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Aula 03: Teoria do Direito de

Norberto Bobbio
Rodrigo Costa Ferreira∗
rodrigouepb@yahoo.com.br
rodrigoufrn@yahoo.com.br
CCJ – UEPB – UFRN

Texto em Construção

22/04/2017

Para os meus alunos

Resumo

Na presente aula estudamos alguns pontos importantes da teoria do direito de


Norberto Bobbio. Dividimos a nossa exposição em dois grandes momentos.
No primeiro momento, expomos a sua teoria da norma jurı́dica, ocasião na
qual, em especial, tratamos da sua definição formal de norma jurı́dica, do
estudo que realiza sobre as estruturas lógicas das proposições jurı́dicas e da sua
tipologia formal das normas jurı́dicas. Num segundo momento, trabalhamos
os importantes conceitos de norma fundamental, critérios de antinomia, norma
jurı́dica geral exclusiva e norma jurı́dica geral inclusiva, todos elaborados no
âmbito da sua teoria do ordenamento jurı́dico.

Palavras-chave: Proposição Jurı́dica; Norma Fundamental; Ordenamento


Jurı́dico.

Sumário: 1. Considerações Iniciais – 2. Teoria da Norma Jurı́dica – 2.1.


Norma Jurı́dica em Sentido Formal – 2.2. Tipologia Formal das Normas
Jurı́dicas – 3. Ordenamento Jurı́dico – 3.1. Unidade – 3.1.1. Norma Funda-
mental – 3.2. Coerência – 3.2.1. Critérios de Solução de Antinomias – 3.3.
Completude – Regra Gerais Inclusiva e Exclusiva.


Doutor em Filosofia Analı́tica pela UFPB–UFRN–UFPE; Mestre em Lógica Matemática pela
UFPB; Professor Adjunto de Filosofia e Teoria do Direito na Universidade Estadual da Paraı́ba
(UEPB – CCJ) e na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN – DA – CERES).

1
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1 Considerações Iniciais
A teoria do direito de Norberto Bobbio (2007) pode ser abordada a partir
de duas frentes de estudos: (1) a primeira explora a unidade básica do fenômeno
normativo como objeto de pesquisa: a norma jurı́dica; já (2) a segunda investiga o
direito como um “sistema de normas jurı́dicas” (ou “ordenamento jurı́dico”). O pri-
meiro estudo é desenvolvido na sua Teoria da Norma Jurı́dica (Teoria della Norma
Giuridica, 1958), na qual realiza uma série de análises sobre a estrutura lógica da
norma jurı́dica, bem como sugere uma tipologia de normas jurı́dicas inspirada nas
distinções conceituais das proposições lógicas tratadas pela lógica clássica. Já o se-
gundo estudo é desenvolvido na obra Teoria do Ordenamento Jurı́dico (Teoria dell’
Ordinamento Giuridico, 1960). Neste trata das “relações normativas” (relações de
hierarquia, cronologia, espaço, tipológica etc.) existentes entre as normas jurı́dicas
do ordenamento jurı́dico, observando para tanto algumas condições técnico-jurı́dicas
procedimentais (regras de estrutura ou competência, critérios de solução de antino-
mias, vigência etc.).

2 Teoria da Norma Jurı́dica


2.1 Norma Jurı́dica em Sentido Formal
Na obra Teoria da Norma Jurı́dica, Norberto Bobbio (2007, p. 49 ss) for-
mula um estudo formal da norma jurı́dica, ou seja, investiga a estrutura lógica da
norma jurı́dica de maneira independente do seu conteúdo. Neste estudo, primeiro,
denota a norma jurı́dica como uma proposição prescritiva, momento no qual ana-
lisa a sua forma lógica e seus critérios de valoração, e, segundo, trabalha a seguinte
classificação formal das normas jurı́dicas: normas gerais, normas abstratas, normas
individuais, normas concretas, normas afirmativas e normas negativas.
Do ponto de vista formal, Bobbio (2007, p. 52) entende a norma jurı́dica
como uma proposição (significado inferido do texto normativo) pertencente à cate-
goria geral das proposições prescritivas, as quais fazem uso da “função linguı́stica
prescritiva”, própria da linguagem normativa, que consiste em “dar comandos, con-
selhos, recomendações, advertências, de modo a influir no comportamento alheio e
modificá-lo e, em suma, em levar a fazer” (BOBBIO, 2007, p. 57–58 ).
As normas jurı́dicas enquanto proposições prescritivas são expressas como
comandos (ou imperativos) cujas formas lógicas são (1) a categórica e (2) a hi-
potética. A primeira tem a forma “A deve ser” e a segunda tem a forma “Se A,
deve ser B”. Por exemplo, segundo o artigo 53◦ , § 1o , da nossa Constituição Fede-
ral, “Os Deputados e Senadores, desde a expedição do diploma, serão submetidos a
julgamento perante o Supremo Tribunal Federal”. Deste enunciado inferimos uma
proposição do primeiro tipo “A deve ser”: “Os Deputados e Senadores diplomados
devem ser julgados pelo Supremo Tribunal Federal”1 . Já, por exemplo, o artigo 110
1
Regras jurı́dicas que dispõem sobre a organização dos poderes do Estado, as que estruturam
os órgãos e distribuem competências e atribuição, bem como as que disciplinam a identificação,
modificação e aplicação de outras regras jurı́dicas não se apresentam como juı́zos hipotéticos: o
que as caracteriza é a obrigação objetiva de algo que deve ser feito, sem que o dever enunciado
fique subordinado à ocorrência de um fato previsto, do qual possam ou não resultar determinadas
consequências (REALE, 1999, p. 95).
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da lei Municipal n◦ 3273/2001, do Estado do Rio de Janeiro, prescreve que “afi-


xar material de propaganda ou anúncio em (...) postes, tapumes, muros, viadutos,
monumentos, passarelas, pontes ou em qualquer mobiliário urbano, sem a prévia,
expressa e especı́fica autorização do poder público, constitui infração punida com a
multa inicial de R$ 125, 00.” Deste enunciado inferimos uma proposição do segundo
tipo “Se A, deve ser B”: “Se X fixar anúncios em viadutos, deve ser X multado”.
Um imperativo hipotético como o enunciado se caracteriza por apresentar
certa consequência (fim) como efeito de uma causa (meio), vı́nculo este que não
pode ser entendido em “sentido natural”2 (“necessidade natural”), mas tão somente
em sentido jurı́dico e deontológico, uma vez que um meio é associado a um fim
estabelecido pelo ordenamento jurı́dico. O sentido deontológico se dá em razão de
se considerar, em geral, a prescrição jurı́dica como obrigatória. Para Bobbio (2007,
p. 76) as prescrições jurı́dicas obrigatórias são aquelas que possuem uma “alta força
vinculativa” que gera uma obrigação na pessoa a quem é destinada.
Quanto à valoração das normas jurı́dicas enquanto proposições prescritivas
(significados) e enquanto enunciados (significantes), Bobbio (2007, p. 61) afirma
que às proposições desta espécie é possı́vel atribuirmos os valores-de-verdade “ver-
dadeiro” ou “falso”, mas já aos enunciados jurı́dicos, dos quais elas são inferidas,
não se pode dizer o mesmo. Na opinião deste jurista faz sentido perguntar se a pro-
posição “Brası́lia deve ser a capital da Mongólia” é verdadeira ou falsa, observado
o artigo 18, § 1o da nossa Constituição Federal. Por outro lado, não parece fazer
sentido para ele perguntar se o enunciado deste artigo “Brası́lia é a Capital Federal”
é verdadeira ou falsa. A propósito dos enunciados das normas jurı́dicas, Bobbio
(2007, p. 61) fala da valoração segundo a justiça ou a injustiça e, ainda, segundo a
validade e a invalidade (validade como vigência).
O problema da justiça, segundo Bobbio (2007, p. 26 ), é o problema da
correspondência ou não da norma jurı́dica com valores últimos que inspiram de-
terminado ordenamento. Uma norma jurı́dica é justa ou injusta, neste sentido, se
ela está apta ou não para realizar estes valores. Por exemplo, a “lei Maria da Pe-
nha” (lei n◦ 11.340/06), criada com o propósito de coibir a violência doméstica e
familiar contra a mulher, é justa, pois se adéqua ao valor da dignidade da pessoa hu-
mana. Já o problema da validade é o problema da existência da norma como norma
jurı́dica. Para se constatar se a norma jurı́dica é válida (ou pertence a um sistema
de normas jurı́dicas), na opinião de Bobbio (2007, p. 26-27), é preciso realizar três
operações: (1) verificar se a autoridade tem o poder de promulgar normas jurı́dicas
para o ordenamento jurı́dico; (2) verificar se não foi ab-rogada (ocorre quando, por
exemplo, uma outra norma sucessiva no tempo a ab-rogou expressamente ou regulou
a mesma matéria por ela regulamentada); (3) verificar se não é incompatı́vel com
2
Bobbio utiliza a expressão “sentido natural” da seguinte forma: “A norma técnica: ‘Se quiser
ferver a água, você deve aquecê-la a 100 graus’, em que a fervura é o fim e o aquecimento é o meio,
deriva da proposição descritiva: ‘A água ferve a 100 graus’, onde o calor de 100 graus é a causa
e a fervura é o efeito. Ora, se o imperativo tem a função de produzir na pessoa a quem se dirige
uma obrigação de comportar-se de um determinado modo, não se vê qual obrigação deriva de um
imperativo hipotético dessa espécie (...) o comportamento que dele deriva não pode ser considerado
obrigatório, porque é necessário, no sentido de uma necessidade natural (...) Se eu quiser ferver
a água, o ato de aquecê-la a 100 graus não é a consequência de uma norma jurı́dica, mas uma lei
natural, que não me obriga, mas me constrange a comportar-me daquele modo” (BOBBIO, 2007,
p. 74).
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outras normas do sistema, sobretudo com uma norma hierarquicamente superior.


Segundo Bobbio (2007, p. 61) os critérios com que se avaliam as pro-
posições descritivas, tal como a que afirma, por exemplo, “Está chovendo!” e a
que diz “A soma dos ângulos internos de um triângulo num plano euclidiano é
igual a soma de dois ângulos retos”, para aceitá-las ou rejeitá-las, são (1) a “corres-
pondência com aos fatos” (critério de verificação empı́rica) ou (2) os “postulados
auto-evidentes” (critério de verificação formal ). Já as proposições prescritivas e os
enunciados jurı́dicos admitem como critérios de avaliação a “correspondência aos
valores últimos” (critério de justificação material ou critério de justiça) ou a “de-
rivação das fontes primárias de produção normativa” (critério de justificação formal
ou critério de vigência).

2.2 Tipologia Formal das Normas Jurı́dicas


São possı́veis muitas distinções entre as normas jurı́dicas. Existem distinções
que se referem ao conteúdo das normas, como a distinção entre normas materiais e
normas processuais, ou entre normas de comportamento e normas de organização.
Outras distinções referem-se ao modo como as normas são postas, como a distinção
entre normas consuetudinárias e normas legislativas. Todavia, estas distinções não
serão estudadas por Bobbio, importando-lhe apenas examinar o critério formal de
distinção das normas jurı́dicas, o qual denota como aquele que “diz respeito exclusi-
vamente à estrutura lógica da proposição prescritiva” (BOBBIO, 2007, p. 159). Para
desenvolver este critério, o jusfilósofo se serve de algumas distinções fundamentais e
tradicionais da lógica clássica. Vejamos.
A distinção entre proposições universais e proposições singulares é uma des-
tas distinções elementares facilmente encontradas nos tratados modernos de lógica.
Chamam-se universais as proposições em que o sujeito representa uma classe com-
posta por vários membros, tal como em “Todos os homens são mortais”; e singulares,
aquelas em que o sujeito representa um sujeito singular, como “Sócrates é mortal”.
Esta distinção permite a Bobbio (2007, p. 160) estabelecer a seguinte classificação
inicial de proposições prescritivas do direito: proposições jurı́dicas universais e pro-
posições jurı́dicas singulares.
Toda proposição prescritiva é composta por dois elementos constitutivos: o
sujeito, a quem a norma se dirige, ou seja, o destinatário, e o objeto da prescrição,
isto é, a ação prescrita. Deste modo, é possı́vel a Bobbio (2007, p. 161) obter
quatro tipos de proposições prescritivas jurı́dicas: proposições prescritivas jurı́dica
com destinatário universal, proposições prescritivas jurı́dica com destinatário sin-
gular, proposições prescritivas jurı́dica com ação universal, proposições prescritivas
jurı́dica com ação singular.
As normas jurı́dicas a partir das quais inferimos proposições universais em
relação aos destinatários, isto é, todas aquelas normas jurı́dicas que têm como su-
jeito de direito uma classe de pessoas, Bobbio (2007, p. 162) denota de normas
jurı́dicas gerais. Por outo lada, as normas jurı́dicas que admitem proposições uni-
versais em relação à ação, ou seja, regulamentam uma uma classe de ações (ação-
tipo), Bobbio (2007, p. 162) denomina de normas jurı́dicas abstratas. Às primeiras
se contrapõem as normas jurı́dicas que têm por destinatário um indivı́duo singular
(normas jurı́dicas individuais), já às segundas são opostas as que regulam uma ação
singular: as normas jurı́dicas concretas.
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O nosso Código Penal (Decreto-lei no 2.848/1940), na sua parte especial,


prescreve no artigo 129 o tipo penal “lesão corporal”. Pratica lesão corporal aquele
que “ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem”. O destinatário desta
prescrição é uma classe de indivı́duos (homens, mulheres, crianças etc.), portanto
o artigo 129 é uma norma jurı́dica geral. Por outro lado, este dispositivo legal não
especifica as circunstâncias, ações, atos ou meios (socos, pontapés, pauladas, etc.)
pelos quais o agente pode chegar as vias de fato da agressão3 . Assim, dizemos
também que este se trata de uma norma jurı́dica abstrata. Já o artigo 932, I, do
nosso Código Civil (Lei no 10.406/2002) determina que “são também responsáveis
pela reparação civil os pais, pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e
em sua companhia”. Neste dispositivo estão bem determinados tanto o destinatário
como a ação-tipo: os pais são destinatários, e a ação-tipo consiste no ato de ter
responsabilidade pelos filhos que estiverem sob autoridade e em companhia dos pais.
O artigo 932, I, nestes termos, é uma norma jurı́dica individual e concreta.
Para Bobbio (2007, p. 163-164) os requisitos de generalização e de abstração
de certas normas jurı́dicas têm uma origem ideológica, e não lógica. Considera que
as norma jurı́dica gerais e as normas jurı́dicas abstratas surgem com o propósito de
realizar dois fins fundamentais aos quais todo ordenamento jurı́dico deve tender: o
fim da igualdade e o fim da certeza. As primeiras por admitirem como destinatário
uma classe de sujeitos oferecem, de antemão, um tratamento isonômico entre os
seus sujeitos, independentemente das suas diferentes faculdades, classes econômicas,
condições fı́sicas, e assim por diante. As segundas estabelecem a regulamentação de
uma ação-tipo, de modo que nela se enquadrem todas as ações concretas inseridas
naquele tipo. Isto geram uma maior “certeza” com relação aos efeitos que o ordena-
mento jurı́dico atribui a dado comportamento, com isto o cidadão é capaz de saber
antecipadamente as consequências jurı́dicas das ações de outros e da suas próprias
ações.
Uma outra distinção tradicional da lógica clássica que pode ser aplicada às
proposições prescritivas, defende Bobbio (2007, p. 167), é aquela que distingue as
proposições afirmativas das proposições negativas. Tomemos a seguinte proposição
prescritiva afirmativa universal “Todos devem fazer X”. Com o uso do conectivo
“não”, obtemos outros três tipos de prescrições: (1) negando a universalidade no
todo, temos “Ninguém deve fazer X” (ou “Todos não devem fazer X”) ; (2) negando
a universalidade em parte, temos “Nem todos devem fazer X” (ou “Alguns não
devem fazer X”); (3) de (1) e (2), obtemos “Nem todos devem não fazer X”.
O tipo de proposição prescrição (1) não é outro senão uma proposição pres-
critiva negativa, isto é, uma proibição. A proposição prescritiva em (2) isenta alguns
do dever de fazer X, permitindo-lhes não fazer, e por isso corresponde a uma pro-
posição do tipo permissiva negativa. Por fim, a proposição prescrição (3) dispensa
alguns do dever de não fazer X, permitindo-lhes fazer, deste modo pode ser classifi-
cada como permissiva positiva. Se aplicar à primeira proposição o operador deôntico
3
A “Lei Maria da Penha”, como indicamos acima, tem como destinatário a mulher que sofre
violência doméstica e familiar. Seria esta uma norma singular por ter como destinatário um
indivı́duo singular: a mulher? Não podemos afirmar isto com segurança, por se tratar no âmbito
da interpretação de uma questão de grau. Em certo sentido, dizemos que esta mulher pode ser
negra, branca, pobre ou rica, e assim por diante. Há assim uma classe de indivı́duos representada
pelo termo “mulher”. Esta estratégia é bastante utilizada pelo nosso constitucionalismo para
se referir a uma classe de gênero, e com isto prescrever uma condição isonômica entre os seus
representantes.
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de obrigação O, então as outras três podem ser simbolizadas, na ordem, deste modo:
O¬ (leia-se: “obrigatório não fazer” ou “proibido fazer”); ¬O (leia-se: “não obri-
gatório fazer” ou “permitido não fazer”); ¬O¬ (leia-se: “não obrigatório não fazer”
ou “permitido fazer”).
Ainda, conforme Bobbio (2007, p. 168), se partirmos de uma norma per-
missiva positiva, aplicando-a o operador de permissão P, obtemos: P ¬ (leia-se:
permissão de não fazer, ou seja, permissão negativa); ¬P (leia-se: não permissão
de fazer, ou seja, proibição); e ¬P ¬ (leia-se: não permissão de não fazer, ou seja,
obrigação). Entre os operadores de obrigação e permissão existem as seguintes
relações de equivalência: O ≡ ¬P ¬ (leia-se: deve-se fazer equivale a não se pode não
fazer ); O¬ ≡ ¬P (leia-se: deve-se não fazer equivale a não se pode fazer ); ¬O ≡ P ¬
(leia-se: não é obrigatório fazer equivale a é permitido não fazer ); ¬O¬ ≡ P (leia-se:
não é obrigatório não fazer equivale a é permitido fazer ).
Ao definirmos o operador deôntico de obrigação como primitivo às normas
jurı́dicas obrigatórias, temos: (1) as normas O e ¬O como contraditórias; (2) as
normas O¬ e ¬O¬ como contraditórias; (3) as normas O e O¬ como contrárias; (4)
as normas ¬O¬ e ¬O como contrárias; (5) as normas O e ¬O¬ como subalternas;
(6) as normas O¬ e ¬O como subalternas. Como veremos na seção a seguir, Bobbio
(2007, p. 219–254) na sua Teoria do Ordenamento Jurı́dico retoma estas relações
lógicas ao tratar do problema das antinomias (problema dos conflitos entre normas
jurı́dicas).

3 Teoria do Ordenamento Jurı́dico


3.1 Breves Considerações sobre a Ideia de Direito como
“Sistema Jurı́dico”
Segundo Ferraz Junior (1997, p. 123–128), o vocábulo sistema é de origem
grega (syn-istemi ) e significa o composto, o construı́do. A tradição grega utilizou a
palavra syn-istemi de diversos modos. De uma maneira geral, no sentido do “cons-
truı́do”, tratava-se de uma totalidade, cujas partes apontavam, na sua articulação,
para uma ordem qualquer. A palavra conheceu, além disto, usos restritos, por exem-
plo, em relação à polis, entendida por Platão, por Aristóteles e pelos estoicos, como
“sistema”. Aı́ aparece o significado básico de conglomerado, ligado, na verdade, ao
postulado da perfeição, no sentido de algo organizado, ordenado. Importante, por
outro lado, é o uso da palavra pelos estoicos, que se utilizavam dela não só para
designar o conceito de cosmos, mas também o de téchne, vista como um sistema de
regras obtidas por meio da experiência, mas a posteriori, logicamente repensadas,
tendo por finalidade o exercı́cio de uma ação repetı́vel, que almejava à perfeição e
que não estava submetida à natureza nem era abandonada ao acaso. Os antigos
gregos não chegaram a empregar estes sentidos ao tratarem do direito, mesmo no
momento em que reconheceram o direito uma espécie de “arte retórica”. Os roma-
nos, por sua vez, não utilizaram o termo, que era por eles desconhecido, nem tão
pouco conceitos análogos como constitutio ou coagmentatio. Tanto é que falavam
no sentido de um corpus juris civile e não de um systema juris civile.
No sentido do uso escolar, o termo “sistema” parece ter sido introduzido
muito depois, por meio da teoria da música. Martianus Capella, em sua obra De
nuptiis philologiqe et Mercuri et de septem artibus liberalis, foi quem criou para este
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termo um lugar na terminologia cientı́fica, atribuindo-lhe uma caracterı́stica impor-


tante – perfection et absolutum –, que passou a figurar também em outros campos
do conhecimento. Assim mesmo, esse desenvolvimento foi vagaroso e descontinuo.
O uso teológico da palavra, preterida inicialmente por termos como summa, corpus,
conservou ainda, por algum tempo, o sentido de sintagma. Só mais tarde, quando ela
passa a designar complexus articulorum fidei em termos de corpus integrum, e que
adquire significação própria. No seculo XVII, quando as relações entre as diferentes
ciências eram ainda bastante estreitas, essa significação se difunde. Bartholomaus
Keckermann é o primeiro a utilizar a palavra como tı́tulo de obra. No seu Systema
logicae (1600), define ele sistema, de um lado, como conjunto de sentenças verdadei-
ras, e, de outro, como método que visa à perfeição, apoiando-se na definição estoica
de arte (técnica) e ligando-a à teoria das artes liberales (FERRAZ JUNIOR, 1997,
p. 124).
Estes dois sentidos atribuı́dos ao termo “sistema” se fortalecem no correr
do seculo XVIII. Christian Wolff, que, com sua terminologia, domina o vocabulário
filosófico e cientı́fico de sua época, nos fala de sistema como nexus veritatum, o
qual se apoia sobretudo na correção formal e na perfeição da dedução. Também
Heinrich Lambert, nos fragmentos de sua “sistematologia” (Fragment einer Syste-
matologie), não só acentua esta concepção como lhe estabelece um conceito geral e
abstrato, independente de qualquer configuração concreta, forma esta que alcança
um entendimento de sistema que temos ainda hoje. Sistema é para ele um todo
fechado, em que há relações entre as partes e o todo e entre as partes entre si, as
quais estão perfeitamente determinadas segundo regras próprias. Já Immanuel Kant,
atribuindo-lhe o modelo orgânico, entende a noção de sistema não exatamente como
a soma das partes, já que este (o todo) as precede de algum modo, não permitindo
a composição e a decomposição sem a perda da unidade central, no que o sistema
vai se distinguir da mera agregação. Desse modo, mesmo com Hegel, a concepção
dialética não chega a alterar-lhe o sentido geral que é entendido, “objetivamente”,
como interdependência totalizante e ordenada de coisas, ou, genericamente, de par-
tes, em que a determinação das partes pelo todo ou do todo pelas partes varia de
concepção para concepção, e, “logicamente”, como ordenação de uma pluralidade de
conhecimentos numa totalidade do saber, aproximando-se esse segundo sentido da
ideia de método, como se observa ainda hoje em relaçãoo a palavra “sistemático”,
tomada muitas vezes no sentido de “metódico”. A palavra sistema, por fim, toma
conta da terminologia cientı́fica do século XVIII, chegando nestes moldes até os dias
atuais.
Assim, no âmbito jurı́dico, o conceito “sistema” ora se refere a uma espécie
de “ordem” e ora se corresponde com a ideia de método, principalmente quando há
uma pretensão, primeiro, de se construir um discurso cientı́fico jurı́dico acerca do
direito ou, segundo, de se estabelecer uma metodologia à técnica jurı́dica.
O precursor no entendimento do direito como sistema, observados estes
sentidos, foi o jurisconsulto holandês Hugo grócio. No século XVII o jusnaturalismo
racionalista de Hugo Grócio, presente na sua principal obra Do Direito da Paz e da
Guerra (De jure belli ac pacis, 1625), inicia uma revolução na forma de pensar o
direito. Neste livro propõe que o direito avance por meio de procedimentos racionais,
neste sentido, em especial, sugere que uma ciência jurı́dica também faça uso do
método dedutivo da matemática, o qual em sua opinião pertencem a um modelo de
cientificidade, por excelência, de rigor e de racionalidade. Era preciso iniciar, como
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afirmava Grócio, como no raciocı́nio more geometrico, pelo evidente para chegar
as complexidades que se revelam pela demonstração. A ambição epistemológica de
Grócio repousa nas prerrogativas de uma racionalidade demonstrativa e construtiva
que antecipa o domı́nio dos próprios fatos em rumo a abstração. Assim, o “sistema”
do direito é sobretudo um sistema racional fundamentado na certus ordo, cujas
definições precisas e ordenadas se relacionam com axiomas (máximas da reta razão)
e são estabelecidas por provas estritamente racionais, segundo uma demonstração
lógica4 .
A partir do século XIX, se impõe no ocidente uma nova forma de restru-
turação social: o Estado Moderno. Neste momento, o Estado por meio de aparatos
burocráticos (poder executivo, poder legislativo, poder judiciário, códigos, insti-
tuições, agentes competentes etc.) passa a monopolizar a produção do direito. O
direito, mais do que nunca, passa a ser reconhecido como um fenômeno normativo, o
que significa dizer que o direito passa a ser entendido como um conjunto de leis esta-
tutárias que têm por objetivo regulamentar a vida social no âmbito da organização
polı́tica do Estado.
Este aspecto foi tão influente neste momento que, por exemplo, no Estado
Frances Moderno diversos representantes da Escola da Exegese Jurı́dica como Ale-
xandre Duranton, Charles Auby, Frédéric Rau, Demolembe e Tropong, para citarmos
apenas estes, propõem uma redução radical do direito ao conjunto de leis jurı́dicas
produzidas pelo Estado, cuja máxima pode ser enunciada da seguinte forma: “o
direito é a lei estatutária; a lei estatutária é o direito”. Ou seja, o direito como um
saber (jurisprudência ou/e doutrinário) que tem por objetivo estudar o conteúdo do
direito positivo (a lei estatutária, neste caso), passa a ser confundi com o seu objeto
de estudo. Isto é o mesmo que dizer que a história é tão somente um conjuntos
de fatos que ocorrem no tempo-espaço. Entretanto, a história é um saber crı́tico
ou parcial que interpreta fatos e os concatena numa cadeia lógica, construı́da a sua
maneira. Os fatos não são a própria história, mas o seu objeto de estudo. A escola
alemã Histórica do Direito, que tem como principais representantes Gustav Hugo
e Frederich Carl von Savigny, levanta-se contra este entendimento como veremos a
seguir.
Não é de se estranhar este tipo de pensamento, se entendermos que os re-
presentantes da Escola da Exegese acreditavam que as leis eram produtos de uma
razão iluminista (a ratio jus pertencente a um “legislador racional” ou as juristas),
que conseguia sem maiores dificuldades estabelecer leis precisas (ou seja, leis claras,
leis sem qualquer ambiguidade), autoaplicáveis, que mantêm entre si uma perfeita
sistematicidade, e cujo conteúdo normativo dava conta de solucionar todos os ca-
sos possı́veis. Para estes exegetas a tecnologia que traduzia todos estes avanços,
com relação as legislações passadas e modelos jurı́dicos anteriores, apresentava-se na
forma de um codex : o Código de Napoleão, promulgado em 1804.
Para a escola alemã Histórica do Direito o direito não se reduz à artificiali-
dade das leis produzidas pelos legisladores, sendo ele antes uma ciência jurı́dica de
ordem histórica e sistemática, produzida por juristas profissionais. Histórica porque
deve levar em consideração o tempo em que a lei foi elaborada e estar sendo aplicada,
observando sempre se esta se coaduna com o “espı́rito do povo” ou a “convicção co-
mum do povo” (Volksgeist), ou seja, com o modus vivendi da comunidade delineado
por sua tradição. Mas lembremos que o Volksgeist é percebido pelos juristas e a sua
4
Para mais detalhes: Goyard-Fabre (2006, p.12-20).
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maneira é aplicado na produção do direito. Assim, este é um conceito ideal, segundo


o qual os juristas reconhecem que todos os membros da comunidade polı́tica estão
ligados por certa cultura (práticas que constituem e regulamentam o jeito de ser,
pensar e agir) comum. Seja como for, mesmo os juristas reconheçam que o direito
advém do “espı́rito do povo”, no final compete-lhes a missão de fomentar o direito
com alto grau de sofisticação. Sistemática porque os seus conceitos devem estar
organizados (gramaticalmente, logicamente, historicamente etc.) de modo a formar
uma unidade orgânica, ou seja, um sistema orgânico. No sistema orgânico não há
um único princı́pio que vincula todas as suas partes, como ocorre num sistema for-
mal, as suas partes apresentam certa autonomia, mas estão concatenadas segundo
relações de modo a formar uma unidade (ou um todo)5 .
Enquanto a Escola Histórica do Direito analisa o direito positivo histori-
camente extraindo indutivamente dele os conceitos que o estrutura, conceitos estes
que não resultam de escolhas legislativas, mas do Volksgeist revelado pelos jurista ao
longo da história, a Jurisprudência dos Conceitos, encabeçada pelo primeiro Jhering
e por Georg Puchta, por sua vez, entende que os juristas devem organizam o direito
positivo dedutivamente, realizando uma investigação sistemática piramidal e lógica
de seus conceitos básicos, sempre tendo em vista princı́pios doutrinários da ciência
jurı́dica. Puchta nomeava este projeto de construção de um sistema abstrato con-
ceitual de “genealogia dos conceitos” que, em suma, por outras palavras, consistia
justamente na decomposição da regra de direito nos seus conceitos básicos até a
reconstrução da cadeia significativa destes conceitos com outros conceitos também
fundamentais.

3.2 Considerações Iniciais sobre a Teoria do Ordenamento


Jurı́dico de Norberto Bobbio
Na obra Teoria do Ordenamento Jurı́dico, Norberto Bobbio (2007, p. 173
ss.) explica-nos como é possı́vel conceber o direito como um sistema de normas
jurı́dicas. Imagina que se isto é viável, o “sistema de normas jurı́dicas” deve ser
capaz de traduzir, ao menos de modo aproximado, as condições lógicas de um sistema
formal, tı́pico das ciências formais como a matemática e a lógica. Bobbio (2007,
p. 187), deste modo, propõe um estudo comparativo entre o sistema formal e o
“sistema de normas jurı́dicas” (ordenamento jurı́dico).
Do ponto de vista da lógica clássica, grosso modo, um sistema é composto
por elementos que são formados (ou identificados) e relacionados (relações de in-
ferência, coerência, verdade etc.) segundo regras e princı́pios. Há três princı́pios
que são fundamentais para se estabelecer um sistema formal : (1) princı́pio da iden-
tidade; (2) princı́pio da não-contradição; e (3) princı́pio do terceiro excluı́do. O
direito para ser reconhecido como um tipo de sistema deve observar, ao menos a sua
maneira, estes princı́pios.
O primeiro princı́pio determina que os elementos constitutivos do sistema
sejam definidos. Então, por exemplo, se tomarmos a lı́ngua portuguesa como um
5
Para entender melhor a ideia de sistema orgânico, imagine inicialmente o corpo humano como
uma unidade orgânica. Pulmões e rins, por exemplo, como elementos desta unidade interagem
entre si e são importantes por desempenharem funções especı́ficas, sendo possı́vel afirmar que no
âmbito da vida corpórea apresentam certa autonomia, pois não se confundem ou são dedutı́veis
um do outro. Sem estes órgãos não há um todo orgânico saudável!
————————— Teoria do Direito de Norberto Bobbio —————————10

sistema cujos elementos são palavras, temos de antemão que responder a questão:
o que é uma palavra? De inı́cio, devemos estabelecer a identidade daquilo que é
a referência do termo “palavra”. O problema da identidade, neste sentido, é o
problema da definição. Definimos algo de tal maneira que este em nossos discursos
não seja confundido com outras coisas já definidas. Tentamos, assim, na medida
do possı́vel evitar contradições, por acreditarmos, em geral, que os nossos discursos
devem ser coerentes. Afinal, definido o que uma mesa é não a confundimos com
uma cadeira, também já definida como tal. Não faz sentido para nós afirmarmos
que um mesa é ao mesmo tempo uma cadeira (não-contradição ontológica). Bem
como nos parece igualmente ilógico pensarmos que uma proposição possa ser falsa e
verdadeira ao mesmo tempo (não-contradição lógica). É fácil perceber que há uma
ı́ntima relação entre o primeiro princı́pio, o segundo princı́pio e o terceiro princı́pio.
Este último afirma que não existe além do verdadeiro e do falso um terceiro valor-
de-verdade a ser conferido à proposição.
Em linhas bem gerais, ao definirmos a “palavra” como “um signo que tem
significado e é composto por letras do alfabeto”, a partir daı́ podemos lhe associar
regras de formação, como as regras de sintaxe no caso na lı́ngua portuguesa. Por
exemplo, a palavra “emblemático” tem um significado e é construı́da com letras
do alfabeto que se relacionam (ou se estruturam) conforme regras sintáticas, tal
como a que determina que antes de “p” ou “b” deve-se escrever a letra “m”. As
regras sintáticas são bons exemplos de regras de estruturação do sistema “lı́ngua
portuguesa”. Com isto, concluı́mos que princı́pios e regras são requisitos importantes
para podermos conceber um sistema.
Bobbio vincula a cada um dos princı́pios acima mencionados um problema
fundamental da leitura do direito como ordenamento jurı́dico. Relaciona: ao (1)
princı́pio da identidade o problema da unicidade; (2) ao princı́pio da não-contradição
o problema da coerência; e (3) ao princı́pio do terceiro excluı́do o problema da com-
pletude.
Estes problemas surgem das diversas relações existentes entre as normas
jurı́dicas. O primeiro problema trata-se de se entender (1) O que é a norma jurı́dica?
(problema de identidade) e (2) Como as normas jurı́dicas constituem um todo es-
calonado? (problema da hierarquia). O segundo problema consiste em saber se o
direito, além de uma unidade, também pode ser considerado um “sistema consistente
de normas jurı́dicas”. Um sistema deste tipo não admite contradições de conteúdo
entre as suas normas jurı́dicas (antinomias jurı́dicas). O terceiro problema discute as
consequências da ideia de “ordenamento jurı́dico completo”: ordenamento jurı́dico
que deve apresentar normas jurı́dicas que permitam aos agentes competentes jul-
garem todos os casos jurı́dicos com os quais venham a se deparar. O cerne deste
problema está em compreender as lacunas da lei e as lacunas do sistema de normas
jurı́dicas. Abordemos brevemente a seguir cada um deles.

3.3 Unidade
Norberto Bobbio (2007, p. 184) esclarece que o ter “direito”, em certo
sentido, refere-se a um tipo de ordenamento: o ordenamento jurı́dico. Define, a
princı́pio, de modo genérico este como um “conjunto de normas jurı́dicas”. Entende
que são duas as espécies de normas jurı́dicas que o compõe: as normas jurı́dicas de
conduta e as normas jurı́dicas de estrutura ou de competência. Estas últimas “são
————————— Teoria do Direito de Norberto Bobbio —————————11

aquelas que não prescrevem a conduta que se deve ter ou não mas prescrevem as
condições e os procedimentos por meio dos quais são emanadas normas de conduta
válidas” (BOBBIO, 2007, p. 186).
As normas de estrutura ou de competência, na opinião deste filósofo do di-
reito, parecem oferecer uma reposta adequada (sem a qual é inconcebı́vel estabelecer
de partida um ordenamento jurı́dico) à questão: como saber quais normas podem
ser consideradas jurı́dicas e quais não podem ser consideradas como jurı́dicas? Ou
seja, quais são os critérios que nos permite classificar as normas como jurı́dicas e não
como normas de etiqueta, de decoro, de costume, de um jogo, e assim por diante?
A pertinência de uma norma no ordenamento é denominada de validade.
A validade jurı́dica pressupõe algumas condições que, quando cumpridas, permitem
reconhecer uma norma como juridicamente válida. Ou seja, estas condições servem
justamente para constatar se a norma pertence ou não ao ordenamento jurı́dico. Se
esta pertence ao ordenamento jurı́dico, dizemos que a norma é jurı́dica. Este é o
critério de identidade da norma jurı́dica sugerido por Bobbio.
Uma condição relevante de validade é a que questiona, por exemplo, se de-
terminada norma foi promulgada por autoridade competente. A legitimidade deste
ato legislativo, defende Bobbio, é garantida por uma norma superior válida (por-
tanto, também legı́tima) que confere competência ao agente público para produzir
aquela norma. Entretanto, podemos de antemão questionar de qual norma esta
“norma superior” extraı́ a sua legitimidade? De grau em grau chegamos ao “poder
supremo de criação das normas jurı́dicas”, isto é, ao poder constituinte, cuja legi-
timidade é dada por uma norma além da qual não existe outra: esta é a norma
fundamental.
Para Bobbio a “juridicidade de uma norma não se determina através do seu
conteúdo (nem da forma, ou do fim e assim por diante), mas por sua pertinência
ao ordenamento, pertinência que, por sua vez, se determina remontando da norma
inferior à norma superior até a norma fundamental.” (BOBBIO, 2007, p. 218).
Recepciona, assim, a “teoria da construção gradual do ordenamento jurı́dico” de
Adolf Merkl e de Hans Kelsen (2003, 2011). Essa teoria propõe que as normas de um
ordenamento jurı́dico não estão todas no mesmo plano, existindo normas superiores
e normas inferiores. As normas inferiores derivam das superiores. Partindo das
normas inferiores e passando por aquelas que estão acima, chega-se por último a
uma “norma suprema”, que não depende de nenhuma outra superior, e sobre a qual
repousa a unidade do ordenamento: a norma fundamental.
Para Bobbio (2007, p. 208-211), esta norma última só pode ser aquela da
qual deriva o poder primeiro: o poder constituinte, com o qual se faculta a produção
de normas jurı́dicas. Mas, afinal, em que esta se fundamenta? A norma fundamental,
segundo Bobbio, não tem nenhum fundamento, pois é
um pressuposto do ordenamento: ela cumpre, num sistema nor-
mativo, a mesma função a que estão destinados os postulados
num sistema cientı́fico. Os postulados são aquelas proposições
primitivas de que se deduzem as outras, mas que por sua vez
não são dedutı́veis. Ela é uma convenção ou, se se preferir, uma
proposição evidente que é posta no vértice do sistema, para que
todas as normas possam se reduzir-se a ela (BOBBIO, 2007, p.
211).
Por outras palavras, é o “fundamento subentendido de legitimidade de todo o sis-
————————— Teoria do Direito de Norberto Bobbio —————————12

tema. Embora não expressa, é o pressuposto de nossa obediência às leis que derivam
da Constituição e à própria Constituição” (BOBBIO, 2007, p. 209).

3.4 Coerência
Quanto à coerência do ordenamento jurı́dico, Bobbio afirma que é, justamente, a
não possibilidade de não coexistência entre normas jurı́dicas incompatı́veis no direito
(normas jurı́dicas com prescrições opostas no todo ou em parte) que lhe dá o caráter
de “sistema”, num sentido bem particular, a saber:
Se num ordenamento passam a existir normas incompatı́veis,
uma das duas ou ambas devem ser eliminadas. Se isso é ver-
dade, significa que as normas de um ordenamento têm certa
relação entre si, e essa relação é compatibilidade. Observa-se,
porém, que dizer que as normas devem ser compatı́veis não sig-
nifica dizer que tenham implicação uma com a outra, ou seja,
que constituam um sistema dedutivo perfeito. Neste sentido, o
sistema jurı́dico não é um sistema dedutivo, é um sistema num
sentido menos significativo que exclui a incompatibilidade de
suas partes singularmente consideradas. Portanto, não é cor-
reto falar, como frequentemente acontece, de coerência do or-
denamento jurı́dico no seu todo: pode-se falar de existência de
coerência somente entre as partes singularmente consideradas
desse ordenamento. Num sistema dedutivo, caso haja uma con-
tradição, todo o sistema desmorona. Num sistema jurı́dico, a
admissão do princı́pio que exclui a incompatibilidade tem por
consequência, em caso de incompatibilidade de duas normas,
não o colapso de todo sistema, mas apenas de uma das duas
normas ou, no máximo, de ambas (BOBBIO, 2007, p. 227).
Entretanto, se o direito é um sistema dinâmico, no qual as normas que o
compõem derivam umas das outras através de sucessivas delegações de poder na
medida em que “uma autoridade inferior deriva de uma autoridade superior, até
se chegar à uma autoridade suprema, que não tem nenhuma autoridade acima de
si”(KELSEN, 2003, p. 219), então reconhece Bobbio que este tipo de sistema deve
admitir contradições, a princı́pio, já que a autoridade competente pode promulgar
normas contraditórias. Poderia o direito, ainda assim, ser considerado uma espécie
de sistema? Partindo da concepção clássica que um sistema não pode comportar
contradições e da noção de validade, Bobbio (2007, p. 228) atesta que além do fato
de se provar que as normas jurı́dicas devem ter certa compatibilidade com relação
aos atos de vontade das autoridade, “é preciso examinar o conteúdo delas; não basta
referir-se à autoridade que as emanou” (BOBBIO, 2007, p. 222).
O direito como “sistema” não deve conter normas contraditórias, isto é,
antinomias. O termo “antinomia” designa, especificamente, primeiro, que não é
possı́vel termos o encontro de duas proposições incompatı́veis ambas “verdadeiras”
e, segundo, com referência ao sistema normativo, que não é admissı́vel termos normas
rivais ambas aplicáveis, pertencentes ao mesmo ordenamento e com o mesmo âmbito
de validade (temporal, espacial, pessoal e material)6 . Bobbio (2007, p. 230) aponta
6
Para Kelsen (2003, p. 229) este conflito não é uma contradição lógica no sentido estrito
da palavra. Com efeito, os princı́pios lógicos, e particularmente o princı́pio da não-contradição,
————————— Teoria do Direito de Norberto Bobbio —————————13

três casos em que há incompatibilidade entre normas: (i ) O vs. O¬ (contrários);


(ii ) O vs. ¬O (contraditórios); (iii ) O¬ vs. ¬O¬ (contraditórios). Ou seja, em
(i ) há incompatibilidade entre uma norma que comanda fazer alguma coisa e ou-
tra que proı́be fazê-lo (contrariedade); em (ii ) temos o conflito entre uma norma
que comanda fazer e uma que permite não fazer (contrariedade); já em (iii ) a co-
lisão das normas se dá entre uma norma que proı́be fazer e uma que permite fazer
(contrariedade).
Bobbio (2007, p. 237–242) propõe três critérios, hoje bastante conhecidos,
para solucionar antinomias: critério de hierarquia (lex superior derogat inferior );
critério da especialidade (lex especialis derogat generali) e critério da cronologia (lex
posterior derogat priori ). Observemos que estes enquanto regras podem colidir, isto
é, pode ocorrer entre eles antinomia. A solução seria propor metacritérios, como
Bobbio (2007, p. 250–258) discute. Duas condições, especiais, como observa Bob-
bio (2007, p. 233–234), devem ser ainda levadas em consideração com relação a
solução de antinomias para além do modelo standard proposto por Bobbio: pri-
meiro, as normas devem pertencer ao mesmo ordenamento. Caso não pertençam,
entre os ordenamentos deve existir algum tipo de relação (critério), tal como, por
exemplo, coordenação ou subordinação (este é, pois, um problema de completude!),
que permita solucionar antinomias; segundo, as normas devem ter o mesmo âmbito
de validade temporal, espacial, pessoal e material.

3.5 Completude
Quanto à completude, Bobbio (2007, p. 259) entende esta como a “propriedade
pela qual um ordenamento jurı́dico tem uma norma para regular cada caso. Tendo
em vista que a ausência de uma norma costuma ser chamada de “lacuna”, comple-
tude significa ausência de lacunas”. Se preferirmos uma definição mais técnica de
completude, poderemos dizer que um “ordenamento é completo quando nunca se
verifica o caso de que nele não se possa demonstrar a pertinência nem de uma deter-
minada norma nem da norma contraditória” (BOBBIO, 2007, p. 259). Dada esta
definição, constata-se que há um importante nexo entre o problema da coerência e o
problema da completude, a saber: dizemos que um sistema jurı́dico é incoerente se
neste existe, por exemplo, tanto uma norma que proı́be um comportamento quanto
outra que o permite; por outro lado, dizemos que um sistema jurı́dico é incompleto
se nele, por exemplo, não existe nem a norma que proı́be certo comportamento nem
a que o permite.
são aplicáveis a afirmações que podem ser verdadeiras ou falsas; e uma contradição lógica entre
duas afirmações consiste em que apenas uma ou a outra pode ser verdadeira; em que se uma é
verdadeira, a outra tem de ser falsa. Uma norma, porém, não é verdadeira nem falsa, mas válida ou
não válida. Contudo, a asserção (enunciado) que descreve uma ordem normativa afirmando que, de
acordo com esta ordem, uma determinada norma é válida, e, especialmente, a proposição jurı́dica,
que descreve uma ordem jurı́dica afirmando que, de harmonia com essa mesma ordem jurı́dica, sob
determinados pressupostos deve ser ou não deve ser posto um determinado ato coercivo, podem
ser verdadeiras ou falsas. Por isso, os princı́pios lógicos em geral e o princı́pio da não-contradição
em especial podem ser aplicados às proposições jurı́dicas que descrevem normas de direito e, assim,
indiretamente, também podem ser aplicados às normas jurı́dicas. Não é, portanto, inteiramente
descabido dizer-se que duas normas jurı́dicas se “contradizem” uma à outra. E, por isso mesmo,
somente uma delas pode ser tida como objetivamente válida. Dizer que A deve ser e que não deve
ser ao mesmo tempo é tão sem sentido como dizer que A é e não é ao mesmo tempo. Um conflito
de normas representa, tal como uma contradição lógica, algo sem sentido.
————————— Teoria do Direito de Norberto Bobbio —————————14

Bobbio (2007, p. 274 ss.) propõe, a partir das noções de norma geral
exclusiva e norma geral inclusiva, duas abordagens distintas do problema da in-
completude. O primeiro tipo destas normas jurı́dicas7 exclui a tipicidade de todos
os comportamentos que não fazem parte daqueles previstos pelas normas jurı́dicas.
Isto significa dizer que quando um caso é regulado pelo direito, é denotado de “caso
jurı́dico” (ou “caso juridicamente relevante”), por outro lado, um caso não regulado
pelo direito, pertence à esfera de livre manifestação da atividade humana, isto é,
a esfera do juridicamente não regulamentado (ou juridicamente irrelevante). Neste
último sentido, diz-se que há o “espaço jurı́dico vazio” ou a ausência de lacuna no
sistema jurı́dico, já que as atividades são indiferentes ao direito, prevalecendo, aqui,
o adágio: “o que não é proibido, é permitido”.
Sob outra ótica, a que nega a completude, o ordenamento jurı́dico que não
possui normas jurı́dicas que regulamente, particularmente, certo caso ou conduta,
deve se utilizar de uma norma geral inclusiva, pertencente a este, cuja função é a de
integrá-lo ou de complementá-lo, preenchendo as suas lacunas com normas capazes
de solucionar o caso em questão8 . Estas normas aplicadas pertencem, a princı́pio, a
outros sistemas prescritivos, tais como o da moral, o dos costumes, o das regras de
etiqueta etc., sendo em seguida integralizadas ao sistema jurı́dico por intermédio do
julgamento de uma autoridade competente, tornando-se as mesmas, assim, jurı́dicas,
ou seja, pertencentes ao direito.
Se um sistema jurı́dico admite a norma geral exclusiva e a norma geral
inclusiva como soluções ao problema da completude, cabe ao intérprete decidir qual
dessas ele deve aplicar no caso de lacuna; entretanto, dado o fato de que tal sistema
não deixa claro, em geral, qual dessas é preferı́vel, ainda assim, neste sentido, parece
prevalecer uma lacuna. Logo, a verdadeira lacuna (“lacuna sistemática”) “se verifica
não pela ausência de uma norma expressa para a regulamentação de um determinado
caso, mas pela ausência de um critério para a escolha de qual das duas regras gerais,
aquela exclusiva e aquela inclusiva, deva ser aplicada” (BOBBIO, 2007, p. 279).

7
O artigo 5o , inciso II, da nossa Constituição Federal representa um bom exemplo de norma
geral exclusiva ao afirmar que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa
senão em virtude de lei” (princı́pio da legalidade).
8
Temos como exemplo de norma geral inclusiva no nosso ordenamento jurı́dico o artigo 4o
do Decreto-lei 4.657/42 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro – LINB/1942) que
determina que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os
costumes e os princı́pios gerais de direito.”
————————— Teoria do Direito de Norberto Bobbio —————————15

Referências

1. ANSCOMBE, G. E. M. On Brute facts. Analysis. Vol. 18, n. 3, p. 69–72,


1958.

2. ALVES, Rubens. Filosofia da Ciência. Introdução ao Jogos e a suas Regras.


São Paulo: Loyola, 2010.

3. KELSEN, H. Teoria Pura do Direito. Trad. João Batista Machado. São


Paulo: Martins Fontes, 2003.

4. —————. Teoria Pura do Direito. Trad. Cretella Jr e Agnes Cretella.


São Paulo: RT, 2011.

5. KUHN, Thomas S. The Structure of Scientific Revolutions. Chicago:


The University Chicago, 1970.

6. HEISENBERG, W. Ueber den anschaulichen Inhalt der quantentheoretischen


Kinematik and Mechanik. Zeitschrift für Physik, 43, 1927: p. 172-198.

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