Nos cabelos pretos, um grão de arroz perdido, muito branco
Naquele instante... naquele justo instante em que o
relâmpago arroxeou os ares eu ouvi um soluço, primeiro parecia que de muito longe, num átimo depois se percebia claramente que não... ele vinha daqui, deste esôfago pra fora. De repente caiu uma abelha morta sobre o balcão na minha frente. Um soluço... e por que não um tiro?..., quem sabe não, não mais que um reles estampido, desses que, quando muito, provocam o estalo de uma coisa ou outra, e o rapaz me perguntava ali na minha frente que suco eu ia querer, acerola e açaí com pó de guaraná ele lembrou, um coquetel de força, e havia mesmo por ali garotos da praia, calção, queimados e prontos para as ondas... e meninas, uma menina com medalhinha da Virgem com a meia-lua sob os pés, e respondi tá bom, açaí com acerola, e tudo isso parecia dizer que eu teria um dia certeiro... mas não, qualquer suposição vinha atrasada, a acerola com o açaí e o guaraná babavam sua espuma no meu peito e eu queria ter um verão decente, chegar à porta de casa e mendigar um sopro na minha orelha, baixinho... mesmo que jamais fosse atendido por nada nem ninguém eu conseguiria sim chegar até a porta de casa... e conseguiria ouvir o mar de março, e ter dali a cinco horas, se tanto, um repouso noturno comum a muitos outros, quem sabe um galo senhor de si na madrugada, pouca coisa mais no dia seguinte, quase nada... talvez a escapadela da memória até ali, logo ali, nas primeiras contusões do pensamento... (a mão flagelada, cheia de tiques, agora dentro do folgado refúgio do punho da camisa... a tosse seca, disfarces...). Mas eu estava ali, e a altas horas, e sentia uma danação por não parar de transpirar... Acho que gritei. A lataria pesada passou na estrada, deixando atrás de si um rastro todo torto, feito bêbado. Será...? E ela chegou por trás, e me chamou para o quarto. Nos cabelos pretos um grão de arroz perdido, muito branco... Ela sentou-se na borda da cama, encostou meu bolso na sua respiração, me abriu a calça, e eu sabia que de uns tempos pra cá nada daquilo resultaria em muito, e me olhei de cima, e vi que de fato em resposta pouco ou nada no meu corpo acontecia, salvo as manchas de batom nos poros agora pelo menos insinuados, não muito, e eu sabia que eu guardaria o meu corpo até a manhã seguinte com as marcas do batom... e que daquele instante não restaria nada além dos olhos dela cheios de uma gula aflita, e antes de guardar o meu corpo e beber um copo d'água eu iria até o quarto da criança e a olharia uma vez mais ajoelhada no chão duro, a calça roída nos joelhos... eu diria boa-noite... a criança, muda... mais uma vez o ar opaco, esquecido das razões da súplica... Então sim, então eu iria até a cozinha e beberia o copo d'água, firmemente como se estivesse bebendo o açaí com a acerola e o pó de guaraná, e uma força de mim iria subindo, lentamente... e de lá de cima eu olharia a minha criança, lentamente... e a minha criança ressurgiria de pé e saberia que já era tarde... hora de chegar ali na cama... se deitar de bruços (o lençol quase a lhe tapar a cabeça)... e lá em cima a minha mão passeando pelo meu peito estancaria, de repente, ao encontrar os lábios da minha cicatriz... Publicado também em Folha Mais (Folha de São Paulo) Edição 23.748 - Domingo, 10/04/94