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Sem pé nem cabeça

Luana E. Arrieche1

Resumo:
O texto versa sobre corpo em Foucault (2014) e Le Breton (2013) refletindo as
representações e os investimentos impostos ao corpo, no qual é capturado por
dispositivos. Propõem refletir sobre dispositivo e contradispositivo de Agambem (2009)
como possibilidade de perceber as experiências do processo criativo do trabalho “Sem
pé nem cabeça” e a obra como profanação ou contradispositivo impulsionando modos
de ser capturado reflexivamente, para tal também reitero a autobiografia de Brandão
(2008) e biografia visual de Cunha (2010) ao narrar meu processo criativo e refletir
sobre os modos de ver o mundo através do repertório visual.
Palavras chaves: Processo criativo, autobiografia, dispositivo, corpo, videodança

1. Corpos capturados

Atualmente estou como mestranda no PPG de Artes Visuais na UFPel, linha de


pesquisa “Processos de criação e poéticas do processo” interessada por pesquisas
na área da Dança e audiovisual, investigo as estratégias utilizadas durante o processo
criativo no trabalho “Sem pé nem Cabeça” para me compreender enquanto artista da
Dança e Videodança. Para tal me aproximo de autores no campo da Filosofia, artes e
educação para refletir conceitos e práticas.

Tenho refletido sobre a percepção de “ter um corpo” e “ser corpo”; de como o


sentido de posse sobre o corpo objetifica e modela modos de ser sujeito, e que a
possibilidade de se reconhecer enquanto corpo pode potencializar reflexões sobre si.

Segundo Foucault (2014) frente à descoberta do corpo como objeto e alvo de


poder há dois pensamentos disparadores, distintos, entretanto complementares, que
compõem o livro “o homem-máquina” de La Mattrie. Tratava-se de uma percepção
sobre o corpo de “ora de submissão e utilização, ora de funcionamento e explicação”
(FOUCAULT, 2014, P.134): a partir de uma concepção anátomo-metafísico elaborado
com Descartes e continuamente pesquisado por filósofos; e técnico-político construído
por uma rede de dispositivos.

“O homem-máquina” de La Mettrie é ao mesmo tempo uma redução


materialista da alma e uma teoria geral do adestramento, no centro
dos quais reina a noção de “docilidade” que une ao corpo analisável o
corpo manipulável. (FOUCAULT, 2014, P.134)

1 Mestranda no PPG de Artes Visuais na Universidade Federal de Pelotas- UFPel; especialista


em Metodologia de ensino de Artes pela faculdade Unicesuamar em EAD; e Graduada em
Dança Licenciatura pela Universidade Federal de Pelotas- UFPel.
Por volta do século XVIII, segundo Foucault (2014) as ideias em torno do corpo
estão voltadas para um esquema de docilidade conveniente ao período. Contudo, o
corpo já era alvo de investimento, pois em qualquer sociedade lhe é imposto limites,
obrigações ou proibições, no entanto acentuasse os métodos utilizados para o
controle. Esses métodos não visam um cuidado com o corpo, mas um constante
investimento de trabalha-lo; de uma coerção sem folga.

Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações do


corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes
impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos
chamar as “disciplinas”. (FOUCAULT, 2014, P.135)

As disciplinas são fórmulas gerais de dominação de acordo com Foucault


(2014) no decorrer dos séculos XVII e XVIII; diferisse do modo de apropriação sobre o
corpo de escravidão, de dominação constante no caso da domesticação, da
submissão, entre outros casos; é o momento que nasce uma arte do corpo humano.

O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma


arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas
habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação
de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais
obediente quanto é mais útil, e inversamente. Forma-se então uma
política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma
manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus
comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder
que esquadrinha, o desarticula e o recompõe. (FOUCAULT, 2014,
P.135)

Ainda de acordo com o filósofo, esta maquinaria de poder - uma “anatomia


política” é também uma “mecânica de poder” na qual diz como pode ter domínio sobre
o outro, para operarem de acordo com que se quer. Sendo então a disciplina
formadora de sujeição coercitiva, “digamos que a coerção disciplinar estabelece no
corpo o elo coercitivo entre aptidão aumentada e uma dominação acentuada”
(FOUCAULT, 2014, p.136).

“A disciplina é também uma anatomia política do detalhe” (FOUCAULT, 2014,


p.137), pois opera através de técnicas minuciosas de investimento político e detalhado
do corpo segundo Foucault (2014) uma microfísica do poder.

São através de pequenas ações, regras, gestos, entre outras, que o individuo
torna-se sujeito. Recordo-me que ao entrar para o curso de graduação em Dança foi
solicitado em várias aulas a retirar os calçados, para então realizar as atividades com
os pés descalços, o que me causava “certa” resistência, pois estava condicionada a
estar calçada. Utilizar um calçado pode ser visto como uma ação de higienização,
ordem, gênero, classe, etc, pois através do objeto/ação é possível atrelar ao sujeito
uma série de significações.

Posso também relatar meu estranhamento ao entrar no ônibus e encontrar


alguém com os pés descalços e sentir certa rejeição ao perceber que os pés estavam
sujos. E apesar de ter refletido sobre as inúmeras possibilidades de ocasionar aquele
fato, não consegui me desvencilhar da sensação de desconforto. Acredito que os
dispositivos que reproduzimos e nos reproduzem são muitas vezes naturalizados em
nossos processos e mesmo quando refletidos estão propícios a serem repetidos, no
entanto, penso que a arte é um caminho para o desvio tencionando a percepção sobre
o corpo de docilidade-utilidade.

Agambem (2009) investiga o termo dispositivo e ressalta três pontos: “O


dispositivo em si mesmo é a rede que se estabelece entre seus elementos.”
(AGAMBEM, P.29, 2009), ou seja, é toda ação linguística ou não-linguística
estabelecendo relação entre sujeito e objeto, os quais modelam e são modelados
modos de ser sujeitos e objeto; “o dispositivo tem sempre uma função estratégica
concreta e se inscreve sempre numa relação de poder” (AGAMBEM, P.29, 2009), logo
é nas relações de poder que capturamos e somos capturados. Compreendendo poder
como ações não hierarquizadas e estabelecendo relações de saber, assim saber e
poder atuam como redes disparadoras de dispositivos, com diz o terceiro ponto:
“Como tal, resulta do cruzamento de relações de poder e de relações de saber”
(AGAMBEM, P.29, 2009).

[...] O termo dispositivo nomeia aquilo em que e por meio do qual se


realiza uma pura atividade de governo sem nenhum fundamento no
ser. Por isso os dispositivos devem sempre implicar um processo de
subjetivação, isto é, devem produzir o sujeito. (AGAMBEM, P.38,
2009)

Para Agambem (2009) os seres viventes conforme vão sendo capturados


pelos dispositivos, formam outro grupo: os sujeitos – resultado da relação direta entre
viventes e dispositivos, e como não há total sobreposição entre substância e
dispositivo, ocorrem múltiplos processos de subjetivação. O autor reconhece que o
desenvolvimento do capitalismo gerou acumulação e proliferação dos dispositivos,
impulsionando constante capturação e modelação. Como então poderíamos fazer
frente a essa situação? Questiona o autor. E corroboro tal questionamento! Como
podemos criar desvios nessa maquinaria que aponta Foucault (2014) em pleno século
XXI?
Como possibilidade de desvio Agambem (2009) propõem o contradispositivo ou
profanação, termo que extrai da esfera do direito e da religião. Diz que sagradas eram
as coisas que pertenciam aos Deuses, quando subtraídas e colocadas em servidão
eram vista como sacrilégio. E consagrar significa a mudança das coisas da esfera do
uso dos homens para o pertencimento dos deuses, deste modo, profanar é a ação
contrária – quando se subtraí o que era de uso dos deuses para o uso dos homens “a
profanação é o contradispositivo que restitui ao uso comum àquilo que o sacrifício
tinha separado e dividido” (AGAMBEM, P.45, 2009)

Para Agambem (2009) a profanação seria devolver ao homem o que é do


homem, ou seja, compreender para além da tríade: pai, filho e espírito - a “oikonomia”.
O termo surgiu frente à necessidade, no decorrer do segundo século, de discutir sobre
a Trindade (o Pai, o Filho e o Espírito), modo de instaurar um pensamento de gestão
sobre as ações dos homens regulamentados pela ordem do divino, Deus.

[...] Os teólogos se habituaram pouco a pouco a distinguir entre um


“discurso – ou logos – da teologia” e um “logos da economia” e a
oikonomia torna-se assim o dispositivo mediante o qual o dogma
trinitário e a ideia de um governo divino providencial do mundo foram
introduzidos na fé cristã. (AGAMBEM, P.37, 2009)

Sendo a oikonomia segundo Agambem (2009): Deus uno, é o modo que se


administra a sua casa, a tríplice, pois confere a Cristo a gestão dos homens.
Entretanto, essa fragmentação centraliza Deus em ser e ação (economia e política) e
distancia do homem seus processos de subjetivação.

Agambem (2009) também investiga como os padres latinos compreendiam o


Dispositio “o termo latino dispositio, do qual deriva o nosso termo “dispositivo”, vem,
portanto, para assumir em si toda complexa esfera semântica da oikonomia teológica.”
(AGAMBEM, P.38, 2009). Desse modo, os “dispositivos” do qual Foucault versa possui
herança teológica.

[...] O termo dispositivo nomeia aquilo em que e por meio do qual se


realiza uma pura atividade de governo sem nenhum fundamento no
ser. Por isso os dispositivos devem sempre implicar um processo de
subjetivação, isto é, devem produzir o sujeito. (AGAMBEM, P.38,
2009)

Agambem (2009) compreende a partir da investigação do termo dispositivo que


há a divisão entre dois grandes grupos: os viventes e os dispositivos. Entendendo os
viventes como substâncias e que estão sendo capturados pelos dispositivos. Assim o
autor assume para seu texto o conceito de dispositivo:
[...]qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de
capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar,
assegurar os gestos, as condutas as opiniões e os discursos dos
seres viventes.[...] (AGAMBEM, P.40, 2009)

Logo, poderíamos compreender como contradispositivo as obras no âmbito das


artes plásticas, da performance, da dança, do teatro, da música, da literatura, etc. Pois
são capazes de capturar os sujeitos e produzir subjetivações.

Penso, que ao perceber que há uma representação sobre corpo que é “uma
herança histórica do retraimento na concepção da pessoa” (Le Breton, 2013, p.33), ou
seja, se há uma representação, é porque a concepção sobre corpo não é um dado fixo
e sim construído. E ao existir outras concepções, o individuo pode refletir o modo que
opera no mundo e perceber os dispositivos que captura e produz sujeições.

Segundo Le Breton (2013) a concepção de uma representação do homem, da


pessoa, se faz a partir da compreensão do corpo indissociável do mundo que vive
atravessado pelo cosmo, pela natureza, e a comunidade.

Nas sociedades tradicionais, de composição holística, comunitária,


nas quais o indivíduo é indiscernível, o corpo não é objeto de uma
cisão, e o homem está misturado ao cosmo, à natureza, à
comunidade. Nessas sociedades, as representações do corpo são, de
fato, representações do homem, da pessoa. A imagem do corpo é
uma imagem de si, alimentada das matérias primas que compõem a
natureza, o cosmos, em uma espécie de indistinção. Essas
concepções impõem o sentimento de parentesco, de uma
participação ativa do homem na totalidade do vivente[...] (LE
BRETON, 2013, p.31)

Le Breton (2013) diz que a concepção sobre corpo isolado do homem só é


pensada a partir das estruturas sociais individualistas “nas quais os homens estão
separados um dos outros, relativamente autônomos em suas iniciativas, em seus
valores” (Le Breton, 2013, p.32).

E onde quero chegar com essa narrativa conceitual? Primeiramente


compreender que o corpo é uma representação. Como se constatou através do
Foucault (2014) no qual narra alto investimento de trabalho sobre o corpo, e para isso,
foi necessário dissociar corpo e mente tornando o corpo objeto modelável, a partir de
um conjunto de métodos, disciplinas e dispositivos. Segundo, através de Agambem
(2009) conceituando dispositivo e apontando o contrapositivo ou profanação sendo
possibilidade de desvio na maquinaria de poder. Terceiro, através de Le Breton (2013)
reforçar que a ideia sobre corpo como representação, sendo então construída entre
homens e sociedade. E assim, deixando espaço para o desvio no qual os homens são
capazes de se perceber enquanto sujeito e refletir sobre os modos de ver/ser no
mundo.

A partir disso, pensar a autobiografia como estratégia disparadora no processo


de criação do trabalho “Sem pé nem Cabeça” considerando a percepção de Cunha
(2010) de biografia visual, na qual para ela formatam subjetividades que compõem o
sujeito e, “sobretudo, servem como suporte para formular considerações sobre a
infinidade de produtos culturais que afetam nossas vivências e nos posiciona frente ao
mundo” (CUNHA, 2010,p.104).

2. A profanação

Faremos uma pausa na narrativa conceitual que venho propor nesse texto para
descrever o meu processo criativo no trabalho “Sem pé nem Cabeça”, apesar deste
ser composto e atravessado por outras narrativas, pois trata-se de uma criação
coletiva, na qual estiveram presentes colegas do mestrado: Fernanda Fedrizzi, Isadora
Bortolossi e Renata Sopena. Minha narrativa transpassa por elas, e abrange todo o
processo realizado até a composição final que se faz em vídeo, no programa de
edição Whondershare filmadora, com três minutos e dezessete segundos de vídeo.

a) Autobiografia, memória e narrativa

O trabalho tem como disparador a memória, lembranças presentes na infância


de momentos que remetem as brincadeiras vivenciadas coletivamente ou individual e
compõem, o meu e o delas, o arcabouço imagético. E neste texto aproximo do
conceito de biografia visual de Cunha (2010) conceito desenvolvido pela autora para
representar o conjunto de imagens significativas que compõem a vida da pessoa, a fim
de perceber o quanto somos marcados pelas imagens.

Ocorreram cinco encontros, cada um de uma hora e meia: no total de oito


horas e meia. No primeiro encontro estavam minha colega Renata e eu, na qual
ficamos a espera de outros colegas para realizar o trabalho, pois havíamos convidado
algumas pessoas para essa proposição, que deveriam participar de livre espontânea
vontade a fim de partilhar experiências. No primeiro encontro foi necessário repensar a
estratégia para despertar o interesse em outras pessoas a participar, assim, foi
elaborado um questionário e disponibilizado no Google Drive para ocorrer à segunda
chamada aos colegas do mestrado e amigos próximos.

No segundo encontro, se fizeram presentes às colegas Fernanda Fedrizzi,


Isadora Bortolossi, Renata Sopena e eu, desta vez, passamos a ser um grupo que
permaneceu até o quinto encontro. Entretanto, o questionário disponibilizado não foi
aproveitado, porque as meninas que ali estavam não haviam entrado em contato com
ele, o que exigiu de minha parte repensar as atividades para o encontro.

Minha função era de alguma forma preparar as colegas para acessar seu
arcabouço visual, suas memórias, lembranças afetivas vivenciadas na infância de
brincadeiras coletivas ou individuais. Por acreditar que “somos um corpo” e também
por ser bailarina e professora de dança, todas as atividades ocorrem em movimento e
assim começamos.

Após realizar o aquecimento, para evitar lesões e também para sensibilizar os


sentidos, conhecer o espaço, as possibilidades corporais de cada um, fui verbalizando
questionamentos e comandos. Os participantes não tinham o compromisso de
responder, mas de deixar fluir as imagens que ocasionalmente surgisse, selecionar
uma das lembranças para depois compartilhar.

Ao perceber a dificuldade das meninas de se relacionar com a proposta,


precisei modificar a dinâmica: estávamos todas nos movimentando pelo espaço,
precisávamos não só acessar uma memória significativa na infância que remetesse a
alguma brincadeira, como enquadrar essa memória de maneira que pudéssemos
compartilhar e, além disso, precisamos lidar com as colegas que transitavam pelo
mesmo espaço, evitando esbarrões, tropeços, entre outros inconvenientes que muitas
vezes nos deparamos.

Modifiquei a dinâmica para verbalizar sons de brincadeiras que compuseram


nossa infância, sem compromisso de ser verdadeira a uma experiência vivenciada,
mas sim de reproduzir sons que nos atravessavam, fosse pela realidade ou ficção.
Assim começamos a buscar em nossa memória sons e verbalizar, sem uma ordem
específica, fomos estabelecendo certa energia, brincando com tons, com velocidades
e intensidades: Xiiii fica quietinho, vão nos descobrir!; Amarelo!; Queimou!; Pega ele!;
Agora todos devem copiar; Silêncio!...
Entre palavras e frases fomos (re) criando nossa memória. Todas
estabeleceram conexão com uma brincadeira vivenciada na infância e partilhamos
entre nós. Depois, remontamos tais vivências; cada uma relatou certo número de
elementos suficientes para (re) construir a memória. Como estávamos limitadas por
uma hora e meia, precisamos encerrar o primeiro encontro e como exercício, todas
deveriam realizar uma lista das brincadeiras citadas, selecionar três brincadeiras e
pensar em movimentos que realizamos no âmbito delas.

Partilho aqui minha memória (re)criada: eu deveria estar com seis anos, mas
não sei exatamente, lembro de estar na sala em que costumava brincar, ao lado da
lavanderia, distante do corpo principal da casa. Esta sala era a entrada para um
mundo imaginado, lá estavam bonecas, mesas, cadeiras, papéis, máquina de escrever
(faltavam algumas letras), um quadro negro que ganhei no natal, giz, etc. Era lá
também, que as bonecas tinham vida, eu ocupava o lugar de professora, ensinava
algo a elas, apesar de não lembrar o que era ensinado. Mas lembro de entregar
papéis que muitas vezes tinham desenhos e letras para serem reproduzidos e
pintados com cópias mimeografadas e xerocadas.

A experiência nos mostra que, a partir da memória autobiográfica nas


histórias narradas, e muitas vezes escritas, podemos, usando a
linguagem, refletir, compreender, reorganizar e ressignificar essas
trajetórias e projetos de vida-trabalho, nossas e de outros, articulando
as memórias individuais e coletivas, dando-lhe um sentido-significado.
Essa história, que é nossa e dos grupos aos quais pertencemos, diz-
nos quem somos, auxilia e fortalece nossa identidade, ilumina nosso
caminho na busca de sentidos para nosso ser-estar no mundo.
(BRANDÃO, 2008, p.15)

Com base em Brandão (2008) ao relatar a memória autobiográfica, sistematizei


e elenquei elementos significativos, que estão para além da memória compartilhada,
mas que me compõem enquanto sujeito. Posso atribuir hoje significações sobre as
imagens que constroem essa narrativa.

Os significados das imagens são construídos nas interações sociais e


culturais que realizamos com elas. Os contextos sociais e culturais,
amplos ou específicos, e as pessoas, dão existência aos materiais
visuais atribuindo-se significados. Portanto, o sentido não “emana”
das imagens, mas dos diálogos produzidos entre elas e as pessoas,
sendo que estes diálogos são mediados pelos contextos culturais e
históricos. Assim, cada época, produz seus regimes escópicos.
(CUNHA, 2010, p.112)

Compreendendo segundo Cunha (2010) que esse acesso se faz a partir de


meu repertório visual que me permite refletir, relaborar e atribuir novos significados.
Percebo que o espaço de brincar se modificou, talvez se minha filha fizesse o
exercício de pensar o espaço que costumava brincar iria nos relatar a sala de estar,
que também é a sala de TV e do computador; relataria que a própria tela, seja no
computador ou na televisão eram espaços para brincar. Ou seja, os espaços hoje
proporcionam diversas atividades ao mesmo tempo, diferente da sala de brincar
relatada em minha memória, na qual estava exclusivamente a serviço do meu mundo
imaginado.

A brincadeira de faz de conta, o ser professora, poderia significar o desejo de


ser adulta. O ensaio para vida real. Era também o exercício de ocupar lugar de poder,
eu sabia algo para ensinar as bonecas. Igual minha mãe! Hoje sendo professora
também, posso refletir os modos de me colocar frente a uma turma, e que os saberes
partilhados dentro de uma sala de aula não ocorrem em uma via única. Desconstruo
ou construo outra forma de ocupar o espaço, em vez de todos sentados em silêncio, o
movimento, a voz, o corpo ocupam espaço de importância compondo uma dança
experimental... “As imagens que formam nosso mundo são símbolos, sinais,
mensagens e alegorias.” (MANGUEL, 2001, p.21)

Retomando a narrativa do processo criativo, no terceiro encontro trabalhamos


os movimentos selecionados a partir das vivencias do segundo encontro:
experimentando e costurando uma ideia na outra. Adaptamos os movimentos para que
todas realizassem em conjunto uma coreografia. Primeiro queríamos experimentar
aqueles movimentos em forma coreografia, colocar dentro de um ritmo, uma
sequência, em um determinado espaço, etc. Depois elaboramos esteticamente,
pensamos o enquadramento e como estava ficando aquela ideia no próprio vídeo. Em
diálogo entre nós e a câmera, entre o espaço físico e o virtual fomos experimentando e
testando as possibilidades.

No quarto encontro estávamos preparadas para a gravação, tínhamos pensado


em figurino, esboçado alguns enquadramentos e a composição coreográfica.
Gravamos uma cena, no entanto nosso tempo não nos permitiu gravar tudo que
havíamos planejado, entre colocar figurino, relembrar coreografia, organizar o espaço,
a câmera, o tripé e risadas à parte, o espaço de tempo ficou pequeno para o mundo
que ali juntas estávamos criando! Desta forma, combinamos o quinto e último
encontro.

No último encontro, retomamos a gravação. Realizamos algumas adaptações:


tiramos a câmera do tripé, na qual fiquei como responsável de capturar as imagens;
ajustamos alguns enquadramentos; a coreografia, e ficamos satisfeitas com o trabalho
que havia sido realizado. Depois de concluído, saímos juntas da sala que usamos para
gravação, rindo e partilhando o quanto foi prazerosa a atividade proposta. Penso que
ao partilhar uma memória significativa, mergulhamos na proposta e nos envolvemos
ao perceber o quanto tínhamos em comum, nós mulheres, relatando brincadeiras, que
por vezes apresentavam versões diferentes, mas que se tratava da mesma
brincadeira, normalmente, todas eram correlacionados a espaços protegidos e quando
não estavam nesses espaços narrávamos com certo tom de subversão.

Como diz Cunha (2010) suas referências visuais, sejam elas de imagens
capturadas pela experiência, filmes, espetáculos e pelas muitas imagens que
compuseram seu modo de ver o mundo. Posso perceber muitas das imagens que
atravessam meu modo de ver: seja pelas brincadeiras de faz de conta, pelos
desenhos “Tom e Jerry” e “Mickey Mause”, programa de auditório “Xuxa”, pelos muitos
filmes em videocassete emprestados de uma locadora, pelas estórias que escrevi, os
romances que li, vídeos e fotos permeiam meu modo de interpretar o mundo.

Estas referências visuais tão díspares, e tantas outras, formaram


meus repertórios visuais estéticos, as concepções sobre
acontecimentos históricos e modos de vida, em fim, estas diferentes
representações expressas em diferentes suportes materiais,
linguagens, épocas e tradições culturais, produzem minha
visualidade, meus modos de ver o mundo. (CUNHA, 2010, p.107)

b) Quebra-cabeça virtual

Aqui, narro minha experiência com as imagens capturadas e uma vez


colocadas dentro de um ambiente de edição de vídeo - whondersharer - brinco com os
recursos disponibilizados pelo programa: recorto, colo, repito imagens como
costumava a separar as peças e buscar seus encaixes ao montar quebra-cabeças.
Antes me eram impostas as imagens que deveria (re)montar, a imagem completa me
era dada na caixa para ajudar a compreender suas partes, mas agora (re)monto as
imagens a partir de meu repertório visual e vivo a experiência de criar a partir do meu
processo criativo, deixo de ser mera operadora, e me torno parte das imagens que
compõem o vídeo “Sem pé nem Cabeça”2.

Interessada em modos de fazer Videodança, minha experiência com o


ambiente virtual não se dissocia das referências na área, sendo elas teóricas e
práticas, atravessam meu processo de criação. Entretanto aqui estão como
atravessamentos, não há uma preocupação de compreender a obra como tal. Pois
compreendo esse momento como propício a experimentação, como aponta Douglas

2 SemPeneMcaBeca https://www.youtube.com/watch?v=HzeRaiPwMz4&t=129s
Rosemberg em uma entrevista realizada por Cerbino; Brum (2016) ao dizer que as
universidades são espaços para laboratórios:

Locais de ensino superior são um refúgio para a experimentação,


mesmo levando em conta os encargos financeiros e o encolhimento
dos orçamentos das instituições, eles ainda servem para concentrar
ou focar indivíduos da mesma opinião em campos por vezes muito
estreitos de pesquisa. Ambientes acadêmicos são um arquivo vivo
das histórias do conhecimento das ciências às artes e humanidades.
São lugares onde se pode encontrar consolo no processo criativo
como um fim em si mesmo, sem o peso do mercado. (CERBINO;
BRUM, 2016, p.107)

Segundo Brum (2012) a Videodança emerge da aproximação de artistas


audiovisuais e da dança, e juntos encontram recursos para a criação de uma obra
outra. Não é apenas dança e nem apenas vídeo, menos a soma de ambas, e sim
outro espaço.

Nesse encontro de linguagens, a dança não deixa de ser dança para


tornarse vídeo, nem o vídeo deixa de ser vídeo para tornar-se dança.
Pelo contrário, as singularidades de cada uma das linguagens são
mantidas, porém, uma deixa se afetar pela outra na construção de
uma nova linguagem, que também será singular, no sentido de que
não será “Dança” nem “Vídeo”, mas “Videodança”. (CAPELATTO,
2014, p.15)

No trabalho “Sem pé nem cabeça” desdobro-me em ambas as linguagens -


Dança e Vídeo - e nesse trânsito investigo modos de fazer. Penso, é necessário o
videomaker dançar? Os participantes precisam ser bailarinos? Os
bailarinos/participantes precisam saber conhecimentos inerentes do vídeo? Entretanto
esses questionamentos são para outro momento. Neste, quero me deter no processo
criativo, sem a preocupação de dar conta de tais questionamentos, quero deixar
espaço para pensar a experiência e a obra como contradispositivo de Agambem
(2009) ou profanação.

Assim, é nas ambiências do vídeo que multiplico uma célula coreográfica em


uma sucessão de imagens que unidas vão dando forma a obra. Também é através de
elementos como repetição, velocidade, nitidez, recortes, entres outros, que vou
compondo esse conjunto. Não utilizei uma estratégia sistematizada para realizar essa
composição. Que nem uma criança explorando seu brinquedo e suas possibilidades,
conforme o estético agradava aos meus olhos o trabalho era modelado.

3. Corpos encantados

Após a narrativa apresentada, retomamos os conceitos reiterados no texto:


primeiramente considerar que o corpo é uma representação, sendo ela do sujeito ou
da pessoa, como diz Le Breton (2013) e altamente investida como diz Foucault (2014).
Vimos também o que é um dispositivo segundo Agambem (2009) e em contraposição
o contrapositivo ou profanação, para então pensar autobiografia como estratégia no
processo criativo como possibilidade de impulsionar pensamentos reflexivos sobre si,
instaurando modos de ser capturado reflexivamente.

Deste modo, aponto o contradispositivo mencionado por Agambem (2009)


como possibilidade de ser compreendido no âmbito das experiências do processo
criativo, descrito no texto, e através da fruição com o trabalho “Sem pé nem Cabeça” e
assim ser capturados reflexivamente. Considerando também o conceito de biografia
visual de Cunha (2010) no qual diz que as imagens que nos atravessam compõem
nosso repertório visual e uma vez reconhecidas podem vir a ser refletidas e
(re)significadas no nosso modo de ver o mundo.

REFERENCIAS:

AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó, SC:


Argos, 2009.

BRANDÃO, Vera Maria Antonieta Tordino. Labirintos da memória: Quem sou? - São
Paulo: Paulus, 2008.

BRUM, Leonel. Videodança: Uma Arte do Devir. In: Dança em Foco. Ensaios
Contemporâneos de Videodança. 2012. p. 74 - 113.

CAPELATTO, Igor. Videodança. – Guarapuava: Unicentro, 2014.

CUNHA, Susana Rangel Vieira. Cultura visual e infância. In: [organizador] Gilberto Icle.
Pedagogia da arte: entre-lugares da criação. – Porto Alegre: Editora da UFRGS,
2010.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. 42ed. Petrópolis, RJ:


Vozes, 2014.

LE BRETON, David. Antropologia do corpo e modernidade. – 3 ed. – Petrópoles,


RJ: Vozes, 2013

Sempenemcabeça: Disponivel em: https://www.youtube.com/watch?


v=HzeRaiPwMz4&t=129s Acesso em 17 de dezembro de 2018.

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