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Dramaturgia e Pós-Modernidade:
a rapsódia como estratégia pós-moderna para o drama

João Alberto Lima Sanches


Universidade Federal do Recôncavo da Bahia - UFRB
Email: joaoright@gmail.com

Resumo Abstract
O artigo discute estratégias de composi- The article focuses on some strategies of
ção recorrentes nas dramaturgias contempo- composition that are recurrent in contemporary
râneas, relacionando-as à noção de rapsódia, dramaturgy and which can be related to the
formulada pelo dramaturgo e teórico francês notion of rhapsody, formulated by the french
Jean-Pierre Sarrazac, e ao princípio de multi- playwright and theorist Jean-Pierre Sarrazac,
plicidade, abordado pelo escritor Ítalo Calvino and to the principle of multiplicity, approached
no livro Seis Propostas para o próximo milê- by the writer Italo Calvino in the book Six pro-
nio. O artigo desenvolve uma associação entre posals for the next millennium. The article de-
multiplicidade, procedimentos rapsódicos de velops an association between the principle of
construção dramática e considerações sobre multiplicity, rhapsodic procedures of dramatic
a pós-modernidade. Para isso, escritos do fi- construction and considerations about post-
lósofo Jean-François Lyotard são utilizados modernity. Writings of the philosopher Jean-
como referência, e também a noção de princí- François Lyotard are used as reference, and
pio da pesquisadora e atriz Sônia Rangel. also the notion of principle as discussed by the
actress and researcher Sonia Rangel.

Palavras-chave Keywords
Dramaturgia. Rapsódia. Pós-Modernidade. Dramaturgy. Rhapsody. Post-Modernity.
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Em seus estudos sobre processos de cria- que daria um caráter enciclopédico à obra); a
ção, a escritora, atriz e pesquisadora Sônia consideração da presença simultânea de ele-
Rangel apresenta algumas noções que podem mentos heterogêneos na determinação dos
auxiliar na compreensão da invenção e da re- eventos; o caráter inconclusivo das narrativas;
cepção de obras artísticas. Entre suas contri- a fragmentação dos discursos; a tendência às
buições, destaquemos a noção de princípio. escritas breves; a obra como amostragem fic-
Segundo Rangel (2006), princípio é “[...] aque- cional das infinitas possibilidades de narração,
la unidade molecular que, ao ser retirada da entre outros aspectos.
obra e do seu pensamento, lhe esvazia senti-
Alguém poderia objetar que quanto
do, configuração, vitalidade” (Rangel, 2006, p.
mais a obra tende para a multiplici-
312). Para a autora, um princípio difere de um dade dos possíveis mais se distan-
conceito, uma vez que um conceito preexiste, cia daquele unicum que é o self de
quem escreve, a sinceridade interior,
precede a ação, tende a modelar o objeto. Já a descoberta de sua própria verdade.
um princípio é da ordem do reconhecimento, Ao contrário, respondo, quem somos
nós, quem é cada um de nós senão
organiza a existência de uma obra, está desa- uma combinatória de experiências, de
trelado de tempos, espaços, hierarquias, ope- informações, de leituras, de imagina-
ções? Cada vida é uma enciclopédia,
ra através da aproximação, da compreensão, uma biblioteca, um inventário de obje-
da invenção. Rangel ainda afirma que a no- tos, uma amostragem de estilos, onde
tudo pode ser continuamente remexi-
ção equivaleria ao que o escritor Ítalo Calvino do e reordenado de todas as maneiras
(1990) defende em Seis Propostas para o Pró- possíveis. (Calvino, 1990, p. 138).
ximo Milênio, livro que reúne cinco conferên-
cias do autor, realizadas em Harvard, nas quais
são abordadas cinco qualidades, ou cinco va- Multiplicidade e pós-modernidade
lores da criação literária – cinco princípios que
o autor preconiza. Atualmente, a multiplicidade de algumas
A última das propostas presentes no livro estratégias recorrentes de escrita pode estar
de Calvino se refere ao princípio de multipli- relacionada com perspectivas de pensamento
cidade. Ao comentar obras de diferentes au- que muitos estudiosos associam à pós-moder-
tores como Carlo Emilio Gadda, Robert Musil, nidade. Em seu livro A condição pós-moderna
Proust, Flaubert, Joyce, Eliot, Borges, entre (2011), lançado em 1979, o filósofo francês Je-
outros, Calvino aborda a narrativa como “[...] an-François Lyotard discute a legitimação do
enciclopédia, como método do conhecimento saber nas sociedades pós-industriais, abor-
e, principalmente, como rede de conexões en- dando o fim das grandes narrativas, ou metar-
tre os fatos, entre as pessoas, entre as coisas relatos unificadores, que pretendiam explicar a
do mundo” (Calvino, 1990, p. 121). Através de existência de maneira totalizante. Esse ques-
diversos exemplos de procedimentos, o au- tionamento dos discursos universalizantes,
tor comenta características de construções anunciado por Lyotard no final da década de
narrativas que estão relacionadas ao princípio 1970, ainda hoje pode ser observado na ten-
da multiplicidade como: a superposição de dência contemporânea em reconhecer o cará-
diversos níveis de linguagem e significado (o ter múltiplo do mundo, do conhecimento e da-

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quilo que entendemos por identidade. Nesse adiado, restabelecerá uma relação ple-
na e inteira com a lei de Deus no pa-
contexto, outro tipo de legitimação do conhe- raíso cristão, lei da Natureza no direito
cimento se estabelece. Cada vez mais, o saber natural fantasiado por Rousseau, so-
assume-se como provisório, parcial, aberto a ciedade sem classes, antes da família,
da propriedade e do Estado imagina-
indefinidas possibilidades de desenvolvimen- da por Engels. É sempre um passado
to. Isto se reflete tanto na temática quanto na imemorial que se encontra prometido
como fim último. É essencial ao ima-
estruturação das obras artísticas, em seus di- ginário moderno projetar sua legitimi-
ferentes modos de construção poética. dade para a frente, ao mesmo tempo
em que a fundamenta numa origem
perdida. A escatologia reinvindica uma
Simplificando ao extremo, conside- arqueologia. Esse círculo que também
ra-se “pós-moderna” a incredulidade é o círculo hermenêutico, caracteriza a
em relação aos metarrelatos. É, sem historicidade como imaginário moder-
dúvida, um efeito do progresso das no do tempo (Lyotard, 1996, p. 94).
ciências; mas este progresso, por sua
vez, a supõe. Ao desuso do disposi-
tivo metanarrativo de legitimação cor- A citação acima foi extraída do texto Uma
responde sobretudo a crise da filosofia
metafísica e a da instituição universitá- fábula pós-moderna, que integra o livro Mora-
ria que dela dependia. A função narra- lidades pós-modernas de Jean-François Lyo-
tiva perde seus atores (functeurs), os
grandes heróis, os grandes perigos e tard (1996). No texto, Lyotard apresenta uma
o grande objetivo. Ele se dispersa em fábula cujo sujeito, a principal personagem, é
nuvens de elementos de linguagem
a energia que movimenta e proporciona o de-
narrativos, mas também denotativos,
prescritivos, descritivos etc., cada um senvolvimento de tudo que há no universo:
veiculando consigo validades pragmá- partículas, corpos, sistemas, vida e, conse-
ticas sui generis. Cada um de nós vive
em muitas destas encruzilhadas. Não quentemente, o homem. Na narrativa, os se-
formamos combinações de linguagem res humanos, depois de diversos estágios de
necessariamente estáveis, e as pro-
priedades destas por nós formadas desenvolvimento, estabelecem os sistemas
não são necessariamente comunicá- liberais democráticos como os mais adequa-
veis (Lyotard, 2011, p. xvi).
dos às demandas de organização social, cons-
tituindo a ideia de progresso e induzindo a uma
Lyotard também discorre, em diferentes tex-
“[...] representação escatológica da história
tos, sobre como o pensamento pós-moderno
dos sistemas humanos” (Lyotard, 1996, p. 94).
se contrapõe ao ideal moderno que, segundo
Essa “representação escatológica” se tradu-
ele, seria historicista, “escatológico”:
ziria em historicidade, ou seja, numa crença,
[...] através de inúmeros episódios, a ou numa compreensão do tempo e da história
modernidade leiga mantém esse dis- como portadores de uma reconciliação do su-
positivo temporal, o de uma “grande
narrativa”, como se disse, que pro- jeito consigo mesmo, do fim de sua separa-
mete em seu termo a reconciliação do ção, da reintegração, ou do acesso ao sentido
sujeito consigo mesmo e o fim de sua
último da existência. Esta dimensão, no entan-
separação. Embora secularizadas, a
narrativa das Luzes, a dialética român- to, seria exclusivamente humana, e a narrati-
tica ou especulativa e a narrativa mar- va apresentada por Lyotard não estabelece o
xista exibem a mesma historicidade
que o cristianismo, porque conservam homem como personagem principal, nem uma
o seu princípio escatológico. O remate progressão causal e linear, pelo contrário, a fá-
da história, por mais que seja sempre

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bula configura uma sucessão de acontecimen- leitores “sabem que a legitimação só


pode vir através de sua prática linguís-
tos definidos arbitrariamente, “[...] a partir de
tica”, diz ainda Lyotard [...] O teatro
movimentos físicos supostamente uniformes e ainda narra, mas cada vez menos de
regulares” (Lyotard, 1996, p. 95). Ao fim da nar- forma prescritiva e adesista. Os pon-
tos de vista sobre a narrativa se mul-
rativa, os seres humanos estão tentando supe- tiplicam ou se dissolvem em enredos
rar a destruição do Sol e, consequentemente, ambíguos (Ryngaert, 1998, p. 84-85).
a civilização tal como se encontra.
A fábula não aponta para uma emanci- A pós-modernidade tem seus desdobra-
pação, ou esperança de salvação, pelo con- mentos em todas as áreas do conhecimento,
trário, sugere que a humanidade deverá ser da produção e da manutenção dos laços so-
ultrapassada por outra formação mais com- ciais. Como mostra a citação anterior, a dra-
plexa. Lyortard considera a fábula apresentada maturgia e o teatro também são influenciados
como pós-moderna – pois ela não ofereceria por esta crise dos grandes relatos. As ideias
nenhum dos aspectos principais da historici- de Lyotard sobre o processo pós-moderno de
dade, deixando o pensamento na expectativa legitimação do saber podem ajudar a compre-
da finalidade. Segundo o filósofo, seria justa- ender determinados modos de construção das
mente essa expectativa de finalidade o que dramaturgias contemporâneas que se identifi-
caracterizaria “[...] o estado pós-moderno do cam com o princípio da multiplicidade, abor-
pensamento, o que atualmente se convencio- dado por Calvino (1990). Estratégias recorren-
nou chamar sua crise, seu mal-estar ou sua tes da produção atual como a fragmentação
melancolia” (Lyotard, 1996, p. 97). Essa pers- das fábulas, a recusa a um sentido unívoco, a
pectiva que associa o pensamento pós-mo- constante relativização dos discursos, a bus-
derno à incredulidade em relação às narrativas ca por efeitos de polifonia, a utilização de re-
unificadoras, ou à recusa às explicações totali- cursos metalinguísticos, entre outros, podem
zantes, tem ligação com a atitude afirmativa de ser associadas tanto ao horizonte filosófico da
valorização da multiplicidade. A tendência está condição pós-moderna quanto ao princípio
presente na produção artística contemporânea (poético) da multiplicidade. Talvez, o correto
de maneira geral, incluindo a dramaturgia e o seja afirmar que a multiplicidade é um princí-
teatro: pio pós-moderno e que podemos reconhecê-
-lo em grande parte da produção dramatúrgica
O período pós-moderno, escreve Jean (e artística) contemporânea.
François Lyotard em La condition post-
moderne [A condição pós-moderna],
anuncia o fim dos “grandes heróis, dos
grandes perigos, dos grandes périplos
e dos grandes objetivos”. Ele analisa o
Rapsódia: uma estratégia
fim das grandes narrativas como liga- pós-moderna para o drama?
do à antiga preeminência da narração
na formulação do saber tradicional [...]
Ao passo que os dramaturgos clássi- A noção de rapsódia, formulada pelo dra-
cos retomavam as grandes narrativas maturgo e teórico Jean-Pierre Sarrazac em seu
fundadoras, míticas ou morais, reela-
borando suas fontes na perspectiva livro O futuro do drama (Sarrazac, 2002), é ca-
de valores de suas sociedades, os paz de sintetizar uma série de estratégias de
dramaturgos pós-modernos e seus

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criação já mencionadas. A partir do estudo de perspectiva menos canônica e menos teleoló-


autores europeus, em sua maioria franceses, gica do drama, na qual o interesse do estudo
como Bernard-Marie Koltés, Michel Vinaver, estaria voltado mais para as múltiplas e cam-
Armand Gatti, André Benedetto, mas também biantes conexões entre as formas dramáticas
Brecht, Beckett, Pirandello, entre outros, Sar- do que para uma explicação totalizadora, ca-
razac aborda diversos procedimentos criativos paz de identificar um eixo comum a todas elas.
os quais associa a uma pulsão rapsódica, a um Em vez do conceito de sujeito épico teorizado
gesto de autor-rapsodo. É possível reconhecer por Szondi, Sarrazac propõe a noção de autor-
nesses procedimentos comentados por Sar- -rapsodo. Em vez da emersão épica do drama,
razac o princípio de multiplicidade e outras ou da romancização dos gêneros literários,
tantas qualidades que, baseando-nos em for- Sarrazac percebe dinâmicas de transborda-
mulações de Lyotard, arriscamos adjetivar de mentos constantes da forma dramática, e de-
pós-modernas. nomina rapsódia a esse devir contemporâneo
Segundo Sarrazac (2002), estaria em de- do drama, seu olhar se concentra na pulsão
senvolvimento atualmente uma dramaturgia rapsódica das escritas mais recentes.
das passagens, do trânsito, dos limiares, onde No pósfacio do livro O futuro do drama (Sar-
todas as eventualidades da vida (reais, ou ima- razac, 2002), resultado de sua tese de douto-
ginárias) pudessem ser expostas simultanea- ramento, ao comentar a opção pela noção de
mente. rapsódia, Sarrazac cita a romancização vis-
lumbrada por Bakhtin e a epicização proposta
A obra dramática encontra-se isenta por Szondi e tantos teóricos marxistas. Sarra-
da obrigação de seguir o encadeamen-
to cronológico dos acontecimentos. zac afirma que a romancização dos outros gê-
Ela explora, numa abordagem diferen- neros, de que fala Bakhtin, seria incontestável
cial e aleatória, as potencialidades de
cada situação. Surge, então, um teatro unicamente durante o período em que a arte
dos possíveis, cuja primeira intuição do romance foi predominante e serviu de mo-
remonta a Brecht, quando este incul-
cava nos actores a técnica do “não- delo. Esse período iria da segunda metade do
-antes-pelo-contrário” [...] Mas, aquilo século XVIII ao início do século XX, com um
que em Brecht estava ainda implícito
torna-se hoje explícito. Assiste-se, no pico no momento naturalista. Sarrazac tam-
teatro de Gatti ou Benedetto, à radi- bém comenta o preconceito bakhtiniano em
calização e à transposição para o do-
mínio da literatura de um método de relação ao dialogismo no drama, assim como
trabalho característico do actor brech- a visão teleológica, implícita nos defensores
tiano (Sarrazac, 2002, p. 64-65).
marxistas da emersão épica. Defende, no en-
tanto, a visão do épico formulada pelo teórico
Dramaturgo, professor e coordenador do
alemão Walter Benjamin:
Grupo de Pesquisas sobre o Drama da Uni-
versidade de Paris III, Sarrazac desenvolveu
Falar de rapsodização da obra tea-
com seus colaboradores um olhar sobre a pro- tral, detectar na escrita teatral uma
dução dramática contemporânea que dialoga pulsão rapsódica, é voltar à concep-
ção ampla de épico de Benjamin. A
com o teórico húngaro Peter Szondi (2011) e esta ideia de “atalho de contrabando
também com o linguista russo Mikhail Bakhtin através do qual a herança do drama
medieval e barroco chegou até nós”.
(2010; 2011; 2013), atualizando-os para uma A pulsão rapsódica – que não signifi-

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ca nem abolição, nem neutralização evolução, um progresso formal. Na abordagem


do dramático (a insubstituível relação
de Szondi, autores como Ibsen, Strindberg e
imediata entre si mesmo e o outro, o
encontro, sempre catastrófico, com Tchekhov seriam experimentadores, cujo tra-
o Outro, que constituem privilégio do balho prepararia o teatro épico vindouro.
teatro) – procede, na verdade, por um
jogo múltiplo de aposições e de opo-
sições. Dos modos: dramático, lírico, Em seu gesto sócioestético marxista,
épico e mesmo argumentativo. Dos Szondi atribui aos grandes drama-
tons ou daquilo a que chamammos turgos da virada do século o mesmo
“gêneros”: farsesco e trágico, grotes- lugar e a mesma função no devir das
co e patético, etc (Sarrazac, 2002, p. formas teatrais que Cézanne e Wag-
227). ner tiveram no das formas pictórias e
musicais [...] Em suas análises drama-
túrgicas, Szondi insiste mais, eviden-
Embora a primeira edição em português de temente, no que convém “deixar para
trás” do que na paradoxal “perfeição”
O futuro do drama seja de 2002, o livro refe-
das obras de transição (Sarrazac,
re-se a uma reflexão de Sarrazac sobre a pro- 2012, p.25).
dução dramática francesa, resultado de sua
pesquisa de doutorado no final dos anos se- Para exemplificar, Sarrazac critica três abor-
tenta. Em 1998, no entanto, o autor escreveu dagens que Szondi faz, respectivamente, de
um posfácio para nova edição do livro, reafir- Ibsen, Strindberg e Pirandello, no verbete ini-
mando a permanência de suas teses e de seu cial do Léxico, intitulado Introdução à crise do
conceito de rapsódia. O trabalho continuou drama (Sarrazac, 2012). Sobre as peças de
com a coordenação de seu grupo de pesquisa Ibsen, Szondi afirma que a fachada de peça
sobre o tema, cujo resultado mais recente foi bem-feita dissimularia a ausência de uma efe-
publicado no Brasil em 2012: o Léxico do dra- tiva ação no presente. Para Sarrazac, a análise
ma moderno e contemporâneo (SARRAZAC, não leva em conta a evolução da dramaturgia
2012). A publicação, organizada e coescrita de Ibsen, como é evidente em sua última peça,
por Sarrazac, reúne 57 verbetes de autoria de Quando despertarmos de entre os mortos, que
variados pesquisadores do grupo, alguns bas- não corresponderia mais às regras da peça
tante conhecidos dos leitores brasileiros como bem feita. A segunda crítica do autor se refere
Jean-Pierre Ryngaert. Os verbetes do Léxico à análise que Szondi faz de Sonata de espec-
(SARRAZAC, 2012) comentam procedimentos, tros de Strindberg, na qual, através da perso-
princípios e questões recorrentes nas drama- nagem Hummel, se veria o eu épico no palco,
turgias contemporâneas a partir da contrapo- porém, ainda sob o “disfarce de um persona-
sição dessas práticas aos conceitos de drama gem de drama”. Para Sarrazac, Szondi erra,
absoluto e de crise do drama de Peter Szondi duplamente, ao não compreender a clivagem
(2011). Mas, ao retomar as ideias de Szondi e da personagem e considerar um fracasso jus-
de toda a tradição crítica da qual ele faz par- tamente o que torna a obra original: a maneira
te, Sarrazac (2012) procede a uma reavaliação particular como Strindberg sintetiza elementos
dessa tradição e, em relação a Szondi, espe- épicos, dramáticos e líricos em sua constru-
cificamente, faz uma crítica direta à visão tele- ção.
ológica do autor, pró-epicização, que conside- Por fim, um terceiro exemplo semelhante do
rava a emersão do épico no drama como uma preconceito de Szondi em favor do devir épico

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é comentado. Ao referir-se a Seis personagens responder, entre outras questões. As obras de


à procura de um autor, de Pirandello, como autores estudados por Sarrazac como Heiner
uma crítica do drama, Szondi condena o dra- Muller, Peter Handke, Michel Vinaver, Armand
maturgo, porque ele se recusaria a “destruir” Gatti, Bernard-Marie Koltès, Sarah Kane,
totalmente a dimensão dramática, escolhendo Edward Bond, entre outros, sem dúvida, en-
um desfecho dramático para a peça. Para Sar- corajam o estudo de certas recorrências de
razac, mais uma vez, a constatação de Szondi procedimentos dramatúrgicos que podemos
não levaria em conta um particular tensiona- associar a uma emersão da subjetividade, à
mento do dramático, do épico e do lírico, ope- abordagem do inconsciente, do íntimo, ou, em
rado nessa obra metadramática de Pirandello, nossos termos, à exploração de possibilidades
cuja espirituosa construção a tornou tão co- líricas do drama. Isto não significa, contudo,
nhecida. negligência do grupo com as heranças épicas,
pelo contrário. A evidência está na quantidade
No essencial, trata-se – repetimos – de de menções à Brecht, presentes não apenas
abandonar a ideia segundo a qual o
horizonte – o fim – do teatro dramático no Léxico (Sarrazac, 2012) como no O futuro
poderia ter sido o teatro épico (como do drama (Sarrazac, 2002) e também em A fá-
o do capitalismo deveria ser o comu-
nismo). Para isso, não há necessidade bula e o desvio (Sarrazac, 2013) publicações já
alguma de se rejeitar o marxismo e, traduzidas para o português. Dos 57 verbetes
tampouco, a abordagem socioestética
do teatro moderno e contempôraneo. do Léxico, nenhum apresenta o adjetivo lírico
Basta, ao contrário, interrogar-se so- em seu título e, em apenas oito, é possível as-
bre certas rejeições “ideológicas” de
pensadores marxistas do teatro, não sociar diretamente o título a algum aspecto de
obstante bem diferentes uns dos ou- subjetividade ou liricização: Coro/Coralidade;
tros, como Lukács, Brecht, Adorno,
Szondi, e proceder a uma reavaliação Íntimo; Jogo de sonho; Monodrama (polifôni-
dos objetos rejeitados: principalmente co); Monólogo; Oralidade; Poema dramático;
o “dramático” (não mediatizado pelo
Voz.
“épico”) e seu corolário, a subjetivi-
dade, polemicamente rebatizada de Ainda sobre a noção de rapsódia, é impor-
“subjetivismo”. Como se a manuten- tante destacar que, apesar de sua abertura
ção da relação intersubjetiva e sobre-
tudo o apelo ao intrassubjetivo, ao ínti- para as emersões líricas das dramaturgias mo-
mo, tão presentes no teatro do século dernas e contemporâneas, a noção estaria ini-
XX, de Strindberg a Adamov ou a Sara
Kane, significassem inevitavelmente cialmente ligada ao modo épico:
regressão ao individualismo, ao apoli-
tismo, em suma, ao teatro “burguês” Através da figura emblemática do rap-
(Sarrazac, 2012, p. 30). sodo, que se assemelha igualmente
à do “costurador de lais” medieval –
reunindo o que previamente rasgou e
Em síntese, se os desvios de inclinação despedaçando imediatamente o que
épica foram brilhantemete teorizados e preco- acaba de juntar –, a noção de rapsódia
aparece, portanto, ligada de saída ao
nizados no século XX, com o apoio e engaja- domínio do épico: o dos cantos e da
mento das ideologias de orientação marxista, narração homéricos, ao mesmo tem-
po que a procedimentos de escrita tais
Sarrazac parece reconhecer, na citação acima,
como a montagem, a hibridização, a
certo preconceito teórico com a subjetividade colagem, a coralidade. (Hersant; Nau-
ao qual o Léxico (Sarrazac, 2012) procuraria grette, 2012, p. 152).

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Conceito transversal, que se desdobra em cos, argumentativos, entre outros possíveis. A


outras noções, a rapsódia é apresentada por noção tem uma ligação direta com as concep-
Sarrazac (2002) como uma síntese de seu es- ções brechtianas de montagem e gesto. A pul-
tudo das escritas dramáticas contemporâne- são rapsódica, fluxo de costura e descostura,
as. Rapsódia é o nome de um devir múltiplo do explicitaria o gesto da montagem que compõe
drama que contraria a concepção organicista os textos, colocaria o dramaturgo-rapsodo em
da Poética aristotélica, à qual Sarrazac deno- primeiro plano, diferente da ideia tradicional de
mina de “belo animal aristotélico”. A expressão um autor dramático que procuraria “se escon-
refere-se à comparação que Aristóteles faz, na der atrás das personagens”, ou se ausentar do
Poética (Aristóteles, 1992), entre a fábula/intri- próprio texto. Nas dramaturgias atuais, seria
ga dramatúrgica e um ser vivo cuja beleza re- frequente a explicitação da voz desse autor-
sidiria na extensão e ordenação. A imagem do -rapsodo, através da qual é possível perceber
“belo animal” corresponde a uma concepção um impulso questionador da soberania do fic-
de fábula/intriga como totalidade ordenada, cionamento.
encadeamento lógico, completude, em sínte- Como exemplo, ao referir-se às obras do
se, corresponde aos conceitos aristotélicos de dramaturgo francês André Benedetto, Sarra-
unidade, totalidade, causalidade e verossimi- zac (2002) sintetiza uma estratégia recorrente
lhança. nas dramaturgias contemporâneas (e mes-
mo nas narrativas mencionadas por Calvino):
Contra a “peça benfeita” [sic], último “Impelida pela incessante meditação do au-
avatar do “belo animal” aristotélico,
o devir rapsódico do teatro contem- tor sobre as personagens e sobre a fábula,
porâneo coloca em questão a própria a dramaturgia progride por hipóteses que se
ideia de composição: transformada
em montagem de arquivos no teatro vão substituindo umas às outras, que se vão
documentário de Weiss, justaposição sucedendo sem nunca se anularem” (Sarra-
de fragmentos narrativos e dramáti-
cos em A missão de Muller, a escrita zac, 2002, p. 63). Nessa perspectiva, a dinâ-
teatral obedece a uma lógica de de- mica rapsódica corresponderia à estética do
composição. Nesse sentido, peças
tão díspares como Roberto Zucco de descontínuo, à preconização da irregularidade
Koltès, Hamlet-máquina de Muller, Im- contra a uniformidade e a unidade, ao gosto
précations [As imprecações] de Michel
Deutsch ou Barba-azul, esperança das pela fragmentação da fábula, aos efeitos de
mulheres de Dea Loher desvelam-se polifonia, à auto-referencialização constante,
como outras tantas variações em tor-
à desestabilização das noções tradicionais de
no da morte do “belo animal”. Morte
incessantemente repetida, pois produ- personagem e diálogo, enfim, a uma série de
tora de formas novas, em que a unida- transformações nas concepções tradicionais
de constitui-se em trabalho do hete-
rogêneo, da continuidade, da ruptura, do drama que podem ser identificadas com
da harmonia, da dissonância (Kuntz, princípios pós-modernos.
2012, p. 42-43).

A ideia de dramaturgias rapsódicas se refe-


re, portanto, a construções híbridas, compos-
tas por diferentes materiais, gêneros, vozes,
articulando momentos dramáticos, épicos, líri-

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Considerações finais mulada por Sarrazac (2002), como uma chave


de leitura para diversas estratégias de criação
É controverso afirmar se temos, ou não, um que têm a multiplicidade como princípio, estra-
novo paradigma de pensamento e cultura, se tégias existentes desde sempre, mas particu-
entramos mesmo num novo período histórico larmente recorrentes nas dramaturgias atuais
(a pós-modernidade). Não parece adequado e em grande parte das artes contemporâneas.
adotar uma lógica historicista, paradoxalmente
moderna, para compreender justamente o que Referências
seria o pensamento pós-moderno. Paralela-
mente, se a nossa época ainda evidencia uma ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Eudoro
incredulidade perante as grandes narrativas, de Souza. São Paulo: Ars Poetica, 1992.
se existe um apelo à multiplicidade e uma opo-
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal.
sição às tentativas de totalização do sentido, São Paulo: Martins Fontes, 2011.
não significa que não seja também evidente a
continuidade dos ideais modernos de unidade, ______. Problemas da poética de Dostoiévski.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2013.
racionalidade e progresso.
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman ______. Questões de literatura e de estética: a
(2001), por exemplo, refere-se a uma moder- teoria do romance. São Paulo: Hucitec, 2010.
nidade líquida. Já o filósofo francês Gilles Li-
povetsky (2004), refere-se a uma hipermoder- BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio
de Janeiro: Zahar, 2001.
nidade. De maneiras bem distintas, os estudos
de ambos os autores apontam para a perma- CALVINO, Ìtalo. Seis propostas para o próxi-
nência de alguns ideais modernos no desen- mo milênio. São Paulo: Companhia das Le-
volvimento do que se convencionou chamar tras, 1990.
de pós-modernidade. Ou seja, existem muitos
HERSANT, Céline; NAUGRETTE, Catherine.
caminhos para pensar a criação artística atu- Rapsódia. In: SARRAZAC, Jean-Pierre et al.
al, a escolha de alguns estudos sobre a pós- (Org.). Léxico do drama moderno e contempo-
-modernidade é operativa em determinados râneo. São Paulo: Cosac Naify, 2012.
contextos, pois muitos fenômenos que são
KUNTZ, Hélène. Belo animal (morte do). In:
objetos de reflexão dos teóricos mencionados SARRAZAC, Jean-Pierre et al. (Org.). Léxico
e muitos valores, qualidades, princípios identi- do drama moderno e contemporâneo. São
ficados com a pós-modernidade podem auxi- Paulo: Cosac Naify, 2012.
liar na reflexão sobre aspectos das produções
LIPOVETSKY, Gilles. Os tempos hipermoder-
artísticas atuais. Em relação à dramaturgia, nos. São Paulo: Editora Barcarolla, 2004.
destacamos no presente artigo o princípio da
multiplicidade e, associando-o ao ideário pós- LYOTARD, Jean-François. A condição pós-
-moderno, questionamos se a rapsódia pode- -moderna. Rio de Janeiro: José Olympio,
2011.
ria ser considerada uma estratégia pós-mo-
derna para o drama. Esta provocação parte ______. Moralidades pós-modernas. São Pau-
do reconhecimento da noção de rapsódia, for- lo: Papirus, 1996.

109 Sanches // Dramaturgia e Pós-Modernidade:


a rapsódia como estratégia pós-moderna para o drama
Rev. Cena, Porto Alegre, n. 23, p. 101-110, set./dez. 2017
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena
cena n. 23

RANGEL, Sonia. Processos de criação: ativi-


dade de fronteira. In: CONGRESSO BRASI-
LEIRO DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
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e Pós-Graduação em Artes Cênicas. Rio de
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Paulo: Cosac Naify, 2012.

______. O futuro do drama. Porto: Campos


das Letras, 2002.

______. Sobre a fábula e o desvio. Rio de


Janeiro: 7Letras: Teatro do Pequeno Gesto,
2013.

SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno


(1880-1950). São Paulo: Cosac Naify, 2011.

Recebido: 25/06/2017
Aprovado: 02/09/2017

110 Sanches // Dramaturgia e Pós-Modernidade:


a rapsódia como estratégia pós-moderna para o drama
Rev. Cena, Porto Alegre, n. 23, p. 101-110, set./dez. 2017
Disponível em: http://seer.ufrgs.br/cena

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