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O P EN S A ME N TO MUSI C A L CRIATIVO PARTE I - ANÁLISE MUSIC AL NA CONTEMPORANEIDADE

Em Busca da música: a Introdução a um clímax em uma cadência sem efeito quando a música chega
aos dois terços. Esse clímax é pura frustração. Acontece que ele também coincide
com a descida prematura da Urlinie. Tomei esse acidente como um sinal de que
linguagem, análise e cuidado1 a Urlinie deixou de funcionar, ou, mais precisamente, de que ela ainda não havia
ganho o poder de funcionar, porque a criação ainda não havia acontecido. A irrup-
ção barulhenta, toda em oitavas, cria a assinatura do caos, o grande X no cerne
Lawrence Kramer do caos, que bloqueia o surgimento do cosmos. O cosmos apenas pode aparecer
Tradução de Alex Pochat após a cadência evitada enfim chegar, no final. Essa descrição analítica ainda soa
bem, então qual é o seu problema?
Peço licença para começar colocando um forte posicionamento negativo. Uma O problema é que não existe nenhuma necessidade da Urlinie: absolutamente
afirmação que não é o objetivo principal do que tenho a dizer hoje; o objetivo é nenhuma. É perfeitamente óbvio que a irrupção no meio do movimento é uma
responder à questão sobre o que fazer se essa afirmação estiver certa. Para obter conclusão prematura. A violência do gesto, a orquestração, as severas oitavas
uma boa solução, precisamos de um bom problema, e se minha afirmação preli- substituindo as tríades, todas essas assim chamadas qualidades de “primeiro pla-
minar estiver certa, então temos, de fato, um problema muito bom – isto é, muito no” praticamente gritam bem alto: ISSO É CAOS. Finais não são finais aqui; não
ruim. A afirmação é a de que, o que hoje é geralmente praticado sob o nome de existem diretrizes; e se você acha que sabe onde está, você está errado. O que é
análise musical, não tem absolutamente nada a ver com música. Tem a ver com acrescentado pelo aparato Schenkeriano?
a habilidade dos sistemas analíticos se autorreproduzirem. O que chamamos de Alguma coisa, poderíamos dizer: um destrinchar extra das engrenagens. Schenker
análise é a imagem espelhada de si mesma. Ao contrário do que os analistas mu- afirma que a descida da Urlinie é, ou deveria ser, o fundamento universal da música
sicais muitas vezes afirmam, tal análise não pode nos aproximar da música e não tonal. Se a Introdução de Haydn não pode compor a sua estrutura fundamental,
pode nos ajudar a ouvir música melhor, ou o que quer que essas promessas vagas então o caos aparece na música como a negação do cosmos – a negação da per-
possam significar. feição aritmética Pitagoreana, representada pela tríade. Isso certamente é alguma
O que, então, a análise pode fazer? O que ela deveria fazer? Deveríamos ter coisa; mas não é muito. Temos uma tríade incompleta independentemente da Ur-
algumas respostas preliminares a essas questões quando tivermos terminado. Mas, linie. Qualquer pessoa pode ouvir isso; é quase impossível não ouvi-la. A interpre-
para começar, temos que ficar com a negativa. Assim, como um primeiro passo, tação, que não está errada, segue de maneira lógica. Então, Schenker acrescenta
vou submeter um exemplo simples de análise a uma crítica severa. Posso lhes as- um pouco – mas só um pouco. Acrescenta, principalmente, o destrinchar; o resto,
segurar que o analista não vai se importar, porque esse analista fui eu. de qualquer modo, podemos ouvir.
Em 1992, publiquei uma discussão sobre a introdução instrumental do orató- Meu artigo falhou em reconhecer completamente o que aquela proporção
rio The Creation, de Haydn1. O tema do artigo se assemelhava a um dos temas implica. A descida da Urlinie é a característica mais básica do sistema de Schenker.
deste congresso, isto é, a relação da análise com discurso crítico, interpretação e Se ela acrescenta apenas um pouco, então o que acontece quando se entra no
hermenêutica musical. O ponto de partida foi a análise de Heinrich Schenker da detalhe mais fino do sistema, suas elaborações internas, cada vez mais remotas
Introdução. Schenker procurou usar a análise como uma base para interpretar a da textura e som da música e cada vez mais dependente de conceitos e funções
Introdução como o que Haydn denominou “A Representação do Caos”. Lidar internas e exclusivas do sistema? Se a idéia maior acrescenta pouco, essas idéias
com esse tema me levou a adotar certas observações analíticas de Schenker. Uma menores provavelmente adicionam muito menos. A análise toca na música e em
dessas observações mais proeminentes envolveu uma irrupção violenta, que leva seus significados só no seu nível mais amplo, e mesmo nesse nível os resultados
da análise são menos do que essenciais. Então por que se incomodar com eles?
1 Kramer 1992.

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Qual é o sentido? que ocorra em qualquer ocasião especial, a música sempre forma uma expressão
Mas, espere um pouco: não há uma falha neste argumento? Eu falei sobre do comprometimento com o mundo e o tempo, que Martin Heidegger chamou
coisas como oitavas e tríades e cadências; isso é uma forma de análise, não é? E de cuidado [Sorge], a marca do testemunho e da responsabilidade, que para Hei-
esse vocabulário não é necessário para se falar sobre música, de qualquer modo? degger eram sinônimos, ou deveriam ser sinônimos, de Dasein, ser humano no
Se é, como se pode justificar falar nesses termos analíticos mas descartar o uso mundo. O cuidado é o meio pelo qual o tempo vazio, o tempo dos cronômetros,
dos termos de Schenker, ou dos termos da teoria neo-Riemanniana, ou da teoria se torna humanizado, de modo que podemos falar do tempo para ou do tempo
transformacional, ou da análise da teoria dos conjuntos, e assim por diante? Não de ou do tempo com algo que é importante para nós2.
é este o caso de, no momento em que se admite um vocabulário analítico, ter-se O cuidado tem suas próprias linguagens, que circulam através da cultura e
que admiti-los todos? constantemente se inventam e reinventam. Cada súdito da cultura sabe como
Há verdade nessa objeção. É impossível descrever a música rigorosamente sem falar essas linguagens, tem a oportunidade de expandi-las, e enfrenta o problema
algum vocabulário analítico e teórico. Mesmo coisas simples, como oitava e tríade de reconhecer as novas quando elas aparecem, e de mudar a paisagem do cuida-
e cadência, qualificam, e não há qualquer critério formal para separar um “bom” do como um todo. A linguagem da análise musical torna-se reveladora, torna-se
discurso analítico, que revela algo sobre a música, do discurso analítico “ruim”, discurso crítico, escapa da armadilha da autorreflexão, quando ocorre em um dos
que só revela algo sobre si mesmo. Mas isso, talvez surpreendentemente, não é vocabulários do cuidado.
um problema. É verdade, não há um critério formal para determinar a escolha da Esse critério do cuidado é tão generoso quanto severo. Ele é generoso porque
linguagem e dos objetos da investigação, mas há um critério de conteúdo. deixa as portas da oportunidade escancaradas; é severo porque exclui a maior
Com isso, não quero dizer que se possa especificar uma série de tipos legítimos parte do que aconteceu nos últimos cem anos em análise musical. Deveríamos
ou apropriados de conteúdo. Conteúdo típico nunca é mais do que preliminar e, ao menos considerar a possibilidade de que falar sobre música em um idioma
frequentemente, bem menos. É claro que existem signos, tópicas musicais, gêne- técnico muito livre do cuidado pode já não ser, de maneira nenhuma, falar sobre
ros, tipos de narrativa, modos de representação e assim por diante, que têm um música.
lugar e influência históricos genuínos. Precisamos conhecê-los. Mas conhecê-los A análise musical não é e não pode ser a base da compreensão musical. A con-
é apenas uma ajuda limitada, porque as maneiras pelas quais a música os trata trário, a compreensão musical é, ou deveria ser, a base da análise – e seu limite. A
são muito variadas e muito rebeldes. Além disso, a música pode ser significativa análise resultante parece muito diferente da análise como é praticada atualmente,
sem eles. Seu alcance intertextual e intermidiático é impossível de ser confinado. a qual, muito frequentemente, neutraliza a música com a qual afirma se preocupar.
Assim, as fontes de conteúdo musical não podem ser listadas. O critério de con- O problema não é que os analistas não se preocupam com a música, mas que se
teúdo não especifica tipos de conteúdo, mas sim o tipo de linguagem que pode preocupam de maneira errada. Eles não podem dar uma explicação satisfatória da
nos dizer algo sobre música. As afirmações feitas nessa linguagem, se forem bem música, não porque lhes falte habilidade (eles têm muita habilidade), mas porque a
feitas, serão reveladoras independentemente dos recursos analíticos específicos música não pode ser explicada analiticamente. A música é uma forma de ação co-
que empregam. municativa ou expressiva, antes de ser qualquer outra coisa. O que a música apre-
Então, que tipo de linguagem é essa? Nenhuma música jamais se apresenta a senta para a análise depende de como um sujeito engajado culturalmente, trata
nós como mero som isolado – pelo menos, a não ser que nos disciplinemos para a música a partir de uma posição de preocupação existencial. Na fenomenologia
ouvir o som isolado e nada mais, e talvez nem mesmo assim. A música vem como clássica de Edmund Husserl (2014), há uma distinção entre tomar uma atitude
parte de uma denso agrupamento ramificante de valores, práticas, decisões, rela- em relação a alguma coisa, ou noesis, e o modo como a coisa em questão aparece
ções sociais, práticas culturais, tipos de identidade, fluxos de sentimento e atitude como um resultado, o noema. O objeto de análise musical é a música, na medida, e
– e a lista continua. É uma lista aberta; não pode ser concluída. Mas o que quer 2 V. Heidegger 1996, 169-212 e Ricoeur 1980.

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apenas na medida, em que o noema é convocado por uma noesis fundamentada o nome como juramento não reflete uma correspondência pré-existente entre
no cuidado. Essa é uma afirmação difícil, então deixem-me repetí-la: o objeto de as palavras e as coisas, mas, ao contrário, produz essa correspondência. A relação
análise musical é a música, na medida, e apenas na medida, em que o noema é entre palavras e coisas não é metafísica, nem mesmo conceitual; é ética.
convocado por uma noesis fundamentada no cuidado. Para dizê-lo corretamente, Se isso está certo, reconhecê-lo pode ajudar a explicar a magia peculiar dos
no entanto, temos de acrescentar que a noesis é totalmente histórica. O sujeito nomes e do nomear, que parece nunca desaparecer, apesar da sua dependência
preocupado com a música é exatamente o oposto do sujeito transcendental fa- de uma correspondência mística entre palavras e coisas, que há muito tempo per-
vorecido pela fenomenologia – e pela teoria musical! deu sua credibilidade. A magia dos nomes não vem deles mesmos, mas do meu
A réplica óbvia para essa linha de argumento é dizer que a análise também compromisso para com eles, meu consentimento para com eles, o cravamento
reflete um tipo de cuidado, não sendo por outro motivo, senão pelo fato dela de minha palavra, e, portanto, o meu cravamento nelas. Mas, como essa lista de
aproximar o analista e outros da música – já ouvimos isso antes. Nem metade paralelismos sugere, a relação envolvida não pode ser limitada à ética. Antes de
desse contra-argumento é válido. A primeira metade simplesmente redefine o ser ética, a relação implicada pelo nomear é poética, no sentido original do termo
cuidado para que se inclua a análise em um desafio aos vocabulários empregados grego poeisis: fazer algo existir onde antes não havia nada3. Pronunciar o nome é
no mundo real. O conceito de cuidado resultante é praticamente sem sentido. A colocar-se por trás da criação de algo, para dar garantia de que algo foi bem feito.
segunda metade é uma falácia lógica clássica, que supõe o que tenta provar. Até a A magia dos nomes é a força de uma promessa. Mais particularmente, é a força
suposição está defeituosa e não examinada: o que é essa proximidade fornecida de uma promessa com um futuro aberto e indefinido, uma promessa que nunca
pela análise, a menos que seja entendida circularmente como qualquer coisa que pode ser mantida de forma definitiva.
a análise fornece? E se ela não for isso, se a proximidade é alguma outra coisa, a Essas reflexões sobre nomes têm uma relação direta com a análise musical,
análise pode perfeitamente reduzir a proximidade, ao invés de aumentá-la. Muitos porque, como já foi observado, a análise depende da atribuição de nomes musi-
músicos sentem que a análise faz exatamente isso. cais. Mas se pensarmos na atividade resultante não como um esforço para produ-
Então, onde isso nos deixa? Como podemos formular uma compreensão mu- zir hipóteses falsificáveis, mas como um exercício de cuidado, torna-se necessário
sical da música sem cair em uma câmara de eco analítica? Em certo sentido, eu reexaminar toda a questão sobre o que a análise deveria fazer, juntamente com
já tentei responder a essa pergunta invocando a linguagem do cuidado. Mas, para as questões sobre como deveriam ser o escopo e o vocabulário da análise, e
dar a resposta, precisamos refletir mais sobre o cuidado, precisamente, como uma como a relação entre análise e interpretação, análise e hermenêutica, deveria ser
expressão da linguagem. Claro que música e linguagem geralmente se opõem; concebida.
todos conhecem os clichês sobre o assunto. Mas nem a música nem a linguagem Não existem respostas fixas a essas questões. Mas é possível enfrentá-las na
podem ficar separadas uma da outra por muito tempo. Para chegar à música, de- prática com a ajuda de certos princípios orientadores que provar-se-iam úteis se
vemos passar pela música, mas para chegar à música devemos, da mesma forma, o que eu disse até agora for verdade. Aqui estão alguns deles:
passar pela linguagem. Não há alternativa.
Uma interpretação é um discurso, um enunciado, um ato de fala que se torna
Em seu estudo recente sobre o juramento, O Sacramento da Linguagem, Giorgio um evento. O significado de uma interpretação é indistinguível de sua linguagem –
Agamben dá a provocativa declaração de que nomear é “o evento da linguagem e assim, portanto, é o significado do objeto ou evento que está sendo interpreta-
no qual as palavras e as coisas são indissoluvelmente ligadas. Cada nomear, cada do. Mas a interpretação não significa o fechamento de um discurso. Pelo contrário:
ato de fala é, nesse sentido, um juramento, no qual. . . [o orador] se compromete é o que torna o discurso possível. Uma interpretação não é uma hipótese, mas
a cumprir com sua palavra, jura por sua veracidade, pela correspondência entre uma atividade.
palavras e coisas que se efetua no ato de nomear” (2011, 46). Há muito o que
pensar sobre essa declaração, mas hoje quero me debruçar sobre a ideia de que
3 Sobre esse uso, v. Stewart 2002, 1-17, e Agamben 1999, 59-67.

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O significado em música não é e não pode envolver a especificação de um ní- pleta repressão. Signos musicais são reais, mas de utilidade limitada; a música não
vel de forma ou estrutura que justifique ou gere uma descrição. A descrição vem segue um código semiótico. Na música, como em outros campos, a semiótica é
primeiro. O que a música significa é o que ela se torna através de uma descrição. uma subdivisão muito bem localizada da hermenêutica. O significado é indepen-
Aquilo em que a música se torna através de uma descrição pode se mostrar dente de signos.
igualmente na interpretação verbal e na performance musical. A diferença do A música não é uma linguagem, mas compartilha com a linguagem a capacidade
meio é uma diferença do método, não uma diferença de possibilidade. O signi- de “dizer” qualquer coisa. Ou seja, música não tem limite no seu alcance semânti-
ficado, em qualquer meio, está disponível em outros meios; significado pode ser co. Outra maneira de dizer isso é que a música também pertence à ordem sim-
transcrito. Isso nunca acontece sem alguma mudança, mas o mesmo é válido em bólica (ou, para ser estritamente Lacaniano sobre isso, que a música pertence à
qualquer meio; o significado, sempre e na melhor das hipóteses, apenas se apro- ordem simbólica o tanto quanto ela pertence ao imaginário e ao Real). Embora já
xima. Resulta que a possibilidade geral de transcrição de um meio para outro é não seja mais apropriado falar sobre significado “extra-musical” – qualquer signi-
a pré-condição do próprio significado. O que isto implica para a música, em par- ficado que a música tenha é um significado musical – , a capacidade da música de
ticular, é a impossibilidade de admitir qualquer distinção que separe a música, ou produzir significado ainda deixa em aberto a questão de que tipo de significado
alguma parte da música, do significado. Significado, ou a falta dele, não vai servir a música pode produzir. A resposta é: qualquer tipo. Qualquer significado pode
para distinguir música da linguagem, música da imagem, a partitura ou a obra da se tornar um significado musical. Qualquer evento musical pode participar desse
performance, a forma do sentimento. Se há um algo além do significado, e isso é significado – ou não. A análise responde de modo mais útil a essas características
um se maior do que costumamos supor, esse algo mais não pode estar localizado da música quando ela fornece um meio de descrever essa participação. Torna-se
em um meio em particular, mas apenas desenvolvido a partir do próprio signifi- menos útil quando toma o meio como fim e, assim, separa-se do vocabulário do
cado. cuidado.
A interpretação é uma intrusão inspirada. Ela desfaz tanto a complacência dos O objetivo da análise não é identificar ordem e estrutura que, quando existem,
enigmas como as ilusões da clareza. Com a música, essas ações ocorrem com uma são principalmente meios de restringir ou enquadrar uma ação musical que nem
franqueza tão desconcertante do ponto de vista empírico que a interpretação ordem nem estrutura podem manter sob controle. A mesma cautela se aplica
musical, apesar de repetidas refutações, ainda é regularmente descartada como à análise de padrões formais em termos de normas e desvios. A idealização da
sendo arbitrária, como um caso especial e inferior, na melhor das hipóteses, uma forma é uma defesa contra o significado. A análise é mais útil e menos auto-sufi-
efusão poética, quando na verdade a interpretação musical é o modelo da inter- ciente quando fornece ou apoia um vocabulário que pode explicar com precisão
pretação em geral, e, por nunca ocorrer em um vácuo cultural ou histórico, não é, determinadas ações musicais quando precisão é necessária. Nos exemplos aos
de modo algum, arbitrária, mesmo quando ela é paranóica ou bizarra. O trabalho quais em breve me voltarei, a análise não envolve, de forma alguma, ordem, co-
de interpretação não é fácil. Requer aprendizagem, experiência e destreza verbal. erência, sistema ou estrutura. A harmonia tem um papel mínimo; a forma não é
Não tem nada a ver com inventar coisas ou dizer o que quer que se queira. Pelo um problema. No primeiro exemplo, a análise se preocupa, principalmente, com
contrário, a interpretação demanda uma pronta imersão na alteridade que atra- a construção e repetição de fragmentos melódicos; no segundo, o fator analítico
vessa o que quer que esteja sendo interpretado, e que sempre excede o enten- primordial é a orquestração.
dimento que ela traz à tona. Todo conhecimeto humanístico é sujeito ao paradoxo da necessária especula-
A hermenêutica não pode ser derivada da semiótica. A noção de que ela pode ção. A música é apenas um, entre tantos exemplos, mas é um exemplo particular-
ou deveria ser é responsável por quase todas as confusões e mal-entendidos que mente vívido, e essa vividez levou, muitas vezes e por muito tempo, a um conhe-
confundem o conceito de significado, e empurra as afirmações do empirismo cimento musical que é constrito, na melhor das hipóteses, e espúrio, na pior delas.
para além de seus domínios críveis, à esfera da superregulamentação, se não com- O paradoxo sobre o qual estou falando é o de que se deve ir além da descrição

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formal e histórica para produzir conhecimento musical genuíno, completo; que acrescenta Latour, com um aceno a Heidegger, são encontros, eixos de prática e
se deve, em uma palavra, especular. Mas especular é por em risco a credibilidade, cuidado sustentados por comunidades e gerações. Coisas, nesse sentido, são mais
empurrar as fronteiras do plausível. O ganho no conhecimento requer perda na “questões de interesse” do que “questões de fato” (Latour 2004).
certeza. Quanto mais importantes são as verdades das quais nos aproximamos, A ideia do objeto, e do mundo de objetos, colapsam, assim, em dois lados. De
mais temos que torná-las elusivas. um lado, existe a parte da atitude de personalidade espectral e animada das coi-
Todos os apelos por um solo firme em que se possa embasar a interpretação sas, sua simulação da vida. Essa característica fantasmagórica dos objetos existe
são em vão. A prática sempre ultrapassa tais tentativas de controle. Para entender como excepcional ou delirante em sua teorização clássica via o fetiche freudiano
o que criamos ou fazemos é preciso andar em areia movediça. e o fetiche de mercadoria de Marx, mas agora parece ter se tornado a regra: é
Portanto – e esse é um forte portanto – , em contraste com os procedimentos assim que as coisas são, o próprio modo de ser das coisas, entre e pelas quais
que ainda são padrão na maior parte do mundo acadêmico, qualquer entendi- vivemos. O espírito das coisas, o espírito inerente às coisas está no processo de
mento da música e da sua história que quer ir além da repetição do já conhecido superar a disputa clássica entre materialismo e idealismo. Por outro lado, ainda
deve começar com especulação informada – com vôos de intuição, saltos de há a neutralidade vazia nas coisas, que resiste aos nossos usos e definições, a
lógica, transferências abruptas de energia semântica, voltas e reviravoltas de lin- teimosia do ser de cada coisa, a sua muda insistência numa sobra que está além
guagem, tudo o que pode ou não corresponder a descrições convencionais, seja do seu status simbólico. Este núcleo resistente é o que permite que qualquer coi-
de estilo ou gênero ou forma ou estrutura, daquilo que compõe uma peça ou sa – qualquer – aja em nome da grande Coisa insimbolizável (das Ding), que, de
ocasião musical. E é nesse espírito, que sempre tentei seguir, que me volto para o acordo com Lacan e Žižek, é o núcleo em torno do qual o desejo, o impulso e a
tópico com o qual tenciono exemplificar as formas que a análise e o entendimen- subjetividade giram4.
to musicais deveriam tomar, no meu entender. Esse tópico é o fetichismo. Parece plausível sugerir que a coisa musical, o objeto sagrado ou o objet petit a
Fetichismo? De onde veio isso? A resposta curta é que ele veio do magnetis- de Lacan, a substituta grande Coisa, está acima de toda a melodia vocal completa
mo peculiar que certos fragmentos musicais, especialmente trechos de melodias, e arredondada, no topo de uma hierarquia melódica cujos termos mais baixos
exercem sobre os ouvintes. Melodias ganham este poder sem motivo aparente e incluem figura, motivo, frase e tema. As pessoas se lembram de melodias, revisi-
podem mantê-lo por um tempo surpreendentemente longo. Quando isso acon- tam-nas, apropriam-se delas, identificam-se com elas, deixam-nas presas em suas
tece, as melodias se tornam coisas valiosas – e o uso da palavra coisa aqui não é cabeças, murmuram-nas, assobiam e cantam-nas. Historicamente falando, a coisa
por acaso. Fetiches, também, são coisas valiosas, por isso a música tem mais em melódica floresce ao longo dos séculos XVIII e XIX; depois disso, persiste na
comum com eles do que se poderia supor. Mas admito que o termo fetiche é deli- cultura-museu da música “clássica” e na proliferação midiática da música popular.
beradamente provocativo, já que implica excentricidade ou perversão. Eu não es- A composição modernista frequentemente torna tal melodia encantadora mais
tou procurando evitar essas implicações, mas também não quero superestimá-las. difícil de se encontrar ou de acreditar, mas raramente a deixa escapar totalmente
Eventualmente, precisaremos considerar um vocabulário mais amplo, para efeitos e, às vezes, a re-abraça com fervor surpreendente. (A estória é, obviamente, de-
de valorização da música. Antes, entretanto, precisamos insistir em duas questões: masiado complexa para um resumo fácil. Ela continua hoje como textura e ritmo,
a questão do próprio fetiche e, antes disso, a questão da coisa. intensificando o papel do toque e do movimento na escuta, rivalizando ou subs-
tituindo a melodia como a principal fonte de envolvimento em certos gêneros).
Na perspectiva de uma era de virtualidade, a noção tradicional – ou seja, a
A história da coisa melódica corre em paralelo com as mudanças epistemológicas
pós-cartesiana – de objetos neutros, determinados, parece insustentável. Como
desencadeadas pelo Iluminismo; sua história antiga precisa de um exame que não
Bruno Latour observou, os objetos estão constantemente tornando-se coisas, no
estou equipado para prover. Mas, como sempre, em matéria de história estética,
que se poderia chamar de o sentido íntimo do termo (“minhas coisas” e “suas coi-
sas”, coisas valiosas ou sem valor, coisas agradáveis ou desagradáveis). Tais coisas, 4 Lacan 1992, 43-70, 101-114; Žižek 1991, 3-47.

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uma vez que um modo de experiência tenha sido inventado, ele continua a ser fora da tonalidade do Primeiro Concerto para Piano de Tchaikovsky, subindo nas
uma possibilidade permanente que se estende no tempo tanto para trás quanto cordas apoiada por grandes arpejos no piano; o tema de amor da Abertura de
para frente. Romeu e Julieta de Tchaikovsky, com acompanhamento de trompas, especialmente
O sentido no qual a melodia ou a música pode se tornar uma coisa põe-se em em comparação com a sua afirmação inicial nas violas com surdina e corne-inglês;
contraste com a coisa na sua mudez ontológica, sua indiferença para com os usos o tema lírico transbordante que quase se tornou a razão para ouvir as Variações
e desejos humanos. Para Heidegger, essa mudez surge apenas quando mal inter- de Paganini de Rachmaninoff, como, em retrospecto, foi a 25.ª variação lenta da
pretamos as coisas como “meros objetos” e perdemos sua “coisidade” genuína, série Goldberg, de Bach; o coral de Bach no Concerto para Violino de Berg; o
que sempre diz respeito ao interesse humano (2001, 163-180). Mas a mudez é coro de marinheiros na coxia em Billy Budd, de Britten; a escala cromática como
inevitável, não importa o que façamos – até mesmo, como veremos, em música; a melodia dodecafônica no Klavierstück IX, de Stockhausen. Pode-se imaginar aqui
indiferença nas coisas não pode ser nem descartada como um erro nem confina- um continuum desde a pura potencialidade do motivo à realização completa da
da a um domínio de meros objetos que, no geral, desapareceram, se é que alguma coisa melódica.
vez apareceram. A ambiguidade entre coisa e objeto é fundamental. Mas, por mo- Todas estas coisas valorizadas são bonitas no sentido estético clássico, até mes-
tivos práticos, precisamos de uma terminologia clara, por isso falarei sobre a coisa mo a de Stockhausen, e todos elas podem assumir um fascínio ou glamour que
idealizada, o objeto de um desejo de posse que será posteriormente ligado ao fe- leva na direção do fetiche clássico. Mas a música pode ser valorizada também
tichismo, como um prêmio, algo premiado, uma coisa premiada, quase uma canção por outras razões: valorizada por um tipo diferente de prazer, algo vertiginoso e
premiada, como na Preislied alemã, que se torna o objeto fetiche procurado por impensado. Para uma música desse tipo, o termo que se aplica melhor é sinthoma.
todos em Die Meistersinger de Wagner. O tratamento de tais melodias premiadas, Jacques Lacan, que cunhou o termo, o descreve como uma antiga ortografia latina
melodias que são, elas próprias, excepcionais na maioria dos gêneros “clássicos”, da palavra francesa symptôme [sintoma]. A ortografia indica a diferença do sintho-
sugere o drama da vida das coisas em todos os sentidos ambíguos da coisa, que ma para o sintoma, no sentido comum do último. O sintoma é uma mensagem
estão suspensos mas não apagados quando algo é premiado. Este tratamento criptografada, um enigma para o sujeito resolver. O sinthoma é um significante
depende, entre outras coisas, do grau de abertura dado ou negado aos prêmios sem significado saturado de prazer, ao qual o sujeito é inexplicavelmente atraído.
melódicos, da relação das melodias premiadas com a textura, instrumentação e Para o Lacan tardio, a grande tarefa para cada um de nós, como sujeitos, é abraçar
outros materiais melódicos com que interagem ou não conseguem interagir, e do nosso próprio sinthoma particular (Lacan 1975).
seu papel nos arcos dramáticos, que, num outro texto, descrevi como traçando o O sinthoma musical é tipicamente uma melodia ou motivo, embora a música
destino da melodia. favorita de alguém, e até mesmo a própria música, se for considerada além do
Ao mesmo tempo, este tratamento proporciona um meio para a música atuar significado, possa se tornar um sinthoma. O exemplo mais famoso é fictício, o “pe-
e refletir sobre o papel do objeto divino perdido naquele drama perpétuo. Tais queno tema” que assombra o narrador de Em Busca do Tempo Perdido, de Proust.
objetos tendem a ser valorizados apenas na medida em que são ouvidos como Mas o tema imaginário de Proust é demasiadamente bonito; significa mais do que
efêmeros, elusivos na própria vivacidade da sua presença, perceptíveis somente um sinthoma realmente deveria fazê-lo. Um exemplo mais provocativo, e real, é
sob o sinal de seu desaparecimento, por trás do qual paira um vazio mais radical. o tema muito pequeno no primeiro movimento do Quinteto de Cordas em Mi
Alguns casos para se ponderar – espero que familiares, já que não há tempo para bemol, K. 614, de Mozart.
descrevê-los, exceto de passagem: a melodia introdutória cantada pelo oboé em A coisa premiada aqui é a frase de dois compassos que abre este movimento e
vez do violino solo no movimento lento do Concerto para Violino de Brahms; o rapidamente o domina. Este pequeno pedaço de melodia magnética junta um par
tema de “Venus”, na Abertura do Tannhäuser de Wagner, no violino solo e flutuan- de figuras incongruentes: depois de uma anacruse, ela se divide em três ataques
do dentro e fora da música como um fragmento de sonho; a melodia introdutória em staccato de uma única nota, seguidos por três figuras de trilos retornando à

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mesma nota. Por algum tempo, não fica claro aonde essas pequenas figuras estão O movimento do Quinteto de Mozart pode ser ouvido como uma forma de
se dirigindo; então, elas começam a proliferar em um motim de golpes e entorces, perguntar o que se ganha e se perde fazendo hedonismo racional. O movimento
uma martelando, a outra empurrando, cada uma esmurrando as costelas, ou algum oscila entre dois modos de diversão. Por um lado, há a vitalidade crua do prazer
lugar mais abaixo; uma imitação de balbucio ou murmúrio; um triunfo de ávida irracional, que cresce com a repetição excessiva das figuras que compõem o
indulgência no que rapidamente percebemos estar o prazer irracional de repetir mote da introdução, que soam tanto juntas como separadas. Por outro lado, há a
e voltar a esses sons, os quais o conceito de sinthoma permite-nos compreender incorporação do mesmo prazer em uma condição racional, o que ocorre quando
como premiado sem referência ao significado, forma, ou bom gosto – esse último, o mote é assimilado pelo lirismo suave do segundo tema (o único, de fato). O
de importância real no século XVIII. Isso não quer dizer que significado, forma e ouvinte tem que decidir, ou deixar que o prazer de ouvir decida, se o segundo
bom gosto não atuem na música. Eles o fazem; vamos ver como. O sinthoma pode tema sublima o primeiro ou o dilui. Como veremos, a questão não é apenas uma.
não ter nenhum significado, mas ele não pode escapar do significado. A música Mas essas observações deveriam ser levadas adiante, em condições que per-
contradiz Lacan neste ponto – mas, como veremos, o faz precisamente em nome mitam pleno alcance dos prazeres sem sentido do sinthoma. O tipo de repetição
de seu sinthoma, que assume a força de uma crítica. Essa é a música que briga exibida aqui tem seu lado patológico, mas o movimento introdutório do K. 614 é
com sua própria suposição tácita de que a música, especialmente nos ambiciosos muito cheio de bom humor, muito cheio de graça, para sugerir patologia. Pode-se
gêneros recentes de música instrumental pura, depende da sua legibilidade formal sugerir que há um hedonismo do sinthoma que esta música aprecia e ajuda a
para a sua legitimidade5. descobrir. A maneira tradicional de descrever esse movimento seria dizer que ele
Por quê? Esse movimento de Mozart é muito “anticlássico”, porém é mais ainda se baseia em um pequeno motivo que a música repete e elabora. Mas dizer isso é
um trabalho do Iluminismo. O século XVIII testemunhou uma transição de épo- dizer praticamente nada; apenas reafirma o óbvio no que remete a peculiaridade
ca em que os prazeres anteriormente suspeitos do mundo material se tornam do movimento a uma ilusão de sistema estável. Nós sabemos como primeiros
concebíveis e disponíveis como fins em si mesmos. O resultado é um sistema de movimentos típicos soam em Mozart e Haydn e eles não soam como este. Se-
hedonismo racional, um projeto no qual o mundo se torna o lugar onde, como ria muito mais acurado dizer que o movimento usa a sua identidade formal ou
coloca William Wordsworth, “encontramos nossa felicidade, ou não”, e onde o genérica como um pretexto para a repetição alegre de uma pequena figura sem
consumo de coisas agradáveis torna-se uma parte validada da vida comum6. sentido, apreciada por sua própria falta de sentido: brincadeira irresponsável com
o sinthoma. Ou, para colocar nos termos do século XVIII, repetindo David Hume:
5 O problema começa quase no início da música. A incongruência dentro do mote introdutório ecoa tanto na a razão aqui é, e deveria ser, a serva das paixões.
frase que lhe responde como no expandido grupo temático heterogêneo que segue sua combinação. A frase de resposta
termina invertendo a maneira como o mote começa, embora com uma articulação diferente. Mas as duas frases são Claro que a Razão, com R maiúsculo, tem suas razões, e o movimento não as
completamente diferentes enquanto gestos; a simetria forçada que marca seus limites é potencialmente rica em implicação, desdenha simplesmente; o segundo tema é, de propósito, bonito. Mas a música
mas isto – e qualquer detalhe técnico – não é necessariamente um sinal de relacionamento, muito menos de estrutura ou
unidade. Neste caso, a inversão parece indicar um esforço para conter a proliferação do mote e seus componentes. Se assim permite que aquela beleza aja como uma promessa de volta ao bom senso, depois
for, como veremos, fracassa espetacularmente.
de tirar umas férias dele – -mas não hoje. O pensamento Iluminista é baseado, so-
6 Ver Michael Kwass, “Ordering the World of Goods: Consumer Revolution and the Classification of Objects in
Eighteenth-Century France”, Representations 82 (2003): 87-116. A citação é da descrição de Wordsworth, das esperanças bretudo, na observação e na taxonomia; daí o conceito central em Kant ser o pró-
inspiradas pelos primeiros dias da revolução francesa:
Now was it that both found, the meek and lofty prio conceito, entendido como o resultado da habilidade do sujeito em colocar
Did both find, helpers to their hearts’ desire, as coisas percebidas ou compreendidas em categorias. O impulso por trás desse
And stuff at hand, plastic as they could wish,–
Were called upon to exercise their skill, movimento é o de afastar-se dessa habilidade, ao desafiar as próprias noções de
Not in Utopia,–subterranean fields,–
Or some secreted island, Heaven knows where!
temas e seus propósitos formais. Aqui podemos esquecer da “forma sonata” – às
But in the very world, which is the world vezes é importante lembrar que a forma assim chamada é, na verdade, apenas um
Of all of us,–the place where, in the end,
We find our happiness, or not at all! anacronismo útil para Haydn, Mozart, Beethoven e Schubert, e lembrar que, para
The Prelude (1850), Bk. XI, 11. 136-144, http://www.bartleby.com/145/ww297.html.

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eles, a essência da forma em um primeiro movimento consiste na junção de duas tolerante de um excesso que pode zombar dela mas não prejudicá-la, ou há uma
partes, geralmente desiguais, e a questão de como, ou se, as partes se encaixam. lacuna entre a busca do prazer, que pode ser racional, e o próprio prazer, que não
Em K. 614, elas se tornam um pretexto de colecionador, um meio de reunir o o é? A cultura do hedonismo racional está sujeita a ultrapassar a si mesma? Em
máximo possível de prazeres no sinthoma. Mozart indica repetição para ambas tal cultura, a legitimidade da razão apoia ou subverte a legitimidade do prazer, e
as metades – a segunda metade traz um alvoroço de meneios, figuras de trilos vice-versa? As respostas não são certas, e nossa inclinação em respondê-las sem
que gingam, que simplesmente não podemos ouvir só uma vez – e ele estende o dúvida diferirão em diferentes performances. Mas as perguntas são válidas, e sim-
alvoroço hedonista que finaliza a segunda metade na coda. plesmente perguntá-las traz um prazer próprio. Performances repetidas fazem da
Pode-se até ouvir esse movimento como uma reflexão sobre a escolha de ser própria pergunta um tipo de sinthoma7.
o que é. O fator principal aqui é a divisão do mote introdutório em seus dois seg- O que acontece entre o sinthoma e o fetiche? O que orienta sua continuidade
mentos, a tercina de uma nota no primeiro tempo e a tercina do trilo com o trilo e o que impele as transições entre eles e entre qualquer um deles e a melodia
acentuado do segundo tempo. O tratamento de Mozart para esse motivo asse- premiada? Vamos precisar de um exemplo para pensar sobre essas questões. Ele
melha-se ao famoso jogo inventado pelo neto de Freud, que lançava um carretel deve ser trazido agora, e o exemplo terá que mostrar, que o sinthoma, o prêmio,
longe para depois trazê-lo de volta enquanto pronunciava sons que Freud inter- e o fetiche não são coisas diferentes ou condições diferentes, mas aspectos di-
pretou como similares às palavras alemãs fort e da, ou seja, lá e cá (Freud 1922, ferentes de algo valorizado. Aspecto é o nome dado por Wittgenstein para uma
11-14). Essas semelhanças à linguagem levou Lacan a pensar no jogo como indica- característica que dá sentido a um ato de percepção. O aspecto (brincando com
tivo da iniciação do neto no sistema de oposições supostamente característico da um sentido mais antigo da palavra) é a face que aquilo que eu percebo apresenta
linguagem e, portanto, na ordem simbólica. Mas o neto não só encena todo o jogo a mim como um traço da minha atitude para com ele. O aspecto muda assim
do fort-da, mas também, ainda mais frequentemente, encena o fort por si mesmo. como o faz a atitude; nos termos de Husserl, a mudança na noesis torna-se mu-
Mozart, do mesmo modo, não só repete o motivo completo, mas também, ainda dança no noema8 .
mais frequentemente, repete os trilos. Essa figura arrepiante nunca é racionalizada. O tema de amor da Abertura de Romeu e Julieta, de Tchaikovsky, é um exemplo
Ela varia constantemente em forma, textura, e número. Ela retorna a si mesma em revelador. Depois do movimento do quinteto de Mozart, menos conhecido e mui-
texturas imitativas próximas com uma insistência que parece quase involuntária. to excêntrico, parece irônico falar sobre tal sucesso. Esta música é tão fetichizada
Às vezes, ela dobra seu prazer ao repetir-se nas cordas mais agudas, contra os e canonizada, que pensar nela como estando na uma transição de afastamento do
grunhidos rudes viscerais do violoncelo. O trilo, talvez principalmente quando soa sentimento Romântico pode parecer absurdo. Mas espero convencê-los de que
apenas uma vez, é o coração do sinthoma musical, e é esse sinthoma contraído, ela pode ser precisamente ouvida assim, uma música não tão distante de Mozart,
sistólico que se torna o fort independente de um jogo de fort-da. como se poderia esperar, embora completamente diferente na textura e tem-
E o fort é onde as coisas terminam. O último som que ouvimos antes da ca- peratura expressivas. Os tempos tinham mudado, obviamente, como a suíte de
dência final é o trilo exposto no registro agudo do primeiro violino. A cadência orquestrações, que Tchaikovsky chamou de “Mozartiana”, torna bem claro. Mas
segue instantaneamente, mais redutiva do que conclusiva. Sua imposição cega o prazer ainda está em jogo, o prazer encontrado apenas no objeto premiado –
oferece a oportunidade de refletir sobre a capacidade da cadência, ou qualquer
outra coisa, para conter os sinthomas. O que prevalece nessa música: sua indul- 7 O nível de prazer do K. 614 pelo seu sinthoma pode ser medido pelo mesmo trilo que é essencialmente o único
conteúdo da seção do “desenvolvimento” (em sentido algum ela é um desenvolvimento) do movimento lento da Sinfonia
gência irracional no mote premiado ou sua racionalização do mote no segundo Haffner, também um movimento com ambas as metades repetidas. Na sinfonia, a figura não está relacionada com a
tema, que normaliza a figura de uma nota só e se dissolve em uma melodia lírica música que a rodeia; ela representa uma alternativa clara à busca por aquela outra busca musical; um platô lírico. Mas o
trilo aqui é mantido firmemente dentro de limites, na colocação e na extensão; não há coda pela qual ele possa transbordar;
que absorve e se desenvolve a partir do trilo? Como sugeri anteriormente, essa o prazer que ele oferece é um pouco caprichoso, mas não irracional: a própria oposição de sua contraparte no K. 614.
questão não é apenas uma. O hedonismo da música é, em última análise, racional, 8 Wittgenstein 1958, Parte II, Seção xi (p. 193-229 na 2.ª ed.). Sobre a relação entre mudança de
aspecto e significado musical, ver meu Expression and Truth: On the Music of Knowledge (2012, 10-13 passim).

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premiado a todo custo: nesse caso, o prazer de um objeto premiado assumindo o em Tchaikovsky, ouvido em oposição à tragédia inevitável, ancora a estória dos
fascínio por outro, ou seja, da melodia permanecendo no lugar da única coisa que amantes na dimensão da perda que sempre está presente na vida das coisas. A
o amante busca no amado. O fetiche, como veremos, vem depois. proximidade da perda, onde a perda que chega é sempre uma repetição de uma
A Abertura de Tchaikovsky persegue um prazer que desafia a razão no lugar perda que já ocorreu, é o próprio princípio da animação e do desejo interpretati-
onde o seu paralelo no quinteto de Mozart simplesmente ignora a razão. A mú- vo e fantasmagórico que a música extrai em abundância. O aspecto animativo do
sica da abertura é baseada em uma revelação constante de apetite sexual em objeto perdido age não em contradição com o seu aspecto mortificante, mas em
estado natural que desafia a sublimação estética em uma paixão enobrecedora – cooperação com ele. Constantemente passamos de um para o outro e vice-versa.
ou melhor, tenta desafiar essa sublimação, quase com sucesso. O quase é a chave Isto é, até determo-nos diante do fetiche, que é uma das coisas que a música
para a popularidade da música. O objetivo em ouvir essa peça na contramão da parece querer de nós: criar dela uma coisa.
sua inclinação natural não é anunciar que o elevado sentimento Romântico tem Então, a música demanda fetiches; o que isso significa? O fetiche, em geral, é um
uma base sexual; todo mundo sabe disso. O sentido é, mais apropriadamente, que objeto substituto que é glamourizado ao assumir o carisma do objeto (perdido)
a transgressão e auto-destrutividade não são os subprodutos de tais impulsos o qual substitui. É o objeto sine qua non: no cenário marxista, o objeto sem o qual
sexuais, mas seu motivo; o desejo comprova sua autenticidade ao ser o único não se pode viver; no freudiano, o objeto sem o qual não se pode passar. Em
sobrevivente daqueles que o sentem. ambos os casos (e isso Freud explicita), é um objeto que adia o reconhecimento
Em ambas as suas formas, a melodia é dividida em si mesma: primeiro, em violas de algo primordialmente angustiante: no caso marxista, a alienação, no caso freu-
com surdina e corne-inglês, as sonoridades não muito misturadas, como o filho e diano, a vulnerabilidade (masculina) à castração. Em ambos os casos – tratando
a filha de famílias em guerra, Montecchio e Capuleto; depois, no agudo, madeiras ambos como sintomáticos – , a potencial falta de integridade, intangibilidade e
quase estridentes e uma trompa pulsante, a trompa sempre na iminência de assu- autocontrole9. O sujeito moderno é tanto condenado a esta carência quanto cul-
mir o controle, sua pulsação subjacente constante (de corpo, batimento cardíaco, pado por ela. Ninguém pode ser totalmente um; àqueles que querem ser, ou não
respiração, genitália), sempre capaz de ser ouvida minando a sedução, o sentimen- se contêm em querer ser, a subjetividade é um exercício em sua própria futilidade.
to que salta da melodia premiada, e isso para abrir-se sem limites ao latejante de- O fetiche é o encanto secreto pelo qual o eu “interior” nega e compensa esse
sejo indisfarçável. Mas não completamente: eu não disse ouvida, mas capaz de ser fracasso culturalmente estabelecido.
ouvida. A retórica sublime dos sopros, e a clausura da trompa em uma roupagem Aonde essa conclusão nos leva? No tempo que resta, vou tentar seguir o fio
acústica de cordas brilhantes, convida os ouvintes a fetichizar o som da melodia musical pelo labirinto. Comecei delineando a natureza essencialmente desorde-
sem reconhecer suas ações, a desfrutar da continuidade entre romance e luxúria nada do conhecimento musical e do conhecimento humanístico, conhecimentos
sem reconhecê-la. adquiridos através da interpretação. Minhas observações específicas têm lidado
Anteriormente sugeri que o princípio animador das coisas está ligado à cir- apenas com uma tradição musical, mas em termos, espero que não excluam
culação de desejo por um objeto que sempre está perdido ou é impossível, a outras. Os resultados foram muito mais longe do que normalmente poderia ser
grande Coisa para a qual o objet petit a Lacaniano serve como um substituto. considerado, ou poderia ter sido considerado em uma determinada época, como
Nossos exemplos de Mozart e Tchaikovsky sugerem que, para eles, a Vida, V mai- discurso musical. A implicação desse movimento centrífugo é que algo além da
úsculo, é um nome apenas para essa Coisa. A sugestão decorre do surgimento pura compreensão da música pode estar em jogo, no discurso e na própria mú-
da vida como um conceito geral, acima e além de seres vivos, no século XVIII, sica. O que poderia ser isso?
aproximadamente no mesmo momento da invenção da estética (Foucault 1994, Entre as possíveis respostas, deixem-me sugerir duas: uma histórica, a outra,
160-162). A insistência irracional em Mozart aponta para a prioridade da vida epistêmica.
sobre a mente, não obstante o que a mente pense; o preenchimento corpóreo
9 Marx 1887, 46; Freud, “Fetishism” (1927), in Freud 1962, 214-219.

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A diferença entre os tratamentos de Mozart e Tchaikovsky do sinthoma é um tido intacto de ser subjetivo, o próprio sentido ao qual a maior parte da música
índice de mudanças históricas e, portanto, uma fonte potencial de conhecimento ocidental historicamente serve.
histórico. Mozart trata o sinthoma como matéria musical, quase na dimensão do Mas a narrativa é realmente necessária para isso? Nossos exemplos não con-
toque – algo que ele oferece aos músicos ainda mais do que aos ouvintes; os cordam. A peça de Mozart diz Não. Se narrativa envolve uma significativa mudança
músicos chegam a dedilhar o sinthoma de novo e de novo, para se perderem de condição, então não há nenhuma narrativa no primeiro movimento de K. 614.
em suas reiterações, tocar até a vertigem. O conjunto, com o acréscimo de uma Nada acontece lá, nada muda; o ajuste harmônico necessário de dominante para
viola – supostamente o instrumento favorito de Mozart – ao quarteto de cordas, tônica é inconsequente. Mas essa resistência radical à narrativa ou narrabilidade
é um teatro perfeito para o propósito. O movimento do quinteto de Mozart dá é o próprio fundamento do prazer que a música modela e representa. Não só se
ao impulso possessivo por detrás do hedonismo racional um espaço socialmente pode vivê-la, mas pode-se vivê-la feliz, tornar-se feliz ao vivê-la. A peça de Tchaiko-
protegido para se soltar. Para Tchaikovsky, a possibilidade de tal proteção torna-se vsky diz Sim, mas desesperadamente, porque narrativa é aquilo que ela não pode
incerta. Tchaikovsky sexualiza o sinthoma, e ele faz isso de tal forma, que constan- ter, apesar de ser chamada de música de programa. Essa música repetidamente
temente ameaça destruir o brilho idealizado de seu tema. Sua abertura satisfaz tenta criar transições narráveis entre suas forças antagônicas, mas, ao longo da
de forma exemplar a demanda de sua época, identificada por Michel Foucault: obra, transição se torna cada vez interrupção – e os amantes, pelo menos, não
colocar o sexo no discurso, fazer da verdade do sujeito a verdade do sexo (1978). sobrevivem. Uma carência semelhante impulsiona a peça de Shakespeare, em que
A passagem da história entre as práticas de Tchaikovsky e Mozart trilha uma mu- a origem da rixa entre as famílias dos amantes permanece desconhecida, perma-
dança de um modelo superficial de prazer sob o signo do tátil para um modelo nentemente não narrável. Mas nesse caso, surge outra defesa contra a destituição
de prazer profundo através das nuanças do erótico. subjetiva, a saber, a lógica do prêmio e do fetiche. Através dessa lógica, o tema de
A outra possibilidade, a epistêmica, diz respeito ao elo fundamental entre sub- amor preserva as possibilidades subjetivas que a narrativa destrói, mesmo sendo
jetividade e compreensão, algo que a música pode ser especialmente boa em o tema impotente na estrutura narrativa. Neste ponto em particular, o tema se
modelar. Outro nome para esse elo é experiência. A chave para essa possibili- torna uma parábola do que a música pode realizar. O tema sobrevive, e uma sub-
dade depende do reconhecimento de que a compreensão não é simplesmente jetividade digna de ser vivida sobrevive com ele.
uma atividade realizada pelo sujeito. Em vez disso, a compreensão é o meio pelo
qual o sujeito sustenta sua consistência em face aos choques que inevitavelmente
Referências
interrompem-na, e os elementos do impensado e do desconhecido que nunca
Agamben, Giorgio. 2011. The Sacrament of Language: An Archeology of the Oath, trad. Adam
podem ser apagados da composição do sujeito. Ao compreender, o próprio ser
Kotsco. Stanford: Stanford University Press.
se preserva.
__________. 1999. The Man without Content, trad. de Georgia Albert. Stanford: Stanford
Judith Butler propõe que a ética deve ser fundada na incapacidade básica do University Press.
sujeito em ter sucesso no que ela chama de dar conta de si mesmo. O que acon- Butler, Judith. 2005. Giving an Account of Oneself . New York: Fordham University Press.
tece se mudamos a relevância do ético ao epistemológico? Eis Butler, comentan- Foucault, Michel. 1978. The History of Sexuality, Volume I: An Introduction, trad. de Robert
do sobre a necessidade e a futilidade da narração (2005, 59): “Narrar uma vida Hurley. New York: Vintage.
[deve falhar, mas ainda] tem uma função crucial, especialmente para aqueles cuja __________. 1994. The Order of Things: An Archeology of the Human Sciences. New York:
involuntária experiência de descontinuidade aflige de maneira profunda. Ninguém Vintage.
pode viver em um mundo radicalmente não-narrável ou sobreviver a uma vida Freud, Sigmund. Sexuality and the Psychology of Love, ed. Philip Rieff. New York: Collier, 214-
radicalmente não-narrável”. A narrativa, sugere Butler, é a nossa defesa contra as 219.
rupturas da falta de significado. Ela sustenta a possibilidade de se manter um sen- __________. 1992. Beyond the Pleasure Principle, trad. de C. J. M. Hubback. Londres e Viena:
International Psycho-Analytic Press (Google Books).

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MúSICA E NARRATIVA DESDE 1900:


Heidegger, Martin. 1996. “Care as the Being of Dasein”. Being and Time (1927), trad. de Joan
Stambaugh. Albany, NY: SUNY Press.
__________. 2001. “The Thing”. Poetry, Language, Thought, trad. de Albert Hofstadter. New
York: Perennial.
Husserl, Edmund. 2014. “Ideas: General Introduction to a Pure Phenomenology”. Routledge,
o desafio hermenêutico da
255-281.
Kramer, Lawrence. 1992. “Haydn’s Chaos, Schenker’s Order; or, Hermeneutics and Musical
análise contemporânea
Analysis: Can They Mix?”. 19th Century Music 15, 3-17; revisado e atualizado em 2006 como
“Haydn’s Chaos, Schenker’s Order; or, Musical Meaning and Musical Analysis: Can They Mix?” Michael L. Klein
in Critical Musicology and the Responsibility of Response: Selected Essays. Aldershot: Ashgate,
237-262. Tradução de Alex Pochat
__________. 2012Expression and Truth: On the Music of Knowledge (Berkeley and London:
University of California Press. 01. Uma introdução por meio de uma confissão
Lacan, Jacques. 1975. Seminar 23: Le Sinthome, trad. de Luke Thurston, <http://www.scribd. Antes de começar, tenho uma confissão a fazer: eu não me considero um
com/doc/97204361/Seminar-of-Jacques-Lacan-Book-XXIII-Le-Sinthome>.
teórico musical, pelo menos não no modelo que tem estado em voga nos Estados
__________. 1992. The Ethics of Psychoanalysis (Seminar VII), ed. Jacques-Alain Miller, trad.
de Dennis Porter. New York: Norton. Unidos, Reino Unido e Canadá, desde a fundação da Society for Music Theory, em
1977. Fui treinado como um teórico musical na State University of New York, em
Latour, Bruno. 2004. “Why Has Critique Run Out of Steam? From Matters of Fact to Mat-
ters of Concern”, Critical Inquiry 30, 225-248. Buffalo, onde meus estudos constituíam-se principalmente de cursos de análises
Marx, Karl. 1887. Capital: A Critique of Political Economy, Vol. I, trad. S. Moore e E. Aveling, Schenkeriana e Pós-Tonal. Mas, assim que terminei meu Doutorado, comecei a
<https://www.marxists.org/archive/marx/works/download/pdf/Capital-Volume-I.pdf>. me perguntar que questões esse tipo de teoria musical restrita podia responder,
Ricoeur, Paul. 1980. “Narrative Time”, Critical Inquiry 7, 169-190. e decidi que tais questões não valiam a pena ser perguntadas, pelo menos para
Stewart, Susan. 2002. Poetry and the Fate of the Senses. Chicago: University of Chicago Press. mim. Eu vejo o termo “teoria musical”, então, no seu sentido mais antigo, como
Wittgenstein, Ludwig. 1958. Philosophical Investigations, trad. de G. E. M. Anscombe, 2.ª ed.
qualquer pensamento disciplinado sobre música, que engloba muito mais do que
New York: Macmillan. a revelação de estruturas de condução de vozes, ou a descoberta de como uma
Žižek, Slavoj. 1991. Looking Awry: An Introduction to Jacques Lacan through Popular Culture. peça musical “funciona”, o que quer que isso supostamente signifique. Embora
Cambridge, MA: MIT Press. muitas vezes eu realize alguma forma de análise musical no meu trabalho, normal-
mente ela não é muito complexa. Prefiro pensar sobre música e o conjunto que
ela forma com cultura e subjetividade. Análise musical não é um fim; é um dos
muito caminhos que podem levar a um entendimento hermenêutico do nosso
lugar na história das ideias e da consciência.
O tópico desse ensaio diz respeito à narratividade, particularmente na música a
partir de 1900. Recentemente, a Indiana University Press publicou uma coleção de
ensaios entitulado Música e Narrativa desde 1900, que eu co-editei com Nicholas
Reyland. Nessa coleção, o ensaio introdutório discute alguns dos problemas da
narrativa musical sem olhar atentamente para qualquer peça em particular.1 Esse

1 “Musical Story”. In: Klein 2013: 3-28.

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trabalho é um companheiro daquele ensaio. Discutirei algumas das questões que se aproxima para a fim de ouvir sua canção – , mas também o tempo, como
sobre música e narratividade, ao considerar quatro pequenas peças: La Flûte de qualidade de expressão, faz-se conhecer. Em um sentido, a canção de Dorothy
Pan, de Debussy (1898); Sechs Kleine Klavierstücke op. 19 n.º 2, de Schoenberg não é a narrativa; ela interrompe a narrativa. Em outro sentido, a ruptura temporal
(1911); Over the Rainbow, de The Wizard of Oz, de Arlen e Harburg (1939); e Jeux da canção de Dorothy é uma marcação de narrativa.
Venetiens, de Lutoslawski (1961). Já que La Flûte de Pan e Jeux Venetiens podem ser Música não precisa ser melódica para ser lírica. A esfinge do Klavierstück de
menos familiares, vou dedicar um tempo descrevendo-as. Schoenberg, op. 19 n.º 2, também desperta o tempo lírico, apesar de ser restrita
La Flûte de Pan trata de uma jovem contando como um rapaz (possivelmente o em termos de melodia inequívoca. Embora a pequena peça de Schoenberg evite
próprio Pan) lhe deu um beijo enquanto lhe ensinava como tocar flauta. Ao final o “por que não?” da canção de Dorothy, ela ainda ativa o tempo como qualidade
do poema, ela fica preocupada com a mentira que contará a sua mãe para explicar lírica. Mais tarde, vamos ver que a pequena peça de Schoenberg também apre-
sua ausência. Jeux Venetiens foi a primeira peça que Lutoslawski compôs usando senta as rupturas associadas à narrativa.
técnicas aleatórias. A peça tem uma estrutura simples, alternando entre seções ad
lib, onde a orquestra toca suas partes como se executasse uma cadência, e seções 03. Música como Narrativa
battuta, onde a orquestra toca da forma habitual.
Em semiótica, diríamos que o lírico é o termo não marcado para a música, o
Repetindo uma advertência que Lawrence Kramer nos dá, se você busca na que significa que nossa primeira expectativa é a de que a música será lírica. Mas
narrativa a recuperação de uma unidade perdida na música, então você não en- a música, também, tem momentos de narrativa, em cujo caso torna-se marcada3.
tendeu a natureza disruptiva da narrativa2. Momentos narrativos em música são Para que música se torne narrativa, um atributo deve sugerir um desdobramento
mais disruptivos e rebeldes do que poderíamos suspeitar. Como última confissão, de uma estória, a presença de um narrador, uma mudança na temporalidade,
entretanto, admitirei que frequentemente uso mais análise nesse ensaio do que é uma ruptura, etc. No início de Jeux venitiens de Lutoslawski, por exemplo, um
necessário. Resumindo, a minha abordagem será discutir narrativa em muitas se- golpe agressivo da percussão nos envia para dentro da ação musical in media res.
ções curtas. Às vezes, apenas uma linha tênue conecta uma seção com a próxima, A música é agitada e caótica, enquanto a nossa brusca entrada na cena sugere
de modo que este trabalho não acompanha a definição clássica de Aristóteles de uma técnica narrativa tão antiga quanto a poesia épica. Outro golpe percussivo
trama como uma sequência lógica de eventos. interrompe a primeira cena antes que ela possa chegar a uma conclusão satis-
fatória. Encontramo-nos em um tempo e lugar diferentes, sugerindo um corte
02. Música como Lírico cinematográfico. O início abrupto, a cena musical ativa e o corte nos levam a ouvir
Música é expressão lírica. Como na poesia, o lírico, que é expressivo, e frequen- esta música como narrativa.
temente pessoal, está em oposição ao épico, que é narrativo, e frequentemente Debussy é mais sutil com a narrativa em sua canção La Flûte de Pan. O piano começa com
heroico. Nos termos de Henri Bergson, o lírico é tempo como qualidade: um uma frase modal incerta: a música está em Sol # Dórico, como o gesto de abertura suge-
estado no qual a consciência se permite desdobrar-se no seu próprio ritmo. re, ou em Si Lídio, onde a frase aterriza no compasso 2 (Figura 1)? A questão toca em um
Como expressão lírica, a música suspende o tempo, ou, mais adequadamente, dos problemas culturais da canção, que envolve uma sexualidade ambígua, ou, mais ade-
ela é tempo imaculado pelo tique-taque do relógio. Em especial, entendemos a quadamente, a ambiguidade da própria sexualidade. Enquanto isso, a flauta de Pan plana
música como lírico quando ela interrompe uma narrativa. Judy Garland torna o brevemente sobre o primeiro compasso. A música soa velha, antiga como se tivéssemos
caso clássico quando canta Over the Rainbow, em The Wizard of Oz. Não apenas a encontrado um objeto perdido. Carolyn Abbate descarta técnicas antiquadas como marca-
estória para enquanto Dorothy exprime o seu desejo musical – mesmo o tornado
3 Uma oposição marcada é aquela na qual um termo é menos comum e, portanto, destaca-se para interpretação.
Por exemplo, se uma fotografia mostra as costas de pessoas ao invés de seus rostos, a oposição costas/frente é marcada
2 “‘As if a Voice Were in Them’: Music, Narrative, and Deconstruction”. In: Kramer 1990: 176-213; V. também “Musical e o fotógrafo está aberto à interpretação. Para uma discussão sobre marcação em música, ver Robert S. Hatten, Musical
Narratology: A Theoretical Outline”. In: Kramer 1995: 98-121. Meaning in Beethoven: Markedness, Correlation, and Interpretation (Bloomington: Indiana University Press, 1994).

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dores de narrativa. Ela prefere ouvir a voz do narrador como o significante não qualificado
para a narração (Abbate 1991). Mais tarde, entretanto, veremos que La Flûte de Pan inclui
05. Agenciamento Além do Arco-íris
uma voz narrativa: ela é marcada como narrativa.
Agenciamento envolve ouvir o desdobramento musical com uma urgência
Figura 1: Debussy, La Flûte de Pan
interior ou um ato de vontade, em vez de um processo mecanicista. O agente
04. Por quê estudar música como narrativa?
musical se esforça ou produz, busca objetivos ou os rejeita, persiste ou recua. Os
primeiros trabalhos sobre energética podem dar a impressão de que agenciamento
está ligado às noções de condução de vozes e de notas sensíveis. Mas, como Fred
Maus demonstrou, não é tarefa fácil desemaranhar agentes musicais na música
tonal (Maus 1989: 31-43). Ainda assim, vou deixar de lado esse problema para
examinar brevemente o agenciamento melódico em Over the Rainbow (Figura 2).
Figura 2: Arlen e Harburg, Over the rainbow
O agente musical – vamos chamá-lo de Dorothy – revela rapidamente sua

Se você acha que definir narrativa é algo que os críticos literários resolveram,
vai ficar extremamente decepcionado. Como escreve o crítico literário J. Hillis
Miller, há tantas teorias da narrativa “que pensar nelas todas faz a cabeça doer”
(Miller 1995:67). Narrativa não pode ser definida, apenas contada. Entre as muitas
definições de narrativa, eu tendo a seguir Ricouer, que argumenta que a narra-
tiva reúne elementos disruptivos como pensamentos secretos, pontos de vista
conflitantes, temporalidades diferentes, ações simultâneas, e os congrega como
os termos de uma metáfora, para criar uma nova pertinência através do tempo
(Ricoeur 1984: I/ix). Embora os elementos disruptivos pareçam estar unificados
no que chamamos de trama, essa aparente unidade é uma ideologia. A tarefa
diante de nós não é a de recuperar uma unidade perdida, mas a de encontrar um
significado nos próprios elementos disruptivos.
Penso que é melhor, então, deixar de lado a questão do status da música
vis-à-vis da narrativa e fazer a pergunta “por que estudar música como uma forma
de narrativa?” Mais tarde, vou argumentar que o estudo da narrativa é um ato aspiração com o salto de oitava inicial da melodia. Mas, nos termos de Candace
hermenêutico, mas por enquanto vou sugerir que a narrativa nos oferece uma Brower, a gravidade musical puxa o agente para baixo ao longo do resto da
constelação de metáforas para compreender música. Entre estas, estão agen- frase (Brower 2000). Toda a introdução permanece como um caso clássico de
ciamento, temporalidade, enredamento, e alguma noção de uma voz narrativa. movimento de preenchimento de intervalo, de Leonard Meyer: ouvimos cada
Poderíamos expandir esta lista com noções como crise, peripeteia (ou reversão), nota da escala preenchendo o intervalo dessa oitava inicial. O agente não se
anagnorise (ou revelação), etc. Mas, por enquanto, vou focar em agenciamento, abranda, aventurando mais dois saltos: um de sexta maior, no meio, seguido por
temporalidade, enredamento, e um narrador. um de sexta menor. O agente resiste à força gravitacional o suficiente para fazer

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um pouso suave ao final da primeira seção da canção. Figura 3: Schoenberg, op. 19 n.º 2

O agente musical Dorothy deve optar por outro caminho para recuperar sua Esses agenciamentos são realmente um vislumbre da realidade da liberdade? Ou
aspiração. Na segunda seção da canção, ela usa uma terça gorjeante que se move o problema é que a música é uma pobre analogia da nossa subjetividade? Ou será
sem pressa até o sexto grau da escala. Mas como Jeremy Day-O’Connell demons-
trou (2002), fazer uma melodia tonal subir acima de um sexto grau de escala não
é um assunto fácil. À medida em que a melodia cai novamente, forçando o agente
a começar de novo, ela toma um novo caminho através da quarta aumentada,
cuja vibração tremulante impulsiona a melodia através dos sexto e sétimo graus
da escala para superar a meta original. Pode-se dizer que Dorothy irrompe da
contenção do seu primeiro desejo. Apesar da frase inicial retornar, com o seu dócil
desencanto, o agente conclui com uma subida por graus conjuntos chegando à
oitava superior justamente na última nota da música. Aprendemos que o nosso
agente é persistente: ela encontra novas maneiras de contornar obstáculos e se
recusa a afastar-se de seu desejo secreto.

que o nosso modelo de subjetividade estava errado o tempo todo? Voto na última
06. Agente Arnold opção. O modelo convencional de subjetividade vê o sujeito como algo separado
Às vezes, é melhor separar agenciamento de tonalidade e vê-lo como um ato do mundo exterior: uma consciência cujos pensamentos e sentimentos secretos
intencional de escuta, que cria o que Roger Scruton chamou de “um vislumbre têm uma lógica e unidade próprias. Mas esta visão não é a de Schoenberg. Em uma
incomparável da realidade da liberdade” (Scruton 1997: 76). Onde está o agente carta a Busoni, Schoenberg escreve: “O homem tem muitos sentimentos, milhares
na pequena peça de Schoenberg (Figura 3)? Na verdade, existem vários agentes. de uma vez, e esses sentimentos se somam não mais do que maçãs e peras somam.
Em primeiro lugar, há as imperturbáveis terças maiores, que nos mostram o ca- Cada um segue seu próprio caminho” (citado em Simms 2000: 69). O sujeito não é
minho. Em segundo lugar, há a figura melódica dos compassos 2-3, cuja expressão um; ele é vários. Qualquer modelo de agenciamento para música, então, não deve
dramática provoca uma perturbação para o antes imperturbável agente do início, procurar uma cadeia de comando, ou uma super-subjetividade (para usar um termo
que chega ao compasso 4 capturando um intervalo característico da melodia: a de Robert Hatten) que irá encurralar agenciamentos musicais em uma consciência
terça menor. O que seria o acorde arpejado no compasso 5: outro agente? Seja unificada (Hatten 2004: 231). Tais manobras envolvem o que Lacan chamou de
qual for o caso, no compasso 6 o agente-terça-maior desaparece pela única vez “sutura do sujeito”, que é cego para os agenciamentos múltiplos e fragmentados
na peça. Em seu lugar, uma outra melodia conduz a uma combinação de tríades que agem em nós a partir de fora (2006: 861).
diminutas: a música chegou a uma crise. Esta segunda melodia no compasso 6 é
dobrada em terças, começando com C/Ab, as mesmas notas que concluíram a
07. ...Como se fosse a última vez
melodia no compasso 3. Será que a crise então provém de um novo agente, ou do
retorno de um anterior? Nos compassos conclusivos, o primeiro agente retorna, A temporalidade nos pede para considerar que a música significa tempo. A
agora sem o seu curso rítmico original. Abaixo dele, terças maiores descem, como música pode avançar pelo tempo, sem pausa, mas sua temporalidade inclui mais
se mostrassem que a gravidade ainda pode estar em vigor. Será essa descida outro do que o tempo presente.
agente? Em resumo, temos as terças estáveis, a melodia expressiva, a melodia em Como vimos, a introdução de La Flûte de Pan significa um tempo passado. E
crise, e as terças descendentes, todas como possíveis agentes. essa distância temporal advém da linha vocal, que é declamatória no começo,

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enquanto o piano simplesmente alterna alguns acordes. O texto está, também, no poema, que começa como uma narrativa clássica no passado. Mas, conforme a
passado. A jovem diz “il m’a donné une syrinx” (ele me deu uma flauta de Pan). mulher relata como ela aprende a tocar flauta, como seus lábios tocam os de seu
Mas lá pelo compasso 13, ocorre uma mudança sutil na temporalidade, e nos amante, e o momento de seu primeiro beijo, ela fala no tempo presente, como
encontramos atraídos para o presente. O piano reproduz acordes de nona car- se tivesse caído em outro fluxo de tempo, da maneira que Bergson acreditava
regados de sexualidade, enquanto a mulher relata seu beijo com o jovem (Figura que poderíamos saltar para o passado como um ato de liberdade. Ao final do
4). O piano também inclui o motivo de Pan da introdução, enquanto a parte vocal poema, no entanto, nos encontramos no presente, como se esse relato estivesse
torna-se mais lírica. O momento proustiano da jovem revive o passado COMO acontecendo ao mesmo tempo do tocar, do toque dos lábios, e do beijo. Diegesis
presente. A temporalidade musical mudou para um presente urgente e sensual. e mimesis se recusaram a permanecer separados. As várias temporalidades se
Figura 4: Debussy, trecho 2 enredaram. Mas a música acrescenta uma estrutura às ambiguidades temporais
A mulher tenta retornar ao verdadeiro presente com sua declaração “Il est do poema, repetindo a frase inicial no final da canção, como se empurrasse a
tard” (é tarde) (Figura 5). Mas a parte de piano estática está contente demais para história de volta a um curioso passado pré-industrial.
Figura 5: Debussy, trecho 3
08. Em busca do tempo perdido

mover a música: o tempo alcançou o eterno agora. Quando a jovem ouve os sapos
que indicam a chegada da noite, o piano ainda está relutante em se precipitar. No “Duração pura é a forma que a sucessão dos nossos estados de consciência
compasso 22, os sapos cantam sua canção em Dó maior, que Debussy chama de o assume quando o nosso ego se permite viver, quando se abstém de separar o
tom da realidade, mas a música mantém uma aura do encantado, enquanto o pia- seu estado atual de seus antigos estados... como acontece quando recordamos as
no sustenta harmonias pentatônicas, mesmo ignorando o humor na linha final do notas de uma melodia, derretendo-se, por assim dizer, umas nas outras” (Bergson
poema, que é “minha mãe nunca vai acreditar que eu estava procurando pelo meu 2001: 100). Na famosa afirmação de Bergson sobre o tempo, lemos um correlato
cinto por tanto tempo”. A música significou múltiplas temporalidades: um passado ao tempo-como-qualidade que ouvimos em Debussy.
antiquado, um passado narrativo, um presente antecipatório, um eterno agora, e
Jeux Venitiens, de Lutoslawski, nega o tempo como qualidade. Com suas disjun-
uma suspensão estática de tempo. A música capta uma ambiguidade temporal no
ções bruscas e imprevisíveis, ele quebra o todo orgânico do tempo Bergsoniano,

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para indicar quantidades que podem ser medidas e entrecortadas. Embora pos- Figura 6: Schoenberg, op. 19 n.º 2
samos caracterizar as diferentes temporalidades nessa peça – a seção inicial é
apressada e ativa, fazendo ao invés de sendo; a seção contrastante é estática e
congelada, sendo ao invés de fazendo – a temporalidade abrangente é simples-
mente a disjunção do próprio tempo: um tempo como quantidade, um tempo
como espaço, que foi o pesadelo que Bergson previu no modernismo precoce.

09. Uma trama para Arnold


É fácil visualizar a trama musical como análoga à tonalidade funcional e à forma;
elas tomam o lugar da cadeia lógica de eventos, de Aristóteles. Mas atos inter-
pretativos ainda são necessários para fazer o trabalho de composição da trama.
Assim, para James Hepokoski e Warren Darcy, a introdução de uma sonata indica
a ordem vigente de coisas, ou uma paisagem, ou uma reunião de forças (2006:
300-304). Tonalidade e forma por si só não farão o trabalho de gerar uma trama.
Tonalidade é mais como a ideologia reinante que tece as disjunções da música,
mudanças tópicas e temporalidades, de modo que nos tornamos cegos para a 10. A trama veneziana
trama. Em vez de olhar para a tonalidade, precisamos buscar o que Kramer chama Se a tonalidade é desnecessária para revelar uma trama, então a trama de Jeux
de objetos da trama da música, como a transformação de caráter, crise, catástrofe, venitiens é toda ela muito simples. Dois conjuntos de material simplesmente se
paisagem, ação, peripeteia, e assim por diante (2013: 173). alternam. Esses materiais são tão contrastantes que negam a sequência lógica de
Nós já vimos um destes objetos da trama no op. 19 n.º 2 de Schoenberg, com eventos que compõem, em primeiro lugar, uma boa trama.
a crise das tríades diminutas combinadas no compasso 6 (Figura 6). As terças As seções se movem de uma a outra sem transições, o que só sublinha seu
repetitivas, impassíveis e inescrutáveis, param seu joguinho enquanto o problema fracasso de lógica narrativa. Mas os golpes rápidos na percussão separando essas
se instala nesse compasso. Mas as terças imperturbáveis voltam de onde saíram seções sugerem que o tipo de lógica narrativa não é musical, mas cinematográfica.
no compasso 7, concluindo com uma combinação de tríades aumentadas, respon- Podemos imaginar que a câmera musical reuniu essas seções com um propósito.
dendo à crise anterior. Poderíamos formar uma trama a partir desses objetos e E isso significa que os ataques percussivos agem como um narrador que decide
criar uma série de ações e reações. Uma vez que a melodia começa no registro quando devemos nos voltar para a próxima parte da história.
mais alto no compasso 2, as terças maiores reagem ao chegar nos compassos 4 Chegamos ao problema do narrador. Tanto tem sido escrito sobre o frágil con-
e 5. A melodia responde no compasso 6 com uma crise ameaçadora, à qual as tador de estórias na música, que é melhor evitar exercitar os argumentos aqui.
pequenas terças reagem ao retornar ao seu curso estável, aterrizando em um Tal como as outras metáforas, no entanto, a tonalidade não é pré-requisito para
acorde próprio enigmático, embora não ameaçador. Uma tonalidade incipiente um narrador musical. Vincent Meelberg argumenta, por exemplo, que o segundo
espreita através dessa peça, mas a tonalidade não é necessária para revelar uma Quarteto de Cordas de Lachenmann frequentemente destaca o trabalho ne-
trama. Porém, repetindo meus comentários sobre agenciamento nessa peça, acho cessário para sua performance, de tal modo que a “auto-referência constante” é
que essa pequena trama sutura o impulso anti-narrativo na música. A música não como um narrador de sons “contando a estória de sua própria criação” (Meelberg
forma uma trama tanto quanto ela nos mostra os cacos de uma trama, os restos 2006: 58). Abbate argumentou que podemos dizer quando um narrador musical
de uma história que se desfaz em seu próprio contar. está presente, porque a própria música muitas vezes reduz suas forças, como

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nas muitas narrações no Anel de Wagner (1991: 157-205). Outros certamente mento em que o capital estava saindo dos Estados Unidos para a Ásia via Japão.
encontrarão indicadores adicionais para narradores em música. Em 1900, quando L. Frank Baum escreveu The Wonderful Wizard of Oz, o capital
Por enquanto, Jeux venitiens inclui mudanças no discurso que indicam um narra- estava saindo da Europa para os Estados Unidos. E quando Dorothy cantou Over
dor. A justaposição ímpar de materiais convida a mente narrativa a considerar um the Rainbow em 1939, a América acreditava que havia dominado o capital e a
narrador invisível, que reuniu estas cenas musicais. Ironicamente, então, o narrador cultura europeia decadente, de onde ele veio. Podemos imaginar a estória da
vem à tona no momento em que uma sequência lógica de eventos hesita. Por que performance de Jarrett da perspectiva do capital. Era uma vez um centro cultural/
o narrador reúne essas cenas? Um número de possibilidades se apresenta. O ad capital que produziu uma canção colocando uma inocência imaginada em um
lib é caos, e o battuta é ordem. O ad lib é liberdade; o battuta é escravidão. O ad lib lugar chamado Kansas. Aceitem essa canção como uma dádiva e um segredo de
é a alegria da individualidade; o battuta é a solenidade da ordem social. O ataque que Kansas era realmente Oz, um mundo imaginado que nunca foi o que Dorothy
percussivo como narrador reúne, assim, essa polaridade resistente, pedindo-nos sonhava que pudesse ser.
para lhe dar sentido.
12. Discurso e estória
11. Dorothy em Tóquio Uma tradição da crítica literária divide narrativa em discurso e estória: discurso
Em seu famoso concerto de 1984, em Tóquio4, Keith Jarret senta-se ao piano, é o modo pelo qual um conto é construído, e estória é o próprio conto. A nar-
levanta os braços arregaçar as mangas, pensa por um momento com as mãos rativa da minha viagem para o Brasil inclui um convite, escrever um ensaio, pegar
no teclado, e em seguida começa Over the Rainbow. A oitava inicial é serena e um avião, ir até o meu hotel, fazer novos amigos, e assim por diante. Esses são os
hesitante como se Jarrett não estivesse bem certo sobre qual nota deveria vir eventos na estória da minha viagem. Mas se eu contar essa estória, eu poderia
depois. A primeiras poucas notas vêm tão lentamente que demora um pouco começar pelo momento da leitura do trabalho e ir para trás e para frente, entre o
para que a plateia reconheça a famosa canção e comece a aplaudir, em aprovação. presente e o passado. Eu poderia começar com minha volta para casa, e descrever
Ao longo da performance, seu tronco às vezes se levanta à sua estatura máxima, os eventos na ordem inversa. Eu poderia misturar todos os eventos. Eu deveria
rosto olhando para cima para buscar inspiração, ou a cabeça curvando-se para incluir os vários pensamentos como eu os imagino nas mentes daqueles ao meu
baixo, na concentração para lembrar a música. Toda a performance é aquietada redor? Quanto eu deveria descrever as paisagens brasileiras? A maneira pela qual
mas bonita em sua incerteza; algumas notas vêm em rajadas rápidas, enquanto eu construo essa estória é o seu discurso. Pensando um pouco, você descobrirá
outras se movem com uma regularidade cautelosa. Nossa atenção é atraída para o que, como muitos opostos, é difícil manter discurso e estória afastados.
intérprete Jarrett, tanto quanto o é para a música. Jarrett não interpreta, ele narra. Até agora, nessa fala, tenho me preocupado com o discurso narrativo. Tenho
Era uma vez uma canção chamada Over the Rainbow, cantada por uma jovem que focado em como se constrói música a fim de indicar um narrador, ou um agente,
sonhou com um lugar distante que acabou por ser o “não há lugar como o lar”. uma trama, ou um conjunto de temporalidades. A maioria dos estudos da narra-
Seguimos os giros de seu corpo e a persuasão precária da música do piano. tiva musical compartilha esse foco sobre o discurso às custas da estória. Imagine
Caímos em seu ato de recordar. A narrativa não é uma reencenação de um um projeto desse em narrativas literárias. Descrevendo o Hamlet de Shakespeare,
passado estável; é uma formação imaginada do passado. Uma narrativa executa por exemplo, poderíamos detalhar como Shakespeare se move de uma cena para
um passado possível. Jarrett narra Over the Rainbow não só como um ato de outra, como ele desenvolve uma peça dentro de uma peça, como Hamlet parece
recordação, mas também como um ato de reconstrução. preso entre ação e pensamento. Estes são detalhes sobre o discurso narrativo de
Hamlet. Mas um leitor não versado na teoria narrativa poderia muito bem nos
Na época em que Jarret tocou esse concerto, o mundo estava em um mo-
perguntar porque nós não discutimos os acontecimentos da estória. Onde está a
4 Um vídeo dessa performance está disponível no YouTube: <http://youtu.be/vWf8NUUQvWs>. discussão sobre o fantasma que exige que Hamlet se vingue de Claudius? Onde

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está a consideração sobre o suicídio de Ofélia? E sobre a cena final em que todos parar para uma revisão. Então, aqui está um resumo em uma lista ordenada:
(ou quase todos) morrem? Em suma, onde estão todas as partes boas da estória?
A resposta rápida é que não se revela um discurso a fim de se chegar à estória. 01. A narrativa nos dá um conjunto de metáforas para compreender a música.
Simplesmente pula-se dentro da estória. Assim, com a música, ficamos com o 02. Podemos estudar cada uma dessas metáforas por si mesmas, ou podemos
mesmo problema perturbador que Jean-Jacques Nattiez assinalou há muito tempo colocá-las juntas em algo como uma narrativa.
(1990): se a música é como uma narrativa, qual é a estória que ela está tentando
03. Essas metáforas podem usar a tonalidade como um significante, mas a tona-
contar? Esta é uma questão hermenêutica, que requer as mesmas respostas en-
lidade sozinha não significa narrativa.
volvidas em qualquer empenho interpretativo. Estamos abertos a lugares onde a
música se afasta de convenções.Tentamos compreender como a música responde 04. Essas metáforas compõem o discurso narrativo.
ao seu contexto cultural e cria esse contexto. Ouvimos lugares onde a música cita 05. O discurso narrativo não é o conteúdo de uma estória.
outra música, cita a si mesma, ou se reescreve. A análise narrativa é uma forma de 06. Não se pode ir do discurso diretamente para a estória; simplesmente pula-se
hermenêutica. dentro da estória.
Há muitas razões para ser desconfiado desse tipo de projeto narrativo. Qual- 07. Uma narrativa sem estória não é narrativa.
quer um que tenha estudado o realismo socialista, por exemplo, sabe como é fácil
08. Encontrar a estória musical é um ato hermenêutico.
compreender errado a estória: perder a ironia da Quinta Sinfonia de Shostakovich
e ouvir apenas a sua “enorme elevação otimista”, como fez Alexei Tolstoy, em 09. Conte estórias.
1937. A essa questão, podemos acrescentar a convicção de que contar estórias é
um caminho fácil que se afasta das afirmações verificáveis que deveríamos estar Essa é uma lista de nove itens sobre narrativa musical. Admito que não acho
fazendo. Mas essas são questões hermenêuticas, dentro ou fora da música. Uma nove um número atraente. Estamos só intimidados pelo dez, que seria como atin-
interpretação não é uma afirmação da verdade, mas um convite para uma outra gir o ponto final de uma brincadeira de criança. Precisamos de outro item sobre
interpretação. narrativa, e aqui está: Historie sempre! Roubei esse ponto de Fredric Jameson: é
A cura para o sonho é sonhar mais, nos diz Proust. Se as leituras hermenêutico- a linha de abertura do seu livro, O Inconsciente Político (1981: 9); mas vale a pena
-narrativas da música são perigosas, a cura para elas não é interpretar menos, mas repetir. Vai nos ajudar à medida que desenvolvemos uma estória musical.
interpretar mais. Interpretar o tempo todo. Robert Samuels sugere que vejamos
nossas estórias musicais como performances da música.5 Algumas das estórias que 14. Lutoslawski, ordem e caos
propomos vão parecer obstinadas e outras submissas. E como as performances,
Como devemos ler as oposições de Jeux venitiens? Quando pergunto aos meus
nenhuma narrativa pode contar toda a estória da música. Mas um discurso sem
alunos o que as seções opostas poderiam significar, eles invariavelmente res-
uma estória é uma triste desculpa para uma narrativa.
pondem, caos e ordem. Uma boa primeira resposta. Para Arnold Whittall (2001:
255), o conceito de ad lib de Lutoslawski era “uma forma musical inovadora de
trabalhar com os espaços entre ‘caos’ e ‘ordem’”. O ad lib era o caminho de
13. Chegando a um primeiro resumo Lutosławski para o modernismo: uma interação persistente de elementos opostos
que resistem a uma síntese confortável.
Antes de voltar para a estória de uma das peças de que falei hoje, seria bom
Mas essas oposições são instáveis. A primeira pista está em uma coleção de-
5 Observação feita numa mesa-redonda de discussão sobre narrativa musical (Sixth Biennial Conference on Music sordenada de notas repetidas que mancha a superfície, então serena, das seções
Since 1900, Keele University, 2-15 de julho, 2009).

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battuta. Estes tiques que escapam são sinais daquilo que Žižek chama de “es- a subjetividade de lado por um momento, eu não tenho pudores em tomar um
quecendo-se de esquecer” (2008: 18). O que precisamos fazer para lidar com pensamento de Lawrence Kramer e repetir o que os músicos estranhamente
nossas vidas cotidianas é lembrar de esquecer da “descontinuidade radical” entre precisam mais e mais ouvir: uma interpretação não é uma afirmação da verdade
a vida orgânica e a Ordem Simbólica, impondo uma estrutura sobre ela. Mas às (1990: 14-15). Nós não embarcamos nos estudos narrativo-hermenêuticos da
vezes você se esquece de esquecer. Você encara “um pequeno gesto ou tique música a fim de provar coisas. Fazemos isso para introduzir um discurso sobre
compulsivo, um lapso verbal... que condensa tudo o que você tinha que esquecer, história e cultura, nos ajudando a compreender a história da nossa cultura.
para que você possa nadar na sua certeza cotidiana” (Ibid.). Já que este ensaio, como mencionei, é companheiro de um anterior, sobre
As seções battuta começam serenamente, oferecendo uma alternativa desejá- um tema semelhante, peço a indulgência do leitor enquanto eu parafraseio o
vel aos caóticos ad libs. Mas tremores ansiosos desfiguram a superfície, mostrando final daquele ensaio, para trazer a este um pensamento esperançoso. Esqueça a
a impossibilidade de manter o caos fora. A música se esquece de esquecer a música moderna por um momento. A vida moderna é difícil. Todos nós lutamos
convencionalidade do caos e da ordem. Uma vez que a música reconhece que com os problemas vertiginosos da modernidade. As ambiguidades e contradições,
o caos caiu da estrutura das seções ad lib, o jogo está definido, restando apenas as tensões e as ironias, a alegria e o desespero, o desejo do retorno de um
alguns movimentos. O sujeito musical pode tentar dominar o trauma do Real, passado estável e a antecipação de um futuro mutável. E o que devemos fazer
ou pode desistir do jogo, definitivamente. Finalmente, a única coisa a se fazer é com essa catástrofe-sobre-catástrofe arremessada aos nossos pés? Para começar,
parar, o que a música efetua com quatro ataques retraídos da percussão, como podemos fazer muito pior do que dar sentido a essa confusão ao reconhecer
se o nosso narrador saísse choramingando da estória que está sendo contada. que esse mundo louco é feito de estórias e que a música é um dos contadores
Assim, podemos ler esta música como encenação de uma crise da subjetividade de estórias. Então, temos uma escolha. Podemos cair na música, calar o mundo
moderna. Uma estória de Jeux venitiens conta como caos e ordem formam uma caótico, bater nossos calcanhares três vezes (como Dorothy faz quando retorna a
oposição incômoda, que não garante síntese, porque a própria oposição é um Kansas), ignorar a estória à nossa volta, e viver em um universo de som, longe do
produto de uma Ordem Simbólica que nunca pode realmente capturar o nosso problema da história. Ou podemos encontrar uma maneira de dar à música uma
ser no mundo. Nos termos de Deleuze e Guattari (1987), não somos molares voz, ouvir como se ela nos contasse a estória do mundo, que ela também ouve
(ou ordenados), nem somos moleculares (ou caóticos), mas um conjunto desses como uma confusão, admirar histórias secretas às quais a música testemunhou,
termos. Como o Merovigiano diz a Neo, em The Matrix Reloaded, “logo o porquê e encontrar a força para contar as estórias da música. Você é um agente livre.
e a razão desaparecem, e tudo o que importa é o próprio sentimento... sob nossa Você pode escolher abrir mão de estórias da música. Mas eu sou um contador de
aparência equilibrada, a verdade é que estamos completamente fora de controle”. estórias. Já sei qual escolha eu faria.
E essa estória de nossa existência é tal que só a música depois de 1900 pode
contar, porque explora uma compreensão do pensamento do século XX.
Referências
Abbate, Carolyn. 1991. Unsung Voices: Opera and Musical Narrative in the Nineteenth Century.
15. Uma conclusão por meio do item 9 Princeton: Princeton University Press.
Para concluir, vamos voltar ao item 9: contar estórias. Imagino que alguns se Bergson, Henri. 2001. Time and Free Will: An Essay on the Immediate Data of Consciousness,
trad. de F. L. Pogson. Mineola, New York: Dover Publications.
sentem desconfortáveis com a falta de rigor, a completa subjetividade desse ponto.
Mas os supostos perigos da subjetividade nunca foram o que as pessoas imagi- Brower, Candace. 2000. “A Cognitive Theory of Musical Meaning”. Journal of Music Theory
44/2, 323-79.
naram, já que a própria subjetividade é dependente da Ordem Simbólica. Nossa
Day-O’Connell, Jeremy. 2002. “The Rise of 6 in the Nineteenth Century”. Music Theory
vida interior é mais porosa à história e cultura do que gostaríamos de acreditar, Spectrum 24/1, 35-67.
e cada pensamento é menos singular do que poderíamos desejar. Mas deixando

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