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As modernas teorias da justiça

Amandino Teixeira Nunes Junior

Sumário
1. Introdução. 2. A teoria positivista de Hans
Kelsen. 3. A teoria discursiva de Jürgen Haber-
mas. 4. A teoria formal de Chaïm Perelman.
5. A relação entre as teorias de Hans Kelsen e
Chaïm Perelman. 6. A teoria social de John
Rawls. 7. Conclusão

“A justiça é a primeira virtude das


instituições sociais, como a verdade o é
dos sistemas de pensamento”.

John Rawls

1. Introdução
Pretende este trabalho examinar as teo-
rias sobre a justiça formuladas no século XX,
tanto no meio jurídico, como no meio filosó-
fico, o que aqui se fará com relação às obras
de Hans Kelsen, Jürgen Habermas, Chaïm
Perelman e John Rawls.
A escolha desses autores se justifica, ten-
do em vista que, além de grandes pensado-
res, dedicaram-se com profundidade tanto
à ciência jurídica quanto à justiça, deixan-
do notáveis contribuições ao desenvolvi-
mento recente desses temas.
Assim, examina-se, inicialmente, neste
Amandino Teixeira Nunes Junior é Con-
estudo, a concepção de justiça em Kelsen,
sultor Legislativo da Câmara dos Deputados, de cunho positivista, exposta na obra “O
Mestre em Direito pela UFMG, doutorando em que é justiça?”, que procura expurgar do
Direito pela UFPE e professor do UniCEUB e interior da teoria jurídica as teorias jusna-
do IESB. turalistas edificadas ao longo de séculos.
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Em seguida, analisa-se a concepção de coincide, portanto, com a questão o que é
justiça em Habermas, baseada na sua teoria bom ou que é o Bem? Várias tentativas são
da ação comunicativa e presente em “Direi- feitas por Platão, em seus diálogos, para res-
to e democracia: entre facticidade e valida- ponder a essa questão de modo racional,
de”, na qual Habermas intenta compreen- mas nenhuma delas leva a um resultado
der a dualidade do Direito moderno. definitivo”(2001, p. 12).
Adiante, aborda-se a concepção de justi- Um outro exemplo, para KELSEN, da ten-
ça em Perelman, a partir da lógica formal, tativa infrutífera de elaborar um conteúdo
exposta em “Ética e Direito”. definível de justiça, por meio de um método
Segue-se, logo após, a análise da concep- racional ou científico, é a ética de Aristóte-
ção de justiça em Rawls, contida na obra les. “Trata-se de uma ética da virtude, ou
“Uma teoria da justiça”, considerada uma seja, ele visa a um sistema de virtudes, entre
das mais importantes desenvolvidas no sé- as quais a justiça é a virtude máxima, a vir-
culo XX. tude plena” (p. 20).
Finalmente, à guisa de conclusão, pro- Com relação ao Direito natural, KELSEN
cura-se apresentar uma síntese das concep- sustenta que essa doutrina “afirma existir
ções de justiça abordadas no corpo do tra- uma regulamentação absolutamente justa
balho. das relações humanas que parte da nature-
Convém salientar, ainda, que não cons- za em geral ou da natureza do homem como
titui propósito do presente estudo submeter ser dotado de razão”(p. 21).
a um aprofundado exame crítico das com- E, adiante, aduz:
plexas teorias desses renomados pensado- “A natureza é apresentada como
res. O que se objetiva aqui é uma exposição uma autoridade normativa, como uma
das linhas fundamentais dessas concepções espécie de legislador. Por meio de uma
sobre a justiça que contribuíram sobremodo análise cuidadosa da natureza, pode-
para a doutrina jusfilosófica recente. remos encontrar as normas a ela ima-
nentes, que prescrevem a conduta
2. A teoria positivista de Hans Kelsen humana correta, ou seja, justa. Se se
supõe que a natureza é criação divi-
2.1. A crítica kelseniana na, então as normas a ela imanentes –
o Direito natural – são a expressão da
Ao elaborar sua teoria da justiça, KEL- vontade de Deus. A doutrina do Di-
SEN (2001) realiza um exame crítico e pro- reito apresentaria, portanto, um cará-
fundo das teorias que se produziram desde ter metafísico. Se, todavia, o Direito
a Antigüidade clássica até a primeira meta- natural deve ser deduzido da nature-
de do século XX sobre o tema. za do homem enquanto ser dotado de
Avaliando a justiça em Platão, KELSEN razão – sem considerar a origem divi-
sustenta que a quase totalidade de seus diá- na dessa razão –, se se supõe que o
logos busca precisamente a pergunta: “o que princípio da justiça pode ser encon-
é o Bem?” (na qual se insere, também, a per- trado na razão humana, sem recorrer
gunta: “o que é a justiça?”). Afirma que o a uma vontade divina, então aquela
método dialético ensinado e praticado nos doutrina se reveste de um caráter ra-
diálogos platônicos não chegou a elaborar cionalista” (p. 21).
um conteúdo definível de justiça. Conclui o insigne mestre da Escola de
A conclusão de KELSEN é que “a idéia Viena:
do Bem inclui a de justiça, aquela justiça a “Do ponto de vista de uma ciência
cujo conhecimento aludem todos os diálo- racional do Direito, o método religio-
gos de Platão. A questão ‘o que é justiça?’ so-metafísico da doutrina do Direito

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natural não entra absolutamente em cidade dentro da sociedade. Justiça é felici-
cogitação. O método racionalista é, dade social, é a felicidade garantida por uma
porém, sabidamente insustentável. A ordem social”(p. 2).
natureza como um sistema de fatos, Observa KELSEN que o conceito de jus-
unidos entre si pelo princípio da cau- tiça passa por uma transformação radical:
salidade, não é dotada de vontade, do sentido original da palavra (que implica
não podendo, portanto, prescrever o sentimento subjetivo que cada pessoa com-
qualquer comportamento humano preende para si mesma, de modo que a feli-
definido” (p. 22). cidade de um pode ser a infelicidade de ou-
Como se vê, o talento de KELSEN funcio- tro) para uma categoria social: a felicidade da
na como verdadeiro destruidor das convic- justiça (p. 4). É que a felicidade individual (e
ções jusnaturalistas elaboradas ao longo subjetiva) deve transfigurar-se em satisfa-
dos séculos, pois “encontrar normas para ção das necessidades sociais. Como ocorre
o comportamento humano na razão é tão no conceito de democracia, deve significar
ilusório quanto extrair tais normas da o governo pela maioria e, se necessário, con-
natureza”(p. 22). tra a minoria dos sujeitos governados.
Com Immanuel Kant, a crítica kelsenia- Assim, aduz KELSEN, “o conceito de jus-
na não se passa de modo diverso. O impera- tiça transforma-se de princípio que garante
tivo categórico kantiano determina que o su- a felicidade individual de todos em ordem
jeito moral, para ser justo, deve agir sempre social que protege determinados interesses,
de tal modo que a máxima de seu agir possa ou seja, aqueles que são reconhecidos como
ser querida como uma lei geral. Noutras dignos dessa proteção pela maioria dos su-
palavras, o comportamento humano é justo bordinados a essa ordem”(p. 4).
se for determinado por normas que o ho-
mem, ao agir, pode ou deve esperar que se- 3. A teoria discursiva de
jam obrigatórias para todos. Jürgen Habermas
Veja-se o seguinte excerto no qual KEL-
SEN expõe sua crítica a Kant: HABERMAS (1997) elabora sua teoria do
“Mas quais são essas normas que agir comunicativo, contida na obra “Direito
podemos ou devemos esperar que se- e democracia: entre facticidade e validade”,
jam genericamente obrigatórias? E para analisar as instituições jurídicas e pro-
essa é a questão decisiva da justiça; e por um modelo em que se interpenetram jus-
a ela, o imperativo categórico – da tiça, razão comunicativa e modernidade.
mesma forma a regra de ouro, seu Ao se referir à facticidade e à validade,
modelo – não dá resposta” (p. 19). HABERMAS intenta compreender a duali-
dade do Direito moderno.
2.2. A justiça para Kelsen Assim, de um lado, o Direito é facticida-
KELSEN (2001), na sua obra “O que é de quando se realiza aos desígnios de um
justiça?”, considera a justiça “uma caracte- legislador político e é cumprido e executa-
rística possível, porém não necessária, de do socialmente sob a ameaça de sanções fun-
uma ordem social”(p. 2). E indaga: “mas o dadas no monopólio estatal da força. De
que significa ser uma ordem justa? Signifi- outro lado, o Direito é validade quando suas
ca essa ordem regular o comportamento dos normas se fundam em argumentos racionais
homens de modo a contentar a todos, e to- ou aceitáveis por seus destinatários.
dos encontrarem sob ela felicidade. O an- A relação entre facticidade e validade,
seio por justiça é o eterno anseio do homem observa Luiz MOREIRA, “assume uma for-
por felicidade. Não podendo encontrá-la ma de tensão pelo fato de o Direito reunir
como indivíduo isolado, procura essa feli- em si elementos sancionadores e elementos

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provenientes de uma autolegislação. Dito agentes sociais se interagem e fundamen-
em outros termos, a tensão entre facticidade tam racionalmente pretensões de validade
e validade, no Direito moderno, retorna pela discursivas aceitas por todos.
circunstância de que com a sanção se res- Para HABERMAS, o Direito legítimo, nas
tringe o nível de dissenso, mas esse dissen- sociedades atuais pós-metafísicas, depen-
so é superado no momento em que se intro- de do exercício constante do poder comuni-
duz em seu bojo a idéia de que as normas jurídi- cativo. Para que não se esgote a fonte da jus-
cas são emanações do povo”(1999, p. 150). tiça, é mister que um poder comunicativo
Essa tensão, nas palavras de HABER- jurígeno esteja na base do poder adminis-
MAS, reside: trativo do Estado.
“(...) mais precisamente entre a coer- Mesmo assumindo a perspectiva de que
ção do Direito, que garante um nível o ordenamento jurídico emana das diretri-
médio de aceitação da regra, e a idéia zes dos discursos públicos e da vontade de-
de autolegislação – ou da suposição mocrática dos cidadãos, institucionaliza-
da autonomia política dos cidadãos das juridicamente, observando a correição
associados – que resgata a pretensão parcial, há sempre a possibilidade de que a
da legitimidade das próprias regras, normatividade seja injusta, abrindo-se as-
ou seja, aquilo que as torna racional- sim para dois caminhos: o primeiro, a per-
mente aceitáveis”(1997, p. 60-61). manecer injusta, passa a constituir-se arbí-
No seio de uma tensão permanente en- trio; o segundo, a tornar-se arbítrio, surge a
tre facticidade e validade, a constituição de falibilidade e, com isso, a presunção de que
uma comunidade jurídica autônoma requer seja revogada ou revista.
o abandono, em termos pós-metafísicos, de Ainda, para HABERMAS, a resolução
uma razão prática e a assunção de uma ra- dos conflitos será tanto mais facilmente al-
zão comunicativa *. cançada quanto maior for a capacidade dos
Como afirma HABERMAS: membros da comunidade em restringir os
“Eu resolvi encetar um caminho esforços comunicativos e pretensões de va-
diferente, lançando mão da teoria do lidade discursivas consideradas problemá-
agir comunicativo: substituo a razão ticas, deixando como pano de fundo o con-
prática pela comunicativa. E tal mu- junto de verdades compartilhadas e estabi-
dança vai muito além de uma simples lizadoras do conjunto da sociedade, possi-
troca de etiqueta” (1997, p. 19). bilitando que grandes áreas da interação
Mas qual é o sentido dessa mudança? social desfrutem de consensos não proble-
Por não ser prática, vale dizer, por não máticos.
oferecer nenhum tipo de “indicação con- O genial da teoria de HABERMAS resi-
creta para o desempenho de tarefas práti- de, portanto, na substituição de uma razão
cas, pois não é informativa” (HABER- prática, baseada num indivíduo que, por
MAS, 1997, p. 19), a razão comunicativa meio de sua consciência, chega à norma, pela
afasta-se da tradição prescritiva da razão razão comunicativa, baseada numa plura-
prática. lidade de indivíduos que, orientando sua
A proposta de HABERMAS pretende, ação por procedimentos discursivos, che-
pois, situar a legitimidade do Direito não gam à norma. Assim, a fundamentação do
no plano metafísico, mas no plano discursi- Direito, sua medida de legitimidade, é defi-
vo e procedimental, lançando mão da sua nida pela razão do melhor argumento.
teoria do agir comunicativo, na qual a lin- Como emanação da vontade discursiva dos
guagem supera a dimensão sintática e se- cidadãos livres e iguais, o Direito pode rea-
m ântica,constituindo omedium de integra- lizar a grande aspiração da humanidade: a
ção social, isto é, o mecanismo pelo qual os efetivação da justiça.

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4. A teoria formal de Chaïm do que não se conceda o mesmo grau de méri-
Perelman to aos mesmos atos dos indivíduos.
A terceira concepção da justiça concre-
4.1. As seis concepções da justiça concreta ta, cujo único critério do tratamento justo é o
resultado da ação dos indivíduos, é de apli-
Na sua obra “Ética e Direito”, PEREL- cação infinitamente mais fácil do que a an-
MAN (2000) não pretende formular uma teo- terior, pois, em vez de constituir um ideal
ria da justiça que seja a mais apropriada e quase irrealizável, permite só levar em con-
consentânea com a idéia de racionalidade, sideração elementos sujeitos ao cálculo, ao
comparativamente às teorias de outros au- peso ou à medida. Daí por que sua aplica-
tores. Pretende, na verdade, a partir de um ção preside tanto o pagamento dos salários
ponto de vista lógico, examinar os diferen- dos empregados quanto a definição do re-
tes sentidos da noção de justiça, para deles sultado de concursos e exames para provi-
extrair um substrato comum – a igualdade mento de cargos públicos.
– que o conduzirá ao conceito de justiça for- A quarta concepção da justiça concreta,
mal ou abstrata. em vez de levar em consideração méritos dos
As seis concepções mais correntes da jus- indivíduos ou de sua produção, tenta redu-
tiça concreta que se afirmaram na civilização zir os sofrimentos de que resultam da im-
ocidental, desde a Antigüidade até nossos possibilidade em que o homem se encontra
dias, segundo PERELMAN (p. 9), são: de satisfazer suas necessidades essenciais.
a) a cada qual a mesma coisa; Assim, aqueles que se encontram em situa-
b) a cada qual segundo seus méritos; ção precária, carecendo de condições consi-
c) a cada qual segundo suas obras; deradas como um mínimo vital, devem ter
d) a cada qual segundo suas necessi- um tratamento diferenciado.
dades; PERELMAN afirma que a legislação dos
e) a cada qual segundo sua posição; países ocidentais que criou, no século XX,
f) a cada qual segundo o que a lei lhe os direitos sociais, como o salário-mínimo e
atribui. o seguro-desemprego, inspirou-se nessa fór-
Segundo a primeira concepção da justi- mula de justiça.
ça concreta, ser justo é tratar todos da mes- A quinta concepção da justiça concreta
ma forma, sem considerar nenhuma das baseia-se na superioridade de indivíduos
particularidades que distinguem os indiví- em decorrência da hereditariedade (ou do
duos. PERELMAN observa que, no imagi- nascimento), sendo muito usada na hierar-
nário humano, o ser perfeitamente justo é a quização social das sociedades aristocráti-
morte que vem atingir todos os homens in- cas e escravocratas, em que as diferenças de
dependentemente de seus privilégios. tratamento levam em consideração critérios
A segunda concepção da justiça concre- como a raça, a religião e a fortuna.
ta não exige a igualdade de todos, mas um A sexta (e última) concepção da justiça
tratamento proporcional a uma qualidade in- concreta é a paráfrase do princípio de “dar
trínseca, ao mérito do indivíduo. A questão a cada um o que lhe é devido” (cuique suum,
é saber o que deve ser levado em conta como dos romanos) e se propõe a aplicar aos fatos
mérito ou demérito de uma pessoa, quais os um sistema preestabelecido de regras de di-
critérios que devem presidir tal determina- reito – razão pela qual levará a resultados
ção, se deve ser considerado o resultado da diferentes conforme o ordenamento jurídi-
ação, a intenção do agente ou o sacrifício co a ser aplicado.
utilizado. PERELMAN observa que, partin- Segundo PERELMAN (2000):
do-se dessa concepção, pode-se chegar a “A análise sumária das concep-
resultados absolutamente distintos, bastan- ções mais correntes da noção de justi-

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ça mostrou-nos a existência de pelo rias que são essenciais para a aplica-
menos seis fórmulas da justiça – admi- ção da justiça. Ela permite que surjam
tindo a maioria delas ainda numero- as divergências no momento de pas-
sas variantes –, fórmulas que são nor- sar de uma fórmula comum de justiça
malmente inconciliáveis. Embora seja concreta para fórmulas diferentes de
verdade que, graças a interpretações justiça concreta. O desacordo nasce no
mais ou menos forçadas, a afirmações momento em que se trata de determi-
mais ou menos arbitrárias, se pode nar as características essenciais para
querer relacionar essas diferentes fór- a aplicação de justiça” (p. 19).
mulas umas com as outras, elas não Em suma, a justiça possível em PEREL-
deixam de apresentar aspectos da jus- MAN é a justiça formal ou abstrata segun-
tiça muito distintos e o mais das ve- do o parâmetro da igualdade, fundado so-
zes opostos” (p. 12-13). bre uma pauta valorativa. Logo, a justiça
deve contentar-se com um desenvolvimen-
4.2. A justiça em Chaïm Perelman to formalmente correto de um ou mais valo-
PERELMAN (2000) apresenta a noção res. E assim Perelman é levado a distinguir
de justiça formal (vinculada à igualdade) três elementos na justiça de determinado
como o substrato comum às seis concepções sistema normativo: o valor que a fundamen-
da justiça concreta examinadas anteriormen- ta, a regra que a enuncia e o ato que a realiza.
te. Esse substrato comum – a igualdade – Afirma PERELMAN:
fundamenta-se em valores escolhidos de “Os dois últimos elementos, os me-
forma aleatória – igualdade segundo, por nos importantes, aliás, são os únicos
exemplo, a riqueza e a beleza. Em decorrên- que podemos submeter a exigências
cia, PERELMAN acaba por estabelecer, racionais: podemos exigir do ato que
como regra de justiça, a igualdade formal, seja regular e que trate da mesma for-
porquanto “ser justo é tratar da mesma for- ma os seres que fazem parte da mes-
ma os seres que são iguais em certo ponto ma categoria essencial; podemos pe-
de vista, que possuem uma mesma caracte- dir que a regra seja justificada e que
rística, a única que se deve levar em conta na decorra logicamente do sistema nor-
administração da justiça. Qualifiquemos essa mativo adotado. Quanto ao valor que
característica de essencial” (p. 18-19). fundamenta o sistema normativo, não
A justiça formal ou abstrata, para PE- o podemos submeter a nenhum critério
RELMAN, é, pois, “um princípio de ação racional, ele é perfeitamente arbitrário
segundo o qual os seres de uma mesma ca- e logicamente determinado” (p. 63).
tegoria essencial devem ser tratados da mes-
ma forma” (p. 19), sendo que esse princípio 5. A relação entre as teorias de Hans
subjaz latente em cada uma das seis noções Kelsen e Chaïm Perelman
da justiça concreta.
A partir desse conceito de justiça formal Há, inegavelmente, pontos comuns e dis-
ou abstrata, observa-se que as concepções tintivos entre a teoria de KELSEN (2001) e a
concretas de justiça se distinguem à medi- teoria de PERELMAN (2000).
da que cada uma delas erige um valor di- Os pontos comuns residem no fato de
verso para definir a pertinência dos indiví- que ambos descrêem dos pensadores meta-
duos às categorias essenciais dentro das físicos que sustentam poder-se alcançar a
quais aplicar-se-á um tratamento igual. justiça pela razão prática ou pela revelação
Como observa PERELMAN: mística – a noção acabada de justiça. KEL-
“Nossa definição de justiça é for- SEN e PERELMAN afirmam peremptoria-
mal porque não determina as catego- mente o caráter relativo dos valores, por

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natureza arbitrários, que decorrem de esco- lar um acordo sobre as partes distri-
lhas, ou opções, e não de evidências empíri- butivas adequadas. Esses princípios
cas, ou de parâmetros lógicos. são os princípios da justiça social: eles
Os pontos distintivos residem, basica- fornecem um modo de atribuir direi-
mente, da convicção de Perelman de que é tos e deveres nas instituições básicas
possível encontrar um substrato comum a da sociedade e definem a distribuição
todas as concepções concretas de justiça – a apropriada dos benefícios e encargos
justiça formal vinculada à igualdade. Por da cooperação social” (p. 5).
isso, adverte KELSEN que esse pretenso Para RAWLS, são dois os princípios da
substrato comum é apenas uma decorrên- justiça social:
cia lógica da generalidade da norma e da “Primeiro: cada pessoa deve ter um
necessidade de sua correta aplicação. Nes- direito igual ao mais abrangente sis-
se sentido, a justiça formal de PERELMAN tema de liberdades básicas iguais que
nada tem a ver com a igualdade. seja compatível com um sistema se-
melhante de liberdades para as outras.
6. A teoria social de John Rawls Segundo: as desigualdades sociais e
econômicas devem ser ordenadas de
6.1. Os princípios de justiça social tal modo que sejam ao mesmo tempo
(a) consideradas como vantajosas
A teoria da justiça de John RALWS para todos dentro dos limites do ra-
(2000), contida na obra “Uma teoria da jus- zoável, e (b) vinculadas a posições e
tiça”, é uma das mais importantes desen- cargos acessíveis a todos” (p. 64).
volvidas no século XX. Pretende RAWLS Tais princípios, segundo Rawls, apli-
“elaborar uma teoria da justiça que seja uma cam-se à estrutura básica da sociedade, pre-
alternativa para essas doutrinas que há sidem a atribuição de direitos e deveres e
muito tempo dominam a nossa tradição fi- regem as vantagens sociais e econômicas ad-
losófica – a utilitária e a intuicionista” (p. 3). vindas da cooperação social.
A sociedade é vista por RAWLS como
uma associação mais ou menos auto-su- 6.2. A justiça em John Rawls
ficiente de pessoas que, em suas relações, RAWLS (2000) observa ainda que os dois
reconhecem a existência de regras de con- princípios são um caso especial de uma con-
dutas como obrigatórias, as quais, na maio- cepção mais geral da justiça assim expressa:
ria das vezes, são cumpridas e obedecidas, “Todos os valores sociais – liberda-
especificando um sistema de cooperação de e oportunidade, renda e riqueza, e
social para realizar o bem comum. as bases sociais da auto-estima – de-
Nesse contexto, surgem tanto identidade vem ser distribuídos igualitariamente,
de interesses como conflito de interesses a não ser que uma distribuição desi-
entre as pessoas, pois estas podem acordar gual de um ou de todos esses valores
ou discordar pelos mais variados motivos, traga vantagens para todos” (p. 66).
quanto às formas de repartição dos benefí- Vê-se, pois, que os princípios de justiça
cios e dos ônus gerados no convívio social. social têm um nítido caráter “substancial”,
É precisamente aí que desempenham seu e não meramente “formal”, na teoria de
papel os princípios da justiça social. Nas RAWLS. Logo no início de sua obra, ele é
palavras de RAWLS: bem claro quando sustenta que o que o preo-
“Exige-se um conjunto de princí- cupa é a justiça verificada na atribuição de
pios para escolher entre várias formas direitos e liberdades fundamentais às pes-
de ordenação social que determinam soas, assim como a existência real da igual-
essa divisão de vantagens e para se- dade de oportunidades econômicas e de

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condições sociais nos diversos segmentos lando para uma idéia de bem inteligível pela
da sociedade. razão e de uma natureza dotada de poder
Assim, o objeto primário da justiça, para normativo, com uma espécie de legislador.
RAWLS, “é a estrutura básica da socieda- KELSEN considera a justiça como a feli-
de, ou mais exatamente, a maneira pela qual cidade social, a felicidade garantida por
as instituições sociais mais importantes dis- uma ordem justa – a que regula o comporta-
tribuem direitos e deveres fundamentais e mento dos homens de modo a contentar a
determinam a divisão de vantagens prove- todos. A aspiração da justiça é a eterna as-
nientes da cooperação social” (p. 8). piração da felicidade, que o homem não
Segundo RAWLS, os princípios de justi- pode encontrar sozinho e, para tanto, pro-
ça social, que regulam a escolha de uma cons- cura-a na sociedade. A felicidade social é
tituição política, devem ser aplicados em denominada justiça.
primeiro lugar às profundas e difusas desi- Nesse contexto, HABERMAS deixa cla-
gualdades sociais, supostamente inevitáveis ro que, nas sociedades contemporâneas pós-
na estrutura básica de qualquer sociedade. metafísicas, torna-se inviável a fundamen-
Em suma, para RAWLS, a concepção de tação do Direito numa suposta ordem natu-
justiça apresentada na sua obra consiste na ral, numa dimensão ética ou numa moral
“justiça como eqüidade” (fairness), signifi- metafísica. É a partir de uma concepção dis-
cando que é uma justiça estabelecida numa cursiva e procedimental que se pode cons-
posição inicial de perfeita eqüidade entre truir uma presunção de legitimidade e
as pessoas, e cujas idéias e objetivos cen- racionalidade de conteúdo de uma norma;
trais constituem uma concepção para uma é pelo discurso que os cidadãos participam
democracia constitucional. e promovem a mobilização de suas energias
Assevera RAWLS: comunicativas em prol de um entendimen-
“Minha esperança é a de que a jus- to mútuo. O princípio do discurso, após as-
tiça como eqüidade pareça razoável e sumir forma jurídica, transforma-se em prin-
útil, mesmo que não seja totalmente cípio da democracia.
convincente, para uma grande gama HABERMAS alerta, ainda, que, nessa
de orientações políticas ponderadas, crise da razão prática, sejam instauradas
e portanto expresse uma parte essen- sua negação e sua substituição pela razão
cial do núcleo comum da tradição comunicativa.
democrática”(p. XIII - XIV). Esse é o sentido da reviravolta operada
pela teoria discursiva do Direito: a recusa
7. Conclusão da normatividade imediata da razão práti-
ca e a assunção da normatividade mediata
Ao realizar este trabalho, optamos por da razão comunicativa.
analisar as teorias da justiça de Hans KEL- A partir dessas considerações, torna-se
SEN (2001), Jürgen HABERMAS (1997), assim o Direito fruto da emanação da opi-
Chaïm PERELMAN (2000) e John RAWLS nião e da vontade discursiva dos cidadãos
(2000) porque, além da sua inegável atua- livres e iguais. A institucionalização das as-
lidade, constituem abordagens racionais de pirações e das opiniões das pessoas, na mo-
temas fundamentais da Filosofia do Direito. dernidade, se dá por meio da positivação
KELSEN demonstra, no seu profundo do Direito.
exame das diversas concepções de justiça HABERMAS, na sua teoria do agir co-
apresentadas pelo pensamento clássico e municativo, retoma o caminho de uma teo-
pelo pensamento jusnaturalista, que quase ria crítica da sociedade, com a mudança do
sempre os jusfilósofos definem justiça de paradigma da razão prática para a razão
uma forma não racional ou metafísica, ape- comunicativa.

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PERELMAN rejeita também a concepção A teoria da justiça de RAWLS busca in-
de um bem supremo presidido por uma ins- tegrar as liberdades civis e políticas com os
tância metafísica, bem como a crença inaba- direitos econômicos, sociais e culturais.
lável na razão prática. Propõe-se a exami- Transforma-se em modelo para os governos
nar, a partir da lógica formal, as seis con- social-democratas que se instalaram no
cepções concretas da justiça, para daí extrair mundo ocidental. Entre o liberalismo extre-
um substrato comum a todas elas. Esse subs- mado e o socialismo ortodoxo, RAWLS pro-
trato comum passa a ser seu conceito de jus- põe uma alternativa intermediária, a que de-
tiça formal vinculada à igualdade. nomina “justiça como eqüidade” (fairness).
A análise de PERELMAN leva à conclu- Quanto à importância e à viabilidade
são de que todo sistema de justiça é funda- dessas teorias, mormente a discursiva de
mentado nos princípios que estão na sua base HABERMAS e a social de RAWLS, con-
e seu valor é arbitrário e logicamente indeter- quanto sejam passíveis de críticas, do
minado. Assim, observa-se que todo sistema ponto de vista metodológico e de conteú-
de justiça dependerá de outros valores que do, constituem instrumentos sobremodo
não o valor justiça. Todavia, a justiça possui úteis para se avaliar a legitimidade da
um valor próprio, que resulta da necessidade dominação política, econômica e social
racional de coerência e regularidade das nor- exercida nas sociedades concretas moder-
mas que compõem o sistema. No interior nas. Nesse sentido, não podemos aquies-
deste, a justiça tem um sentido bem defini- cer com o fundamento da teoria positivis-
do: o de evitar qualquer arbitrariedade nas ta de KELSEN que vê a distinção entre a
regras, qualquer irregularidade da ação. dominação de um Estado ditatorial e a
Finalmente, RAWLS postula uma teoria dominação de um Estado democrático
de justiça que seja uma alternativa para as como uma simples questão de maior ou
doutrinas clássicas – a utilitarista e a intui- menor eficácia repressiva.
cionista – e leve a um nível mais alto de abs- Os princípios de justiça social, propos-
tração a teoria do contrato social tal qual se tos por RAWLS, constituem, sem dúvida,
encontra em Locke, Rousseau e Kant. instrumentos robustos para uma análise da
Entretanto, o consenso original concebi- estrutura básica de qualquer sociedade con-
do por RAWLS não é o que inaugura a socie- creta, quanto ao conceito do justo e ao con-
dade civil e define uma forma particular de ceito do igualitário, considerando o caráter
governo. São os princípios de justiça social, substancial e não meramente formalista que
propostos por RAWLS na sua doutrina e apli- RAWLS confere a esses princípios.
cáveis às desigualdades existentes na estru-
tura básica de qualquer sociedade, que cons-
tituem o objeto do consenso original.
O autor norte-americano recupera a no-
Nota
ção de contrato social, que é, originariamen-
te, uma categoria jusnaturalista, para apre- * Segundo Godoi, “a razão comunicativa
sentá-la não mais como um acordo entre os proposta por Habermans difere substancialmen-
te da razão prática sustentada anteriormente
homens para a criação de uma sociedade pela filosofia do direito ou pela filosofia da his-
política, mas como uma formulação racio- tória. Enquanto a razão prática buscava ser uma
nal capaz de renortear as normas sociais, a fonte de prescrições para a atuação social do
partir do conceito de justiça. sujeito individual ou mesmo do Estado, a razão
É precisamente o conceito de “justiça como comunicativa busca somente definir as condi-
ções procedimentais do discurso sob as quais os
eqüidade” (fairness) que vai caracterizar a ori- sujeitos sociais podem chegar a um entendimen-
gem, a natureza e a função dos princípios de to legítimo que gere integração social e expecta-
justiça social propostos p or RAWLS. tivas compartilhadas” (1999, p. 67).

Brasília a. 39 n. 156 out./dez. 2002 61


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