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RESENHAS

OTTO, Rudolf. O sagrado: aspectos irracionais na noção do divino e sua


relação com o racional. Tradução de Walter O. Schlupp. São Leopoldo:
Sinodal, EST; Petrópolis: Vozes, 2007. 224p.

O
campo religioso é um campo da experiência humana que
apresenta algo próprio, que aparece só nele: a religião não se
esgota em seus enunciados racionais. Ela também é composta
pelo enunciado irracional, isto é, pelo indizível, que foge totalmente à
apreensão conceitual, uma vez que nenhum conceito esgota a idéia de
divindade. O termo sagrado (heilig) sempre esteve ligado a atributo moral
no campo religioso. Porém, Otto esclarece que em línguas antigas esse
termo significava algo mais e que outros significados são reinterpretações
racionalistas do termo.
Em relação à obra O sagrado..., Otto pretendeu acima de tudo
descrever e analisar como as pessoas reagem diante do sagrado. Abandona
enfoques tradicionais que até então relatavam testemunhos da história da
religião e apresenta um novo enfoque que transfere da teologia para a religião
todas as indagações acerca das experiências e vivências humanas do sagrado
como constitutivas do fundamento da religião.
Diante de um autor tão singular e de uma trajetória de vida ímpar
para sua época, e que prende a atenção de pesquisadores contemporâneos,
vale conhecer um pouco sobre ele próprio antes de resenharmos os 23
capítulos do seu livro.
Rudolf Otto nasceu em 25 de setembro de 1869, em Peine, Alemanha.
Era pastor, filósofo e teólogo. Na década de 1880, concluiu o segundo grau,
em Hildesheim, e iniciou seus estudos teológicos, em Erlangen. Em 1891,

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continuou seus estudos em Göttingen, período em que foi profundamente
marcado por Theodor von Haering, professor de Teologia Sistemática. Em
1898, concluiu seu doutorado com uma tese sobre As concepções do Espírito
Santo em Lutero. Em 1899, tornou-se Livre Docente em Teologia Sistemá-
tica. Em 1904, foi nomeado professor extraordinarius na Universidade de
Göttingen. Nesse mesmo ano, foi publicada a sua obra Naturalistische und
religiöse Weltansicht [As visões naturalista e religiosa do mundo]. Em 1915,
Otto assume a cátedra de Teologia Sistemática em Breslau/Wroclav. Em
1917, época em que a Primeira Guerra Mundial aproximava de seu fim na
Europa, sucedeu o teólogo sistemático Wilhelm Hermann, em Marburg.
Nesse mesmo ano, em Breslau/Wroclav, era publicado o clássico da literatura
teológica e da filosofia da religião O sagrado: aspectos irracionais na noção do
divino e sua relação com o racional, obra que dedicou a Theodor von Hae-
ring e que se tornou um best-seller que o fez mundialmente famoso. Essa
publicação levou Marburg à fama de Meca das Ciências da Religião.
Seu gosto insaciável por viagens e seu jeito introspectivo são dois as-
pectos importantes e interligados de sua vida, que bem expressam o que ele
vivenciou e sofreu. Quanto às viagens, Otto não as fazia em prol de estudos,
mas, sim, com a finalidade de obter experiência. Entre 1881 e 1928, ele
foi aos seguintes lugares: Grécia (1881); Oriente (1895, Egito, Jerusalém,
Beirute, Lemmos, Monte Athos); Finlândia e Rússia (1900); Tenerife, África
do Norte (1911); Índia (Lahore, Calcutá, Orissa, Rangun), Japão, China e
Sibéria (1911-1912); Oberlin, Ohio, e Itália (1924); Suécia (1926); Ceilão,
Mandurai, Madras, Egito e Palestina (1927-1928).
Na viagem de 1895, quando esteve na Ásia, Otto adoece várias ve-
zes. Há quem afirme que Otto tenha contraído malária nesse período. Ele
sofria também episódios depressivos, que se expressavam em seu semblante
meditativo, introspectivo, e que o levou à aposentadoria antecipada. Em
1936, Otto faz uso de morfina contra dores de uma fratura do fêmur e passa
a sofrer com sintomas de dependência de tal medicamento. Em 1937, tal
dependência, em conjunto com as depressões, levam-no a ser internado em
uma clínica psiquiátrica, em Marburg, como precaução de médicos que
temiam que ele se suicidasse. Um mês depois, Otto ali faleceu.
Segundo Brandt, O sagrado... revela “o etos de um cientista desejoso que
sua obra sobre o sagrado como categoria central da religião tenha fundamento
próprio, independente da condição de seu autor” (p. 15), de quem o escreveu du-
rante a Primeira Guerra Mundial e que sofreu enfermidade física e psíquica.
Retornando ao foco principal de resenhar a obra, passaremos a apre-
sentar as descobertas de Otto em relação a como as pessoas reagem diante

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do numinoso, como o numinoso as atinge e como o sagrado, origem de
toda religião, exprime-se em suas diversas formas.
Nos 23 capítulos, autor concentra-se em três fases divididas em
temas oriundos da teologia cristã, de questões de Filosofia e Psicologia
da Religião e de trabalhos comparativos entre religiões, especialmente do
Extremo Oriente, para onde fez várias viagens.
No primeiro capítulo, o autor ressalta “como o ser humano o per-
cebe em si mesmo de forma limitada e inibida” (p. 33), por meio do título
Racional e Irracional. Ele apresenta como racional a essência da divindade
descrita por conceitos claros e expressa o a priori como o conceito e o a
posteriori como o sentir. Então ele comenta que o cristianismo é uma forma
de religião que mais possui clareza, nitidez e completude em seus conceitos.
Esclarece que toda linguagem pretende transmitir conceitos, porém de
forma alguma conceitos esgotam a idéia da divindade, portanto a religião
não se esgota em seus enunciados racionais. O sagrado, segundo Otto, é
uma categoria inderivável. Ele é uma categoria composta. Composta por-
que apresenta componentes racionais (conceitos) e irracionais (indizíveis).
Esses componentes, entretanto, são categorias estritamente a priori. Esse a
priori é inerente à psique humana independentemente de percepção, isto
é, está implantado no próprio espírito humano como sua primeiríssima
origem. Assim, percebe-se que mesmo que todo conhecimento comece pela
experiência não quer dizer que ele derive da experiência. O conhecimento
empírico é apenas desencadeado por impressões sensoriais, pois já é uma
capacidade cognitiva interior. A experiência do sagrado antecede todo e
qualquer conceito de Deus. Portanto, para Otto, toda tentativa de extrema
racionalização do sagrado é condicionada.
A partir do segundo capítulo, o autor vai traçando aspectos do sa-
grado. No segundo capítulo, O Numinoso, Otto relata de essa categoria
é sui generis e que por isso não pode ser definida, mas somente discutida.
No terceiro, apresenta o sentimento de criatura como aquilo de “afunda e
desvanece em sua nulidade perante o que está acima de toda criatura” (p. 41)
diante de uma sensação de superioridade absoluta do numinoso. No quarto,
informa sobre o misterium tremendum do numinoso em seus os aspectos
arrepiante, avassalador, energético, totalmente outro. O quinto capítulo traz
hinos numinosos cujas criações literárias expressam a diferença entre uma
glorificação meramente racional da divindade e uma sensação irracional
do numinoso. O sexto capítulo refere o aspecto fascinante do numinoso,
uma harmonia de algo distanciador e atraente ao mesmo tempo, “não é
apenas o fundamento e o superlativo de tudo que seja cogitável. Deus em si

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mesmo ainda é algo à parte” (p. 78). O sétimo capítulo apresenta o aspecto
assombroso do numinoso, que ultrapassa nossa capacidade de imaginação
espacial, que é aterrador, incomparável, enigmático. No oitavo, o autor diz
que a harmonia de contrastes no teor e na qualidade do mistério que ten-
tamos e não conseguimos descrever pode ser vagamente insinuada por uma
correspondência oriunda não da religião, mas da estética. O nono apresenta
o sanctum como valor numinoso, seu aspecto augustum, o sentimento de a
pessoa se sentir absolutamente profana diante de Deus.
A partir do décimo capítulo, o autor faz uma retrospectiva sobre
toda a investigação desenvolvida até o nono capítulo e passa a apresentar
discussões sobre o emprego do termo ‘irracional’ nas mais diferentes áreas,
então expressa o irracional como “um evento um tanto singular, que por sua
profundidade foge à interpretação inteligente” (p. 97) e o racional na idéia
do divino como “aquilo que nela pode ser formulado com clareza, compre-
endido com conceitos familiares e definíveis” (p. 97-8); informa também
os meios de expressão do numinoso (capítulo 11); exemplos do numinoso
no Antigo Testamento (capítulo 12), no Novo Testamento (capítulo 13),
em Lutero (capítulo 14). No capítulo 15, o autor apresenta a evolução
histórica do termo ‘santo’ do Novo Testamento a como está atualmente
fixado em nossa sensibilidade lingüística religiosa, ou seja, “deixou de ser
o meramente numinoso em si, nem mesmo no grau supremo deste, mas
está agora sempre impregnado e saturado com elementos morais e pessoais
dotados de finalidade” (p. 148). No capítulo 16, trata do sagrado como
categoria a priori, isto é, existente no espírito humano independentemente
da experiência.
No capítulo 17, ele traça o surgimento histórico e o desenvolvimento
da religião na história, retomando certas coisas que pouco se parecem com a
religião como a entendemos hoje como, por exemplo, crença nos mortos e
culto aos ancestrais, feitiço, contos, mitos, adoração de objetos da natureza
entre outros. No capítulo 18, expõe os aspectos brutos e de receio demoníaco
dos primórdios da história da religião. No 19, dedica-se ainda ao sagrado
como categoria a priori , uma segunda parte do capítulo 16, ressaltando que
o caráter apriorístico do sagrado é responsável pela ligação entre os elementos
racionais e irracionais na religião. O capítulo 20 fala das manifestações do
sagrado, enfatizando a natureza da faculdade da divinização, a capacidade
de conhecer e reconhecer genuinamente a sagrado em sua manifestação. Nos
capítulos 20 e 21, Otto se estende à divinização no protocristianismo e no
cristianismo de hoje, respectivamente, em especial se a protocomunidade
experimentou e conseguiu vivenciar o sagrado em e por meio da pessoa

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de Cristo e se ainda hoje conseguimos. No capítulo 23, o autor trata do a
priori religioso e história, da relação entre razão e história, pois, segundo
Otto, toda religião que busque cognição própria d sua verdade deve pres-
supor princípios cognitivos segundo os quais a pessoa possa reconhecê-la
como uma religião verdadeira. O anexo I compreende três criações literárias
numinosas. O anexo II é composto de quinze adendos.
Os trabalhos de revisão e tradução merecem elogios, pois demons-
tram que a pessoa foi minuciosa no momento das adequações gramaticais,
respeitando o estilo do autor acima de tudo. Evidentemente, quando se
trata de tradução, o leitor pode indagar se houve deslize na tradução ou
se o autor apresenta mesmo construções um tanto neboluminosas nas
estruturas de pensamento quando nos deparamos com trechos como o
seguinte: “Dizemos isso para pelo menos dizer alguma coisa. Imediata-
mente, porém, fica evidente que com isso, a rigor, não estamos dizendo
coisa alguma...” (p. 45).
Em relação ao projeto gráfico da obra, houve uma boa escolha do
tipo e do tamanho da fonte, assim como da entrelinha, que contribuem
para uma leitura fluente. Também foi muito confortável ao leitor a opção
do projetista pelo uso das notas em rodapé, embora tenha apresentado
uma miscelânea de notas bibliográficas com explicativas que ora apareciam
ambas numa mesma nota, ora somente as bibliográficas completas, ora as
bibliográficas num sistema semelhante ao das expressões latinas em rodapé
que repetem somente autor, ano e página. Destaco ainda que faltou uma
lista de referências bibliográficas no final dos capítulos, antes dos anexos.
Falando em anexo, na verdade, o segundo anexo trata-se de um adendo aos
seguintes capítulos: 4, 6, 10, 11, 14, 16, 17 e 18.
Quanto à normalização, o glossário (um elemento pós-textual) é
colocado nas páginas pré-textuais, penso que com o intuito de facilitar a
consulta para o leitor, entretanto destaco os sublinhados desnecessários em
alguns itens. Em se tratando da numeração progressiva de um capítulo ou
outro não seguiu o mesmo padrão do início ao fim do livro, partindo ora de
uma seção primária para alíneas como no capítulo quarto, ora para nume-
rações erradas como nos capítulos oitavo e décimo primeiro. Isso também
ocorreu nos anexos cuja numeração progressiva salta de números romanos
para ordinais. Além disso, os títulos principais de cada capítulo não apresen-
tavam a numeração do sumário nem o mesmo corpo da letra: no sumário,
1.Racional e irracional, na abertura do capítulo, Racional e numinoso em
maiúsculas e negrito. Nos capítulos que apresentavam subtítulo não faltou
realce para eles: maiúsculas, negrito e itálico! O subtítulo ganhou posição de

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destaque e o título que teria de ter o principal realce foi rebaixado a segundo
plano. O excesso de destaques subestima a inteligência do leitor.
Sabemos que a publicação de uma obra envolve um conjunto de
profissionais cujas decisões devem estar coerentes com o perfil editorial
da instituição. Mesmo que editoras tenham maior liberdade em relação
ao processo de editoração de textos a serem publicados, ao contrário de
trabalhos acadêmicos que devem seguir um rigor quanto à normalização,
penso que especialmente publicações feitas por co-edições que envolvem
editoras universitárias devem prezar pelas recomendações das normas
da ABNT para publicação de livros para que o processo educativo se dê
pelo exemplo. Nessa obra em especial, houve incoerências no projeto
gráfico, sobretudo quanto à normalização dos elementos que impediu
uma uniformização geral da obra. Avaliações de editoração de texto à
parte, trata-se de uma pesquisa imperdível. Vale a pena ler a obra! Confira.

Keila Matos

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