Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Dramaturgia e Pós-Modernidade PDF
Dramaturgia e Pós-Modernidade PDF
23
Dramaturgia e Pós-Modernidade:
a rapsódia como estratégia pós-moderna para o drama
Resumo Abstract
O artigo discute estratégias de composi- The article focuses on some strategies of
ção recorrentes nas dramaturgias contempo- composition that are recurrent in contemporary
râneas, relacionando-as à noção de rapsódia, dramaturgy and which can be related to the
formulada pelo dramaturgo e teórico francês notion of rhapsody, formulated by the french
Jean-Pierre Sarrazac, e ao princípio de multi- playwright and theorist Jean-Pierre Sarrazac,
plicidade, abordado pelo escritor Ítalo Calvino and to the principle of multiplicity, approached
no livro Seis Propostas para o próximo milê- by the writer Italo Calvino in the book Six pro-
nio. O artigo desenvolve uma associação entre posals for the next millennium. The article de-
multiplicidade, procedimentos rapsódicos de velops an association between the principle of
construção dramática e considerações sobre multiplicity, rhapsodic procedures of dramatic
a pós-modernidade. Para isso, escritos do fi- construction and considerations about post-
lósofo Jean-François Lyotard são utilizados modernity. Writings of the philosopher Jean-
como referência, e também a noção de princí- François Lyotard are used as reference, and
pio da pesquisadora e atriz Sônia Rangel. also the notion of principle as discussed by the
actress and researcher Sonia Rangel.
Palavras-chave Keywords
Dramaturgia. Rapsódia. Pós-Modernidade. Dramaturgy. Rhapsody. Post-Modernity.
cena n. 23
Em seus estudos sobre processos de cria- que daria um caráter enciclopédico à obra); a
ção, a escritora, atriz e pesquisadora Sônia consideração da presença simultânea de ele-
Rangel apresenta algumas noções que podem mentos heterogêneos na determinação dos
auxiliar na compreensão da invenção e da re- eventos; o caráter inconclusivo das narrativas;
cepção de obras artísticas. Entre suas contri- a fragmentação dos discursos; a tendência às
buições, destaquemos a noção de princípio. escritas breves; a obra como amostragem fic-
Segundo Rangel (2006), princípio é “[...] aque- cional das infinitas possibilidades de narração,
la unidade molecular que, ao ser retirada da entre outros aspectos.
obra e do seu pensamento, lhe esvazia senti-
Alguém poderia objetar que quanto
do, configuração, vitalidade” (Rangel, 2006, p.
mais a obra tende para a multiplici-
312). Para a autora, um princípio difere de um dade dos possíveis mais se distan-
conceito, uma vez que um conceito preexiste, cia daquele unicum que é o self de
quem escreve, a sinceridade interior,
precede a ação, tende a modelar o objeto. Já a descoberta de sua própria verdade.
um princípio é da ordem do reconhecimento, Ao contrário, respondo, quem somos
nós, quem é cada um de nós senão
organiza a existência de uma obra, está desa- uma combinatória de experiências, de
trelado de tempos, espaços, hierarquias, ope- informações, de leituras, de imagina-
ções? Cada vida é uma enciclopédia,
ra através da aproximação, da compreensão, uma biblioteca, um inventário de obje-
da invenção. Rangel ainda afirma que a no- tos, uma amostragem de estilos, onde
tudo pode ser continuamente remexi-
ção equivaleria ao que o escritor Ítalo Calvino do e reordenado de todas as maneiras
(1990) defende em Seis Propostas para o Pró- possíveis. (Calvino, 1990, p. 138).
ximo Milênio, livro que reúne cinco conferên-
cias do autor, realizadas em Harvard, nas quais
são abordadas cinco qualidades, ou cinco va- Multiplicidade e pós-modernidade
lores da criação literária – cinco princípios que
o autor preconiza. Atualmente, a multiplicidade de algumas
A última das propostas presentes no livro estratégias recorrentes de escrita pode estar
de Calvino se refere ao princípio de multipli- relacionada com perspectivas de pensamento
cidade. Ao comentar obras de diferentes au- que muitos estudiosos associam à pós-moder-
tores como Carlo Emilio Gadda, Robert Musil, nidade. Em seu livro A condição pós-moderna
Proust, Flaubert, Joyce, Eliot, Borges, entre (2011), lançado em 1979, o filósofo francês Je-
outros, Calvino aborda a narrativa como “[...] an-François Lyotard discute a legitimação do
enciclopédia, como método do conhecimento saber nas sociedades pós-industriais, abor-
e, principalmente, como rede de conexões en- dando o fim das grandes narrativas, ou metar-
tre os fatos, entre as pessoas, entre as coisas relatos unificadores, que pretendiam explicar a
do mundo” (Calvino, 1990, p. 121). Através de existência de maneira totalizante. Esse ques-
diversos exemplos de procedimentos, o au- tionamento dos discursos universalizantes,
tor comenta características de construções anunciado por Lyotard no final da década de
narrativas que estão relacionadas ao princípio 1970, ainda hoje pode ser observado na ten-
da multiplicidade como: a superposição de dência contemporânea em reconhecer o cará-
diversos níveis de linguagem e significado (o ter múltiplo do mundo, do conhecimento e da-
quilo que entendemos por identidade. Nesse adiado, restabelecerá uma relação ple-
na e inteira com a lei de Deus no pa-
contexto, outro tipo de legitimação do conhe- raíso cristão, lei da Natureza no direito
cimento se estabelece. Cada vez mais, o saber natural fantasiado por Rousseau, so-
assume-se como provisório, parcial, aberto a ciedade sem classes, antes da família,
da propriedade e do Estado imagina-
indefinidas possibilidades de desenvolvimen- da por Engels. É sempre um passado
to. Isto se reflete tanto na temática quanto na imemorial que se encontra prometido
como fim último. É essencial ao ima-
estruturação das obras artísticas, em seus di- ginário moderno projetar sua legitimi-
ferentes modos de construção poética. dade para a frente, ao mesmo tempo
em que a fundamenta numa origem
perdida. A escatologia reinvindica uma
Simplificando ao extremo, conside- arqueologia. Esse círculo que também
ra-se “pós-moderna” a incredulidade é o círculo hermenêutico, caracteriza a
em relação aos metarrelatos. É, sem historicidade como imaginário moder-
dúvida, um efeito do progresso das no do tempo (Lyotard, 1996, p. 94).
ciências; mas este progresso, por sua
vez, a supõe. Ao desuso do disposi-
tivo metanarrativo de legitimação cor- A citação acima foi extraída do texto Uma
responde sobretudo a crise da filosofia
metafísica e a da instituição universitá- fábula pós-moderna, que integra o livro Mora-
ria que dela dependia. A função narra- lidades pós-modernas de Jean-François Lyo-
tiva perde seus atores (functeurs), os
grandes heróis, os grandes perigos e tard (1996). No texto, Lyotard apresenta uma
o grande objetivo. Ele se dispersa em fábula cujo sujeito, a principal personagem, é
nuvens de elementos de linguagem
a energia que movimenta e proporciona o de-
narrativos, mas também denotativos,
prescritivos, descritivos etc., cada um senvolvimento de tudo que há no universo:
veiculando consigo validades pragmá- partículas, corpos, sistemas, vida e, conse-
ticas sui generis. Cada um de nós vive
em muitas destas encruzilhadas. Não quentemente, o homem. Na narrativa, os se-
formamos combinações de linguagem res humanos, depois de diversos estágios de
necessariamente estáveis, e as pro-
priedades destas por nós formadas desenvolvimento, estabelecem os sistemas
não são necessariamente comunicá- liberais democráticos como os mais adequa-
veis (Lyotard, 2011, p. xvi).
dos às demandas de organização social, cons-
tituindo a ideia de progresso e induzindo a uma
Lyotard também discorre, em diferentes tex-
“[...] representação escatológica da história
tos, sobre como o pensamento pós-moderno
dos sistemas humanos” (Lyotard, 1996, p. 94).
se contrapõe ao ideal moderno que, segundo
Essa “representação escatológica” se tradu-
ele, seria historicista, “escatológico”:
ziria em historicidade, ou seja, numa crença,
[...] através de inúmeros episódios, a ou numa compreensão do tempo e da história
modernidade leiga mantém esse dis- como portadores de uma reconciliação do su-
positivo temporal, o de uma “grande
narrativa”, como se disse, que pro- jeito consigo mesmo, do fim de sua separa-
mete em seu termo a reconciliação do ção, da reintegração, ou do acesso ao sentido
sujeito consigo mesmo e o fim de sua
último da existência. Esta dimensão, no entan-
separação. Embora secularizadas, a
narrativa das Luzes, a dialética român- to, seria exclusivamente humana, e a narrati-
tica ou especulativa e a narrativa mar- va apresentada por Lyotard não estabelece o
xista exibem a mesma historicidade
que o cristianismo, porque conservam homem como personagem principal, nem uma
o seu princípio escatológico. O remate progressão causal e linear, pelo contrário, a fá-
da história, por mais que seja sempre
Recebido: 25/06/2017
Aprovado: 02/09/2017