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12 [A PE Casta Gustaf Aun b) A unidade no conceito de Deus Se a teologia pretende realmente entender e interpretar a fé, no pode ajustar nem eliminar racionalmente a tensio entre os varios temas na concep- 40 de Deus. Tal “interpretacio” equivaleria a uma falsificacdo. Tampouco pode a teologia satisfazer-se com a mera apresentacao de proposi¢es metafi sicas discordantes. Nao seria uma expresso da natureza peculiar da f6, cuja erspectiva atuante seria transformada em metafisica estranha. A idéia de Deus ‘manifesta por meio da atividade da revelaco contém uma tensio inevitavel, mas esta nio Ihe destréi a unidade. A concepgao de Deus que a f€ possui nio € dividida ou absurda. Tem um centro ou, como o diz a prépria fé, um “cora- $40”. A palavra referente ao amor divino é a sua afirmacio final e mais eleva- da a respeito do Deus que age em Cristo. A “natureza” de Deus 6, como diz Lutero, eitel Liebe — puro Amor. A teologia contudo nio pode analisar conve- nientemente o significado desse amor sem levar em conta a tensoem que este ‘se manifesta a f€. O amor divino néo pode ser incorporado a nenhum sistema Tegalista, monista ou racionalista. Ele age contra legem, Mas isso nao signi a que a tensio radical da vontade divina contra o mal desaparega. Expressa~ se antes de modo mais enfitico, O amor divino destréi o sistema do racionalis- mo monista, pois o amor de Deus € um amor que, sob condicdes histéricas, uta contra forgas opostas. No entanto, a soberania divina nao desaparece. Mostra-se, ao contrério, em majestade incondicional. Em diltima anélise, todas as afirmagSes da fé cristd com respeito a Deus concentram-se na idéia central do amor de Deus. Esse amor destréi todos os sistemas legalistas e racionais. Ao mesmo tempo, o Deus condenador que julga é o Deus de amor. O poder soberano é o poder do amor. A f6 no consegue penetrar mais além do ue 0 amor divino. Quanto mais claramente percebe a fé a sua atividade, tanto mais ela se vé confrontada pelo imperscrutavel ¢ o inefavel. Qualquer teolo- gia que dissolva a tensdo desse amor divino toma obscura a sua imperscruta- bilidade ¢ falseia a f. © mesmo se pode dizer da teologia que substitui a tenso religiosa pelo paradoxo metafisico e pelo irracionalismo. 14. DEUS E AMOR 8) O-amor 6 0 centro do conceito de Deus ~ caréter mais intimo da con- ‘epedo cristi de Deus é determinado por Cristo e sua obra, Isso significa que em Cristo a f& encontra 0 Deus que busca ao homem pecadore entra em comunhio, Comeste. Ou, em outras palavra, um amor que dest o sistema no qual olega- Uismo eo racionalismo gostariam de transformar a relagio entre Deus e o homemn, © Concarro CuistAo be Devs us b)A natureza do amor divino ~ Portanto, quando 0 amor constitu o centro ddominante do conceit cistio de Deus, a natureza peculiar desse amor revela-se na sua espontancidade e auto-oferenda. O amor divino nio é suscitado por coisa alguma fora de si mesmo, O seu cardter define-se pela cruz (JA imperscrutabilidade do amor ~ Emibora mais facilmente perceptivel na cruz, 0 amor divino mostra-se nela, a0 mesmo tempo, como absolutamente imperserutével a) O.amor é 0 centro do conceito de Deus A idéia crista de Deus € um conceito vago ¢ indefinido. Mas a fé crista temalgo de bem definido a dizer a respeito da relagio de Deus com os homens ¢, por conseguinte, a respeito também do carter, da vontade e da pessoa divi- nas. Cristo e sua obra definem de maneira decisiva o carter de Deus. Olhando para 0 Cristo, afé v8 nele o Deus que se dé ao homem, Quando a fé se refere Cristo como Aquele em quem a vontade divina se encamou, dizendo que ele 6 “consubstancial” com o Pai, a “substancia” ou a natureza de Deus precisa endo ser definida a partir daquilo que a fé encontra em Cristo. Ando ser assim a“Cristologia” consistiria apenas em meras formulas vazias (cp. par. 3, ¢; par 5,8), | O elemento essencial na comunidade criada pelo evento de Cristo € que nele Deus busca 0 homem pecador e entra em comunhio com ele. Tal é a caracteristica mais importante da comunhdo cristi entre Deus e o homem. Sem esse elemento, a comunbio perderia sua indole propria e deixaria de cxistit. Conseqllentemente, deve ser aceito como o contetido definitive da ‘mensagem crista Isso significa que o carster fundamental do coneeito de Deus € 0 amor. Portanto, toda afirmacao referente a Deus torna-se afirmacao a respeito do seu amor. Nada se pode dizer com referéncia a Deus, seu poder, sua oposi- 4oa0 mal etc. que nao seja, em itima andlise, uma proposigao referente a0 Seu amor. A frase joanina “Deus é amor” resume no s6 0 que é essencial no Novo Testamento mas também tudo o que se pode dizer quanto ao caréter da idéia crista de Deus. Nenhum outro “atributo” divino, seja ele qual for, pode Ser coordenado com o amor. £ impossivel aos “atributos” divinos expressar algo que possa eancelar amor. Nao ha nada mais vital que se possa dizer a Tespeito do conceito cristio de Deus do que afirmar que “Deus amor”. Paulo concorda com Jodo. Toda a sua fé cristd esta expressa nestas palavras: “Nada poder4 separar-nos do amor de Deus em Cristo Jesus". Da mesma forma, os grandes vultos evangélicos do cristianismo tém proclamado, de maneira vigorosa e clara, que Deus é amor. “A lei”, diz Lutero, “é 0 opus ARE Gusta - Gustaf Aulén alienum de Deus; 0 Evangelho, 0 seu opus proprium”. Muito embora falas- se enfaticamente, realisticamente da “ira de Deus”, para Lutero a “natu. reza” mesma de Deus era 0 amor. “Na grande mansio de Deus sé reside 0 amor”. “Cristo é o reflexo do coragio paternal de Deus”. Und is kein andrer Gott. O elemento mais importante nessa questio nao é a mera afirmagio de ‘que Deus é amor, mas a maneira em que esse amor surge como caracterfstica para a f6 cristd. O amor divino ativo em Cristo é aquele amor que busca o pecador ¢ entra em comunho com ele. O trago distintivo desse amor é o esta- belecimento da comunhio entre Deus e o homem, comunhio essa diferente da {que se baseia na razio ¢ na lei. O amor divino nao é uma idéia racionalmente concebida e obtida pela reflexio em tomo da natureza do mundo e da vida humana, nem é um alvo a que chega o pensamento humano pela sublimagio das qualidades humanas mais elevadas. O amor divino que desce até a0 peca- dor ¢ entra em comunhao com ele € algo estranho & razo. Sendo essa realida- de uma loucura para os gregos, € também escandalo para os judeus. Nao pode ser contido numa ordem de justica legal. Nao é ao legalismo, nem a lei que esté reservada a palavra final a respeito da relagdo de Deus com os homens. Nao se pode atingir a comunhio com Deus baseando-se na lei. Essa comu- no s6 pode ser atingida quando o amor divino infringe os preceitos legais. Na medida em que ofende todo o legalismo exclusivista, admite o pecador & comunhao com ele. A comunhio com Deus assim estabelecida fundamenta-se exclusivamente no amor divino. Ao definir a indole do amor divino, de acordo com a fé crista, é de suma importincia notar a posigdo antitética em que se coloca essa comunhio com Deus criada pelo amor divino, seja em relago ao racionalismo, seja ao lega- lismo. Tal antitese é um valor cristo fundamental, pois se refere a algo de constitutivo da relacdo cristd entre Deus e o homem e nao ha alguma coisa que ossa ser removida sem perturbar a propria comunhdo. Toda a histéria do pensamento cristio , até certo ponto, a histéria desse tema, da sua luta contra © racionalismo ¢ o legalismo e da sua vit6ria, da qual emergiu sempre com novo e irresistivel poder, apesar de toda oposigo. b) A natureza do amor divino A natureza do amor divino, jé referido anteriormente, merece nesta altu- raestudo mais aprofundado. Mesmo assim s6 é possivel tratar dos tragos prin- cipais deste assunto. Na realidade, a Gnica anilise adequada a tema tio funda- ‘mental seria um ‘estudo completo do contetido da fé crista. A fé cristi nl 0 Concer CustAo be Devs us pode fazer uma afirmagzo que, de uma ou outra forma, néo esclareca a nature- ado amor divino. Nesta apresentacao preliminar hé especialmente dois pon- tos que dever ser ressaltados: a espontaneidade e a auto-oferenda do amor divino. Em primeiro lugar, 0 amor divino € espontdneo. Isso significa que ele contém em si a sua propria causa. Nao é suscitado por causas externas, mas jrrompe por si mesmo. Outro modo de exprimir essa mesma idéia é a velha forma: “a graca preveniente de Deus”. O amor de Deus é sempre preveniente. ‘Sua causa no é algo fora de Deus, mas encontra-se em Deus mesmo e na sua rnatureza: “A pergunta ~ Por que Deus ama? — ha uma tinica resposta correta: Porque amar é sua natureza” importante ressaltar esse ponto de vista, especialmente se for conside- rado o fato de ter sido ofuscado, no raro, por tentativas no sentido de propor ‘uma motivagdo para o amor divino. Mas a simples razdo de o amor de Deus em Cristo surgir como um amor que busca os pecadores e entra em comunhio com eles prova a saciedade que a causa da obra divina de amor nao reside em coisa alguma humana, nem em determinado valor possuido pelo objeto dese amor, tornando-o desejével, nem ainda no fato de o homem de alguma manei- 1a se ter tornado digno do amor divino. “Nisto consiste 0 amor, nao em que nés tenhamos amado a Deus, mas em que ele nos amou” (1 Jo 4,10). Em principio, € estranha & fé crista qualquer tentativa no sentido de demonstrar algo no homem, alguma “esséncia incorruptivel”, ou alguma qualidade agra- davel a Deus, que possa explicar racionalmente porque Deus vem ao encontro do homem pelo amor. Tais tentativas 56 servem para provar que o amor divino esti novamente correndo o risco de ser aprisionado pelo racionalismo e pelo legalismo. “Quando se conceitua a comunhao com Deus em termos de relagéo legal, o amor divino passa a depender, em iiltima anélise, do valor do seu objeto. Mas, em Cristo, revela-se o amor divino que transpde todas as barrei- ras, recusando ser controlado pelo valor do seu objeto ¢ determinado unica- mente pela sua natureza intrinseca. De acordo com o cristianismo, o amor “motivado” é humano; o amor espontineo e “no motivado” é divino”. Para a f6, 0 amor espontineo e divino é o amor que se dé a si mesmo. Os diferentes aspectos desta caracteristica podem ser notados na medida em ‘Que se enfatize a primeira ow a segunda parte dessa expresso. O amor divino Significa que Deus se dé a si mesmo, Os reformadores costumavam dizer que "* Anders Nygren, Agape and Eros, tradugto inglesa. AG. Hebert (Londres, Macmillan, 1932), B.15. " Mid, p. 76, 16 APS Gusta - Gustaf Aulén Deus ndo 6 oferece certas dadivas aos homens mas acima de tudo se daa si ‘mesmo. Expressa-se a mesma idéia ao dizer-se que o amot divino abre cami- nho & comunhdo com Deus. Sé se pode estabelecer comunhio entre Deus e 6 homem se Deus desce ¢ se dé aos homens. Nao hi outro caminho para a ida do homem a Deus, a néo ser 0 do amor de Deus que se dé a si mesmo. A énfase desloca-se para a segunda parte da expresso quando se examina a maneira pela qual se estabelece esse caminho divino para o homem. Vé-se ent que o amor divino “nfo procura os seus interesses” nem se poupa, antes esvazia-se e sacrifica-se. A f€ percebe que 0 caminho do amor divino é o caminho da cruz, Nao & por acaso que os olhos da fé sempre sio atraidos pela cruz. Nao hé nada ue revele mais claramente a natureza, a profundidade e a soberania do amor divino. Quando a concepgio crista de Deus é caracterizada e definida pelo ato de Deus em Cristo, desponta claramente o oferecimento espontineo do amor divino, nao s6 pelo fato de ter esse amor descido até ao mundo humano ¢ aceito as suas condigdes, mas também por haver desta maneira oferecido o supremo sacrificio. A concepgio que a fé tem da majestade divina ndo é a de ‘um Deus que, em sua exaltada eminéncia, recebe sacrificios que Ihe sio ofere- cidos ca de baixo, com 0 propésito de coagi-lo. E antes a figura do amor que, Por livre e espontanea vontade, sacrifica-se humildemente a si mesmo. Esse & ‘© modo pelo qual os olhos da fé véem a majestade do amor. Mediante tal experiéncia a fé aprende a reconhecer o amor divino. “Deus prova o seu pr6- prio amor para conosco, pelo fato de ter Cristo morrido por nés, sendo nés ainda pecadores” (Rm 5,8). “Nisto conhecemos o amor, em que Cristo deu a sua vida por nés” (1 Jo 3,16). ©) Aimperscrutabilidade do amor contetido essencial da revelagdo de Deus & manifesto no fato de o amor divino dar-se a si mesmo. E mediante esse dar-se que a fé “aprende a conhecer” a Deus. Mas essa elevada e indubitével revelagio de amor & 20 ‘mesmo tempo imperscrutivel. A fé s6 pode emitir a seu respeito palavras hesitantes. Mesmo a palavra “amor” provém da experiéncia humana, Isso nfo significa, porém, que a fé conceitue o amor de Deus em termos de amor huma- Jo, nem que mega o seu amor segundo o padro do amor humano. Ao contré- tio, “Amai (..) para que vos tomeis filhos do vosso Pai celeste” (Mt 5,44-45). “Portanto, séde v6s perfeitos como perteito € o vosso Pai celeste” (Mt 5,48). S6 se pode falar em amor humano no sentido cristo quando o amor divino se toma ativo na vida humana e cria esse amor, o qual mesmo assim se toma um ‘mero reflexo palido do amor de Deus. Conceber o amor divino em termos de © Cocuro Custso oe Deus a7 Eee sublimagio do “amor” humano, s6 pode trazer resultado radicalmente dife- rente: seria 0 antipoda do amor divino, a saber, “eros” ao invés de “agape”. (© que acaba de ser dito aplica-se também & palavra Pai quando usada com referéncia a Deus. A “paternidade” de Deus niio pode ser medida segun- do padrio da patemidade humana. Ao falar em Deus como Pai, pretendendo assim expressar algo de fundamental importdncia em relaclo a idéia de Deus, 1 fé tem consciéneia de que esse é “o Pai de quem toma o nome toda a familia, tanto no céu como sobre a terra” (EF 3,15)", Deus é 0 “Pai que esté nos céus”. Essa expresso acentua a imperscrutabilidade do “amor paternal” divino. Par- tilhar desse amor significa encher-se daquela paz que “excede todo o entendi- mento” (Fp 4,7). No misticismo puro, Deus é simplesmente o imperscrutavel. No racionalismo, Deus é mantido nos limites da razio humana. Mas na f€ crista, especificamente, como “amor”, Ele é a0 mesmo tempo o Deus revelado ce escondido (cp. par. 3, ¢; par. 9). O elemento oculto e imperscrutavel no ser de Deus ndo é algo “extra” que permanece depois de se ter compreendido parte da sua esséncia, nem, como no caso do misticismo, € 0 imperscrutavel, 0 niio-diferenciado, o indefinivel. E, ao contrario, o definido e definivel. O mis- tério do amor divino aumenta na medida em que a fé percebe melhor a sua esséncia, A guisa de transico para o tpico seguinte, poder-se-ia acrescentar que a comunhao fntima com 0 homem de fé, criada pelo amor divino, é a0 mesmo tempo uma relacdo de distancia. A distincia entre o divino e o humano nao é anulada por essa comunhio. Ressalta, a0 contrério, muito mais. A posigo da {€ crista, portanto, € muito diferente da relagdo de identidade comum no mis- ticismo, A raziio dessa distincia esté no fato de caracterizar-se o amor divino por uma oposi¢ao continua e implacével a0 mal. 15. A OPOSICAO ENTRE AMOR E MAL 8) A pureza do amor ~ A vontade de Deus opbe-se radicalmente 30 mal. ‘A ira divina” manifesta-se aos olhos da f€ mesclada de amor, Por isso a tensio entre amor divine ia divina contra 0 pecado nko destr6i a unidade do conceito {de Deus. Por conseguinte, a oposigio de Deus ao mal constitu, na realidade, a ‘posigio do amor por meio da qual este mantém sua pureza ro) A tn do amar ~ Do pos de vista neqaivo, a oposigh de Deus 30 mal ‘expressa-se por uma série de figuras de linguagem, ais como severidade, 6dio, ira, justiga condenatéria eretributiva ete. Todas essas figuras sio legtimas ¢vincu- "A tradugio sueca diz: “De quem tudo o que se chama Pai deriva o nome”.

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