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DO SEXO AO TERROR:
A IMPOSTURA MASOQUISTA DA PERVERSÃO
Resumo: A relação do ser humano com o seu próprio corpo é construída, simbolicamente, dentro
de uma cultura e época específicas e, portanto, sujeita a transformações oportunas no decorrer da
história. No caso do Ocidente, podemos observar, por séculos, uma dicotomia – alicerçada no
pensamento cristão – que situou o corpo frente às tentações demoníacas, como depósito do prazer
carnal e, portanto, lugar do pecado, enquanto que à alma reservou o espaço do divino, do
transcendente, onde se ornamenta com as vestes da pureza e da libertação. Esse esquema,
emoldurado nas paragens mediévicas, marcou profundamente a maneira como o corpo fora, ao
longo das calendas, encarado pelas mais diversas áreas do conhecimento, num arcabouço
conceitual impregnado pelo maniqueísmo, pela patologização e pela anormalidade. Com o
surgimento da Psicanálise, no fim do séc. XIX, novos paradigmas foram erguidos. De fato, o
corpo que interessa à Psicanálise não é aquele descrito pelas ciências médicas, filosóficas e
religiosas e, sim, aquele tributário da linguagem, legado por um Outro capaz de abdicar de seu
desejo, adoecendo-se, ao manter-se em cativeiro, nutrindo o infans do substrato que permitirá sua
inserção no mundo da cultura. Destarte, o presente trabalho, numa conexão entre os estudos
psicanalíticos (pós)freudianos e contribuições de ordem sócio-histórica, debruçar-se-á sobre a
novela Os infortúnios da virtude (1791) do escritor e filósofo libertino Marquês de Sade (1740 –
1814), para demarcar as representações do desamparo e da violência que, ao longo da narrativa,
inscrevem-se no corpo da protagonista, Justine, de tal sorte que o torna espelho para si mesma, por
meio do qual o masculino a reconhece e a (des)qualifica, numa lógica masoquista que vivifica
suas pulsões, esgarçando-lhe a vida.
Palavras-chave: Literatura; Psicanálise; Corpo.
Resumen: La relación del ser humano con su propio cuerpo es construida, simbólicamente, dentro
de una cultura y época específicas y, por lo tanto, sujeta a transformaciones oportunas en el
transcurso de la historia. Cuando tratamos del Occidente, podemos observar, por siglos, una
dicotomía – fundamentada por el pensamiento cristiano – que situó el cuerpo frente a las
tentaciones demoníacas, como depósito del placer carnal y, por lo tanto, lugar del pecado, mientras
que para el alma reservó el espacio divino, de lo transcendente, donde se ornamenta con las
vestimentas de la pureza y la liberación. Este esquema, enmarcado en las paradas medievales,
marcó profundamente la manera por la cual el cuerpo fue, a lo largo de las calendas, encarado por
las más diversas áreas del conocimiento, en un patrimonio conceptual impregnado de
maniqueísmo, patologización y anormalidad. Con el surgimiento del Psicoanálisis, en el fin del
siglo XIX, nuevos paradigmas fueron erguidos. De hecho, el cuerpo que interesa al Psicoanálisis
no es aquel descrito por las ciencias médicas, filosóficas o religiosas y, sí, aquel tributario del
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Graduando em Letras (Língua Portuguesa) pela Universidade Federal da Paraíba. E-mail para contato:
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Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba. E-mail para
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INTRODUÇÃO
“Já disse e afirmo que nunca fiz livros imorais, que nunca os farei” (SADE apud
ALEXANDRIAN, 1993, p. 201) foi a resposta de Donatien Alphonse François (1740 – 1814),
mais conhecido como Marquês de Sade, quando acusaram-no de ser o autor por trás da infame
novela Os infortúnios da virtude, de 1787. Hoje sabemos que a obra em questão fora, de fato,
escrita por ele. Ainda assim, não podemos apontar a sua fala como uma mentira, uma vez que
aquilo que o Marquês entendia por “imoral” afastava-se profundamente do sistema de valores
burguês vigente na época. Efetivamente, ao debruçarmo-nos sobre sua obra, podemos atestar que
Sade projetou nas suas páginas “uma concepção caótica da Natureza e uma orientação
fundamentalmente sexual do mundo” (SERRAVALLE, 2008, p. 364) que o colocava às margens
dos circuitos intelectuais de então. Nesse sentido, o projeto estético-filosófico do Marquês insere-
se num contexto de negação, sempre radical, dos preceitos abraçados pelo idealismo sentimental
de pensadores como Rosseau e Voltaire que defendiam ferrenhamente a prevalência da bondade,
da justiça e da religião na base da civilização (BORGES apud SADE, 2008). Ao discursar
diretamente sobre as faces mais abjetas que o sexo poderia assumir, Sade desenha a sua própria
versão da natureza humana, que para ele seria essencialmente indômita e cruel.
Essa carga filosófica que subjaz todo o trabalho literário do Marquês é amplamente
estudada e conduz a grande maioria dos trabalhos acadêmicos que se dedicam a ele. A nossa
proposta é diferente, na medida em que não se dedica a verificar a existência de sistemas de
pensamento filosófico nas narrativas de Sade. Focaremos nossa abordagem do texto sadiano nas
experiências subjetivas da protagonista do romance em questão, Justine. Analisaremos a
personagem a partir daquilo que ela traz de mais humano, para demarcar as representações do
desamparo e da violência que, ao longo da narrativa, inscrevem-se no seu corpo e determinam seu
destino. Para tanto, recorremos ao aparato teórico da psicanálise de orientação freudiana, que nos
servirá de suporte para compreender
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trajetória que Justine traça, numa tentativa estéril de encontrar aquilo que lhe foi negado desde
suas origens: amparo e proteção.
ensaios, ao referir-se sobre a origem do masoquismo, Freud a situará numa transformação tardia
do sadismo, naquele então considerado como disposição primária da sexualidade. Diz ele:
“Frequentemente é possível notar que o masoquismo não é senão um prosseguimento do sadismo,
voltado contra a própria pessoa, que toma inicialmente o lugar do objeto sexual” (FREUD, [1905]
2016, p. 52 – 53). Assim, podemos observar que, desde a inserção da problemática masoquista na
obra do mestre vienense, ela encontra-se intimamente ligada ao conceito de sadismo – inclusive,
uma das poucas variantes que continuará inalterada, mesmo depois das copiosas reformulações
teóricas que a reflexão sobre o masoquismo impôs à psicanálise.
Freud retoma a discussão sobre o masoquismo no seu texto de 1919, “Batem numa
criança”: contribuição ao conhecimento da gênese das perversões sexuais. Desta vez, debruça-se
sobre um conjunto de fantasias primitivas que observou em muitos de seus analisandos. Essas
fantasias, tão recorrentes na sua clínica, apresentavam-se de maneira muito singular: eram cenas
imbricadas de energia sexual, nas quais uma criança era espancada e que usualmente findavam
com uma satisfação masturbatória por parte de quem as fantasiava. Nelas, Freud constatou uma
possível explicação para a origem das perversões sexuais, particularmente do masoquismo. Por
entender que “as fantasias de surra têm um desenvolvimento nada simples, no curso do qual a
maioria de seus aspectos se modifica mais de uma vez” (FREUD, [1919] 2016, p. 226) o pai da
psicanálise as separou em três cenas – ou momentos – diferentes, cada qual com uma significação
característica.
O primeiro momento é resumido pelo enunciado meu pai bate na criança que odeio, e é
encenado pela criança que fantasia, observando uma figura adulta – num primeiro momento
anônima, mas, posteriormente identificada como o pai da própria criança – espancando uma outra
criança, que nunca é a mesma que fantasia. Essa cena situa-se num momento arcaico, no qual a
criança encontra-se “enredada nas excitações do seu complexo parental” (FREUD, [1919] 2016, p.
228). Essa constatação é imprescindível para entender o verdadeiro significado da mesma, uma
vez que ela representa os sentimentos amorosos e de ciúme que a criança tem para com as figuras
parentais.
No segundo momento da fantasia, ocorrem algumas mudanças importantes. Aqui, a figura
do pai batendo numa criança se mantém, mas, a criança que sofre a punição já não é uma criança
qualquer, e, sim, a própria criança que fantasia. Podemos resumi-la no enunciado sou castigada
por meu pai. Essas transformações na dinâmica fantasmática se dão como resposta ao surgimento
de uma consciência de culpa, ligada aos sentimentos amorosos que, no momento anterior, foram
canalizados, diretamente, aos pais. Esses sentimentos são banidos ao inconsciente, por meio de um
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movimento repressivo que tem, como
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A libido encontra nos seres vivos o instinto de morte ou destruição que neles vigora
[...] Ela tem a tarefa de fazer inócuo esse instinto destruidor, e a cumpre desviando-o
em boa parte [...] para fora, para os objetos do mundo exterior. [...] Uma outra parte
não realiza essa transposição para fora, permanece no organismo e, com ajuda da
mencionada excitação sexual concomitante, torna-se ligada libidinalmente; nela
devemos reconhecer o masoquismo original, erógeno.” (FREUD, [1924] 2016, p. 171)
A partir de então, o masoquismo passa a ser entendido como amálgama das pulsões
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tanáticas e eróticas que regem o psiquismo,
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tanto tempo considerado seu antecessor. Além disso, Freud concebe três possíveis configurações
para o masoquismo, sendo elas o erógeno, o feminino e o moral. A primeira configuração, a
erógena, é descrita na citação destacada acima e funciona como fundamento, ou, pré-condição
para o desenvolvimento das outras duas. A segunda configuração herda sua designação por
representar os desejos inconscientes do sujeito em ocupar a posição feminina/castrada/passiva
frente aos seus objetos sexuais. Finalmente, a terceira configuração, denominada de moral, vai
muito além dos teatros eróticos, comumente associados à vida sexual dos masoquistas, para
abranger uma norma de comportamento estreitamente ligada a uma necessidade de punição e ao
sentimento inconsciente de culpa. No masoquismo moral, “o que importa é o sofrimento”
(FREUD, [1924] 2016, p. 173), esteja ele ligado ao objeto sexual ou não. Neste texto, fruto das
repercussões teóricas da chamada segunda tópica, o pensamento de Freud a respeito do
masoquismo alcança sua versão final. O que nos permite, finalmente, adentrar na leitura do texto
sadiano, com vistas a demarcar as representações do sofrimento psíquico, que o desamparo e a
violência, inscrevem no corpo martirizado de Justine.
Muitos são os mitos que circundam a figura do misterioso Marquês de Sade, um dos
maiores expoentes da literatura erótica do séc. XVIII, período de grandes convulsões sociais no
Ocidente. Romancista, dramaturgo e filósofo francês, passou grande parte da vida encarcerado
pela sua lendária devassidão, e pelo conteúdo explicitamente perverso – no sentido etimológico da
palavra, de perverter a ordem e os valores vigentes – dos seus escritos. Sua obra, como um todo, é
marcada pelo imperativo libertino de que “a virtude, por mais bela que seja, quando fica
desgraçadamente enfraquecida demais para lutar contra o vício torna-se o pior partido que se pode
tomar” (SADE, 2008, p. 19 – 20). Assim, os personagens que passeiam pelas sórdidas páginas do
Marquês dão vasão a uma libido sempre desregrada, cruel e mortífera, num mundo em que a
bondade, o amor e a justiça são relegados a segundo plano e a única lei operante é a primazia do
gozo individual.
Os infortúnios da virtude, uma das obras mais expressivas de Sade, e a que escolhemos
para analisar neste trabalho, foi escrita no ano de 1787 durante sua prisão na Bastilha. Nela, somos
apresentados a infeliz história de duas irmãs: Juliette, de quinze anos e, Justine, com apenas doze
anos. A narrativa começa quando, logo após o abandono do pai e subsequente morte da mãe, as
irmãs, agora órfãs, são expulsas do convento em que moravam e entregues a sua própria sorte.
Ambas são esculpidas como personificações de ideários totalmente inversos, assim, enquanto que,
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para Juliette, estariam toda a “malícia, picardia e coquetismo”, para Justine, só haveriam o “pudor,
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delicadeza e timidez” (Ibid., p. 22). Uma vez que se vêm donas de si mesmas, relegadas ao mundo
para arquitetarem seu próprio destino, as duas trilharão por caminhos opostos, com consequências
que marcarão a história pessoal de cada uma.
Para os fins desta análise, seguiremos de perto as desventuras da protagonista, Justine, que,
durante toda a narrativa, vê-se envolvida, repetidamente, em situações degradantes nas quais é
invariavelmente alvo dos mais lascivos flagelos e torturas sexuais. Os suplícios que recaem
constantemente sobre Justine, surgem sempre da sua insistência em permanecer virtuosa e rejeitar
qualquer oportunidade de ceder às tentações do pecado, seja qual for a sua gravidade. Essa
dinâmica, a de uma virtude beatífica que só traz infâmia e desgraças para quem a serve, insere-se
no projeto filosófico, de caráter claramente materialista e anticlerical, do Marquês
(SERRAVALLE, 2008). Porém, como já expusemos acima, nossa proposta é a de contemplar
Justine na sua dimensão mais íntima, naquilo que ela traz de mais humano para, em última
instância, decifrar a lógica masoquista que perpassa a construção subjetiva da personagem. Ainda
assim, em virtude dos limites de extensão deste trabalho, detemo-nos a comentar apenas dois
episódios da obra em questão, que acreditamos relevantes, valendo-nos sempre das reflexões
psicanalíticas que elencamos no tópico anterior.
O primeiro recorte, que julgamos interessante ressaltar, acontece logo após a fuga de um
presídio, no qual Justine havia sido injustamente encarcerada. Trata-se de um diálogo entre a
protagonista e Dubois, uma mulher de quarenta e poucos anos, líder de uma banda criminosa e
responsável por trás do incidente que oportunizou a fuga de ambas. Ao certificarem que se
encontravam em segurança, Dubois dirige-se a Justine para tentar convencê-la a renegar suas
convicções que, segundo a salteadora, estariam na base da sua ruína e, também, propõe-lhe formar
parte da sua gangue, ao que Justine, prontamente, responde:
Bem sei eu quantos perigos corri por ter me abandonado aos sentimentos de
honestidade que germinaram sempre em meu coração, mas quaisquer que possam ser
os espinhos da virtude, eu os preferirei sempre aos falsos vislumbres de prosperidade,
perigosos favores que acompanham um instante de crime. (SADE, 2008, p. 45)
Essa disposição participativa é muito viva na personagem e ela se efetiva em várias ocasiões, mas,
por enquanto, continuemos com sua fervorosa réplica à Dubois:
Professo em mim ideias de religião que graças ao Céu não me abandonarão jamais. Se
a Providência me torna penoso o curso da vida, é para me compensar mais
amplamente num mundo melhor; essa esperança me consola, ela mitiga todos meus
pesares, ela aplaca minhas queixas, ela me fortifica na adversidade e me faz afrontar
todos os males que lhe aprouver me causar. (Ibid., p. 45)
Acobertados por referenciais cristãos, emergem, no discurso de Justine, alguns traços que
nos permitem qualificar seu comportamento como expressão de um masoquismo moral, nos
termos discutidos acima. Estariam diluídos, na sua concepção de “Providência”, tanto o
sentimento de culpa inconsciente, quanto a necessidade de punição, ambas características
particulares desta mortífera dinâmica, vivificadora das pulsões da protagonista. Como explicitado
anteriormente, a configuração moral do masoquismo se distingue das outras – a saber,
masoquismo erógeno e feminino – por ir além dos teatros eróticos geralmente delegados as
atividades masoquistas. Nele, o que mais importam são a dor e o sofrimento, que podem ser
causados até “por poderes ou circunstâncias impessoais” (FREUD, [1924] 2016, p. 173). Assim,
seria possível inferir que a relação de Justine com a figura onipotente de “Deus” é mais um
cenário no qual ela pode assumir a condição, sempre tão almejada, de “espancada” e, dessa forma,
obter gratificação sexual.
Se dedicarmos mais atenção ao quadro que se desenha nesta dialética fúnebre, poderíamos
aprofundar nossas considerações, posto que a dinâmica que Justine encena com esta “Providência”
tão ávida em castigar apreende uma verdade interna ao funcionamento masoquista, especialmente
no seu arranjo moral. Referimo-nos, aqui, ao conflito intrapsíquico que Freud descreveu ao tratar
desta condição. Nele, o ego assumiria uma posição passiva, efetivamente masoquista, diante do
superego que, por sua vez, assume uma postura ativa, sádica, terrivelmente tirânica. O ego
fragilizado reagiria, ainda, com uma angústia dilacerante à percepção de que não ficou às alturas
das exigências despóticas que o superego, inclemente, lhe estipula (FREUD, Op. cit.). Assim, a
lógica intrapsíquica do masoquismo moral é revivida, de maneira análoga, na relação que Justine
nutre com esse “Deus” que lhe “torna penoso o curso da vida” mas que, ainda assim, ela teima em
exaltar.
O segundo e último recorte que propomos para análise, diz respeito a um momento
bastante instigador na evolução subjetiva da protagonista, no qual ela se defronta com o caráter
imperativo das suas fantasias mais íntimas. Essa constatação pessoal acontece logo após que
Justine consegue escapar de um mosteiro,
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tormentosos anos, servindo de objeto sexual
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finalmente livre do seu longo calvário, perambulava indefesa pela floresta, procurando algum
lugar para abrigar-se, quando percebe:
Aqui, num debate interno que Justine trava consigo mesma, dois elementos significantes
podem ser apreendidos. Em primeiro lugar, o quadro que se perfaz aos olhos da personagem, e que
causa nela tamanha impressão, poderia ser interpretado à luz da fantasia de espancamento, tão
minuciosamente descrita por Freud ([1919] 2016). Nesse sentido, poderíamos aproximar a cena e
seus participantes, especificamente, ao terceiro momento da fantasia de espancamento. Logo, os
“dois homens montados que pisoteavam um terceiro” cumpririam o papel da figura de autoridade
que, na fantasia original, bate numa criança. E o terceiro homem, que após ser pisoteado e
“deixado como morto” estaria ocupando o lugar que, na fantasia, coube à criança espancada. Essa
leitura nos possibilita, ainda, desvendar os motivos obscuros que impulsionam Justine a render-se
aos seus insistentes “sentimentos de comiseração”, mesmo sabendo que poderia ser “cruelmente
punida por eles”. Como havíamos referido no tópico anterior, neste momento final da fantasia de
espancamento, o sujeito que fantasia identifica-se com a criança surrada, pois, inconscientemente,
deseja ocupar a posição feminina/passiva diante do seu objeto sexual. De maneira análoga, Justine
se vê no lugar do homem que fora tão violentamente agredido e, num movimento que se repete
incessantemente ao longo da diegese, coloca-se, mais uma vez, numa situação de perigo –
condenando-se ao sofrimento e reafirmando a sua disposição masoquista.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Seria possível vislumbrar, nessa peregrinação implacável pela dor na qual a protagonista
embarca, a defesa contra um sentimento de desamparo avassalador, que encontramos presente já
nas origens da personagem. A jornada de Justine é uma história marcada pela negligência, num
primeiro momento das figuras paternas e, logo em seguida, da irmã. Ela é abandonada num mundo
extremamente violento a sua própria sorte e procura, a sua maneira, encontrar o abrigo que lhe foi
negado. No seu discurso emergem, constantemente, signos da solidão e da desesperança. Destarte,
entendemos que esse angustiante desamparo favoreceu a edificação de uma estrutura masoquista
em Justine, que busca, incessantemente, estar à mercê do outro, ainda que fosse vilmente tratada.
As sórdidas torturas que ela suportava, permitiam-lhe ocupar um lugar, de ser acolhida, mesmo
que de maneira extremamente precária e destrutiva. O fato de Justine ter que regredir a estágios
tão primitivos para se sentir amparada diz de um ego profundamente fragilizado e que encontrou,
nas intermitências do sofrimento, um lugar para existir.
REFERÊNCIAS
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