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Norberto Bobbio
Rodrigo Costa Ferreira∗
rodrigouepb@yahoo.com.br
rodrigoufrn@yahoo.com.br
CCJ – UEPB – UFRN
Texto em Construção
22/04/2017
Resumo
∗
Doutor em Filosofia Analı́tica pela UFPB–UFRN–UFPE; Mestre em Lógica Matemática pela
UFPB; Professor Adjunto de Filosofia e Teoria do Direito na Universidade Estadual da Paraı́ba
(UEPB – CCJ) e na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN – DA – CERES).
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————————— Teoria do Direito de Norberto Bobbio ————————— 2
1 Considerações Iniciais
A teoria do direito de Norberto Bobbio (2007) pode ser abordada a partir
de duas frentes de estudos: (1) a primeira explora a unidade básica do fenômeno
normativo como objeto de pesquisa: a norma jurı́dica; já (2) a segunda investiga o
direito como um “sistema de normas jurı́dicas” (ou “ordenamento jurı́dico”). O pri-
meiro estudo é desenvolvido na sua Teoria da Norma Jurı́dica (Teoria della Norma
Giuridica, 1958), na qual realiza uma série de análises sobre a estrutura lógica da
norma jurı́dica, bem como sugere uma tipologia de normas jurı́dicas inspirada nas
distinções conceituais das proposições lógicas tratadas pela lógica clássica. Já o se-
gundo estudo é desenvolvido na obra Teoria do Ordenamento Jurı́dico (Teoria dell’
Ordinamento Giuridico, 1960). Neste trata das “relações normativas” (relações de
hierarquia, cronologia, espaço, tipológica etc.) existentes entre as normas jurı́dicas
do ordenamento jurı́dico, observando para tanto algumas condições técnico-jurı́dicas
procedimentais (regras de estrutura ou competência, critérios de solução de antino-
mias, vigência etc.).
de obrigação O, então as outras três podem ser simbolizadas, na ordem, deste modo:
O¬ (leia-se: “obrigatório não fazer” ou “proibido fazer”); ¬O (leia-se: “não obri-
gatório fazer” ou “permitido não fazer”); ¬O¬ (leia-se: “não obrigatório não fazer”
ou “permitido fazer”).
Ainda, conforme Bobbio (2007, p. 168), se partirmos de uma norma per-
missiva positiva, aplicando-a o operador de permissão P, obtemos: P ¬ (leia-se:
permissão de não fazer, ou seja, permissão negativa); ¬P (leia-se: não permissão
de fazer, ou seja, proibição); e ¬P ¬ (leia-se: não permissão de não fazer, ou seja,
obrigação). Entre os operadores de obrigação e permissão existem as seguintes
relações de equivalência: O ≡ ¬P ¬ (leia-se: deve-se fazer equivale a não se pode não
fazer ); O¬ ≡ ¬P (leia-se: deve-se não fazer equivale a não se pode fazer ); ¬O ≡ P ¬
(leia-se: não é obrigatório fazer equivale a é permitido não fazer ); ¬O¬ ≡ P (leia-se:
não é obrigatório não fazer equivale a é permitido fazer ).
Ao definirmos o operador deôntico de obrigação como primitivo às normas
jurı́dicas obrigatórias, temos: (1) as normas O e ¬O como contraditórias; (2) as
normas O¬ e ¬O¬ como contraditórias; (3) as normas O e O¬ como contrárias; (4)
as normas ¬O¬ e ¬O como contrárias; (5) as normas O e ¬O¬ como subalternas;
(6) as normas O¬ e ¬O como subalternas. Como veremos na seção a seguir, Bobbio
(2007, p. 219–254) na sua Teoria do Ordenamento Jurı́dico retoma estas relações
lógicas ao tratar do problema das antinomias (problema dos conflitos entre normas
jurı́dicas).
afirmava Grócio, como no raciocı́nio more geometrico, pelo evidente para chegar
as complexidades que se revelam pela demonstração. A ambição epistemológica de
Grócio repousa nas prerrogativas de uma racionalidade demonstrativa e construtiva
que antecipa o domı́nio dos próprios fatos em rumo a abstração. Assim, o “sistema”
do direito é sobretudo um sistema racional fundamentado na certus ordo, cujas
definições precisas e ordenadas se relacionam com axiomas (máximas da reta razão)
e são estabelecidas por provas estritamente racionais, segundo uma demonstração
lógica4 .
A partir do século XIX, se impõe no ocidente uma nova forma de restru-
turação social: o Estado Moderno. Neste momento, o Estado por meio de aparatos
burocráticos (poder executivo, poder legislativo, poder judiciário, códigos, insti-
tuições, agentes competentes etc.) passa a monopolizar a produção do direito. O
direito, mais do que nunca, passa a ser reconhecido como um fenômeno normativo, o
que significa dizer que o direito passa a ser entendido como um conjunto de leis esta-
tutárias que têm por objetivo regulamentar a vida social no âmbito da organização
polı́tica do Estado.
Este aspecto foi tão influente neste momento que, por exemplo, no Estado
Frances Moderno diversos representantes da Escola da Exegese Jurı́dica como Ale-
xandre Duranton, Charles Auby, Frédéric Rau, Demolembe e Tropong, para citarmos
apenas estes, propõem uma redução radical do direito ao conjunto de leis jurı́dicas
produzidas pelo Estado, cuja máxima pode ser enunciada da seguinte forma: “o
direito é a lei estatutária; a lei estatutária é o direito”. Ou seja, o direito como um
saber (jurisprudência ou/e doutrinário) que tem por objetivo estudar o conteúdo do
direito positivo (a lei estatutária, neste caso), passa a ser confundi com o seu objeto
de estudo. Isto é o mesmo que dizer que a história é tão somente um conjuntos
de fatos que ocorrem no tempo-espaço. Entretanto, a história é um saber crı́tico
ou parcial que interpreta fatos e os concatena numa cadeia lógica, construı́da a sua
maneira. Os fatos não são a própria história, mas o seu objeto de estudo. A escola
alemã Histórica do Direito, que tem como principais representantes Gustav Hugo
e Frederich Carl von Savigny, levanta-se contra este entendimento como veremos a
seguir.
Não é de se estranhar este tipo de pensamento, se entendermos que os re-
presentantes da Escola da Exegese acreditavam que as leis eram produtos de uma
razão iluminista (a ratio jus pertencente a um “legislador racional” ou as juristas),
que conseguia sem maiores dificuldades estabelecer leis precisas (ou seja, leis claras,
leis sem qualquer ambiguidade), autoaplicáveis, que mantêm entre si uma perfeita
sistematicidade, e cujo conteúdo normativo dava conta de solucionar todos os ca-
sos possı́veis. Para estes exegetas a tecnologia que traduzia todos estes avanços,
com relação as legislações passadas e modelos jurı́dicos anteriores, apresentava-se na
forma de um codex : o Código de Napoleão, promulgado em 1804.
Para a escola alemã Histórica do Direito o direito não se reduz à artificiali-
dade das leis produzidas pelos legisladores, sendo ele antes uma ciência jurı́dica de
ordem histórica e sistemática, produzida por juristas profissionais. Histórica porque
deve levar em consideração o tempo em que a lei foi elaborada e estar sendo aplicada,
observando sempre se esta se coaduna com o “espı́rito do povo” ou a “convicção co-
mum do povo” (Volksgeist), ou seja, com o modus vivendi da comunidade delineado
por sua tradição. Mas lembremos que o Volksgeist é percebido pelos juristas e a sua
4
Para mais detalhes: Goyard-Fabre (2006, p.12-20).
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sistema cujos elementos são palavras, temos de antemão que responder a questão:
o que é uma palavra? De inı́cio, devemos estabelecer a identidade daquilo que é
a referência do termo “palavra”. O problema da identidade, neste sentido, é o
problema da definição. Definimos algo de tal maneira que este em nossos discursos
não seja confundido com outras coisas já definidas. Tentamos, assim, na medida
do possı́vel evitar contradições, por acreditarmos, em geral, que os nossos discursos
devem ser coerentes. Afinal, definido o que uma mesa é não a confundimos com
uma cadeira, também já definida como tal. Não faz sentido para nós afirmarmos
que um mesa é ao mesmo tempo uma cadeira (não-contradição ontológica). Bem
como nos parece igualmente ilógico pensarmos que uma proposição possa ser falsa e
verdadeira ao mesmo tempo (não-contradição lógica). É fácil perceber que há uma
ı́ntima relação entre o primeiro princı́pio, o segundo princı́pio e o terceiro princı́pio.
Este último afirma que não existe além do verdadeiro e do falso um terceiro valor-
de-verdade a ser conferido à proposição.
Em linhas bem gerais, ao definirmos a “palavra” como “um signo que tem
significado e é composto por letras do alfabeto”, a partir daı́ podemos lhe associar
regras de formação, como as regras de sintaxe no caso na lı́ngua portuguesa. Por
exemplo, a palavra “emblemático” tem um significado e é construı́da com letras
do alfabeto que se relacionam (ou se estruturam) conforme regras sintáticas, tal
como a que determina que antes de “p” ou “b” deve-se escrever a letra “m”. As
regras sintáticas são bons exemplos de regras de estruturação do sistema “lı́ngua
portuguesa”. Com isto, concluı́mos que princı́pios e regras são requisitos importantes
para podermos conceber um sistema.
Bobbio vincula a cada um dos princı́pios acima mencionados um problema
fundamental da leitura do direito como ordenamento jurı́dico. Relaciona: ao (1)
princı́pio da identidade o problema da unicidade; (2) ao princı́pio da não-contradição
o problema da coerência; e (3) ao princı́pio do terceiro excluı́do o problema da com-
pletude.
Estes problemas surgem das diversas relações existentes entre as normas
jurı́dicas. O primeiro problema trata-se de se entender (1) O que é a norma jurı́dica?
(problema de identidade) e (2) Como as normas jurı́dicas constituem um todo es-
calonado? (problema da hierarquia). O segundo problema consiste em saber se o
direito, além de uma unidade, também pode ser considerado um “sistema consistente
de normas jurı́dicas”. Um sistema deste tipo não admite contradições de conteúdo
entre as suas normas jurı́dicas (antinomias jurı́dicas). O terceiro problema discute as
consequências da ideia de “ordenamento jurı́dico completo”: ordenamento jurı́dico
que deve apresentar normas jurı́dicas que permitam aos agentes competentes jul-
garem todos os casos jurı́dicos com os quais venham a se deparar. O cerne deste
problema está em compreender as lacunas da lei e as lacunas do sistema de normas
jurı́dicas. Abordemos brevemente a seguir cada um deles.
3.3 Unidade
Norberto Bobbio (2007, p. 184) esclarece que o ter “direito”, em certo
sentido, refere-se a um tipo de ordenamento: o ordenamento jurı́dico. Define, a
princı́pio, de modo genérico este como um “conjunto de normas jurı́dicas”. Entende
que são duas as espécies de normas jurı́dicas que o compõe: as normas jurı́dicas de
conduta e as normas jurı́dicas de estrutura ou de competência. Estas últimas “são
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aquelas que não prescrevem a conduta que se deve ter ou não mas prescrevem as
condições e os procedimentos por meio dos quais são emanadas normas de conduta
válidas” (BOBBIO, 2007, p. 186).
As normas de estrutura ou de competência, na opinião deste filósofo do di-
reito, parecem oferecer uma reposta adequada (sem a qual é inconcebı́vel estabelecer
de partida um ordenamento jurı́dico) à questão: como saber quais normas podem
ser consideradas jurı́dicas e quais não podem ser consideradas como jurı́dicas? Ou
seja, quais são os critérios que nos permite classificar as normas como jurı́dicas e não
como normas de etiqueta, de decoro, de costume, de um jogo, e assim por diante?
A pertinência de uma norma no ordenamento é denominada de validade.
A validade jurı́dica pressupõe algumas condições que, quando cumpridas, permitem
reconhecer uma norma como juridicamente válida. Ou seja, estas condições servem
justamente para constatar se a norma pertence ou não ao ordenamento jurı́dico. Se
esta pertence ao ordenamento jurı́dico, dizemos que a norma é jurı́dica. Este é o
critério de identidade da norma jurı́dica sugerido por Bobbio.
Uma condição relevante de validade é a que questiona, por exemplo, se de-
terminada norma foi promulgada por autoridade competente. A legitimidade deste
ato legislativo, defende Bobbio, é garantida por uma norma superior válida (por-
tanto, também legı́tima) que confere competência ao agente público para produzir
aquela norma. Entretanto, podemos de antemão questionar de qual norma esta
“norma superior” extraı́ a sua legitimidade? De grau em grau chegamos ao “poder
supremo de criação das normas jurı́dicas”, isto é, ao poder constituinte, cuja legi-
timidade é dada por uma norma além da qual não existe outra: esta é a norma
fundamental.
Para Bobbio a “juridicidade de uma norma não se determina através do seu
conteúdo (nem da forma, ou do fim e assim por diante), mas por sua pertinência
ao ordenamento, pertinência que, por sua vez, se determina remontando da norma
inferior à norma superior até a norma fundamental.” (BOBBIO, 2007, p. 218).
Recepciona, assim, a “teoria da construção gradual do ordenamento jurı́dico” de
Adolf Merkl e de Hans Kelsen (2003, 2011). Essa teoria propõe que as normas de um
ordenamento jurı́dico não estão todas no mesmo plano, existindo normas superiores
e normas inferiores. As normas inferiores derivam das superiores. Partindo das
normas inferiores e passando por aquelas que estão acima, chega-se por último a
uma “norma suprema”, que não depende de nenhuma outra superior, e sobre a qual
repousa a unidade do ordenamento: a norma fundamental.
Para Bobbio (2007, p. 208-211), esta norma última só pode ser aquela da
qual deriva o poder primeiro: o poder constituinte, com o qual se faculta a produção
de normas jurı́dicas. Mas, afinal, em que esta se fundamenta? A norma fundamental,
segundo Bobbio, não tem nenhum fundamento, pois é
um pressuposto do ordenamento: ela cumpre, num sistema nor-
mativo, a mesma função a que estão destinados os postulados
num sistema cientı́fico. Os postulados são aquelas proposições
primitivas de que se deduzem as outras, mas que por sua vez
não são dedutı́veis. Ela é uma convenção ou, se se preferir, uma
proposição evidente que é posta no vértice do sistema, para que
todas as normas possam se reduzir-se a ela (BOBBIO, 2007, p.
211).
Por outras palavras, é o “fundamento subentendido de legitimidade de todo o sis-
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tema. Embora não expressa, é o pressuposto de nossa obediência às leis que derivam
da Constituição e à própria Constituição” (BOBBIO, 2007, p. 209).
3.4 Coerência
Quanto à coerência do ordenamento jurı́dico, Bobbio afirma que é, justamente, a
não possibilidade de não coexistência entre normas jurı́dicas incompatı́veis no direito
(normas jurı́dicas com prescrições opostas no todo ou em parte) que lhe dá o caráter
de “sistema”, num sentido bem particular, a saber:
Se num ordenamento passam a existir normas incompatı́veis,
uma das duas ou ambas devem ser eliminadas. Se isso é ver-
dade, significa que as normas de um ordenamento têm certa
relação entre si, e essa relação é compatibilidade. Observa-se,
porém, que dizer que as normas devem ser compatı́veis não sig-
nifica dizer que tenham implicação uma com a outra, ou seja,
que constituam um sistema dedutivo perfeito. Neste sentido, o
sistema jurı́dico não é um sistema dedutivo, é um sistema num
sentido menos significativo que exclui a incompatibilidade de
suas partes singularmente consideradas. Portanto, não é cor-
reto falar, como frequentemente acontece, de coerência do or-
denamento jurı́dico no seu todo: pode-se falar de existência de
coerência somente entre as partes singularmente consideradas
desse ordenamento. Num sistema dedutivo, caso haja uma con-
tradição, todo o sistema desmorona. Num sistema jurı́dico, a
admissão do princı́pio que exclui a incompatibilidade tem por
consequência, em caso de incompatibilidade de duas normas,
não o colapso de todo sistema, mas apenas de uma das duas
normas ou, no máximo, de ambas (BOBBIO, 2007, p. 227).
Entretanto, se o direito é um sistema dinâmico, no qual as normas que o
compõem derivam umas das outras através de sucessivas delegações de poder na
medida em que “uma autoridade inferior deriva de uma autoridade superior, até
se chegar à uma autoridade suprema, que não tem nenhuma autoridade acima de
si”(KELSEN, 2003, p. 219), então reconhece Bobbio que este tipo de sistema deve
admitir contradições, a princı́pio, já que a autoridade competente pode promulgar
normas contraditórias. Poderia o direito, ainda assim, ser considerado uma espécie
de sistema? Partindo da concepção clássica que um sistema não pode comportar
contradições e da noção de validade, Bobbio (2007, p. 228) atesta que além do fato
de se provar que as normas jurı́dicas devem ter certa compatibilidade com relação
aos atos de vontade das autoridade, “é preciso examinar o conteúdo delas; não basta
referir-se à autoridade que as emanou” (BOBBIO, 2007, p. 222).
O direito como “sistema” não deve conter normas contraditórias, isto é,
antinomias. O termo “antinomia” designa, especificamente, primeiro, que não é
possı́vel termos o encontro de duas proposições incompatı́veis ambas “verdadeiras”
e, segundo, com referência ao sistema normativo, que não é admissı́vel termos normas
rivais ambas aplicáveis, pertencentes ao mesmo ordenamento e com o mesmo âmbito
de validade (temporal, espacial, pessoal e material)6 . Bobbio (2007, p. 230) aponta
6
Para Kelsen (2003, p. 229) este conflito não é uma contradição lógica no sentido estrito
da palavra. Com efeito, os princı́pios lógicos, e particularmente o princı́pio da não-contradição,
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3.5 Completude
Quanto à completude, Bobbio (2007, p. 259) entende esta como a “propriedade
pela qual um ordenamento jurı́dico tem uma norma para regular cada caso. Tendo
em vista que a ausência de uma norma costuma ser chamada de “lacuna”, comple-
tude significa ausência de lacunas”. Se preferirmos uma definição mais técnica de
completude, poderemos dizer que um “ordenamento é completo quando nunca se
verifica o caso de que nele não se possa demonstrar a pertinência nem de uma deter-
minada norma nem da norma contraditória” (BOBBIO, 2007, p. 259). Dada esta
definição, constata-se que há um importante nexo entre o problema da coerência e o
problema da completude, a saber: dizemos que um sistema jurı́dico é incoerente se
neste existe, por exemplo, tanto uma norma que proı́be um comportamento quanto
outra que o permite; por outro lado, dizemos que um sistema jurı́dico é incompleto
se nele, por exemplo, não existe nem a norma que proı́be certo comportamento nem
a que o permite.
são aplicáveis a afirmações que podem ser verdadeiras ou falsas; e uma contradição lógica entre
duas afirmações consiste em que apenas uma ou a outra pode ser verdadeira; em que se uma é
verdadeira, a outra tem de ser falsa. Uma norma, porém, não é verdadeira nem falsa, mas válida ou
não válida. Contudo, a asserção (enunciado) que descreve uma ordem normativa afirmando que, de
acordo com esta ordem, uma determinada norma é válida, e, especialmente, a proposição jurı́dica,
que descreve uma ordem jurı́dica afirmando que, de harmonia com essa mesma ordem jurı́dica, sob
determinados pressupostos deve ser ou não deve ser posto um determinado ato coercivo, podem
ser verdadeiras ou falsas. Por isso, os princı́pios lógicos em geral e o princı́pio da não-contradição
em especial podem ser aplicados às proposições jurı́dicas que descrevem normas de direito e, assim,
indiretamente, também podem ser aplicados às normas jurı́dicas. Não é, portanto, inteiramente
descabido dizer-se que duas normas jurı́dicas se “contradizem” uma à outra. E, por isso mesmo,
somente uma delas pode ser tida como objetivamente válida. Dizer que A deve ser e que não deve
ser ao mesmo tempo é tão sem sentido como dizer que A é e não é ao mesmo tempo. Um conflito
de normas representa, tal como uma contradição lógica, algo sem sentido.
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Bobbio (2007, p. 274 ss.) propõe, a partir das noções de norma geral
exclusiva e norma geral inclusiva, duas abordagens distintas do problema da in-
completude. O primeiro tipo destas normas jurı́dicas7 exclui a tipicidade de todos
os comportamentos que não fazem parte daqueles previstos pelas normas jurı́dicas.
Isto significa dizer que quando um caso é regulado pelo direito, é denotado de “caso
jurı́dico” (ou “caso juridicamente relevante”), por outro lado, um caso não regulado
pelo direito, pertence à esfera de livre manifestação da atividade humana, isto é,
a esfera do juridicamente não regulamentado (ou juridicamente irrelevante). Neste
último sentido, diz-se que há o “espaço jurı́dico vazio” ou a ausência de lacuna no
sistema jurı́dico, já que as atividades são indiferentes ao direito, prevalecendo, aqui,
o adágio: “o que não é proibido, é permitido”.
Sob outra ótica, a que nega a completude, o ordenamento jurı́dico que não
possui normas jurı́dicas que regulamente, particularmente, certo caso ou conduta,
deve se utilizar de uma norma geral inclusiva, pertencente a este, cuja função é a de
integrá-lo ou de complementá-lo, preenchendo as suas lacunas com normas capazes
de solucionar o caso em questão8 . Estas normas aplicadas pertencem, a princı́pio, a
outros sistemas prescritivos, tais como o da moral, o dos costumes, o das regras de
etiqueta etc., sendo em seguida integralizadas ao sistema jurı́dico por intermédio do
julgamento de uma autoridade competente, tornando-se as mesmas, assim, jurı́dicas,
ou seja, pertencentes ao direito.
Se um sistema jurı́dico admite a norma geral exclusiva e a norma geral
inclusiva como soluções ao problema da completude, cabe ao intérprete decidir qual
dessas ele deve aplicar no caso de lacuna; entretanto, dado o fato de que tal sistema
não deixa claro, em geral, qual dessas é preferı́vel, ainda assim, neste sentido, parece
prevalecer uma lacuna. Logo, a verdadeira lacuna (“lacuna sistemática”) “se verifica
não pela ausência de uma norma expressa para a regulamentação de um determinado
caso, mas pela ausência de um critério para a escolha de qual das duas regras gerais,
aquela exclusiva e aquela inclusiva, deva ser aplicada” (BOBBIO, 2007, p. 279).
7
O artigo 5o , inciso II, da nossa Constituição Federal representa um bom exemplo de norma
geral exclusiva ao afirmar que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa
senão em virtude de lei” (princı́pio da legalidade).
8
Temos como exemplo de norma geral inclusiva no nosso ordenamento jurı́dico o artigo 4o
do Decreto-lei 4.657/42 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINB/1942) que
determina que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os
costumes e os princı́pios gerais de direito.”
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Referências