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Construir uma
mente consciente
à consciência. Ainda mais carde, foram usadas construções cada vez complexidade e a abrangência das mentes puras. N o entanto, atri-
mais complexas para obter e acumular conhecimento adicional so- buir proeminência ao processo do eu coaduna-se com a perspectiva
bre organismos individuais e o seu ambiente. O conhecimento foi adoptada desde início, segundo a qual a razão para as mentes cons-
depositado em memórias alojadas no interior do cérebro, mantidas cientes terem prevalecido na evolução foi o facto de a consciência
em regiões de convcrgência-divergência, e em memórias registadas ter optimizado a regulação vital. O eu de cada mente consciente é
no exterior, nos instrumentos da cultura. A consciência na mais pura o representante máximo dos mecanismos individuais de regulação
acepção do termo emergiu depois de esse conhecimcnco ser categori- vital, a sentinela e curador do valor biológico. Até certo ponto, a
zado, simbolizado de várias formas (entre as quais a que conhecemos imensa complexidade cognitiva que caracteriza as actuais mentes
como linguagem recorrente) e manipulado pela imaginação e pela conscientes dos seres humanos é motivada e orquestrada pelo eu,
razão. enquanto representante do valor.
Impõem-se duas outras qualificações. Primeira: os diferentes ní- Seja qual for a nossa preferência de estudo quanto à tríade
veis de processamento - mente, mente consciente e mente conscien- composta pelo estado de vigília, pela mente e pelo eu, torna-sc
te capaz de produzir cultura - surgiram em sequência. Contudo, isso óbvio que o mistério da consciência não se encontra na vigília.
Pelo contrário, dispomos de conhecimentos consideráveis quan-
I não deve dar a impressão de que quando as mentes adquiriram um
to à neuroanatomia e à neurofisiologia por detrás do processo
ri eu deixaram de evoluir enquanto mentes, ou de que o eu também
parou de evoluir. Pelo contrário, o processo evolutivo prosseguiu
de vigília. Talvez não seja coincidência que a história da investi-
gação da consciência tenha começado justamente pelo problema
(e prossegue), possivelmente enriquecido e acelerado pelas pressões
da vigília. 2
criadas pelo autoconhecimento. A revolução digital, a globalização
da informação cultural e a chegada da era da empatia são exemplos A mente é o segundo componente da tríade da consciência,
de pressões que podem conduzir a modificações estruturais da men- C a sua base neural também não é um completo mistério. Conhe-
te e do eu, e refiro-me a modificações do próprio processo cerebral cemos alguns dos seus aspectos essenciais ao nível dos sistemas de
que molda a mente e o eu. grande escala, como vimos no capítulo 3, mesmo que ainda per-
Segunda qualificação: a partir deste ponto do livro, abordarei maneçam muitas incógnitas. Chegamos assim ao terceiro e fulcral
componente da tríade, o eu, cujo estudo é muitas vezes adiado,
o problema da construção de uma mente consciente segundo a pers-
com o argumento de que se trata de um cema demasiado compli-
pectiva do ser humano, embora, sempre que possível c adequado,
cado, dado o estado actual do nosso conhecimento. Este capítulo e
faça referência a outras espécies.
0 próximo irão tratar em grande medida do eu, e irão descrever em
linhas gerais mecanismos para o criar e inserir na mente desperta.
Abordar o cérebro consciente O objectivo é identificar as estruturas neurais e os mecanismos que
poderão produzir o eu, desde o tipo de eu simples que orienta de
A neurociência da consciência é muitas vezes abordada a partn forma adaptativa o comportamento, até à complexa variedade de
da mente propriamente dita e não da do eu.' A o optar pela abor fU capaz de apreender que o seu organismo existe, e orientar a vida
ti dagem da consciência através do eu não se pretende minimizar a | m conformidade.
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O LIVRO D A C O N S C I Ê N C I A CONSTRUIR UMA MENTE CONSCIENTE
Antevendo a mente consciente nhados por um sentimento que os liga sem sombra de dúvida ao meu
corpo e mente. Esse sentimento diz-me, sem necessidade de palavras,
Entre os muitos níveis do eu, os mais complexos tendem a en- que sou proprietário dos objectos e que posso, se assim o desejar, agir
cobrir os mais simples, dominando a nossa mente com uma exube- sobre eles. Isto é, literalmente, « o sentimento daquilo que aconte-
rante demonstração de conhecimento. Todavia, podemos tentar ul- c e » , a sensação relacionada com o objecto sobre a qual já escrevi. N o
trapassar esse encobrimento natural e dar um bom uso a toda essa entanto, quanto à questão dos sentimentos na mente, tenho a acres-
complexidade. Como? Solicitando aos níveis complexos do eu que centar o seguinte: o sentimento daquilo que acontece não esgota este
observem o que se passa nos mais simples. Trata-se de um exercício tema. Existe um sentimento mais profundo que temos de imaginar
difícil e que acarreta alguns riscos. A introspecção, como já vimos, e depois vir a encontrar nas profundezas da mente consciente. Trata-
pode fornecer informações enganadoras. N o entanto, esse é um ris- -se do sentimento de que o meu corpo existe e está presente, inde-
co que vale a pena correr, uma vez que a introspecção nos garante a pendentemente de qualquer objecto com o qual interaja, a afirmação
única visão directa daquilo que pretendemos explicar. Além disso, sólida e silenciosa de que estou vivo. Este sentimento fundamental,
se a informação recolhida levar a hipóteses inválidas, futuros testes que eu não considerara necessário referir em abordagens anteriores
empíricos revelarão essa invalidade. E curioso notar que realizar a deste problema, apresento-o agora como um elemento essencial no
introspecção se torna numa tradução, no interior da mente, de um processo do eu. Chamo-lhe sentimento primordial c sublinho que de-
processo em que os cérebros complexos estão envolvidos desde há tém uma qualidade definida, uma valência, algures entre os limites
muito na evolução: falar consigo próprios, tanto literalmente como definidos pela dor e pelo prazer. E o antepassado de todos os senti-
através da linguagem da actividade neural. mentos de emoção e, logo, a base de todos os sentimentos provocados
Olhemos, então, para o interior da nossa mente consciente e pelas interacções entre os objectos e o organismo. Tal como veremos,
tentemos observar o aspecto da mente, no fundo das suas texturas os sentimentos primordiais são produzidos pelo proto-eu/
e sucessivas camadas, livre do fardo da identidade, do passado vivido E m resumo, ao mergulhar nas profundezas da mente consciente
e do futuro antecipado, a mente consciente do momento e no mo- descubro que se rrata de um aglomerado de imagens diferentes. Uma
mento. E claro que não posso falar por todos, mas eis o que a minha parte dessas imagens descreve os objectos na consciência. Outras ima-
análise me diz. Para começar, lá bem no fundo, a mente consciente gens descrevem-me a mim, e nesse mim inciuem-se; 1) a perspectiva
simples tem semelhanças com a que W i l l i a m James descreveu como a partir da qual os objectos estão a ser mapeados (o facto de a minha
uma corrente mental com objectos dentro dela. Contudo esses ob- mente ter um ponto de vista quanto à visão, ao tacto, à audição, etc,
jectos não tem todos a mesma saliência. Alguns aparecem ampliados, C de esse ponto de vista ser o do meu corpo); 2) o sentimento de
outros não. Os objectos também não apresentam a mesma disposi- que os objectos estão a ser representados numa mente que pertence a
ção em relação a mim próprio. Alguns assumem uma determinada mim e a mais ninguém (posse); 3) o sentimento de capacidade de agir
perspectiva em relação ao cu material, o qual, na maioria das vezes, relativa aos objectos e de as acções levadas a cabo pelo meu corpo
consigo até localizar no meu corpo e, com maior precisão, no espaço serem comandadas pela minha mente; e 4) sentimentos primordiais,
que se encontra por trás dos meus olhos e entre as orelhas. De forma que dão significado à existência do meu corpo vivo, independente-
igualmente notável, certos objectos, embora nem todos, são acompa- mente da forma como os objectos se relacionam ou não com ele.
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O conjunto dos elementos 1 a 4 constitui um eu na sua versão secreção hormonal ligados, em parte, aos ciclos da noite e do dia.
mais simples. Quando as imagens do eu composto se unem às ima- Os núcleos hipotalâmicos controlam o funcionamento das glându-
gens de objectos que não pertencem ao eu, o resultado é uma mente las endócrinas disseminadas pelo organismo - pituitárias, tíróíde,
consciente. supra-renais, pâncreas, testículos, ovários. 4
Todo este conhecimento está disponível prontamente. Não che- N o processo de vigília, o componente do tronco cerebral está
gamos a ele por uma inferência ou por uma interpretação efectuada relacionado com o valor natural de cada situação em curso. O tron-
através do raciocínio. Também não é verbal. É feito de pistas e palpi- co cerebral responde, de forma espontânea e não-espontânea, a
tes; de sentimentos que ocorrem em relação ao corpo vivo e em relação perguntas que nunca ninguém colocou, como por exemplo: até
a um objecto. que ponto deverá a situação interessar ao observador? O valor de-
O cu simples no fundo da mente assemelha-se muito à música, termina os sinais de informação e o grau de reacção emocional a
mas ainda não à poesia. uma situação, e determina até que ponto devemos estar despertos
c alerta. O enfado afecta o estado de vigília, mas os níveis metabó-
licos também. Sabemos o que acontece durante a digestão de uma
Os componentes de uma mente consciente refeição farta, especialmente na presença de certos ingredientes
químicos, como o triptofano, libertado pelas carnes vermelhas.
Os ingredientes básicos na construção das mentes conscientes O álcool aumenta de início o estado de vigília mas acaba por in-
são o estado de vigília e as imagens. Quanto ao estado de vigília, sabe-
duzir sonolência, à medida que se vai elevando o nível de álcool
mos que depende do funcionamento de certos núcleos no tegmento no sangue. Os anestésicos suspendem completamente o estado
do tronco cerebral e no hipotálamo. Servindo-se de processos neu- de vigília.
rais e químicos, estes núcleos exercem a sua influência sobre o cór- Uma derradeira chamada de atenção quanto ao estado de vi-
tex cerebral. E m consequência, a vigília reduz-se (produzindo sono) gília: a nível da neuroanatomia e da neurofisiologia, o sector do
ou amplia-se (conservando-nos alerta). O trabalho dos núcleos do tronco cerebral envolvido no estado de vigília é diferente daquele
tronco cerebral é apoiado pelo tálamo, embora alguns núcleos in- que cria a base do eu, o proto-eu (que será analisado na secção se-
fluenciem directamente o córtex cerebral; quanto aos núcleos hipo- guinte). Os núcleos do estado de vigília do tronco cerebral estão ana-
talâmicos, estes trabalham em grande medida através da libertação tomicamente próximos dos núcleos do proto-eu do tronco cerebral
de moléculas químicas que vêm a agir sobre os circuitos neurais, por uma boa razão: ambos os conjuntos de núcleos participam na
alterando-lhes o comportamento. regulação vital, embora eles contribuam de formas diferentes para
O delicado equilíbrio do estado de vigília depende da acção essa regulação. 5
combinada do hipotálamo, do tronco cerebral e do córtex cerebral.
A função do hipotálamo está estreitamente relacionada com a quan-
tidade de luz disponível, sendo a parte do processo de vigília cuja
perturbação provoca « j e t l a g » quando atravessamos vários fusos Quanto à questão das imagens, pode parecer que já sabemos
horários. Esta operação, por sua vez, está associada aos padrões de tudo o que precisamos de saber, uma vez que discutimos a sua base
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neural nos capítulos 3 a 6. Contudo, há algo mais a dizer. As ima- imagens. Todo o tecido de uma mente consciente é criado a partir
gens são sem dúvida a fonte dos objectos-a-ser-conbecidos da mente dos mesmos fios: imagens criadas pela capacidade de mapeamento
consciente, quer esses objectos se encontrem no mundo exterior do cérebro.
ao corpo ou no interior do corpo, sendo exemplos destes últimos Embora todos os aspectos da consciência sejam construídos
o meu cotovelo dorido ou o dedo que o leitor queimou inadver- a partir de imagens, nem todas as imagens nascem iguais quanto
tidamente. As imagens chegam-nos em todas as variedades sen- à origem neural ou às características fisiológicas (ver Fig. 3.1). A s
soriais, não apenas visuais, e dizem respeito a qualquer objecto ou imagens usadas para descrever a maioria dos objectos-a-serem-
acção que estejam a ser processados no cérebro, quer verdadeiramente -conhecidos são convencionais, no sentido de resultarem das ope-
presentes, quer a serem recordados, tanto concretos como abstrac- rações de mapeamento que analisámos em relação aos sentidos
tos. Isso abrange todos os padrões com origem exterior ao cérebro, externos. Todavia, as imagens que representam o organismo cons-
quer estejam no interior do corpo ou no mundo exterior ao corpo. tituem uma classe específica. Essas imagens têm origem no inte-
Abrange igualmente padrões gerados no interior do cérebro, como rior do corpo e representam aspectos do corpo em acção. Possuem
consequência da conjunção de outros padrões. C o m efeito, o cére- um estatuto especial e o que levam a cabo é igualmente especial:
bro é um viciado na criação de mapas o que o leva a mapear o seu são sentidas, de forma espontânea e natural, logo à partida, antes
próprio funcionamento - e, de certa forma, falar consigo próprio. de qualquer outra operação relativa à construção da consciên-
A criação de mapas do seu próprio funcionamento será provavel- cia. São imagens sentidas do corpo, sentimentos corporais pri-
mente a principal fonte de imagens abstractas que descrevem, por mordiais, a origem de todos os outros sentimentos, incluindo os
exemplo, a colocação e movimento espacial de objectos, as relações sentimentos das emoções. Alais à frente veremos que as imagens
entre objectos, a velocidade e o rumo espacial dos objectos em mo- que descrevem a relação entre o organismo e o objecto recorrem a
vimento, e os padrões de ocorrência dos objectos no tempo e no ambos os tipos de imagens - as imagens sensoriais convencionais
espaço. Estes tipos de imagens podem ser convertidos em equações e as variações dos sentimentos corporais.
matemáticas, bem como em composições e execuções musicais. Es- Finalmente, todas as imagens ocorrem num espaço de traba-
tou convencido que os matemáticos e os compositores sobressaem lho formado por córtices sensoriais individualizados e, no caso dos
neste tipo de criação de imagens. sentimentos, por determinadas regiões do tronco cerebral. Este
A hipótese de trabalho apresentada anteriormente propõe espaço imagético é controlado por uma série de áreas corticais
que as mentes conscientes surgem a partir do estabelecimento de c subcorticais, cujos circuitos albergam conhecimento disposicio-
uma relação entre o organismo e um objecto-a-ser-conhecido. Mas nal registado em estado latente na arquitectura de convergêncía-
como são o organismo, o objecto e a relação, implementados no -divergência que analisámos no capítulo 6. A s regiões podem
cérebro? Todos estes três componentes são formados por imagens. funcionar de forma consciente ou não-consciente, mas em ambos
O objecto a ser conhecido é mapeado como imagem. O mesmo se os casos fazem-no exactamente nas mesmas bases neurais. A dife-
passa com o organismo, embora as suas imagens sejam especiais. rença entre os modos de funcionamento consciente e inconsciente
Quanto ao conhecimento que constitui um estado de identidade nos espaços de trabalho participantes depende dos graus de vigília
e que permite a emergência do eu, também ele é composto por c do nível de processamento do eu.
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l Portadas sensoriais
Não é possível exagerar a importância do sistema interoceptivo
Campos oculares frontais {BA 8)
para a compreensão da mente consciente. Os processos deste sistema
Córtices somatossensoriais J
|&o cm grande medida independentes da dimensão das estruturas em
que surgem e constituem um tipo especial de informação que se en-
ntra presente logo desde o inicio do desenvolvimento e acompanha
Figura 8.2: Principais componentes do proto-eu
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mas porque o seu funcionamento exige que a sua condição varie regular o processo vital e criar sentimentos primordiais, são tam-
apenas dentro de parâmetros muito estreitos. Os ossos crescem du- bém retransmitidos para o sector mais claramente identificado com
rante todo o processo de desenvolvimento, o mesmo acontecendo a interocepção, o córtex insular, após uma paragem conveniente
com os músculos que os movem; no entanto, a essência do banho em núcleos retransmissores talâmicos. Não obstante o significado
químico onde a vida ocorre - os limites médios dos seus parâme- do componente cortical deste sistema, considero o componente do
tros- é aproximadamente a mesma quer tenhamos três anos de ida- tronco cerebral como essencial para o processo do eu. Ele pode ga-
de, cinquenta ou oitenta. Além disso, quer se tenha sessenta centí- rantir um proto-eu operacional, tal como especificado na hipótese,
metros ou um metro e oitenta, a essência biológica de um estado de mesmo quando o componente cortical se encontra profundamente
receio ou de felicidade será, muito provavelmente, a mesma no que comprometido.
respeita à forma como esses estados são construídos a partir das
químicas do meio interno e do estado de contracção ou dilatação
dos músculos lisos das vísceras. Convém frisar que as causas de um Mapas gerais do organismo
estado de receio ou de felicidade - os pensamentos que provocam
esses estados - podem ser muito diferentes ao longo de uma vida, Os mapas gerais do organismo descrevem um esquema de todo
mas o perfil da reacção emocional a essas causas não o é. o corpo com os seus componentes principais: cabeça, tronco e mem-
bros em repouso. Os movimentos do corpo são mapeados nesse
mapa geral. A o contrário dos rnapas interoceptivos, os mapas gerais
do organismo mudam profundamente durante o desenvolvimento,
Onde funciona o sistema ínteroceptivo principal? As respostas pois retratam o sistema músculo-esquelético e o seu movimento.
têm vindo a ser elaboradas ao longo da última década graças a tra- Necessariamente, estes mapas acompanham os aumentos da dimen-
balhos que vão desde registos fisiológicos a nível celular e estudos são do corpo e da escala e qualidade do movimento. Não seria con-
neuroanatómieos experimentais em animais, até neuroimagiologia cebível que fossem os mesmos num bebé, num adolescente e num
funcional em seres humanos. O resultado desta pesquisa (analisado adulto, embora acabem por atingir uma espécie de estabilidade
no capítulo 4) constitui um conhecimento invulgarmente porme- temporária. Em consequência, os mapas gerais do organismo não
norizado das vias que levam esses sinais ao sistema nervoso central. 7 ião a fonte ideal da singularidade necessária para a constituição
Os sinais neurais e químicos que descrevem os estados corporais en- do proto-eu.
tram no sistema nervoso central em muitos níveis da espinal medu- O sistema Ínteroceptivo geral deverá acomodar-se na estrutura
la, do núcleo trigémeo no tronco cerebral e dos grupos especiais de geral criada pelo esquema do organismo, em todas as fases do cresci-
neurónios que rondam a margem dos ventrículos cerebrais. A par- mento deste. U m esboço deste arranjo representaria o sistema inte-
tir de todos os pontos de entrada, os sinais são retransmitidos para foceptivo geral dentro do perímetro da estrutura geral do organismo.
os núcleos integradores principais do tronco cerebral, sobretudo Mas os dois são distintos. O encaixe de um sistema no outro não
o núcleo do tracto solitário, o núcleo patabraquial e o hipotálamo. Implica uma transferência dos mapas, mas sim uma tal coordenação
A partir daí, depois de serem processados localmente e usados para <JUC ambos os conjuntos de mapas possam ser evocados ao mesmo
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O LIVRO DA CONSCIÊNCIA CONSTRUIR UMA MENTE CONSCIENTE
tempo. Por exemplo, o mapeamento de uma região específica do in- do tímpano. Tacteamos com os dedos, cheiramos com o nariz, e
terior do corpo seria transmitido ao sector da estrutura geral do assim por diante. À primeira vista isto pode parecer banal, mas não
organismo onde a região melhor se encaixasse no esquema anatómi- o é de todo. Conhecemos toda esta «localização dos órgãos senso-
co geral. Quando sentimos náusea, em geral sentimo-la em relação riais» desde tenra idade, provavelmente antes de a descobrirmos
a uma região do corpo - o estômago, por exemplo. Apesar da sua por inferência, ligando uma determinada percepção a um movi-
imprecisão, este mapa Ínteroceptivo é concebido para se posicionar mento específico, talvez mesmo antes de inúmeras canções e rimas
no mapa geral do organismo. nos dizerem, na escola, onde os sentidos vão buscar a sua informa-
ção. Mesmo assim, trata-se de um estranho tipo de conhecimen-
to. Pensemos que as imagens visuais nos chegam dos neurónios na
Mapas das portadas sensoriais retina, dos quais não se espera que nos digam seja o que for quanto
orientadas para o exterior à zona do corpo onde as retinas se situam - no interior dos globos
oculares, que se encontram nas órbitas, numa parte específica do
Referi-me às portadas sensoriais no capítulo 4, como a arma- rosto. C o m o ficámos a saber que as retinas estão onde estão? É cla-
dura em que as sondas sensoriais - os diamantes - estão engasta- ro que uma criança se apercebe de que a visão desaparece quando os
das. A q u i coloco-as ao serviço do eu. A representação das várias olhos se fecham e de que tapar os ouvidos reduz a audição. A ques-
portadas sensoriais - regiões do corpo como aquelas que albergam tão, porém, não é essa. O que interessa é que « s e n t i m o s » o som
os olhos, ouvidos, língua e nariz - é um caso separado e especial dos a entrar nos ouvidos, e « s e n t i m o s » que estamos a olhar à nossa
mapas gerais do organismo. Imagino que os mapas das portadas volta e a ver com os olhos. Uma criança à frente de um espelho iria
sensoriais se inserem na moldura dos mapas gerais do organismo confirmar o conhecimento que já teria adquirido graças a uma série
muito à semelhança dos mapas interoceptivos, através da coorde- de informações com origem nas estruturas corporais « e m r e d o r »
nação temporal e não através da transferência de mapas. O ponto da retina. O conjunto dessas estruturas constitui aquilo a que cha-
onde se encontram ao certo alguns destes mapas está actualmente mo uma portada sensorial. N o caso da visão, a portada sensorial
a ser investigado. inclui a musculatura ocular com que movemos os olhos, mas tam-
Os mapas das portadas sensoriais desempenham um papel du- bém todo o aparelho com que focamos um objecto, ajustando a
plo, em primeiro lugar na construção da perspectiva (um aspecto dimensão do cristalino mais o aparelho de regulação da intensi-
relevante da consciência) e a seguir na construção de aspectos qua- dade da luz, que reduz ou aumenta o diâmetro das pupilas (os ob-
litativos da mente. U m dos aspectos curiosos quanto à nossa per- turadores fotográficos dos nossos olhos), e, por fim, os músculos
cepção de um objecto é a relação apurada que estabelecemos entre em redor dos olhos, com os quais franzimos o sobrolho, pestaneja-
o conteúdo mental que descreve o objecto e o que corresponde à mos ou deixamos transparecer alegria. Os movimentos dos olhos
parte do corpo implicada na respectiva percepção. Sabemos que e o pestanejar desempenham um papel essencial na montagem das
vemos com os olhos, mas também nos sentimos a ver com os olhos. nossas imagens visuais e ao mesmo tempo, por incrível que pareça,
Sabemos que ouvimos com os ouvidos, não com os olhos, nem com também desempenham um papel relevante na montagem eficaz
o nariz. Sentimos de facto o som no ouvido externo e na membrana c realista das imagens do filme que é a mente.
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Ver é mais do que obter um padrão óptico adequado na retina. apenas é interrompido em condições anormais (experiências extra-
Ver engloba todas essas outras co-reacções, algumas das quais indis- corporais) que podem advir de doença cerebral, trauma psicológico
pensáveis à criação de um padrão nítido na retina, outras acompa- ou manipulações experimentais através do uso de dispositivos de rea-
nhamentos habituais do processo de ver, c outras ainda que são já lidade virtual. 8
reacções rápidas ao processamento do próprio padrão. Imagino a perspectiva do organismo como estando baseada
O caso da audição é comparável. A vibração da membrana do numa série de fontes. Visão, som, equilíbrio espacial, paladar e ol-
tímpano e de um grupo de ossos minúsculos no ouvido médio pode facto, tudo isso depende de portadas sensoriais não muito distantes
ser transmitida ao cérebro a par do próprio som, que ocorre no ou- umas das outras, todas situadas na cabeça. Podemos conceber a ca-
vido interno, ao nível das cócleas, onde se mapeiam as frequências, beça como um dispositivo de vigilância multidimensional, pronto
a duração e o timbre dos sons. a apreender o mundo. O tacto, na sua abrangência total, dispõe de
O funcionamento complexo das portadas sensoriais pode con- uma portada sensorial mais vasta, mas a perspectiva relacionada com
tribuir para os erros que tanto as crianças como os adultos cometem o tacto continua a apontar inequivocamente para o organismo sin-
quanto à fonte de determinada percepção - por exemplo, recordar gular como sendo o examinador, e identifica um local na superfície
que um certo objecto foi primeiramente visto e depois ouvido em desse examinador. A mesma abrangência é responsável pela percep-
dado acontecimento, quando foi o oposto que aconteceu. Esse fenó- ção do nosso movimento, a qual está de facto relacionada com todo
meno é conhecido como erro de reconhecimento da fonte. o corpo mas tem sempre origem no organismo singular.
As portadas sensoriais, tão ignoradas, desempenham um papel N o que respeita ao córtex cerebral, a maior parte dos dados
essencial na definição da perspectiva em relação ao resto do mundo. provenientes das portadas sensoriais chega ao sistema somatossen-
Refiro-me a um efeito que todos sentimos na mente: ter um ponto de sorial - sendo o SI e o SII favorecidos em relação à ínsula. N o caso
vista quanto ao que está a acontecer no exterior da mente. Não se tra- da visão, os dados das portadas sensoriais também são encaminha-
ta de um mero « p o n t o de visão», embora para a maioria dos seres dos para os chamados « c a m p o s oculares frontais», situados na
humanos com visão ela de facto domine o funcionamento da mente. área 8 de Brodmann, na zona superior e lateral do córtex frontal.
N o entanto, dispomos também de um ponto de vista em relação aos Mais uma vez, estas regiões cerebrais geograficamente separadas
sons, um ponto de vista em relação aos objectos em que tocamos, e têm de ser unidas em termos funcionais por algum tipo de meca-
até mesmo um ponto de vista para os objectos que sentimos no nosso nismo de integração.
próprio corpo - mais uma vez, o cotovelo e a sua dor, ou os nossos pés U m comentário final quanto à situação excepcional dos córti-
ao caminharmos na areia. ces somatossensoriais. Estes córtices transportam sinais do mundo
N ã o nos imaginamos a ver com o umbigo ou a ouvir com as axi- exterior (sendo os mapas do tacto o exemplo principal), e do corpo
las (por mais curiosa que tal possibilidade pudesse ser). As portadas (tal como no caso da interocepção e das portadas sensoriais). O com-
sensoriais junto às quais são reunidos os dados para a criação de ima- ponente da portada sensorial pertence legitimamente à estrutura
gens fornecem à mente o ponto de vista do organismo em relação a do organismo e, logo, ao proto-eu.
um objecto. O ponto de vista é obtido a partir das várias regiões do Há pois um contraste notável entre dois conjuntos distintos
corpo em redor das quais surgem as percepções. Esse ponto de vista dc padrões. Por um lado, temos uma variedade infinita de padrões
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que descrevem objectos convencionais (alguns são exteriores ao corpo em si permanecer inseparavelmente ligado ao cérebro em
corpo, como imagens visuais e sons, paladares c odores; outros todas as ocasiões. Esta ligação está na base da criação dos sentimen-
são partes do corpo, tais como articulações, ou regiões da pele). tos primordiais e na base da relação única entre o corpo, enquanto
Por outro lado, temos a uniformidade dos padrões relacionados objecto, e o cérebro que representa esse objecto. Quando fazemos
com o interior do corpo e com a sua regulação estreitamente con- mapas de objectos e de acontecimentos do mundo exterior, esses
trolada. H á uma diferença inescapável e fundamental entre o as- objectos e acontecimentos permanecem no mundo exterior. Quan-
pecto rigidamente controlado da vida, presente no interior do do mapeamos os objectos e os acontecimentos do nosso corpo, eles
nosso organismo, e todas as coisas e acontecimentos imagináveis encontram-se no interior do organismo e não vão a mais lado ne-
que se registam no mundo ou no resto do corpo. Esta diferença é nhum. Agem sobre o cérebro, mas o cérebro pode agir sobre eles
indispensável para a compreensão da base biológica dos processos a qualquer momento, criando um arco ressonante que origina algo
do eu. de comparável a uma fusão corpo-mente. Constituem uma base
animada que gera um contexto permanente para todos os outros
conteúdos da mente. O proto-eu não é um mero aglomerado de
mapas do corpo, comparável ao belo conjunto de imagens de ex-
Este mesmo contraste entre variedade e uniformidade verifi- pressionismo abstracto que tenho no meu cérebro. O proto-eu é
ca-se também ao nível das portadas sensoriais. As alterações sofri- um conjunto de mapas que permanecem ligados interactivamente
das pelas portadas sensoriais desde o seu estado básico até ao estado à sua fonte, uma raiz profunda que não pode ser ignorada. Infeliz-
associado ao ver e ao olhar não têm de ser de grande monta, embo- mente, as imagens dos quadros preferidos que tenho no cérebro
ra o possam ser. As alterações apenas têm de significar que ocorreu não estão ligadas fisicamente às suas fontes. Bem gostava que assim
um envolvimento entre o organismo c um objecto. Não precisam fosse, mas elas ficam-se pelo meu cérebro.
de transmitir nada acerca do objecto envolvido.
Em resumo, a combinação do meio interno, da estrutura visce-
ral e do estado básico das portadas sensoriais garante uma ilha de
estabilidade no meio de um mar de movimento. Mantém uma coe- Por fim, tenho de salientar que o proto-eu não deve ser con-
rência relativa do estado funcional no âmbito de uma paisagem de fundido com um homúnculo, tal como o eu que resulta da sua mo-
processos dinâmicos cujas variações são muito acentuadas. Imagine dificação também não é « h o m u n c u l a r » . O conceito tradicional
o leitor uma multidão a marchar ao longo de uma rua; há um peque- dc homúnculo corresponde ao homenzinho sentado no interior do
no grupo no meio da multidão que se movimenta numa formação cérebro, omnisciente e sábio, capaz de responder a perguntas sobre
firme e coesa, ao passo que os restantes elementos avançam de forma o que se está a passar na mente e de apresentar interpretações para
desordenada, como num movimento browniano, alguns a ficarem os acontecimentos. O bem conhecido problema com o homún-
atrasados e outros a ultrapassarem o grupo central. culo prende-se com o círculo vicioso que cria. O homenzinho cujo
Teremos de acrescentar mais um elemento à estrutura provi- conhecimento nos tornaria conscientes precisaria de outro ho-
denciada pela invariância relativa do meio interno: o facto de o menzinho no seu interior, capaz de lhe assegurar o conhecimento
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necessário, e assim por diante, até ao infinito. Isto não funciona. Será que assim que dispomos de uma ilha unificada de estabi-
O conhecimento que torna a nossa mente consciente tem de set lidade relativa que corresponde a uma parte do organismo, o eu irá
edificado de forma ascendente. Nada poderia estar mais afastado surgir dela, de uma penada? Se assim fosse, a anatomia e a fisiolo-
do conceito de proto-eu aqui apresentado do que a ideia de um gia das regiões cerebrais subjacentes ao proto-eu contariam grande
homúnculo. O proto-eu é uma plataforma razoavelmente estável e parte da história da criação do eu. O cu iria derivar da capacidade
uma fonte de continuidade. Servimo-nos da plataforma para regis- de acumular e agregar conhecimento acerca dos aspectos mais está-
tar as alterações causadas pela interacção do organismo com aquilo veis do organismo, e o caso ficaria encerrado. O eu resumir-se-ia à
que o rodeia (como quando vemos um objecto e lhe pegamos) ou representação da vida e sentida sem adornos no interior do cérebro,
para registar a modificação da estrutura ou do estado do organismo uma experiência pura, sem qualquer ligação ao que quer que fosse,
(como quando sofremos uma lesão, ou quando o nível de açúcar exceptuando o seu próprio corpo. O eu consistiria no sentimento
no sangue baixa excessivamente). As alterações são registadas em primordial que o proto-eu, no seu estado original, nos entrega de
comparação com o estado actual do proto-eu e a perturbação desen-
forma espontânea e incansável, em cada momento que passa.
cadeia acontecimentos fisiológicos subsequentes, mas o proto-eu Quando se trata, no entanto, da vida mental complexa que tanto
não contém outra informação além da contida nos seus mapas. o leitor como eu sentimos neste preciso momento, o proto-eu e o
O proto-eu não é um sábio em Delfos, a responder a perguntas sentimento primordial não bastam para justificar o fenómeno do eu
sobre quem somos. que estamos a criar. O proto-cu e os seus sentimentos primordiais
são a base provável do eu material e são, com toda a probabilidade,
uma manifestação cimeira e importante da consciência em nume-
Construir o eu nuclear rosas espécies vivas. Todavia, precisamos de um qualquer processo
do eu intermédio instalado entre o proto-eu e os seus sentimentos
A o pensar numa estratégia para criar o eu, será adequado co- primordiais, por um lado, e o eu autobiográfico que nos confere a
meçar pelos requisitos para o eu nuclear. O cérebro tem de intro- sensação de pessoalidade e identidade, por outro. Algo de decisivo
duzir na mente algo que ainda não estava presente, nomeadamente terá de se alterar no estado do proto-eu para que este se torne um eu
um protagonista. Assim que um protagonista fica disponível no na verdadeira acepção do termo, ou seja, um eu nuclear. Por um lado,
meio do restante conteúdo mental, e assim que o protagonista fica o perfil mental do proto-eu terá de ser elevado de modo a destacar-se.
coerentemente ligado a algum conteúdo mental, a subjectividade Por outro, terá de se ligar aos acontecimentos em que está envolvi-
emerge no processo. Concentremo-nos primeiro no limiar do pro- do. Terá de ser o protagonista da narrativa que decorre no momento.
Para mim, a alteração decisiva do proto-eu tem a ver com a ligação
tagonista, o ponto em que os elementos indispensáveis ao conhe-
contínua provocada pelo objecto que está a ser apreendido. A liga-
cimento se aglutinam, por assim dizer, para dar origem à subjecti-
ção ocorre em estreita proximidade temporal com o processamento
vidade.
sensorial do objecto. Sempre que o organismo encontra um objecto,
leja ele qual for, o proto-eu é alterado por esse encontro. Isso acon-
tece porque para mupeur o objecto o cérebro tem de adaptar o corpo
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de forma adequada, e porque os resultados dessa adaptação, bem cionada com o objecto (ou seja, um sentimento); e uma imagem do
como o conteúdo da imagem mapeada, interagem com o proto-eu. objecto causativo momentaneamente realçado. O eu chega à mente
As alterações no proto-eu dão início à criação instantânea do sob a forma de imagens que contam sem cessar, formalmente, esta
eu nuclear, bem como a uma nova cadeia de fenómenos. O primeiro mesma história. As imagens do proto-eu modificado e da sensação
fenómeno da cadeia é uma transformação no sentimento primordial de conhecimento nem precisam de ser especialmente inrensas. Pre-
que tem como resultado « u m sentimento de conhecimento do ob- cisam apenas de estar na mente, mesmo que discretas, pouco mais
j e c t o » , um sentimento que diferencia o objecto de outros objectos do que meras sugestões, para garantir uma ligação entre o objecto
do momento. O segundo fenómeno da cadeia é uma consequência c o organismo. Afinal de contas, o mais importante para que o pro-
da sensação de conhecimento. E a criação de « r e a l c e » para o ob- cesso seja biologicamente eficaz é o objecto.
jecto com que se estabeleceu ligação, um processo em geral descrito Vejo esta narrativa sem palavras como um relato do que está a
pelo termo atenção, o encaminhamento de recursos cognitivos para transparecer, tanto na vida como no cérebro, mas não ainda como
um objecto específico, em detrimento de outros. Assim sendo, o eu uma interpretação. E, sim, uma descrição espontânea dos aconteci-
nuclear é criado através da ligação do proto-eu modificado ao objec- mentos, o cérebro deleitando-se a responder a perguntas que nin-
to que provocou a modificação, um objecto que foi agora destacado guém lhe pôs, Michael Gazzaniga aventou o conceito de «intérpre-
pelo sentimento e realçado pela atenção. t e » como forma de explicar a origem da consciência. Além disso,
N o final do ciclo acima descrito, a mente inclui imagens rela- relacionou-o, de forma bastante lúcida, com mecanismos do hemis-
tivas a uma sequência simples e muito comum de acontecimentos: fério esquerdo c com os processos de linguagem. Gosto muito da
um objecto interage com o corpo ao ser visto, tocado ou ouvido, sua ideia (de facto, há nela um distinto toque de verdade), mas creio
a partir de uma perspectiva específica; essa interacção faz com que que apenas se aplica na íntegra ao nível do eu autobiográfico, e não
exactamente ao nível do eu nuclear.9
o corpo se altere; a presença do objecto é sentida; o objecto é real-
çado. Nos cérebros dotados de memória, linguagem e raciocínio abun-
A narrativa não-verbal desses fenómenos que ocorrem conti- dantes, as narrativas com esta origem e contornos simples vêm a
nuamente representa de forma espontânea, na mente, o facto de que ser enriquecidas e permite-se-lhes que exibam ainda mais conhe-
existe um protagonista a quem estão a acontecer determinadas coisas, cimento, produzindo assim um protagonista bem definido, um eu
sendo esse protagonista o eu material. A representação na narrativa autobiográfico. Podem ser acrescentadas inferências e produzidas
não-verbal simultaneamente gera e revela o protagonista, liga a esse interpretações sobre aquilo que se está a passar. Mesmo assim (como
protagonista as acções que estão a ser produzidas pelo organismo veremos no capítulo seguinte), o eu autobiográfico apenas pode ser
e, a par do sentimento criado pela ligação ao objecto, desenvolve construído se primeiro houver um eu nuclear. O mecanismo do eu
também uma sensação de posse e de capacidade de acção. nuclear tal como acabou de ser descrito, firmado no proto-eu e nos
O que está a ser acrescentado ao processo mental simples, e, seus sentimentos primordiais, é o mecanismo central para a produ-
desse modo, a produzir uma mente conscience, é uma série de ima- ção de mentes conscientes. Os dispositivos complexos necessários
gens, nomeadamente uma imagem do organismo (fornecida pelo para ampliar o processo até ao nível do eu autobiográfico dependem
proto-eu modificado); a imagem de uma reacção emocional rela- do funcionamento normal do mecanismo do eu nuclear.
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Será que o mecanismo para ligar o eu e o objecto funciona ape- baseia-se no tronco cerebral superior e na ínsula; o componente das
nas para objectos realmente apreendidos e não para objectos recor- portadas sensoriais baseia-se nos córtices somatossensoriais conven-
dados? N ã o é esse o caso. Dado que ao tomarmos conhecimento de cionais e nos campos oculares frontais.
um objecto criamos registos não só da sua aparência mas também da O estatuto de alguns destes componentes tem de se alterar
nossa interacção com ele (os nossos movimentos dos olhos e da ca- para que o eu nuclear surja. Vimos que quando um objecto apre-
beça ou os movimentos da mão, etc), recordar um objecto abrange endido precipita uma reacção emocional e altera os mapas intero-
a recordação de um conjunto variado de interacções motoras. Tal ceptivos se segue uma modificação do proto-eu, alterando-sc as-
como sucede no caso das interacções motoras reais com um objecto, sim os sentimentos primordiais. De igual forma, os componentes
as interacções motoras, recordadas ou imaginárias, podem modificar da portada sensorial do proto-eu altcram-se quando um objecto
instantaneamente o proto-eu. Se esta ideia estiver correcta, isto ex- atrai um sistema de pex*cepção. E m consequência, as regiões en-
plicaria por que motivo não perdemos a consciência quando sonha- volvidas na criação de imagens do corpo são inevitavelmente al-
mos acordados, de olhos fechados, numa sala silenciosa - uma ideia teradas nas zonas do proto-eu: tronco cerebral, córtex insular e
muito reconfortante, julgo eu. córtices somatossensoriais. Estes fenómenos variados dão origem
Para concluir, a produção de pulsos do eu nuclear relativos a a microssequências de imagens que são introduzidas no proces-
um grande número de objectos que interagem com o organismo so mental; com ísso quero dizer que são introduzidas no espaço
garante a produção de sentimentos relacionadas com o objecto. de trabalho imagético dos córtices sensoriais iniciais e de regiões
Por sua vez, esses sentimentos dão origem a um sólido processo do específicas do tronco cerebral, aquelas onde os estados de senti-
eu, que contribui para a manutenção do estado de vigília. Os pulsos mento são criados e modificados. As microssequências de ima-
do eu nuclear também conferem graus de valor às imagens do ob- gens sucedem-se como pulsações, de forma irregular mas segura,
jecto causativo, conccdcndo-lhe assim maior ou menor destaque. enquanto os fenómenos continuarem a decorrer e o nível mínimo
Esta diferenciação das imagens que vão fluindo organiza a paisa- de vigília se mantiver.
gem mental, moldando-a em relação às necessidades e objectivos
do organismo.
Não podemos esperar que os colículos sejam os coordenadores prin- cerebrais: nos campos oculares frontais (área 8, ligada aos movimen-
cipais das imagens corticais quando se trata de cenas complexas. tos dos olhos mas não às imagens visuais em si mesmas); nos córrices
O segundo candidato ao papel de coordenador é o tálamo, espe- somatossensoriais laterais (que representam a actividade muscular da
cificamente os núcleos associativos do tálamo, cuja situação c ideal cabeça, pescoço e rosto); nas estruturas relacionadas com a emoção,
para estabelecer ligações funcionais entre pontos separados de acti- no tronco cerebral, no prosencéfalo basal, nos gânglios da base e nos
vidade cortical. córtices insulares (cuja actividade completa os meus sentimentos
de prazer em relação à cena); nos colículos superiores (cujos mapas
estão a receber informação acerca da cena visual, dos movimentos
Uma viagem pelo cérebro dos olhos e do estado do corpo); e nos núcleos associativos do tá-
durante a construção da consciência lamo activados por todo o tráfego de sinais nas regiões do córtex
e do tronco cerebral.
Imaginemos o seguinte cenário: estou a observar pelicanos a da- E qual é o resultado de todas estas alterações? Todos estes mapas
rem o pequeno-almoço às crias. Sobrevoam graciosamente o oceano, estão a registar uma perturbação. U m a modificação do sentimento
por vezes mesmo junto à superfície, outras vezes mais alto. Quando primordial do proto-eu que agora dá lugar a sentimentos diferenciais
avistam um peixe picam subitamente na direcção da superfície das do conhecimento relativo aos objectos em causa. E m consequência,
águas, os bicos parecidos com o Concorde em posição de aterragem, os recentes mapas visuais do objecto-a-ser-conhecido (o bando de
as asas puxadas para trás numa bonita configuração em delta. Desa- pelicanos no ritual de alimentação) tornanvse mais salientes do que
parecem na água e emergem, um segundo depois, triunfantes, com outros objectos que estão a ser processados de forma não-consciente
um peixe. na minha mente. Esses outros objectos podem competir para um
Os meus olhos atarefam-se a seguir os pelicanos; à medida que tratamento consciente, mas não conseguem atingir o seu objectivo
eles se deslocam, mais perto ou mais afastados, os cristalinos dos porque, devido a várias razões, os pelicanos são tão interessantes para
meus olhos modificam a distância focal, as pupilas adapram-se à va- mim, que são de facto valiosos. Os núcleos de recompensa em zonas
riação da luz e os músculos oculares trabalham a grande velocidade como a área do tegmento ventral do tronco cerebral, o núcleo ac-
para seguir os movimentos rápidos das aves; o meu pescoço ajuda, cwnbens e os gânglios da base conseguem o tratamento especial das
com ajustamentos adequados, e a minha curiosidade e interesse são imagens dos pelicanos libertando selectivamente neuromoduladores
recompensados cm absoluto com a observação de um ritual deveras nas zonas de criação de imagens. Desta sensação de conhecimento
notável; estou a apreciar o espectáculo. provém uma sensação de posse das imagens, bem como uma sensação
C o m o consequência de toda esta azáfama da vida real e de toda de capacidade de acção. A o mesmo tempo, as alterações das porta-
esta azáfama cerebral, os sinais vão chegando aos meus córtices vi das sensoriais colocam o objecto-a-ser-conhecido numa perspectiva
suais, sinais recém-criados pelos mapas das retinas que representam bem definida em relação ao meu corpo, a mim. 1 1
os pelicanos e definem a sua aparência enquanto objecto-a-sei Deste mapa cerebral de escala global emergem, como se pulsa-
-conhecido. Está a ser criada uma profusão de imagens em movimen ções fossem, estados de eu nuclear. Mas de repente o telefone toca
to. Em paralelo, são também processados sinais numa série de regiões C quebra-se o encanto. A minhn cabeça e os meus olhos deslocam-sc
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O LIVRO DA CONSCIÊNCIA
CAPÍTULO 9
de forma relutante mas inexorável para o aparelho. Atendo. E o ciclo
de criação da mente consciente começa de novo, desta vez concen-
trado no telefone. Os pelicanos desapareceram-me da vista e da men-
te; o telefone entrou.
O eu autobiográfico
A
s autobiografias são compostas por recordações pessoais, a
totalidade das nossas experiências, incluindo as experiências
dos planos que fizemos para o futuro, sejam eles precisos ou
vagos. O eu autobiográfico é uma autobiografia feita consciente.
Faz uso de toda a história que memorizámos, tanto recente como
remota. Estão incluídas nessa história as experiências sociais das
quais fizemos parte, ou das quais gostaríamos de ter feito parte,
bem como as recordações que descrevem as nossas mais refinadas
experiências emocionais, nomeadamente as que possam ser classi-
ficadas de espirituais.
Enquanto o eu nuclear vai emitindo com firmeza a sua pulsa-
ção, sempre « o n - l i n e » , seja num modo discreto ou com manifesta
exuberância, o eu autobiográfico leva uma vida dupla. Por um lado,
pode apresentar-se explicitamente, compondo a mente consciente
Da sua forma mais grandiosa c humana; por outro, pode ficar latente,