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Possibilidade de invalidação judicial de ato punitivo exarado por autoridade

militar (?).

“O exercício da disciplina pressupõe um dispositivo que coaja


por meio do olhar; um aparelho no qual as técnicas que
permitem ver induzam efeitos de poder, e no qual, em
contrapartida, os meios de coerção tornem claramente visíveis
aqueles sobre os quais se exercem.”

Michel Foucault – Vigiar e Punir

Introdução

Recorrer à justiça contra punição imposta administrativamente é um direito de


todos os servidores militares do Exército Brasileiro e está de acordo com princípio
da inafastabilidade do controle judicial. Contudo, a esperança de reforma de um ato
punitivo por auxílio da via judicial pode não se concretizar. Está mais para uma aposta
do que para uma certeza. É algo que depende de boa atuação técnica de advogado
mediante construção argumentativa e necessidade de comprovação. Mas a invalidação
de um ato administrativo não é tarefa das mais fáceis. O poder judiciário tem se
mostrado bastante reticente quanto à possibilidade de invalidar atos administrativos
sancionatórios exarados pela administração militar. Devido ao momento político e
ideológico que atravessamos, a tendência é que essa possibilidade diminua ainda mais.
Some-se a isso a força dos atos administrativos aliado com os percalços processuais.

Na administração pública, a punição disciplinar não mais se baseia no princípio


da verdade sabida, devendo obrigatoriamente ser antecedida de um processo
administrativo (MAZZA, 2017). No Exército Brasileiro tal processo é sumário e se
desenrola dentro da organização militar, seguindo um rito próprio, estabelecido pela
Instrução Geral 09.001 (EB10-IG-09.001) onde, em tese, devem ser respeitados os
princípios do contraditório e a ampla defesa em favor do acusado. Da decisão
administrativa sancionatória exarada pela autoridade militar cabem recursos
administrativos, conforme previsto no Decreto Nº 4.346 (Regulamento Disciplinar do
Exército, artigos 52 e 53). Recursos administrativos buscam que a administração reveja
seus atos [autotutela]. Caso os recursos administrativos não surtam efeito o servidor
militar punido terá como ultima ratio buscar a tutela judicial.

Batalha contra a AGU.


Com a instauração de um processo judicial ocorrem mudanças significativas na
situação. A relação sai da esfera administrativo-militar e passando a ser jurídica e
devendo ser apreciada pela Justiça Federal. Passa-se a aplicar o Código de Processo
Civil. O servidor militar punido irá constituir um dos uma das partes do litígio e deverá
pagar advogado ou pleitear assistência gratuita junto à Defensoria Pública para que se
faça representar no processo. No outro pólo processual estará a União, representada
por ninguém menos que a Advocacia Geral da União1, com todas as prerrogativas da
Fazenda Pública em litígios, como por exemplo, contagem do prazo em dobro para
todas as suas manifestações processuais2, intimação pessoal dos seus Procuradores e o
reexame necessário3. Convenhamos que uma batalha jurídica contra a AGU é coisa
complicada, ainda mais com aplicação do Código de Processo Civil, um código baseado
na paridade entre as partes em litígio.

A atuação contenciosa da Advocacia-Geral da União (AGU) se dá por meio da


representação judicial e extrajudicial da União (Poderes Executivo, Legislativo e
Judiciário, e dos órgãos públicos que exercem função essencial à justiça), além de suas
autarquias e fundações públicas. A representação judicial é exercida em defesa dos
interesses dos referidos entes nas ações judiciais em que a União figura como autora, ré
ou, ainda, terceira interessada4. OBRIGAÇÃO DE RECORRER.

Desconstituição de ato administrativo.

Na busca por invalidar judicialmente a punição, uma grande dificuldade será a


desconstituição do ato administrativo. Decisões punitivas são atos administrativos
baseados no poder disciplinar que a Administração Pública goza frente a servidores e
administrados. Tais atos são expressão da supremacia do poder público sobre o

1
CPC, Art. 182. Incumbe à Advocacia Pública, na forma da lei, defender e promover os
interesses públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, por meio da
representação judicial, em todos os âmbitos federativos, das pessoas jurídicas de direito público que
integram a administração direta e indireta.
2
CPC, Art. 183. A União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e suas respectivas
autarquias e fundações de direito público gozarão de prazo em dobro para todas as suas manifestações
processuais, cuja contagem terá início a partir da intimação pessoal
3
CPC, Art. 496. Está sujeita ao duplo grau de jurisdição, não produzindo efeito senão depois de
confirmada pelo tribunal, a sentença:
I - proferida contra a União, os Estados, o Distrito Federal, os Municípios e suas respectivas
autarquias e fundações de direito público
4
Disponível em https://www.agu.gov.br/page/content/detail/id_conteudo/200643. Acesso em
28 de abril de 2019.
particular, gozando dos atributos a eles inerentes: são imperativos, auto-executórios e
dotados de presunção de legitimidade e de veracidade.

Pelo atributo da imperatividade a Administração Pública cria uma obrigação


para terceiros independente de sua vontade. A autoexecutoriedade nada mais é do que a
capacidade que a administração tem de cumprir suas próprias decisões,
independentemente de prévia permissão judicial. Esse atributo é necessário para que a
administração possa agir e alcançar seus fins com celeridade e sem intromissões
indevidas. Então, uma vez tomada a decisão, a administração pode imediatamente
executá-la (MAZZA, 2017). [frisar que mesmo que o ato contenha vício continuará
surtindo seus efeitos até que seja anulado ou invalidado]

Já presunção de legitimidade e de veracidade é decorrente do princípio da


legalidade e atesta, ao menos em tese uma vez que se trata de presunção relativa, que os
atos administrativos praticados estão em conformidade com a lei e que os fatos que
ensejaram tal prática realmente ocorrera. Cabe ao prejudicado provar o contrário: que o
ato está desconforme com a lei ou que fato gerador não aconteceu. Aqui temos uma
exceção à regra do direito segundo a qual ao acusador cabe o ônus da provar suas
alegações. Ocorre uma inversão desse ônus, pois nesse caso é do acusado o encargo de
afastar as citadas presunções, comprovando que houve ilegalidade e/ou que o fato não
ocorreu (ROSA, 2012).

É justamente na necessidade de comprovação que mora o perigo. Como já


mencionado, para que sejam afastadas as presunções do ato administrativo e necessário
provar. Como iremos constatar por meio de um acórdão selecionado, não basta a mera
alegação de injustiça para que sejam afastados os atributos do ato punitivo. É necessária
a apresentação de provas. E provas robustas! Chegamos aqui às raias da injustiça uma
vez que a administração militar dispõe de pessoal e material para produzir a prova que
quiser e cabe ao servidor militar praticamente sozinho tentar obter prova para
desconstituir o ato administrativo. Vejamos parte de Acórdão da Segunda Turma do
Tribunal Regional Federal da 1ª Região referente à APELAÇÃO CÍVEL N.
2008.34.00.031714-5/DF
PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA.
SERVIDOR PÚBLICO. MILITAR. NULIDADE DA SINDICÂNCIA.
ILICITUDE DAS PROVAS COLHIDAS NO PROCEDIMENTO
APURATÓRIO. NÃO OCORRÊNCIA. PROVA EMPRESTADA DO
INQUÉRITO POLICIAL MILITAR. POSSIBILIDADE. INEXISTÊNCIA
DE OFENSA AOS PRINCÍPIOS DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA
DEFESA.
(...)
As presunções de veracidade, legitimidade e legalidade dos atos
administrativos, extensíveis aos atos punitivos, somente podem ser ilididas
mediante prova robusta, a cargo de quem invoca eventual vício, de modo que
não é suficiente para o reconhecimento da nulidade de tais atos a simples
alegação de violação ao contraditório e da ampla defesa, sem a devida
comprovação.
Na hipótese em comento, não se desincumbiu o autor do ônus de comprovar
a existência dos vícios que alega, não se podendo inferir, do arcabouço
probatório, com fulcro no princípio da persuasão racional na apreciação das
provas, a ocorrência de cerceamento de defesa ou de desrespeito ao
contraditório e à ampla defesa.
Decide a Segunda Turma do TRF da 1ª Região, por unanimidade, negar
provimento à apelação, nos termos do voto do Relator.
Segunda Turma do TRF da 1ª Região, 31 de janeiro de 2018.
DESEMBARGADOR FEDERAL JOÃO LUIZ DE SOUSA
RELATOR

Mérito Administrativo

Outra pedra no caminho para a invalidação judicial de um ato punitivo é o


chamado mérito administrativo. [ explicar melhor: Motivo, objeto, conveniência,
oportunidade.] De acordo com a doutrina, trata-se de uma margem de apreciação
concedida pelo legislador e que cabe à autoridade administrativa. Em atos
discricionários, e aqui podemos incluir os atos sancionatórios decorrentes do poder
disciplinar interno, tal apreciação recai em dois dos elementos constitutivos do ato
administrativo: motivo e objeto, sendo os demais elementos vinculados. Apreciação
deve se dar dentro de critérios de conveniência e oportunidade tendo sempre o intuito de
satisfação do interesse público (CARVALHO FILHO, 2014).

Para a doutrina a possibilidade de controle judicial resume-se ao controle de


legalidade e legitimidade do ato. De acordo com esse entendimento, a não ser que haja
algum vício nos elementos vinculados não há possibilidade o controle judicial de ato
discricionário no que diz respeito ao mérito, pois dessa forma estaria o juiz exercendo
papel de administrador e tal fato constituiria-se numa afronta ao principio da separação
e independência dos poderes (CARVALHO FILHO, 2014). Semelhante é o
entendimento dos tribunais. Senão vejamos:
RECURSO ORDINÁRIO. ADMINISTRATIVO. MILITAR.
IRREGULARIDADES COMETIDAS EM ÓRGÃO DIVERSO.
TRANSFERÊNCIA PARA A RESERVA. SINDICÂNCIA. AUSÊNCIA DE
DEFENSOR. DESNECESSIDADE. PENA APLICADA DIVERSA
DAQUELA SUGERIDA PELO CONSELHO DE JUSTIFICAÇÃO.
POSSIBILIDADE DESDE QUE FUNDAMENTADA. AUSÊNCIA DE
TIPIFICAÇÃO LEGAL. NÃO-OCORRÊNCIA. CONDUTA REALIZADA
EM OUTRO ÓRGÃO. POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DE PENA.
PRINCÍPIOS MILITARES. IRRADIAÇÕES FORA DA CORPORAÇÃO.
1. (...) 5. Não cabe ao Judiciário rever o mérito da decisão administrativa
disciplinar militar, razão pela qual se realizada esta de acordo os
procedimentos legais previstos para a espécie, a pena aplicada, se condizente
com a determinação legal, é juízo de mérito administrativo.
6. Os princípios que regem a vida militar (decoro e ética) irradiam sua
aplicação tanto no âmbito da corporação, como fora dela. Portanto, se
entendeu a autoridade superior que as condutas praticadas pelo recorrente
eram imorais ou ilegais, ainda que realizadas em órgão diverso daquele a que
pertencia o impetrante, não há ilegalidade neste julgamento, tampouco, como
já referido, pode ser revista a sua conclusão, sob pena de se incursionar na
discricionariedade administrativa.
7. Recurso ordinário improvido. (RMS 15.037/BA, Rel. Ministra MARIA
THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 27/05/2008,
DJe 16/06/2008)

Para outra parte da doutrina o ato punitivo nada tem de discricionário em si, pois
uma vez constatada a possibilidade de transgressão cometida pelo servidor a autoridade
administrativa tem o poder-dever de apurar se realmente o fato se constitui em motivo
de punição. Sob essa ótica não há qualquer liberdade de escolha para o administrador.
Contudo, mesmo assim ainda cabe uma margem de apreciação no que diz respeito à
gradação da penalidade (que deve permanecer dentro dos limites estabelecidos na lei),
valoração de conceitos indeterminados e escolha da “melhor pena para reprimira
infração cometida” (MAZZA, 2017). Repare, não há aqui um “mérito administrativo”
clássico, acerca de motivo e objeto do ato punitivo, mas permanece a discricionariedade
administrativa relativamente à escolha da modalidade punitiva e da quantidade de pena
a ser plicada, permanecendo esses aspectos inacalçáveis pelo Poder Judiciário.

Hipótese absurda: cadeia como penalidade de transgressão banal.

Exemplo: acórdão.

Conduta de combate. a) Cumpra todas as normas regulamentares, não dê


munição ao inimigo. Procure não ser acusado em sindicância ou IPM, a punição é quase
certa. b) Se for plotado em alguma atitude que possa ser interpretada como transgressão
procure conversar e justificar a atitude com seu comandante visando evitar a abertura de
um procedimento administrativo, pois uma vez que a roda começar a girar ela não vai
parar até cabeças rolarem. c) Se já estiver sob fogo inimigo, ou seja, se já for alvo de
sindicância ou IPM procure um bom advogado administrativista, mas tenha em mente
que mesmo com uma boa defesa técnica a punição é uma possibilidade real, pois a
vontade de punir o subordinado muitas vezes supera a racionalidade. d) Caso seja
punido só restam duas opções: reconhecer a derrota e não fazer nada, visando não piorar
ainda mais a situação ou procurar por tutela judicial, elevando o litígio para um outro
patamar, mas prepare-se para uma guerra contra a AGU.

Conclusão.

Mesmo que o servidor militar punido sinta-se injustiçado, seja por não ter
cometido transgressão alguma, seja pela excessiva severidade da medida imposta, não
há nenhuma certeza de que consiga reverter a punição com um processo judicial. O
mais provável é que o judiciário confirme a punição determinada pela
administração castrense.

A desconstituição de ato administrativo exige que seja afastada a sua presunção


de legitimidade e veracidade e para que isso ocorra é necessária comprovação por parte
de quem alega. [Comprovação de algum vicio]

Uma vez cumpridas as formalidade legais a autoridade administrativa


praticamente tem carta branca (mérito administrativo) para tomar a decisão que lhe
convier e com as bênçãos do poder judiciário, sob a alegada impossibilidade de
apreciação do mérito administrativo.

Referências Bibliográficas.

ALEXANDRINO, Vicente Paulo et Marcelo. Direito Administrativo Descomplicado.


23. ed. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método: Forense; Método, 2015.

CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 28. ed.
São Paulo: Atlas, 2014.

MAZZA, A. Manual de Direito Administrativo. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2017

ROSA, Márcio Fernando Elias. Direito Administrativo. 13. ed. São Paulo: Saraiva,
2012. Coleção Sinopses Jurídicas; vol. 19; parte 1.

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