
resta.
Anticoncepcionais? Ora, num país analfabeto e miserável como o
nosso! Anticoncepcional tomo eu, tomam minhas amigas ricas,
instruídas, sabedoras. E assim mesmo, se não for pílula, correm o
risco de engravidar. E aí elas também poderão não ter escolha.
Como não a teve a amiga minha que engravidou apesar do Diu.
Ela tem dinheiro, tem marido, tem disponibilidade, ela até teria
gostado de ter mais um filho. Mas o Diu estava lá, plantadão no
útero dela, e ela teve medo. O médico foi claro, pelas estatísticas, o
risco de ter uma criança defeituosa era pequeno, mínimo. Mas
existia. Ele disse, "eu como médico não posso te sugerir para fazer
um aborto, mas como amigo é isso mesmo que te sugiro, acho que
uma presença estranha no útero não é coisa boa para feto nenhum".
Aí fica muito bonito dizer que a gente aceita a vontade do destino e
deixa vir a criança que seja torta, que seja abobada, que seja o que
for. Muito bonito, mas um crime tão grande quanto não deixá-la vir,
porque ela vai trazer dor e desespero à nossa vida, ela vai
prejudicar os outros filhos que a gente já tem, e afinal, que universo
é esse que a gente daria a uma criança tão privada?
Mas abortar é crime. E isso está cravado na nossa alma. Minha
amiga abortou sentindo-se uma criminosa, esmagada de culpa. Foi
para a sala explicando-se com as enfermeiras, porque não
agüentava a pressão em cima dela. E chorou e chorou, e durante
semanas ficou em depressão.
Eu me pergunto quem afinal cometeu o crime, se ela ou a sociedade
que condena seu gesto. Ou melhor, nem me pergunto, porque já
tenho a resposta.
Uma mistura de cachaça, pólvora, chumbo, fel de boi, sal e melão.
Esta é, exemplo entre tantos, uma receita para praticar abortos. Foi
preparada por Teresa Marques de Moura, grávida, que a deixou no
seu quarto. E foi ingerida, aparentemente por descuido, por seis
crianças. As seis morreram.
"Pois não era isso o que ela queria, matar crianças?", ataca rasteiro a
voz conservadora. E aí a gente teria que entrar de novo naquela
conversa interminável sobre a alma do feto, e quando ela se instala,
e se tem mesmo alma, ou se é simplesmente questão de vida, e se a
simples junção dos gâmetas já é vida, e a partir de quantos minutos
exatos da fecundação. Uma conversa bonita, não há dúvida,
edificante até na nossa espécie que tão desesperadamente tenta
responder às perguntas de onde vem e para onde vai. Uma
conversa que sem dúvida me tocaria, não tivesse eu a realidade pela
frente.
A realidade são mais de três milhões de abortos por ano no Brasil. O
que equivale a dez por cento dos abortos realizados no mundo
inteiro. E nos dá um recorde nada invejável: somos o segundo país
do mundo em número de abortos, batidos somente pelo Japão.
Desta estatística ninguém se gaba.
Devemos crer que a lei — que prevê para a mulher pena de reclusão
de dois a seis anos por "provocar aborto em si mesma ou consentir
que outrem lho provoque" — contém o número de abortos do país?
Mas os números de que dispomos não são nem a realidade total,
porque é impossível ter dados precisos sobre uma atividade ilegal.
E assim mesmo equivalem ao número de nascimentos. Podemos,
em sã consciência, acreditar que, não houvesse a lei, elas abortariam
mais?
Mas os dados nos mostram que isso não aconteceu nos países onde
o aborto foi legalizado. Na Inglaterra, por exemplo, no ano de 1974
houve uma redução de catorze por cento dos casos. E o próprio
Ronald Reagan quando se diz contrário ao aborto está falseando as
cartas para agradar ao público conservador que o elegeu. Qual é a
justificativa de Reagan? Que quando governador da Califórnia
deixou-se convencer pelos argumentos feministas e legalizou o
aborto. Mas logo percebeu ter cometido um erro, pois a taxa de
abortos em seu estado aumentou sensivelmente.
Mas é óbvio que a taxa tinha que aumentar. O que pensa ele, que
por ser proibido as mulheres deixavam de abortar? Verificou por
acaso a taxa de nascimentos? As mulheres da Califórnia iam abortar
em outros Estados, onde a lei o permitisse, como antes das
legalizações estaduais as americanas abortavam no México. A
migração do aborto é velha conhecida das mulheres. Quando a
legalização ainda não havia chegado à França e à Itália, existiam
charters regulares do aborto, para a Holanda, e até excursões orga-
nizadas só para isso, com direito, depois de feito o serviço, a um
passeio de barco pelos canais de Amsterdam.
As taxas de aborto aumentam depois da legalização pela simples
razão que o que era escondido passa a ser conhecido. Não há mais
necessidade de recorrer à agulha de tricô, à intoxicação voluntária, à
raspagem tão freqüentemente mutiladora. Vai-se a um médico, a
um hospital, recebe-se tratamento com assepsia, recebe-se
humanidade.

Na França, quando ainda as feministas lutavam pela legalização,


uma jornalista escreveu o Livro negro do aborto. Na verdade não foi
ela que o escreveu. O livro foi escrito por todas as mulheres da
França que, solicitadas, enviaram cartas relatando sua experiência
do aborto. A força desses depoimentos era tamanha, que o livro foi
proibido. E mesmo quando, mais tarde, pôde circular, foi sem que
lhe fosse permitido fazer publicidade, debaixo do silêncio, como
tudo o que se relaciona com o aborto.
Acho portanto que a nossa experiência tem que ser contada. Que
devemos aproveitar todo espaço disponível para relatar nosso
sofrimento e quebrar a barreira de silêncio que nos foi imposta.
Assim poderemos aos poucos desfazer a capa de vergonha e
humilhação que tão profundamente agrava o gesto de abortar.
Eu abortei aos dezoito anos, num tempo em que a pílula não existia.
Era estudante. Não tinha mãe, tinha um pai severíssimo, para mim
tremendamente assustador. E um irmão. Mais ninguém. Meu
namorado era artista, sem um tostão, sem profissão definida, sem
meios de assumir uma criança ou uma família. Minha família, o
pouco de família que eu tinha, poderia eventualmente ter me
ajudado. Bastaria que fosse realmente uma família, com diálogo,
compreensão. Nem pensei em contar para meu pai. Sua reação para
mim se configurava como puro terror. Me mataria, me expulsaria
de casa, coisas terríveis aconteceriam. Abortei porque não vi outra
saída. Eu queria casar com o namorado, ficar com a criança. Ele não
quis de modo algum. Ele quis que eu abortasse. Eu não tive nada
para opor à sua vontade.
Sofri desesperadamente nas semanas que antecederam a decisão e o
gesto. Apelei para a religião, e a religião não me deu socorro. Me vi
assassina, e nada em mim me impelia a matar. Eu o vivi assim como
me haviam dito que era, um assassinato.
Não tive amiga com quem falar, outra mulher a quem me socorrer
ou identificar. Eu estava só, e tive que dar o salto.
Era um consultório no centro da cidade. A médica me avisou que eu
não poderia gritar, porque havia pessoas nos escritórios ao lado.
Inseriu um dilatador e me mandou voltar no dia seguinte. Voltamos
juntos, eu e ele. Mas ele ficava na sala de espera, e quem ia abortar
era eu, sozinha.
Abortei sem anestesia. Mas o desespero da minha cabeça era tanto,
eu estava tão atada em sofrimento, que não lembro de ter sentido
dor. E certamente não gritei. Senti que ela me raspava por dentro,
enquanto eu ia ficando fria, fria no corpo inteiro. E a ouvi pedir um
copo "para recolher o material" à mulher que assistia, uma mulher
com jeito e roupa de faxineira. Aí a médica levantou o copo no alto.
Um copo cheio de sangue.
Nem de cama pude ficar depois, porque meu pai não podia
desconfiar. Apanhei uma inflamação, tive febre, tive medo. Depois
me recuperei. Mas levei anos para sarar minha alma. Anos para
perceber que isso não precisaria ter acontecido comigo, sobretudo
não dessa forma brutal.

A revista Nova fez uma pesquisa entrevistando três mil e seiscentas


mulheres, e a maioria declarou-se favorável à legalização do aborto.
A revista Manchete fez uma pesquisa entrevistando duzentas
mulheres, e a maioria foi favorável à legalização do aborto. Mas
basta que se fale mais solidamente nesse assunto, para que a nação
ou os que a representam se levantem indignados. É justo. Os
representantes da nação não abortam. Quem aborta são as
mulheres.
Os argumentos dos que não abortam são lógicos, de uma lógica que
simplesmente ignora a verdade.
Um dos argumentos, por exemplo, que tenho ouvido cada vez que
faço uma conferência é o seguinte: e se houvesse legalização, como é
que ia ser? O Brasil tem uma assistência médica insuficiente, não
tem leitos para atender aos doentes, como é que ia atender às
mulheres?
Este argumento parte do ponto de vista de que gravidez indesejada
não é coisa grave, para a qual valha a pena deslocar médicos e
ocupar leitos hospitalares. Mais grave é, por exemplo, um braço
quebrado, normalmente atendido em qualquer pronto-socorro. Mas
de braço quebrado ninguém morre. E de aborto feito por pessoas
incompetentes e sem assepsia morrem anualmente muitas
mulheres. Um grupo de estudos criado em 1957 pelo então
secretário da Saúde chegou à conclusão de que nos anos 1962/63/64
o aborto já representava onze e dois décimos por cento da
mortalidade materna.
Esse argumento esquece outra coisa, importantíssima: que grande
parte dos abortos, se não é feita, pelo menos é finalizada pelos
hospitais do Estado, e, portanto, pela assistência pública. Pois de
cada dez mulheres que vão ao Pronto-Socorro de Obstetrícia do
Hospital das Clínicas, em São Paulo, quatro entram com problemas
provocados por abortos malfeitos. No ano de 1977, os hospitais do
INAMPS atenderam quinhentos mil casos de complicação por aborto.
E o aborto, que havia sido provocado sabe lá Deus em que
condições, deixando a mulher com hemorragia, com infecção, com
laceração do útero, é então finalizado no hospital, ocupando o
mesmo leito e o mesmo médico que teria ocupado desde o início se
houvesse legislação mais humana.
Os argumentos morais são igualmente lógicos. É justo, justíssimo
dizer que a criança tem o direito sagrado à vida. Eu também acho.
Mas acho mais. Que seria preciso demonstrar esse amor à criança,
fazendo com que o direito à vida tivesse seu real sentido. À vida,
que não é só nascer. É alimentar-se, crescer sem doenças, receber
afeto e educação. É ser respeitado como ser humano desde o início.
E qual é o argumento mais forte dos que se opõem à legalização?
Que legalizar o aborto seria legalizar um crime, legitimar e proteger
um assassinato.
Isso é retórica. A nossa sociedade não legaliza o crime, mas o abriga
com todos os confortos. Quantos donos de clínica de aborto estão
detidos nos presídios nacionais? Nenhum. No entanto há mais de
cem clínicas de abortos só no Rio de Janeiro. E não se incluem nisso
as "parteiras",da esquina, a mulher indicada pela vizinha, o homem
indicado pelo farmacêutico. Fazem-se nesse país dois abortos por
minuto. Com o calado consentimento de todos.
A França, a Itália, os Estados Unidos, o Japão, a Alemanha, a
Holanda, a China, a União Soviética, a Dinamarca têm aborto
legalizado. Seriam países imorais? Imoral é sessenta por cento da
humanidade? Então morais somos nós, junto com o Eire, o Haiti, o
Panamá, a Libéria, o Zaire, a Arábia Saudita, e o resto dos países
que formam os quarenta por cento?
"A legislação que proíbe o aborto é discriminatória contra os
pobres", declarou o jurista Heleno Fragoso à revista Veja em
reportagem de 1980, por ocasião da prisão de duas moças, presas
após terem abortado na Clínica Ginecológica Jacarepaguá.
Quando uma colega minha ficou grávida, sem querer o filho, seu
ginecologista indicou-lhe três possibilidades con-fortabilíssimas, e
três preços. Poderia mesmo abortar por sucção, se preferisse. Ela
preferiu. Foi atendida numa clínica limpa, por um médico que lhe
explicou todo o processo. Pagou o que lhe pediram. E não era
pouco.
Quando a favelada fica grávida, e mais razões tem para não querer
seu filho, o tratamento não é tão delicado. Ela procurará o meio
mais barato, porque qualquer preço que lhe cobrarem estará acima
das suas posses. Possivelmente tentará antes abortar sozinha,
pulando de cima de uma mesa com os pés juntos para tentar
descolar o feto, tomando poções intoxicantes, para envenená-lo,
pedindo à amiga que a ajude com um pedaço de arame ou uma
colher de cabo comprido. Ela preferirá atentar contra sua própria
vida várias vezes, antes de pagar alguém para que o faça.
E são justamente as mais pobres, desconhecedoras dos sistemas de
contracepção, sem meios para obtê-los, sem educação para controlá-
los, as que mais abortam.
Entre 1973 e 75, Malvina de Oliveira Ramos Netto, professora de
enfermagem, fez uma pesquisa com cento e vinte e quatro mulheres
de Osasco, na Grande São Paulo. Apenas três mulheres não haviam
abortado nunca. Trinta por cento tinham engravidado de cinco a
sete vezes. Mas somente vinte e quatro por cento tinham três ou
quatro filhos. Trinta e cinco por cento tinham engravidado três a
quatro vezes. Porém trinta e oito por cento tinham somente um
filho. E isso, num município industrial, perto da maior capital do
país. Do resto, das favelas, dos alagados, da zona rural, para
tranqüilidade das pessoas cheias de moral, não há estatística.
Eu também acho que deveríamos impedir o aborto. Porque sei o
quanto custa às mulheres em sofrimento e saúde. Mas impedi-lo
não através de leis, ameaças, estigma. O aborto deveria ser
impedido antes da concepção. Através de educação, e não somente
educação sexual. Através de orientação, de acesso aos
anticoncepcionais, de assistência médica. O aborto teria que ser
evitado exatamente da maneira oposta à qual se finge fazê-lo.
Trazendo-o para o claro, falando dele abertamente, reconhecendo
sua realidade.
Afinal, ou bem o ventre da mulher pertence exclusivamente à
mulher, e ela tem o direito de decidir o que fazer com ele, ou bem,
como receptáculo dos filhos da sociedade, pertence à sociedade, é
um bem comum, que a sociedade tem a obrigação de proteger; ou
bem a sociedade aceita e zela pelos filhos da mulher ou bem a
sociedade permite que ela se desfaça deles. Com leis que a protejam,
e sem grandes farisaísmos.

Quando a gente ama, mas nem tanto


Amor tem que ser igual a facada. Cravado no coração, dilacerando o
peito, inundando corpo e alma de sangue. Uma coisa boa, mas que
dói de ansiedade, que a gente sofre e se deleita. Um êxtase, enfim. E
o significado da vida.
Assim eu pensava aos quinze anos, e continuei pensando aos
dezoito. Depois fui mudando de pensar. Amor, aprendi, é vário,
como são várias as pessoas. Há com dor ou sem, com suspense ou
com tranqüilidade, arrasador ou construtivo. E ao lado das paixões
mais pirotécnicas correm muitos amores mansos, suaves, que, sem
estrondo de cachoeira, vão fertilizando as margens.
Mulheres, porém, conheço muitas que não sabem distinguir.
Sonham com a grande paixão, o amor-facada capaz de arrevesar o
ritmo da vida. Só este conta. Deparando com amores mais discretos,
perfeitamente compatíveis às vezes com suas discretas
personalidades, podem até aceitá-los. Mas não considerá-los Amor.
Acompanhadas, apascentadas mesmo, guardarão sempre na alma a
saudade daquilo que não apareceu, a esperança de ainda viver um
dia seu terceiro ato de Dama das Camélias.
Digo, e mostro. De tantas, três contam sua história. História de
amores que não parecem satisfazê-las, que elas consideram
pequenos, mornos amores.

"Gostar do meu namorado, eu gosto. Mas não é um negócio. . .


daqueles! Gosto, pronto. Só isso. Gosto um pouco.
"Como é que eu sei? Ora, que pergunta. . . Sei, porque se ele
demora, por exemplo, eu não fico tão aflita, não olho o relógio, não
fico andando pelos cantos. Fico meio chateada, achando que ele se
atrasou, mas não me desespero.
"Eu sei que isso não é razão para achar que amo pouco. Mas é que
eu já amei antes, de verdade, e eu sei como é que é. É muito
diferente. Da outra vez, parecia que o mundo ia se acabar. E eu com
ele.
"Eu tinha catorze anos. É. . . só. . . Conheci ele no curso de inglês.
Mas era de aula mais adiantada, horários desencontrados. Quando
eu chegava ele estava saindo. Aí, um dia ele puxou papo, eu me
atrasei para entrar. Depois todo dia eu chegava mais cedo, ficava
esperando, aquele nervoso, aquela paixão, até ele aparecer na porta,
os livros na mão. Era lindo! Cheguei até a matar aula algumas
vezes. A gente ia passear na rua, ficava andando até a hora da
minha aula ter que acabar, aí tinha que ir pra casa. Mas, em casa, em
todo lugar só ficava pensando nele, escrevia o nome dele nos
cadernos, em tudo quanto é pedacinho de papel. A gente só se
beijou umas duas vezes, acho que ele era muito tímido. Mas eu
fiquei tão. . . sei lá, parecia que eu ia morrer.
"É por isso que eu digo que com meu namorado agora é diferente.
Eu gosto quando ele me beija, então vou dizer que não. Mas não
acho que vou morrer. É bom, mas não é nenhum tremor de terra.
"E tem também que eu não fico pensando nele o dia inteiro, feito
pensava no outro. Agora vou levando a minha vida, pensando as
coisas que tenho que fazer, no trabalho, em bobagens. Penso nele
também, é claro, mas não é o tempo todo. E não é daquele jeito.
"Que jeito? Ah, meu Deus! mais. . . mais. . . aflito, não, mais
apaixonado mesmo, mais enciumado, mais ansioso. . . eu queria ver,
estar junto o tempo todo. . . ele pegava na minha mão, era aquela
coisa. . . pensava em casar, em fugir, até em sermos atropelados
juntos, eu pensei.
"Se meu namorado quiser casar, acho que quero sim. Eu gosto dele,
mas preferia gostar feito gostei do outro, porque aquilo sim é que
era paixão, paixão das grandes!"
Aí, com muito cuidado, com muita delicadeza, a gente tem que
tentar mostrar a Maria Clara o que está realmente acontecendo com
ela.
Ela tem vinte e três anos agora, trabalha como secretária numa
firma de manutenção de edifícios. Conhece seu atual namorado há
um ano, e há oito meses se namoram, se vêem diariamente, se
telefonam com freqüência, as famílias dos dois estão a par e gostam
da relação. O quadro, portanto, é completamente diferente daquele
em que Maria Clara descreve sua "grande paixão". A paixão de uma
adolescente em seu primeiro contato com o amor, ainda envolto em
segredo — em casa ninguém podia saber de nada. Um amor cheio
de dúvidas, porque ela, tímida, mal ousava falar dos seus
sentimentos, e limitou-se a beijá-lo duas vezes. Cheio de riscos, pois
era arriscado matar aula, e arriscado passear nas ruas, onde
poderiam ser vistos. Um amor, sobretudo, que era muito mais do
que apenas o amor do outro, pois era a chave para o mundo da
sexualidade, o mundo da vida adulta, o futuro todo pela frente.
Isso, Maria Clara não sabe. Agarrou-se àquela lembrança agradável,
romântica, e não consegue encaixá-la na realidade. Não percebe que
não está mais nem em idade nem em condições de pensar no
namorado o dia todo, pois durante o dia forçosamente tem que
pensar no trabalho, nas exigências de uma vida adulta com suas
responsabilidades. Não vê que, se não fica desesperada com os
atrasos do namorado, é porque sabe que ele virá, que há uma
relação sólida entre os dois. Não vê, enfim, que embora lhe pareça
morno, este pode ser um amor muito mais completo do que aquele
esboço de amor tão ardente.

"Fico até sem jeito de falar, porque ele é muito bom para mim, ele
não merece. Mas até pra ele eu já disse, e ele diz que não se importa,
que quer casar assim mesmo, que o amor cresce depois.
"Tivemos dois anos de namoro e são dois e meio de noivado. No
começo eu achava que gostava dele, que ia gostar mais. Mas não
gostei. Acho até, Deus me perdoe, que fiquei gostando menos. Quer
dizer, menos exatamente não, mas diferente, como se gosta de
parente, com carinho, com ternura, mas sem paixão. Eu quero bem a
ele, não queria que nada de ruim lhe acontecesse, às vezes até penso
que caso com ele por isso, para não magoar ele agora que já
aprontou tudo, até apartamento comprou.
"Meu medo é um dia aparecer para mim Um grande amor.
Daqueles violentos, que a gente não segura. Aí, eu não sei o que
faço. Tenho medo de perder a cabeça, de largar tudo, casa, marido,
tudo! Eu não sei se ia conseguir me segurar. E mesmo que
conseguisse, ia sofrer.
"Meu noivo me dá muita segurança. Com ele sei que estou
garantida, que ele vai cuidar de mim, ser um bom pai para nossos
filhos. Ele é sério, direito, trabalhador, nunca vai ser ruim para mim.
Disso eu tenho certeza. Todas as minhas amigas me invejam ele,
acham que é o tipo de marido que a gente pede a Deus, Eu também
acho. Só tem que eu queria gostar mais dele.
"Sabe o que é?, eu me sinto como se tivesse um buraco na minha
vida, uma coisa faltando. . . como se eu não tivesse, sei lá, nunca
comido sorvete, uma coisa que todo mundo conhece menos eu, que
todo mundo fala, só eu fico ouvindo, que parece que acontece com
todo mundo, menos comigo. Eu nunca amei de verdade. Eu acho
que nunca mesmo. Se tivesse amado eu saberia, não saberia? A
gente não tem dúvidas quando ama, tem? Pois é, isso é que me põe
angustiada. Acho até que eu poderia viver feliz com meu noivo se
não tivesse esse pensamento na minha cabeça me consumindo.
"Fui falar isso uma vez com a minha mãe, ela me disse que era
bobagem, que eu estava vendo muita novela, que esses amores
assim como eu queria são coisas de romance, de livro, que
casamento não precisa de nada disso para ser bom. Eu sei que se eu
quisesse romper com meu noivo ela nunca ia me perdoar, ela não ia
entender, ninguém ia, nem ele."
E para Silvinha, o que é que a gente diz? Que ela está certa? Que ela
está errada? Este amor manso, "de parente", que ela sente pelo
noivo não parece ser muita coisa, mas já é alguma coisa. E tem
gente, provavelmente a mãe dela, que se contenta com alguma
coisa, mas nós somos mais exigentes. Então, no problema de
Silvinha, vamos procurar um "rabo de fora". Quando as situações
parecem meio insolúveis, há sempre um detalhe qualquer que nos
ajuda a ver outros lados da história.
Nas palavras de Silvinha há realmente um detalhe curioso. Ela
nunca amou. Ora, não se trata de uma menina, Silvinha tem vinte e
cinco anos, sempre morou em cidade grande, tem uma família
numerosa, estudava, conhece uma porção de gente. Oportunidades
de encontrar homens interessantes não lhe faltaram, nem lhe faltam.
Como, então, nenhum despertou amor nela? E por que, entre tantos
que lhe eram indiferentes, escolheu este noivo?
Acho que é por aí que a gente poderia talvez entender este morno
amor. Um amor que não queima, que não oferece riscos, que não
exige nada. E que recebe tudo em troca. Um amor, afinal de contas,
muito conveniente. Pois o noivo, mesmo sabendo-se pouco amado,
dispõe-se a ser bom marido e bom pai, compra apartamento,
providencia 'tudo, e ama pelos dois.
Fica porém para Silvinha o desejo de um grande amor. E aí talvez a
gente tenha mais um "rabo de fora". Por que, tendo-se proibido um
grande amor até agora, ela receia tê-lo depois? Talvez por temer
que, garantida finalmente na vida, garantida a segurança, garantido
um ser amante a seu serviço, as suas defesas se enfraqueçam e ela se
deixe "escapar" finalmente um amor de verdade.
O que surpreendentemente parece se esboçar é que aquele morno
amor de que Silvinha se queixa é na verdade exatamente o morno
amor que ela quer, e que determinadamente procurou.

"Ainda não perdi as esperanças. E olha que já tive namorados! E


quantos! Mas o amor de A maiúsculo, esse ainda não apareceu.
"Por isso é que não casei. Para casar com um amor mais ou menos,
água morna, prefiro ficar solteira.
"No princípio, quando conheço um rapaz, quando começo o
namoro, acho sempre que vai dar certo, que essa vez é a boa. Depois
percebo que ele não é aquilo que eu queria, não é o homem dos
meus sonhos. E vou desamando ele. Mais um pouco, e mando ele
andar, desmancho tudo, porque não acho certo ficar namorando
alguém que eu sei que não gosto, que não quero pra mim. E mesmo
porque quero estar livre e solta para o caso de outro amor aparecer.
"Às vezes fico com medo do grande amor não aparecer. Fico
assustada, pensando que posso acabar sozinha, sem ninguém. Mas
essas coisas, esse grande amor, não é a gente quem faz, não é
mesmo? Tem mais é que aparecer. E quando ele vier eu estou
pronta.
"Dos namorados que tive gostei de todos, é claro, eu não ia namorar
sem gostar. Mas gostei mais ou menos, pouco. Sofro um pouco na
hora de acabar, também, porque a gente sempre sofre. Mas não me
descabelo. É tudo assim, mais ou menos. Pouco amor, pouca dor,
pouca alegria, pouco tudo.
"As pessoas dizem que eu sou muito exigente, que quero demais.
Vai ver, sou mesmo. Mas não é pecado querer o melhor pra gente,
é? E eu quero mesmo o melhor. Por isso fico de olhos bem abertos,
para não me deixar enganar por qualquer amorzinho menor que
aparece. Ainda não casei, é verdade, mas casar não é tudo. Tudo
para mim é um amor maravilhoso, daqueles que a gente só encontra
um na vida, e que vem para ficar."
Elonice, Elonice, sabe lá Deus quantos amores maravilhosos você já
deixou escapar nesses anos todos! Isso a gente tem vontade de dizer
para essa moça nem tão moça, que com seus trinta e quatro anos vai
deixando o tempo passar e descartando oportunidades, à espera de
que um grande amor lhe caia no colo.
Um grande amor, justamente ao contrário do que Elonice pensa, se
faz, se constrói. E ao que tudo indica ela já teve nas mãos excelente
matéria-prima. Bastava olhar para os subseqüentes namorados
como algo a ser trabalhado, ao invés de procurar unicamente o
produto pronto e acabado. Para Elonice, amor tem que vir
embrulhado para presente, com laço vermelho em cima. Se não for
assim, não é amor. Os pequenos amores que pousaram na sua vida,
que tentaram carinhosamente fazer ninho, não tiveram nenhuma
chance. Ela os considerou insuficientes e os descartou. É possível
que alguns deles fossem realmente mornos amores, incapazes de
jamais alcançar temperaturas mais altas. Mas é muitíssimo provável
que alguns estivessem apenas implumes, que fossem esboços de
amor à procura de seu desenho definitivo. Teria sido preciso,
porém, desenhá-los juntos.
E erra ainda mais Elonice quando diz que, na hora em que o grande
amor aparecer, ela estará pronta. Como saberá que é o grande amor,
se nunca olhou de perto amor nenhum? E como lidar com ele, se
sempre se esquivou aos treinos verdadeiros? Se o grande amor vier
(quem sabe se já não veio), o mais provável é que passe
despercebido e vá juntar-se aos outros na vala comum.

Aí está como três mulheres, três entre tantas, vivem meio tristonhas,
sem olhar muito para o lado, mas perscrutando o horizonte
ansiosamente, para ver se desponta ao longe o amor avassalador.
Querem o êxtase de Santa Teresa d'Ávila, vida e morte, a
iluminação. Esquecem que mesmo os santos, os abençoados, não
vêm andando distraidamente pelo claustro e, de repente, catrapum!,
lhes cai um êxtase em cima. Eles batalham a vida inteira para tê-lo,
jejuam, oram, se flagelam, e sobretudo amam, amam a natureza, o
próximo, o distante, amam tentando fortalecer seu amor a Deus,
para alcançar enfim a grande centelha. Como atletas, os santos
treinam.
Podem até não ganhar a olimpíada a que se propõem, mas estarão
sempre adiante dos outros.
O amor não é um privilégio. É uma escolha. Existem pessoas que
fazem tudo apaixonadamente, e nos dão a impressão de tropeçar
em amores apocalípticos. É só impressão. Na verdade elas não
tropeçam, procuram. Não de lanterna na mão, mas através de seu
próprio modo de viver, do arrebatamento com que se entregam a
tudo. Madame Bovary tinha pelo marido um morno amor e eis que
de repente uma paixão transformou sua vida. Foi por acaso?
Absolutamente. Ela era uma apaixonada vocacional, ardia de paixão
pela vida, a tal ponto que não suportava seu meio, queria mais de
tudo. E com essa ardência fabricou sua paixão. A Dama das
Camélias, outra grande amante, nunca tinha realmente amado até
encontrar Armand Duval. Caiu-lhe esse amor no colo? De modo
algum. Ela amava ardentemente a vida, o luxo, as jóias, o dinheiro.
Ela amava os homens pelo que eles podiam lhe dar. E quando teve
tudo, depois de treinar bastante em pequenos amores com seus
inúmeros amantes, deu a si mesma a totalidade por Armand.
Penso no amor. O amor que tenho por meu homem é acaso
diferente daquele que súbito me inspira a árvore que brota diante
da minha janela? Há o orgasmo, certo, e o orgasmo é vida e morte.
Não tenho orgasmo olhando para a árvore. Mas o orgasmo é físico,
acontece fisicamente, e eu apenas o enriqueço com o amor que
tenho pelo homem. E o enriqueço também com o amor que tenho
pela árvore.
Não quero complicar. Tento dizer que o amor é um só, aproximação
de ternura que nos liga a todas as coisas. E que o amor que sentimos
de repente voltado para uma só pessoa é resultado desse nosso
amor global.
Mas nós, ao contrário, somos criados na divisão do amor. Tudo bem
parceladinho, tudo ordenadamente posto em seus respectivos
escaninhos, com a intensidade já programada. Uma mulher deve
amar acima de tudo, e com intensidade nem comparável ao resto, o
seu homem. Isto, até a chegada dos filhos. Quando então deverá
amar os filhos mais do que o homem, e até mesmo amar o
fenômeno família mais dó que o próprio marido. A um homem
pede-se que ame o trabalho, ou o sucesso, acima de todas as coisas.
Tudo aparentemente estanque; nossa sociedade não se interessa
pelos vasos comunicantes do amor.
Nem Maria Clara, nem Silvinha, nem Elonice. Elas que se queixam
de que o grande amor não aparece, lamentam-se da tepidez de seus
amores. Ignoram, porque não lhes foi dito, que o grande amor não
surge no horizonte, fenômeno milagroso e resgatador, mas vem de
dentro, do lado, ramificação do amor pela árvore, pelo gato da
vizinha e, por que não?, frutificação do morno amor pelo namorado.
Amar é bom. Amar mesmo soltamente, sem grudar o amor a um
objeto, feito rótulo. Nada é melhor do que um fio de amor
escorrendo sempre pelo ladrão. Dele, desse fio, desse amor, desse
todo, fazem-se belas paixões.
Um morno amor, portanto, é melhor que amor nenhum. É um
começo, o fio da meada, o que pode nos ensinar a amar mais e
melhor. O objeto desse morno amor de hoje pode não ser o mesmo
da grande paixão de amanhã. Mas será sempre uma parte de nosso
querer bem, desse amor que é nosso e que mais cresce ao encontrar
a pessoa adequada.

O nó que o diálogo dá
Há muito digo e ouço dizer que o diálogo é a chave mestra do
entendimento, solução para o encontro a dois. Mas só recentemente
venho percebendo com mais clareza que há momentos em que o
diálogo dá um nó, e simplesmente não vai adiante.
Percebê-lo já pode ser considerado uma vitória. Acho que, assim
como durante tanto tempo eu teimei em levar o diálogo adiante
mesmo estando ele empacado, da mesma forma a maioria das
pessoas insiste e insiste, forçando uma situação verbal sem se dar
conta de que esta chegou ao seu ponto máximo. O fracasso é depois
debitado ao interlocutor, que "não entende", que "não aceita", que
"não abre mão".
Se pararmos de culpar o interlocutor e nos ocuparmos mais
atentamente do diálogo, perceberemos que nesses casos ele não
funciona porque, a partir do nó, simplesmente deixou de existir.
Fechou-se o canal de comunicação, e a conversa — porque virou
apenas conversa — passou a ocorrer em mão única, ou melhor, em
duas mãos únicas, uma para cada participante. Não há
possibilidade de encontro dessas duas conversas estanques, para a
elaboração de uma fala comum.
Num diálogo espinhoso, presto uma atenção de bode. Falo, ouço,
mas se de repente percebo que, plaft, o pente não passa, retido pelo
nó, começo a tomar minhas medidas.
Que medidas são essas? Depende. Mas a primeira é tentar perceber,
em silêncio mesmo, estudando a mim e ao outro, o que foi que
provocou o embaraçamento daquilo que eu havia previsto mais
fluente.

Precisei fazer uma observação profissional, digamos talvez uma


crítica ao trabalho de um amigo. Ele tinha pedido opinião,
aparentemente estava pronto para recebê-la. Ainda assim preparei
bem o terreno antes de, muito mansamente, expor a minha opinião.
Muito mansamente, pras negas dela, é o que ele deve ter pensado.
Porque, passadas as preliminares, me dei conta de que o homem
estava polidamente hidrófobo. Sou burrinha, demorei a perceber.
No início confundi com veemência, entusiasmo pelo assunto. Aí
pareceu-me que ele não estava encadeando muito bem coisa com
coisa. E aí vi aquela veia do pescoço estufando. E aí ele foi pegar o
cigarro no cinzeiro, e a mão não conseguia ficar firme. E aí eu dei
uma silenciosa apitada e em silêncio disse pro meu time: hora de
recolher.
Ali não ia dar mais para dialogar coisa alguma. Era alisar as dobras,
deixar tudo mais ou menos arrumadinho, e mudar de assunto.
Mesmo porque, a partir daquele momento, eu já não estava tão
interessada na minha crítica "construtiva". Estava interessada em
saber em que ponto e por que o leite tinha começado a ferver sem
que eu percebesse sequer que tinha acendido o fósforo.
Tive que perguntar aos outros, assuntar. Me contaram: o homem
estava sensibilizado porque havia recebido dias antes críticas
severas de outras pessoas. Então, sem que me fosse dado saber, eu
tinha tocado num ponto nevrálgico, numa zona dolorida. Por mais
delicadamente que eu o fizesse, o homem saltaria. E é óbvio que, ao
me solicitar um parecer, ele o tinha feito esperando justamente uma
opinião favorável, capaz de refazê-lo das negativas que o haviam
magoado.
Um nó, portanto, pode ser criado praticamente sem a nossa
colaboração. É como pisar no caminho e de repente ter ali uma
armadilha. Não interessa se ela havia sido posta para pegar raposas.
O que conta é que o nosso pé está preso. E, embora nem sempre o
faça, sei que antes de começar um diálogo a gente deveria tentar
saber exatamente, ou pelo menos aproximadamente, onde pisa.

Em amor geralmente a gente sabe. E em amor é exatamente onde se


dá mais nó. Pudera! É em amor que a gente mais tenta dialogar,
metendo a mão nas camadas mais fundas. Mas em compensação o
amor nos dá também uma arma poderosa para desfazer os nós: o
conhecimento do interlocutor.
Conhecendo bem a pessoa com que falamos, fica pelo menos mais
fácil não só evitar pontos nevrálgicos como perceber os sintomas de
alteração. Desde que se preste atenção. E estes sintomas podem
funcionar para nós como sinais de alarma. Se o outro fica mais
agressivo, ou se está repentinamente suando, ou se começa a brincar
com um pedacinho de qualquer coisa, ou se a veia do pescoço, ou se
o tremor das mãos, ou se, então é hora de parar, porque o diálogo
acabou.
Ele pode estar acuado por excesso de dose. Tudo ia bem no
princípio, enquanto o assunto estava apenas começando a
esquentar, mas à medida em que foram se empilhando mais
argumentos e fatos, ele foi ficando sufocado, esmagado debaixo de
um excesso de argumentação. E qualquer um reage mal ao
esmagamento. Talvez os mesmos assuntos que estão sendo
condensados num único diálogo tivessem que ser fracionados em
vários diálogos mais leves, mais facilmente digeríveis.
Ou ele pode estar acuado pelo assunto. Se um assunto definitivo,
importantíssimo, é jogado de repente na mesa, o outro pode não
estar pronto para ele. Cada um tem seu tempo de maturação, e não
é porque estamos prontos que os outros também devem estar. Ver-
se confrontado com um assunto que talvez ainda não se quisesse
encarar é muito assustador, e é vivido como uma espécie de desafio.
E aos desafios poucos reagem com equilíbrio. Mais fácil será pro-
vocar o amadurecimento, através de diálogos de "aproximação", em
que o assunto não é colocado frontalmente, mas comido aos poucos,
pelas beiras.
Suponhamos que ele esteja errado. E suponhamos que seja daqueles
que convivem mal com o próprio erro. Não por vaidade, mas por
extremo desejo de acertar. E suponhamos que em determinado
ponto o diálogo comece a lhe soar como uma cobrança disfarçada.
Teremos aí um belo interlocutor empacado. A cobrança, aliás, é uma
das maiores fabricantes de nós de que eu tenho conhecimento. E isto
porque, ao sermos cobrados, reagimos querendo limpar a nossa
barra, em defensiva total. Já não queremos ouvir ou entender nada,
queremos, urgentemente, demonstrar que o outro está equivocado,
que não temos em nossa contabilidade qualquer dívida a pagar.
Outra razão que pode colocar nosso interlocutor em posição de
ataque é, obviamente, o medo. E medo as pessoas podem ter de
muitas coisas. Medo de ser descoberto, se está escondendo alguma
coisa. Medo de não estar à altura da conversa. Medo, simplesmente,
do outro. Medo de perder coisas ou posições. Medo de ser levado a
assumir ou reconhecer algo que preferia deixar no limbo.
Enfim, seja qual for a causa, uma coisa é certa: se um dos dois está
com a guarda fechada, de nada adianta o outro insistir. A não ser
que, em vez de dialogar, queira discutir.

Eu estava no meio de um diálogo, quando percebi que a fala não


andava. Algo muito curioso estava acontecendo. Eu falava uma
coisa, que era certa e verdadeira. E ele me respondia outra, que era
também certa e verdadeira. Só que as nossas duas falas não
coincidiam, nem se encontravam em hora nenhuma. Era como se
estivéssemos andando em dois trilhos, paralelos, mas sem junção. E
isto porque, embora eu reconhecesse que o ponto de vista dele
estava certo para ele, não conseguia convencê-lo de que não
funcionava para mim, e, pior, não conseguia fazê-lo aceitar que o
"para mim" era importantíssimo. E vice-versa.
Do jeito que a gente ia, podia continuar um tempão, falando e
falando, sem sair do lugar. Nenhum dos dois ia conseguir o que
queria. Será que eu tinha que concordar, entregar a rapadura? Não,
não era questão de entregar coisa nenhuma, fingir concordância
inexistente. Era adiar, voltar ao assunto em outro momento, por
outro ângulo.
Tem hora para tudo. Só que não é a mesma para todos. Ou às vezes
é a mesma até um certo ponto, e aí deixa de ser. Há que ter carinho
pela hora, dar-lhe muita atenção, para poder usá-la sempre como
elemento propiciador.
Aquela cena do marido que chega do trabalho e da mulher que mal
espera ele tirar o paletó para dizer: "Quero falar com você" já se
tornou clássica. Ela esteve o dia inteiro remoendo o problema, ela
está em ponto de explosão. E quando ele bota o pé dentro de casa, o
"convite" ao diálogo se abate sobre seu cangote. Não vejo como uma
conversa começada assim poderia dar certo.
"Mas não há outra hora", queixa-se um número imenso de
mulheres. Não é verdade. Horas há muitas, desde que se tenha a
paciência de esperar.,E às vezes, reconheço, não é nem paciência, é
um exercício de santidade, porque a pressão é muita e a necessidade
de esvaziá-la parece insopitável. Mas, se é questão de válvula de
escape, já não é questão de diálogo. E não se pode esperar de um
desabafo os resultados que se esperam de um diálogo de verdade.
Conter-se até chegar um momento melhor pode ser inclusive muito
positivo para o diálogo. Pois permite reduzir o impulso. E refletir
melhor não só sobre o que se vai dizer, como sobre o que se poderá
ouvir.
E há diálogos que aparentemente não dão nó. E que assim mesmo
não funcionam. Ou que parecem funcionar na hora, mas nos deixam
depois uma sensação de engodo, mal-estar de quem pensava ter
ganho alguma coisa e se percebe com a mão cheia de moscas.
São os diálogos com os profissionais do diálogo. Há tantos. E tão
fascinantes! Falam brilhantemente, têm sempre os argumentos mais
convincentes, e são gentis, delicados, pacientes. Podem ficar horas
falando, explicando, mostrando. Têm uma resistência admirável.
Pena que seja tudo mentira.
O diálogo desse tipo não dá nó, porque não é diálogo. Podemos até
dizer que não dá nó, porque é, ele próprio, um enorme nó. Um
diálogo-a-um. Sua proposta inicial não é a de esclarecer coisa
nenhuma. Não é a de procurar, juntos, uma verdade. Não é a de
tentar entender o interlocutor. É a de enredá-lo, envolvê-lo, deixá-lo
esvaziado de si e encharcado do outro. É um diálogo de camelô.
Não é coisa de amador. Porque, evidentemente, não pode mostrar
sua verdadeira cara. E é preciso ser um craque para disfarçá-la.
O curioso é que justamente esses falsificadores são os que mais
procuram "dialogar". Não resolvem as coisas pela violência, não são
de grandes atuações. Mas têm sempre, pronto na manga, um belo
diálogo para encenar. E como não se impacientam, não se
emocionam (um bom ator tem que ter distanciamento crítico do seu
papel), não se irritam, acabam sempre chegando onde querem, ou
seja, provando que o outro estava equivocado, e que será muito
mais feliz se seguir o caminho que lhe está sendo mostrado.
É difícil defender-se deles. Porque são tão brilhantes, tão
aliciadores, tão envolventes, e tão convincentemente sinceros. Mas
só até o momento em que a gente os reconhece. A partir daí nada
mais fácil do que evitar qualquer embaraço de fala com eles. Basta
não começar a "dialogar". - Ouço e digo que o diálogo é a chave
mestra do entendimento. E é verdade. Mas desde que se reconheça
de início, de antes do início, a sua bipolaridade. Se não pretende re-
solver um problema individual, mas um problema a dois, deve ser
encarado o tempo todo como uma coisa que aos dois pertence. E
que dos dois depende.
Há ritmo. Cada um tem seu ritmo de falar, seu ritmo de pensar. Que
funciona perfeitamente quando sé pensa só. Mas que tem que ser
adequado a outro ritmo quando se quer falar a dois. É feito dançar.
Mas enquanto na dança todos acham muito natural acertar o passo,
no diálogo a tendência é a de tentar impô-lo. E nessa imposição um
dos parceiros corre o risco de não ouvir a música.
Nós no diálogo ocorrem o tempo todo. E, embora tenhamos falado
só do outro lado, é evidente que em igual proporção somos nós que
embaralhamos tudo, pelas mesmas, ou por outras razões. Acho
impossível evitar esses momentos em que a comunicação entra num
beco sem saída. Ou melhor, seria possível, mas à custa de um tal
malabarismo, que a espontaneidade necessária ao entendimento
estaria comprometida. Parece claro, porém, que, se reconhecermos
os nós na hora em que aparecem, poderemos evitar aquela
insistência que acaba por quebrar todos os fios.
Um diálogo não é, como nos acostumamos a vivê-lo, monobloco.
Não é só "aqui e agora". Pode ser aqui e amanhã, aqui e daqui a
uma semana. E isso porque, sobretudo numa relação de amor, o
diálogo é uma corrente de infinitos elos que se vai fabricando e
percorrendo ao longo da convivência.
Se um obstáculo aparece, interrompendo a comunicação — e
sempre aparece —, pode ser sinal de que aquele elo já foi esgotado,
e que pode ser deixado, para passar, em outras circunstâncias, ao
elo seguinte. E assim por diante. Fazer dos diálogos momentos
definitivos fechados em si, em que tudo tem que ser resolvido,
equivale a viver a vida como descontínua, formada de pontos. E
isso seria negar a beleza da longa corrente de amor que nos liga a
todas as coisas.
Tentar de novo o mesmo amor
Fantasias de retorno, quem não as cria? Atenção, reprise! Vamos
passar novamente as melhores cenas, repetir aquele beijo, viver
outra vez aquele amanhecer, levar os protagonistas para aquela
cama. Mas atendendo a pedidos cortaremos as brigas, os
desencontros, as pequenas e grandes traições. Cortaremos
sobretudo aquele final de separação e prantos, e o substituiremos
pelo dose das duas bocas que se encontram enquanto ao fundo o sol
surge radioso, trazendo a invisível legenda: "E foram felizes para
sempre".
Palmas. Nada como um bom bis para nos deixar satisfeitos. Já
conhecemos o script, com um nadinha de esforço podemos recriar a
trilha sonora. E nenhum imprevisto atrapalha o programa.
Nenhum imprevisto?! E a realidade, como é que fica? Pois é, entre
nós e nossas fantasias lá está ela comandando a festa. Razão pela
qual aconselha-se a botar as mãos na frente, a fim de preservar a
integridade da cara. Sobretudo em se tratando de segundas
tentativas. Pois a verdade é que, embora pareça tudo tão conhecido,
as aparências são enganosas, e o resultado da segunda vez pode ser
tão imprevisível quanto o de qualquer primeira vez que se preze.
Isso não significa que não se deva tentar. Pelo contrário, são as
tentativas que nos ensinam a viver e a amar melhor, mesmo quando
a duração do amor não pôde ser homologada como record, mesmo
quando o final não é exatamente o que desejávamos. Apenas,
convém preparar um pequeno arsenal para enfrentar com mais
chances o segundo round. Um arsenal de dados, de conhecimentos e
sobretudo de lucidez, capaz de capitalizar tudo o que se viveu na
primeira tentativa, de transformá-lo não somente numa experiência
romântica, mas num aprendizado. Só assim não se repetirão os
mesmos erros.
Nunca é demais lembrar: por melhores que sejam as lembranças,
houve erros, sérios, que acabaram levando a relação para o poço. E
se agora vamos trazê-la de volta não há de ser apesar dos erros, e
sim graças a eles, indiretos mas preciosos mestres.

O homem que a gente já amou cruza um dia nosso caminho. Não é


um homem qualquer. O código secreto estabelecido ao longo do
amor ainda não se apagou, sorrisos e gestos penetram em
intimidades não ditas. De repente tudo parece fácil e tentador. E
pode bastar pouco para que o desejo de voltar se cristalize em
perguntas e ansiedades.
O que nos atrai naquele homem? Em parte, aquilo tudo que já nos
atraiu uma vez. Mas sobretudo a facilidade do conhecido. É bem
mais tranqüilizador passear na horta do vizinho do que em matos
nunca dantes visitados. A horta não é perfeita, a gente sabe, já
desistiu dela uma vez. Porém, com alguns arranjos. . . Basta plantar
alguma coisa ali, erradicar outra acolá, aplainar um pouco e botar o
sol para brilhar. Afinal, a gente já plantou ali, já sabe o que esperar.
Bem pior nos parece o desconhecido, onde tudo pode acontecer,
onde teremos que andar com cuidado, e à custa da nossa própria
segurança começar os mínimos reconhecimentos. Medo,
retraimento, quase preguiça de armar mais uma vez nossos
sentimentos, nossos humanos pertences, e partir em safari,
pesquisando e sendo pesquisada na busca daquilo que talvez nem
exista.
Assim, banhadas de otimismo e boas intenções, recomeçamos tudo.
Mas onde um amor interrompido recomeça? Não é no princípio
como gostaríamos, naquele princípio emocionado em que todo
avanço era uma aventura feita para dar certo. Seria bom, mas não é
possível, muito aconteceu depois disso. Nem há de ser no meio,
quando as coisas ainda iam bem mas nem tanto, e os dois
começavam a riscar o traçado de suas desavenças. É pelo fim que a
gente retoma a meada? Por aquele último período borrascoso,
dorido, que nem gostamos de lembrar? Não, por ali não pode ser.
Por onde então?
Aí está um dos pontos básicos da segunda tentativa. Um amor não
se retoma, como se retoma o livro na página marcada. Um amor tem
que ser refeito, feito outra vez, com Outro princípio e meio. Só
assim se evita que tenha o mesmo fim.
Relevando as inúmeras variantes, e tentando um agrupamento
geral, podemos dividir as segundas tentativas em dois padrões
básicos. E isto, evidentemente, a partir da primeira tentativa, a que
não deu certo mas deixou boas lembranças, a que, de alguma
maneira, vai servir de pista de lançamento para a segunda.
1.° padrão — A relação, embora por muitas razões sedutora,
verificou-se inviável. Não houve desgaste sofrido, grandes brigas. A
separação foi decidida de comum acordo. È cada um seguiu em
frente, razoavelmente inteiro. Afastamento, tempo,, um bom
esquecimento. E outras pessoas. Um dia então acontece o
reencontro. E logo a redescoberta, a constatação agradavelmente
surpreendente de que uma nova relação é possível.
2."padrão — Ardente a paixão, revelou-se porém impraticável, e aos
trancos chegou-se à ruptura. Mas dolorosa, sofrida, deixando uma
sensação de coisa mal resolvida. Os dois (ou um só), embora tendo
outros respectivos, continuaram se pensando à distância,
relembrando, fantasiando como teria sido se tivesse podido ser. Um
dia se reencontram. E resolvem tentar mais uma vez.
De forma geral, como são gerais os dois padrões, podemos prever
que o primeiro tem muitas chances de dar certo, enquanto o
segundo voltará provavelmente para o fundo do poço do qual saiu.
A previsão não exige bola de cristal, apenas o velho bom senso e um
mínimo de observação.
No primeiro caso a ruptura foi uma solução natural, uma espécie de
acordo, doloroso, como são sempre as rupturas, mas não
dilacerante. Os dois chegaram à mesma conclusão, porque para
ambos a relação era insatisfatória. Não houve, para nenhum dos
dois, expulsão do paraíso. Nem nenhum dos dois se sentiu
rejeitado, jogado fora, desprezado em sua oferenda de amor. Dito o
adeus, portanto, cada um se sentiu solto para meter o pé na estrada
e reestruturar sua vida em outra direção. Sem grandes sentimentos
de perda, sem pensar mais no outro.
Livres de nostalgias românticas, conheceram e amaram outras
pessoas, viveram, cresceram. O tempo, as experiências, fizeram com
que cada um se modificasse, possivelmente para melhor, ganhando
uma visão mais ampla e mais generosa das coisas da vida e do
amor. E são essas duas pessoas diferentes que se reencontram a
folhas tantas.
Atraíram-se uma vez, podem se atrair a segunda. Mas não nos
mesmos moldes, nem no mesmo plano. 0 amor que eles' se propõem
não será nunca uma reedição do outro que já viveram juntos. E o
importante é que eles sabem disso.
Se o que os separou da primeira vez foram radicalismos juvenis,
ciúmes ou incompreensões, estes desapareceram, foram revistos e
polidos através de outros amores, e já não estão no meio do
caminho. Se o modo de ser e de encarar a vida, que os uniu a
primeira vez, ainda subsiste e os emociona agora na perspectiva de
uma nova possibilidade, então é muito provável que este amor
tenha a possibilidade de sucesso que um excessivo verdor impediu.
Os outros amores, na verdade, funcionaram como estufa de ama-
durecimento, para que este pudesse se realizar.
Agora, vejamos o segundo tipo. A ruptura foi tumultuada. Um
queria, o outro não queria, ensaiavam uma separação, voltavam no
dia seguinte, para logo tornarem a brigar. Por fim, um não agüentou
e foi embora. Mas as declarações de amor do outro ficaram no ar. E
no ar ficou também uma sensação de desperdício, de coisa não
solucionada. Havia, pendente e imaginária, uma possibilidade de
gran finde feliz. E havia um amante desprezado, cultivando lem-
branças. Sim, outros amores também, nada impede. Mas por trás
deles sempre a imagem do outro, mantida, regada a suspiros
quando não a lágrimas, ressurgindo sempre como o melhor, o
único, o verdadeiramente amado. Imagem que, aliás, já nada tem a
ver com a pessoa que a originou, pois ao invés de ser atualizada
através da realidade, foi sendo enriquecida pela imaginação,
bordada e rebordada, brilhante de qualidades.
Quando o reencontro acontece, não é vivido como um estudo
cauteloso de possibilidades, mas como a grande chance de reaver a
maravilha perdida. O amante rejeitado pode enfim ser readmitido
no paraíso, alçado novamente à categoria de ser amado, e como tal
de ser no mundo. Até então, mantida a esmagadora rejeição primeira,
toda a sua força se concentrava no esforço para demonstrar o seu
valor, o peso do seu afeto. Esforço que porém só teria valor se
atuando sobre aquele que havia infligido a rejeição. De nada adian-
tava ser amado por outros. Só aquele contava. E quando aquele
aparece, não é visto pelo que realmente é e sim pelo que representa.
Que possibilidades podemos prever para um amor assim, apoiado
em fantasias e em necessidades de ressarcimento? A contabilidade
pode até ficar acertada, mas dificilmente teremos um saldo positivo
na relação.
Muitas vezes, entretanto, esta segunda tentativa destinada ao
malogro é de grande utilidade. Serve como um despertador, como o
beijo da princesa na boca verde do sapo. Quebra o encantamento.
Despido paulatinamente de suas roupas brilhantes pelo decorrer
borrascoso da relação, o homem/maravilha se revela pelo que
realmente é, alguém com quem, provavelmente, não temos muito a
ver. Deixa então de existir da forma quase persecutória com que o
abrigávamos. E acaba nos liberando para verdadeiramente
procurarmos outro melhor.

É claro, há variantes. Uma bem comum é a do homem encantador,


sedutor mesmo, mas impossível. Mulherengo, por exemplo, ou
casado, ou inconstante, ou jogador. Um homem de charme inegável,
mas que nos enlouquece com sua inconstância ou sua divisão, e que
nos leva à ruptura. Reaparece um dia. Encantador como sempre, ou
mais ainda, jurando que está curado, mudou, é outro. E nos ama,
sempre nos amou, pensou em nós este tempo todo, e percebeu o
que estava perdendo. Somos, jura, o grande amor da sua vida. E,
por este amor, mudou. Agora, homem de bem, quer reviver a
paixão sem reviver os nós.
Mudou? Não mudou? Continua tão encantador que gostaríamos
tivesse mudado. E, só para tê-lo de volta, pensamos fazer de conta
que é verdade, que agora tudo vai dar certo. Mas quem teríamos de
volta? Não o ele da primeira relação. Se refletiu, como diz, se
amadureceu, não é mais aquele. E é para o novo ele que devemos
olhar. A experiência, desta vez, também terá que ser nova.
Há também a possibilidade inversa. Ele nos queria de um jeito que
não somos. Ele nos queria ao seu modo, contidas na fôrma que
havia imaginado. Se não fosse assim não serviria. E não serviu. Lá
se foi ele, lá nos fomos nós. Passado um tempo, vem ele de novo,
assuntar, saber se não mudamos, se já não somos como ele tanto
queria. E vem com charme. A gente não mudou, mas talvez esteja
mais cansada, talvez num momento em que uma casa conhecida
pareça reconfortante, fácil. E hesitamos, nos perguntando se não
valeria a pena abrir mão, ceder e entrar na fôrma.
É de recaídas que se fazem muitas das segundas tentativas. Como a
adolescente que, subitamente fragilizada com a própria
independência, volta para a casa dos pais, assim voltamos ao abraço
de um homem que pode não ser o melhor, mas é uma garantia de
aquecimento, pelo menos temporário. E a recaída acaba se
transformando numa espécie de arremate, eliminando as dúvidas
possíveis (pois não há dúvida que não se esclareça numa segunda
tentativa), restaurando a força da realidade acima da imaginação.

Nada portanto contra as segundas tentativas. A reprise, com direito


às cenas românticas mas reservando espaço para os momentos de
bangue-bangue, dá sempre bons frutos, ainda que nem sempre se
inclua neles a modificação do final. Repassando cenas vemos
melhor, vivemos mais alguns detalhes importantes que nos
escaparam antes. E como já não precisamos acompanhar as
legendas, podemos criar diálogos novos, muito, mas muito
melhores.
Objetividade. Essa deveria ser a grande vantagem da segunda
experiência com o mesmo homem. Já conhecemos não só ele mas
nossas exigências e expectativas em relação a ele. E já sabemos até
onde podemos ir na tentativa de conseguir aquilo que nos parece
fundamental. Insistência é coisa que não cabe numa segunda
tentativa. Seria mais do que teimosia, mais do que determinação.
Seria voluntária cegueira.
Definição. É outra das vantagens. A segunda tentativa deveria se
definir rapidamente. Se, livre dos percalços que a tumultuaram da
primeira vez, se revela boa, cedo se percebe. Mas se os defeitos não
foram sanados e os obstáculos continuam todos ali, podemos logo ir
tirando nosso corpinho de campo e partir para percursos menos
acidentados.
Evidentemente cabe a nós o reconhecimento. O mais comum é
entrarmos meio distraídas, meio entregues, como se enlanguescidas
pela "inexorabilidade do destino", aquecidas pela volta ao antigo
lar.
É a atitude mais desaconselhável. Mais justo é lembrar que, embora
pareça conhecido, o caminho é outro e outro o momento. Entrar
cautelosamente, tendo tido antes o cuidado de inventariar os erros
cometidos no passado e armazenando disposição para não repeti-
los.
Aconselha-se, porém, a não transformar o inventariar dos erros
num jogo de cobrança e de agressão. Arejar a relação antiga é bom.
Falar dela, relembrar, tentar entendê-la juntos, ver o que dela se
aproveita e o que pode ser podado, é necessário. Mas nunca
transformar isso em revanchismo, utilizar-se da aproximação para
cumprir um velho desejo de vingança.
Cuidando bem dela, e olhando bem para si, a segunda tentativa tem
muito para dar certo. E havendo erro de apreciação ou de
balizamento, pode-se sempre recorrer ao clássico conselho da
aviação: "Em caso de dúvida, arremeta". Ou seja, se o pouso parecer
arriscado demais, dê força ao motor e alce vôo.

Daqui pra frente


"Eu estou livre, e acho um saco. Eu quero um homem."
Escândalo. Quem, em plena década de 80, ousa fazer uma afirmação
dessas? Será que não ouviu falar em feminismo, libertação,
independência? Mas em que mundo, afinal, vive essa mulher?
Em Paris, França, para sermos precisos. E ainda acrescenta: "O
homem, a vida a dois, são indispensáveis para uma mulher. As
mulheres desejam um homem a seu lado. E será sempre assim".
Categórica, assina embaixo: Annie Gi-rardot.
Eu gosto disso. Do que é dito e de quem o diz. Desse nariz
desafiador espetado no ar, enfrentando os efeitos da heresia. Pois
não é o que sempre senti e disse eu própria, sem entretanto jamais
abrir mão de minha convicção libertária?
Meu marido viaja e a amiga me telefona: "Vamos sair, dar uma
circulada? Vamos dar um agito na noite?" E eu respondo que não,
obrigada, sem Affonso não curto sair sozinha à noite. . . Hesitação
do outro lado do fio. A amiga se surpreende e me cobra; mas como,
logo você, que sempre saiu sozinha antes de casar. Pois é, mas isso
foi o antes, agora gosto mesmo é de sair com meu homem.
Falência do feminismo, uiva em deleite a classe conservadora.
Dependência do macho, bufa taurina a ala masculina. E todo
mundo toca a pesquisar, a perguntar, será que a tal revolução da
mulher não deu certo? Será que acabou? Enquanto ao fundo o velho
coro entoa "eu bem que disse, eu bem que disse".
"Acho que entramos numa fase diferente", me dizia uma feminista
na França. "Os homens não nos agridem mais frontalmente, não
ousam mais debochar. Estão ficando sorrateiros. Quer dizer, por
cima tudo bem, viva a mulher. Mas por baixo continuam os
mesmos."
"Acho que não chegamos ao começo do fim. Mas atingimos o fim do
começo", diz Betty Friedan.
Acho que simplesmente não chegamos, estamos em trânsito. Digo
eu.

A mulher não é igual ao homem.


Boto essa frase sozinha, numa linha só para ela. Que se destaque,
porque é fundamental.
Olhando meu corpo, recebendo minha menstruação e minhas filhas,
jamais duvidei de que eu fosse uma mulher, e, como tal, específica.'
Mas qual era a minha especificidade?
A essa pergunta não obtinha resposta. Ou melhor, as respostas que
me davam não tinham dentro de mim nenhum eco de veracidade.
Porque assim como olhava meu corpo, também me debruçava sobre
a minha mente. E a minha mente não se deixava enganar.
Não, eu não era menos inteligente, mais medrosa, menos lógica,
mais sensitiva, menos combativa, mais vaidosa, menos sensual do
que ninguém. E entenda-se por ninguém toda a classe dos homens.
Então, quem era eu?
Quem somos nós? Somos, éramos, uma realidade revestida de
tantas capas de mentira, de tantas máscaras adulteradas, que essa
realidade se perdeu. Nem nós, nem ninguém saberia mais dizê-la. E
à sua procura lançamos mão de vários meios.
Um deles foi dizer o que não éramos. Isso desfazia parte do engodo.
Outro foi tomar o símbolo do poder, o valor máximo, a única coisa
mais semelhante a nós na natureza, a única com que podíamos nos
equiparar, e dizer: somos iguais a ele. Assim nos tornamos, em
ardor de luta feminista, "iguais" aos homens.
Ao dizer somos iguais, queríamos dizer temos o mesmo valor,
idêntica importância. A igualdade, pensávamos, traria consigo as
irmãs fraternidade e liberdade.
Engano. As americanas, sobretudo, e facções européias acabaram
tomando a igualdade ao- pé da letra. E a descoberta da nossa
identidade, que era o movente real disso tudo, tornou-se ainda mais
improvável.
Lá estávamos nós, que não éramos, iguais a alguma coisa que
também não era. E essa igualdade, sem querer, reforçava os mitos
machistas. Pois ser igual a alguma coisa pressupõe que esta coisa
exista como tal. Ser igual ao homem significava, portanto, que o
homem, tal qual o conhecemos em nossa sociedade, era algo real, e
não, como nós, uma realidade encoberta de mentiras, uma realidade
perdida.
Diz Betty Friedan: "Lutamos pela igualdade em termos de poder
masculino, sem perguntar o que a igualdade entre homem e mulher
significa realmente".
Em 1979, por exemplo, duas estudiosas americanas, Nancy Bennett
e Susan Hardin, da Universidade de Michigan, ao realizar uma
pesquisa, partiram da divisão das entrevistadas em duas categorias,
familiares e as individualistas. Evidentemente acabaram descobrindo
aquilo que nos parece de saída apenas óbvio. Ou seja, que as duas
categorias não existem, pois não existe separação entre elas, e indi-
vidualidade se mistura serenamente com família na cabeça de quase
todas as mulheres.
A divisão continha, inconscientemente, uma aceitação dos velhos
padrões, aqueles mesmos que se pretendia combater. Equivalia a
dizer que uma mulher, para viver sua individualidade, em termos
de carreira ou de realização pessoal, deve desejar abrir mão de uma
família, dos filhos que tem ou que porventura teria. Deve, portanto,
renunciar à sua capacidade de gerar, que é, e disso não há dúvida
possível, eixo da sua especificidade. Deve deixar de ser mulher.
Como o antigo teorema queria demonstrar: uma mulher que luta,
que brilha, que vence, não é uma mulher, é um homem. As
mulheres não vencem.
O que não foi visto é que, como homem, ela seria sempre
forçosamente incompleta.
Teria havido outro jeito de armar a luta pelas reivindicações
feministas? Não.
As feministas que, equivocadas ou menos, quebraram as primeiras
e mais fortes barreiras, e estabeleceram os primeiros conceitos, eram
as vanguardas de um movimento que só mais tarde se alastraria.
"Vanguarda" vem do francês "avant-garde", que significa, ao pé da
letra, "antes da guarda", aqueles que antecedem os exércitos, que
realizam o trabalho mais arriscado, dentro das linhas inimigas,
preparando a situação para que o grosso dos soldados possa
avançar.
É uma missão suicida, porque o inimigo está pronto a te estraçalhar,
e o próprio exército, lá atrás, te abandona ao menor sinal de perigo.
Foi o que aconteceu. As feministas que partiram na primeira leva se
viram entre dois fogos. Dos homens e da maioria das outras
mulheres. Não havia um sentido de classe que tornasse solidário o
todo feminino, não havia consciência do que estava sendo
reivindicado, e parecia mais natural à maioria ater-se ao jogo dos
homens para não perder o nada que se tinha. Para que a consciência
se fizesse, foi preciso o sacrifício das queimadoras de sutiãs.
Hoje elas olham para trás e percebem que, com os sutiãs, quase
queimaram as pontes atrás de si.
"Nas jovens que trabalham em suas novas carreiras", diz Betty
Friedan, "decididas a não serem apanhadas nas armadilhas em que
suas mães caíram e encarando como naturais as oportunidades
pelas quais nós, as antigas militantes, lutamos duramente, identifico
sinais de sofrimento, confusão, uma amargura que elas relutam em
admitir. Com todas as oportunidades que arrancamos para elas,
evitam falar alto e bom som a respeito de outras necessidades
contra as quais algumas de nós, do Women's Lib, nos rebelamos —
anseios em relação a amor, segurança, os homens, os filhos, a
família e o lar." É uma dura constatação para ela. Mas uma
confirmação auspiciosa para nós.
Nós não fomos à praça. Não ateamos fogo. Não criamos preceitos.
Nós chegamos depois. E tivemos tempo para ver e refletir. A nossa
foi sem dúvida uma posição bem mais confortável e menos
arriscada. Que nos permitiu agir sem os extremismos
indispensáveis às vanguardas.
Entretanto, como as vanguardas que hoje fazem a avaliação do seu
trabalho passado, nós também, cheias de dedos e medos, aderimos
ao coro das perguntas, será que deu certo? Será que valeu a pena?
Será que estava tudo errado? Prontas quase a negar tudo, a voltar
para o canto do fogão de onde, repetem gloriosamente as
tradicionalistas, nunca deveríamos ter saído.
Desse medo, desse pé posto atrás eu não gosto. Porque, muito
simplesmente, não há atrás.

Não existe retorno possível. Nunca mais seremos aquilo que


éramos. O desconhecimento não se recupera. E o que nós
adquirimos, acima de tudo, acima das leis e das conquistas de
espaço, foi conhecimento, consciência.
Hoje sabemos, e não naquele íntimo, calado conhecimento das
nossas avós, que temos capacidades ilimitadas. Que tudo está ao
nosso alcance e é um direito nosso. Isso não se apaga. Se uma
parada existe, ela é de avaliação, não de recuo. E é a partir de nosso
conhecimento que seguiremos caminho.
Há poucos dias contava-me um amigo médico recentes descobertas
sobre a atuação do óvulo. Sempre acreditou-se que o óvulo era
atacado pela horda dos espermatozóides, e que só o mais apto deles
conseguia vará-lo, realizando a fertilização. Pois agora foi
descoberto que não se trata de aptidão do espermatozóide, mas de
escolha do óvulo. Parado, ele faz a seleção do espermatozóide que
lhe parece mais conveniente, e este então é atraído, sendo sua
entrada permitida. De repente, o óvulo deixa de ser o passivo alvo
dos espermatozóides, prêmio da vitória, para transformar-se em
parte ativa do momento da criação, o seletor.
Donas do conhecimento do nosso potencial, não conhecemos ainda
a nossa especificidade. Conseguimos desmanchar as primeiras
capas de preconceitos e mentiras, mas ainda não chegamos à
realidade de nós mesmas. Uma realidade indubitavelmente ligada a
óvulos, a filhos, a leite escorrendo quando o bebê chora. E ao
homem, que em nós fecunda.
Annie Girardot não gosta de viver sem homem. Eu também não.
Não gostar não significa não poder. Viver sozinha é perfeitamente
realizável, e necessário para o aprendizado da vida e de si. Viver
sozinha é bom, em determinadas ocasiões e por determinados
períodos. Porém, viver sempre sozinha não é bom. E não conheço
ninguém, mental e fisicamente sadio, que viva só, por gosto.
As mulheres precisam de um homem ao lado. É uma bela verdade.
Que algumas tiveram que negar porque "um homem ao lado"
estava por demais confundido com "um homem acima", e "precisar"
se embaralhava com "depender". Uma verdade que hoje parece nos
indicar exatamente o caminho da nossa especificidade.
Da nossa e da deles. Porque é evidente que se não descobrirmos o
recíproco e o correspondente não chegaremos a lugar nenhum. Se o
homem nos é necessário, a mulher também é necessária ao homem,
em igual medida. A natureza não é burra. E ela nos fez para a união,
nos fez complementares. Como realizar esta complementaridade é a
tarefa que nos cabe.
Não se trata, portanto, de questionar o acerto da revolução
feminista, para apagar os erros e retroceder nas posições. Trata-se
de avaliar e procurar caminhos novos, certas de que tudo o que
tiver que ser feito o será, daqui pra frente.
O AUTOR E SUA OBRA
Um dos temas mais polêmicos da atualidade é a transformação da mulher e
seu novo papel na sociedade. Marina Colasanti encontra-se profundamente
ligada à defesa dos direitos da mulher, denunciando a opressão por elas
sofrida, discutindo problemas do trabalho, amor, sexo, lazer, etc, e
apontando novas perspectivas para a situação feminina.
Nascida em Asmara (Etiópia), em 1937, Marina Colasanti veio para o
Brasil com apenas onze anos, em companhia de seus pais. Após ter
completado seus estudos na Escola Superior de Belas-Artes (gravura em
metal), entrou para o jornalismo em 1962, trabalhando como redatora e
ilustradora. Com sua coluna no "Jornal do Brasil", alcançou grande êxito e
firmou-se como escritora. Atualmente, exerce as funções de editora e
redatora da revista "Nova".
Autora versátil, Marina Colasanti dedica-se também à literatura infantil, e
seu livro "Uma idéia toda azul" (já publicado pelo Circulo) conquistou o
primeiro prêmio da crítica (1979) em São Paulo. "A nova mulher"
(também publicado pelo Círculo) aborda o comportamento feminino no dia-
a-dia e baseia-se amplamente em experiências pessoais. Com "Mulher
daqui pra frente", a escritora renova o enfoque da questão, analisando
sempre com equilíbrio e lucidez os dilemas e conquistas da mulher
moderna.
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