teoria política Feminismo e política: uma explicativos que aparecem em cada capítulo dando conta de termos, incursões históricas ou introdução ainda apresentando outras visões, tais como as MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI Flávia. notas “Beleza e opressão” (p. 117) e “Religião e debate sobre o aborto” (p. 125). São Paulo: Boitempo Editorial. 164 p. Se a clareza textual na apresentação das relações entre feminismo e política é uma das marcas do livro, a mais relevante delas é o fino tratamento conceitual e o olhar atento na identificação do que une e, ao mesmo tempo, Feminismo e política: uma introdução, de separa o grande conjunto de autoras (e alguns Luis Felipe Miguel e Flávia Biroli, é uma importante autores) mobilizadas na obra. Para sistematizar sistematização das contribuições e avanços do o pensamento feminista, Luis Felipe Miguel e feminismo à teoria política, a partir das Flávia Biroli não optaram pela clássica divisão produções iniciadas na década de 1980. em correntes do pensamento político (liberais, Lançada no final de 2014, pela Boitempo marxistas, socialistas etc.), também não Editorial, a obra cumpre um papel fundamental, recorreram apenas a referências da Ciência especialmente no campo da Ciência Política Política strictu sensu como afirmam, não se trata brasileira, ao mapear os aportes do pensamento de “filiação disciplinar” (p. 7), mas organizaram feminista, a partir da crítica a noções já clássicas a obra a partir dos grandes debates realizados da teoria política ou ainda da construção de pelo feminismo acerca de temas caros à novos conceitos. construção da teoria política e democrática, Dividido em dez capítulos, o livro condensa especialmente. de forma didática, mas sem nenhuma perda Tal organização é interessante por conceitual ou analítica, os interesses e caminhos mostrar como as autoras feministas se inscrevem de pesquisa delineados pelos autores nos últimos em diferentes discussões e como divergem anos. Ambos são professores do Instituto de profundamente entre si. Essa forma de Ciência Política da Universidade de Brasília (IPOL/ apresentação da diversidade teórica pode ser UnB), no qual coordenam o Grupo de Pesquisa conferida em outras publicações organizadas sobre Democracia e Desigualdades (Demodê). pelos mesmos autores, tais como Teoria política De saída, tem mérito o fato de um livro desse feminista: textos centrais 1 e Teoria política e porte ser escrito em português e oferecer aos feminismo: abordagens brasileiras.2 leitores o contato com uma infinidade de O primeiro capítulo, “O feminismo e a argumentos e referências bibliográficas ainda não política”, assinado por Luis Felipe Miguel, faz um traduzidas para nossa língua, o que torna a obra resgate histórico e político da insurreição das ainda mais acessível, especialmente para uso mulheres contra a dominação masculina. De nos cursos de graduação. posse da relação intrínseca entre o ativismo e a Ainda sobre seu aspecto mais formal e produção acadêmica feministas, o autor estilístico, ressalta-se também a riqueza com que desenha um quadro desde Pizán, na Idade as teorias são relacionadas às questões de Média, até a obra considerada fundadora do gênero do cotidiano, destaque para os boxs feminismo contemporâneo, o Segundo Sexo,
de Simone de Beauvoir. Destaque para a Autonomia e desigualdade de gênero: cuidadosa menção à história singular de contribuições do feminismo para a crítica Soujorner Truth (1797-1883), empregada democrática. 3 Ela apresenta como autoras doméstica negra que tematizara a questão feministas tensionaram a conceituação liberal racial, em um momento histórico de surgimento clássica da autonomia, ao mostrar que a de preocupações feministas muito mais ligadas existência de facilitadores formais e a inexistência à igualdade do que à diferença. de normas coercitivas para seu exercício não a O segundo capítulo, “O público e tornam igualitária para homens e mulheres, já privado”, é um dos mais ricos do livro. Flávia Biroli que os horizontes de possibilidades, para a procura explicitar “as consequências políticas dos construção de agência e preferências, são arranjos privados” (p. 33) e, ao fazer isso, não anteriormente construídos de forma desigual.4 recorre apenas à discussão mais clássica que Os capítulos 4 e 5, “A igualdade e a opõe as duas esferas e nos mostra a não diferença” e “A identidade e a diferença”, consensualidade do pensamento sobre essa respectivamente, assinados por Miguel, também distinção. Apresenta-nos, ao menos, três diferentes guardam profundas correspondências entre si, horizontes para pensar essa relação: a) autoras, dado que o autor, em ambos os textos, toca como Susan Okin, que consideram a dicotomia em uma questão central para a teoria e prática uma “ficção”, dado que especialmente as ativista, a definição do sujeito do feminismo, o desigualdades do público existem forjadas na “em nome de quem” as pautas, reivindicações construção do privado; b) feministas, como Jean e análises têm sido erigidas. No capítulo 4, o Elshtain e Carol Gilligan, que defendem o privado autor apresenta como a disputa para serem a partir da chamada “ética do cuidado ou vistas como iguais, especialmente antes do política do desvelo”, que produziria “uma século XX, vai dando lugar à afirmação da linguagem moral, distinta e mesmo superior à diferença, que encontra, novamente, posições moral masculina” (p. 37); e c) autoras, como Iris díspares, entre elas, o maternalismo político e Young e Catharine MacKinnon, cuja construção as relações entre multiculturalismo e feminismo. teórica baseia-se na experiência feminina para O autor alerta para o risco das “ciladas da se contrapor às desigualdades, sendo o privado diferença”, em que atributos de distinção são o lócus da dominação, mas também espaço utilizados para reiteração da dominação, ou que fornece elementos para a tomada de ainda para circunscrever os sujeitos em consciência e combate à opressão. estereótipos cristalizados que mais atrapalham O capítulo 3, “Justiça e família”, se torna do que ajudam a luta política. um imediato complemento do que foi discutido No capítulo sobre identidade, Miguel anteriormente. Ao tratar da estruturação resgata o debate entre a necessária marcação moderna da família, Biroli mobiliza algumas das diferenças e a possibilidade de identificar as discussões do capítulo anterior, mas mostra de experiências comuns compartilhadas pelas forma mais contundente como as hierarquias mulheres. Dois pontos merecem destaque dos arranjos familiares são decisivas na especial. O primeiro deles é a incorporação da constituição da trajetória das mulheres. O texto produção do feminismo negro e proletário, com perpassa a forma como a privacidade foi Patricia Hill Collins e bell hooks, no enfrentamento construída especialmente no interior das teorias à forma como o feminismo branco e burguês liberais e o longo silêncio do pensamento político por vezes tratou como universal – categoria que sobre as relações de poder, desiguais para as tanto criticou – a vivência feminina. O segundo mulheres, estruturadas no espaço familiar; assim ponto é a ponderação crítica às produções mais como apresenta as diferentes acepções que contemporâneas das autoras pós-estruturalistas, privacidade e intimidade possuem nas correntes especialmente encabeçadas por Judith Butler. feministas. Maternidade, divisão sexual do Se não é possível assumir uma identidade unitária trabalho e violência doméstica são temas que feminista, o autor também questiona como o foco atravessam o capítulo, que toca no dilema entre excessivo na construção discursiva da opressão a preservação da intimidade e a regulação. e a pouca atenção à dimensão material das Abrindo mão da linearidade na relações e instituições sociais colabora para o apresentação, entendemos que o capítulo 7, avanço da crítica e agência feministas. “Autonomia, dominação e opressão”, lido na [...] a política pós-identitária defendida pela sequência dos capítulos supracitados, se torna teoria queer encerra uma contradição em ainda mais claro. O texto é apenas um aperitivo termos, uma vez que o ponto de partida de da robusta discussão que Biroli fez no livro toda ação política é a produção de uma
identidade coletiva (o que não quer dizer que Feminismo e política, mais do que uma essa identidade deva ser absoluta, imutável introdução à teoria política feminista, é uma ou irrevogável.5 prova de que é cada vez mais impossível tratar Os demais capítulos, a nosso ver, trazem de questões caras à democracia, uma contribuição mais voltada para temáticas, especialmente de suas desigualdades, sem são eles “Gênero e representação política” (cap. considerar à produção feminista e seu vasto 6), “O debate sobre aborto” (cap. 8), “O debate arsenal de entendimento e crítica do mundo. sobre pornografia” (cap. 9) e “O debate sobre Notas prostituição” (cap. 10). Neles, várias elaborações 1 Luis Felipe MIGUEL e Flávia BIROLI, 2013. teóricas desenvolvidas nos capítulos anteriores 2 BIROLI e MIGUEL, 2012. resenhados até aqui são retomadas para 3 BIROLI, 2013. compreensão desses fenômenos específicos. 4 BIROLI, 2013. Defrontadas com essas questões morais e 5 MIGUEL e BIROLI 2014, p. 82. materiais tão conflituosas, a riqueza e a Referências diversidade da teoria feminista ficam ainda mais candentes. BIROLI, Flávia. Autonomia e desigualdade de Dos raros pontos subexplorados na obra, gênero: contribuições do feminismo para destacamos as menções pouco sistemáticas às a crítica democrática. Vinhedo: Horizonte, produções brasileiras relacionadas às correntes 2013. ou temáticas discutidas pelos autores, o que talvez BIROLI, Flávia; MIGUEL, Luis Felipe. Teoria política se explique pelo fato de serem, sobretudo no e feminismo: abordagens brasileiras. campo da Ciência Política, ainda tímidas. A Vinhedo: Horizonte, 2012. pouca mobilização da teoria feminista latino- MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia. Feminismo e americana também é sentida, o que diz não da política: uma introdução. São Paulo: obra em si, mas da própria construção do Boitempo, 2014. conhecimento acadêmico. Acerca dos temas MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia (Orgs.). Teoria mais atuais, sentimos falta também de uma breve política feminista: textos centrais. Vinhedo: discussão sobre as questões entre feminismo, Horizonte; Niterói: Eduff, 2013. política e justiça global, que têm mobilizado recentemente algumas autoras da área. Nenhum Rayza Sarmento desses pontos, contudo, retiram a grande Universidade Federal de Minas Gerais, importância da publicação em terreno nacional. Belo Horizonte, MG, Brasil