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O drama barroco de Glauber Rocha

ISMAIL XAVIER
ESPECIAL PARA A FOLHA

Quando ouvimos a frase de Sara, em "Terra em Transe", "a política e a


poesia são demais para um só homem", uma primeira reação é ver aí um
gesto de consolo para aliviar as dores de Paulo Martins. Afinal, o próprio
filme seria um exemplo eloquente de negação da sentença ao promover uma
notável junção desses dois empenhos, junção que, de resto, pautou toda a
vida e a obra de Glauber Rocha.
Na ocasião de sua morte precoce, alguns encontraram, na voz de Sara, a
ressonância que procuravam. Ela teria razão, e a experiência do cineasta-
escritor-político, incansável, invasivo e vulnerável, confirmaria a dimensão
de sacrifício sugerida na fala protetora a que não deu ouvidos.
Sempre em tensão com a conjuntura, provocativo, Glauber foi impaciente
no seu senso de responsabilidade salvacionista e, por isso mesmo, nada
isento em sua vontade de poder. Ao contrário de um certo clichê do artista
que embeleza a derrota, ele jogava sem concessões, mas para ganhar, e não
raro exibiu seus lances de "Realpolitik" sem hipocrisia.
Imperativos do tempo. Tudo no seu percurso embaralha vida, obra e
sociedade, o que não significa que seja nossa tarefa, para compreendê-lo,
duplicar essa tônica de sua empreitada, renunciando à observação mais
profunda do seu cinema.
A mim, entre outras coisas, admira a densidade com que aí se configurou,
em meio ao turbilhão, uma permanência de estilo que não postulo, mas que
se constata, pois cristaliza uma dialética de fragmentação e de totalização
que marca, em diferentes arranjos, todo o seu cinema. Seu desejo de captura
do tempo tinha como pressuposto a percepção totalizante. Havia, portanto, a
dimensão dos esquemas, do recurso ao mito como moldura de observação
da experiência. No entanto, porque moderno, Glauber não podia congelar o
tempo em chaves já conhecidas, e seu corpo-a-corpo com um mundo em
processo exigiu movimentos exploratórios, incertos, onde o presente é
assumido em sua abertura.
Expressando essa ambivalência, a marca do estilo de Glauber está já
presente num pequeno cristal: "O Pátio" (1959). A encenação é em campo
aberto, junto à natureza, mas as personagens se movem dentro de um
tabuleiro de xadrez.
Se a cena é figurada e a ação dos humanos desemboca no transe, por outro
lado, está lá presente no olhar uma relação com o mundo pautada pela
instabilidade, pela procura que faz o espectador sentir a câmera. Esta se
expõe e assinala que o drama também se inscreve na forma, como era
próprio ao cinema moderno.
Cinema de poesia, câmera em movimento, ora em conjunção ora em
disjunção com a "mise-en-scène". Eis o que já está em "O Pátio" e que
veremos se desdobrar e se complicar ao longo da obra, na tensão entre
espaço aberto e demarcação, entre empostação teatral e agilidade de câmera.
O olhar de Glauber é táctil, sensual; a moldura de sua representação é
alegórica, tendente a abstrações. A convivência de contrários é aí
tipicamente barroca, o que sanciona a repetida invocação do termo na
referência a seu cinema.
Assim seja. Mas com a ressalva de que tudo se deu numa conjuntura
histórica específica, com que tem muito a ver, não devendo ser tomado
como manifestação de um "caráter nacional" que o cineasta encarnaria. As
contradições produtivas de Glauber se tornaram cinema porque ele entrou
em cena num quadro específico, irrepetível, marcado pela afirmação do
cinema moderno do pós-guerra, com sua nova forma do olhar e da escuta.
Dentro dele, sua obra se fez do esforço em articular o olhar dirigido ao
presente à reflexão herdada da tradição, fazendo convergir religião popular e
modernismo.
Deste modo, inventou um raro cinema capaz de projetá-lo na constelação
dos intérpretes da experiência continental. O seu lugar aí ainda está para ser
definido, mas o curioso em suas junções inesperadas é que tudo se passa
como se ele tivesse se inspirado ao mesmo tempo num Eduardo Galeano e
num Octávio Paz, empenhado em fazer a crônica da espoliação de um
continente, mas também em pensar o seu destino a partir de um teatro das
mentalidades de longo prazo, onde o simbólico parece se movimentar em
direção à autonomia, terreno do mito que, no entanto, ele submeteu ao teste
da luta de classes, da política e da história.

Ismail Xavier é crítico de cinema e professor da ECA-USP, autor de, entre outros, "O Cinema no
Século" (Imago)

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