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Introdução

A constituição como norma suprema do ordenamento jurídico não tem valor


enquanto não houver entidades com poderes para fazer valer essa qualidade
de norma suprema do ordenamento jurídico. É justamente por esse facto que a
própria constituição estabelece várias formas destinadas a garantir que seja
salvaguardada a sua supremacia, fixando bases que garantam o cumprimento
das suas normas, incluindo no processo de feitura das normas ordinárias que
devem obediência à Constituição. Juntamente com essas bases, também
foram estabelecidas várias formas de fiscalização da constitucionalidade para
garantir que normas já aprovadas possam ser submetidas ao crivo da
constituição.
Portanto, sempre que se entender que uma norma é contrária à Constituição,
seguindo os mais restritos procedimentos de acesso à justiça constitucional,
pode ser feito o pedido de fiscalização da constitucionalidade, nas suas várias
vertentes, entre as quais, no que interessa para o presente caso, a fiscalização
sucessiva concreta e/ou fiscalização sucessiva abstracta da constitucionalidade
(apenas a fiscalização sucessiva, seja abstracta ou concreta, é que interessa
para o presente artigo, visto que para os casos de fiscalização preventiva a
actividade de fiscalização é feita antes de a norma entrar em vigor no
ordenamento jurídico, o que retira a possibilidade de na pendência da
fiscalização seja revogada ou derrogada a norma em escrutínio, por ser
impossível derrogar ou revogar uma norma que ainda não está em vigor).
Nesse âmbito, várias situações podem justificar que no momento da
apreciação sucessiva concreta e fiscalização sucessiva abstracta da
constitucionalidade e da legalidade, – a Lei, o regime jurídico ou as próprias
disposições legais, – objecto da fiscalização, sofram alteração, revogação,
derrogação, reforma ou alteração.
A questão que se coloca nessas situações é de saber qual deve ser o
posicionamento de um dos guardiões da Constituição – o Conselho
Constitucional – nos casos em que é pedida a fiscalização sucessiva concreta
e abstracta da constitucionalidade em relação a uma norma jurídica revogada,
alterada ou derrogada. Nesse âmbito, também se colocam questões sobre
quais são as teorias que dominam nessa matéria e, especificamente, saber
qual é o alcance dos efeitos da revogação, derrogação ou reforma e quais são
os efeitos da declaração de inconstitucionalidade de uma norma. A isso,
também, se junta a questão sobre qual tem sido a orientação da jurisprudência
constitucional moçambicana a respeito da matéria e a segurança jurídica desse
posicionamento face às teorias aplicáveis à matéria, na perspectiva do Direito
Comparado, considerando a predominância (ou não) dos mesmos princípios ou
teorias sobre a matéria.
Discussão
Segundo Jorge Bacelar Gouveia, “a fiscalização da constitucionalidade é a
adopção de instrumentos funcionalmente aptos à verificação das situações de
violação da Constituição, levados a cabo no âmbito de competências
específicas que apenas têm esse fito, é o sinal mais forte da confirmação do
objectivo de defesa da Ordem Constitucional, o que vem a acontecer com a
fiscalização da constitucionalidade”.[1]
Parafraseando Gomes Canotilho,[2] o aperfeiçoamento da aplicação concreta e
exteriorização material do Direito Constitucional está muitas vezes dependente
de uma boa actividade de interpretação da Lei pelas instituições jurídicas –
desde o próprio parlamento, cuja actividade legislativa encontra limites na
Constituição, até aos tribunais, cuja actividade de aplicação da lei aos casos
concretos também não deve ofender a Constituição – o que exige, em toda a
extensão da actuação dessas instituições, a necessidade de sempre tomar
como base, na sua orientação e limite, a Constituição da República, enquanto
lei suprema do ordenamento jurídico.
Para procurar uma boa abordagem do assunto, importa, em primeira linha,
identificar os efeitos da revogação, derrogação e alteração de uma norma, por
um lado, e os efeitos da declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade de
uma norma, por outro. Igualmente, é importante definir qual é o paradigma da
teoria da inutilidade de uma decisão de mérito, nos termos da jurisprudência
constitucional moçambicana, como também se mostra relevante uma breve
análise comparativa entre o ordenamento jurídico português e o moçambicano
quanto ao tratamento do assunto. A identificação do efeito de cada forma de
eliminação da norma no ordenamento jurídico é determinante para aferir a
lógica da necessidade ou não de apreciação de uma norma já revogada,
derrogada ou alterada.
a) Efeitos da revogação de normas jurídicas
A partir da publicação dos actos normativos, independentemente da sua
entrada em vigor,[3] sempre que a referida norma ofenda a Constituição, pode,
nos termos legais, ser pedida a declaração da sua inconstitucionalidade. É
imperioso frisar que há diferença entre o momento em que é pedida a
fiscalização da constitucionalidade da norma (apresentação do pedido) e o
momento a partir do qual podem-se produzir os efeitos da declaração de
inconstitucionalidade (início da verificação das consequências da eliminação da
norma no ordenamento jurídico). Uma norma em vacatio legis, apenas está sob
termo – que é a subordinação da produção dos seus efeitos a partir da data
definida para a sua entrada em vigor.[4]
A revogação de normas jurídicas verifica-se quando a autoridade legislativa –
Assembleia da República ou Conselho de Ministros, conforme a natureza da
norma jurídica em causa, apresenta nova manifestação legislativa em sentido
diverso ao da norma anterior, podendo ser total ou parcial (derrogação) ou
ainda nos casos em que simplesmente é eliminada a norma anterior e não é
introduzida uma nova norma sobre a matéria, como ainda nos casos em que é
introduzida uma norma no ordenamento jurídico que é contrária às anteriores e,
consequentemente, criar uma situação de incompatibilidade entre as normas
anteriores e as novas ou da circunstância de a nova lei regular toda a matéria
da lei anterior.[5] Portanto, quando há revogação da lei, a lei revogada, no que
diz respeito à sua aplicação às situações que ela regulava, deixa de poder ser
aplicada, passando a aplicar-se a nova lei que regula a matéria ou passando a
observar-se as estipulações da lei nova. Nos casos em que a revogação
implica a eliminação completa da norma anterior sem a criação de outra que
regule a matéria, ou quando se trate de normas temporárias não substituídas
por outras, as cominações da norma anterior deixam de existir e uma eventual
obrigação que era estabelecida em lei anterior deixa de ser exigida.
Portanto, a revogação, em regra, tem efeito “ex-nunc” – desde agora,
significando que produz-se a partir do momento em que o acto é praticado ou
em que a revogação produz efeitos ou nos casos em que a nova norma
começa a produzir efeitos em alteração da norma anterior. As excepções se
verificam nos casos em que a nova lei estabelece disposições transitórias, nas
quais a norma que revoga a anterior estabelece a aplicabilidade das referidas
normas anteriores durante certo período de tempo para situações constituídas
na vigência da norma anterior. Exemplo claro desses casos, é a situação das
disposições transitórias sobre o cálculo de indemnização no artigo 270º da Lei
nº 23/2007, de 1 de Agosto.[6]
b) Efeitos da inconstitucionalidade (por caducidade ou por declaração
expressa de inconstitucionalidade)
Ao abrigo do artigo 70º da Lei n.º 2/2022, de 21 de Janeiro, Lei Orgânica do
Conselho Constitucional, a declaração de inconstitucionalidade ou de
ilegalidade com força obrigatória geral produz efeitos desde a entrada em vigor
da norma declarada inconstitucional ou ilegal e determina a repristinação das
normas revogadas.
Nos casos em que a inconstitucionalidade ou ilegalidade é declarada por
infracção a uma norma constitucional ou legal posterior, a declaração de
inconstitucionalidade só produz efeitos desde a entrada em vigor da norma
posterior que ditou a alteração que dá lugar à inconstitucionalidade ou
ilegalidade. É o que estabelece o n.º 2 do artigo 70º da Lei Orgânica do
Conselho Constitucional. Nada mais cristalino e justo. É que se o que dá lugar
à inconstitucionalidade ou ilegalidade é uma norma que surgiu posteriormente
àquela que é objecto de escrutínio, implica que antes da entrada em vigor da
norma que justifica a inconstitucionalidade ou ilegalidade, a norma ilegal era
incólume, por isso, não há espaço para que os efeitos da declaração de
inconstitucionalidade ou de ilegalidade da norma se retrotraiam a um período
em que a norma que justifica a inconstitucionalidade ou ilegalidade não existia.
Neste caso, a nova norma é que torna caduca a anterior por
inconstitucionalidade ou ilegalidade com a entrada da nova, razão de os efeitos
da inconstitucionalidade ou ilegalidade apenas se retrotraírem até à entrada em
vigor dessa norma.
É claro que para as situações em que a nova norma torna caduca a anterior,
sempre devem ser ressalvadas situações de leis especiais e leis temporárias,
em relação às quais, nos termos do artigo 7º do Código Civil, não dão lugar à
caducidade ou derrogação das leis anteriores sobre a mesma matéria
regulada. Mas nos casos de declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade
de leis especiais ou temporárias, os efeitos já serão fixados nos termos gerais
do nº 1 do artigo 70º da Lei Orgânica do Conselho Constitucional o que, no
nosso entender, dá lugar à aplicação do regime geral que era regulado pela
norma especial.
Contudo, a grande ressalva que é feita é para os casos julgados, conforme
resulta do nº 3 do artigo 70º da Lei Orgânica do Conselho Constitucional.
Portanto, todos os casos julgados ficam ressalvados, o que implica que, nos
casos de fiscalização sucessiva e abstracta da inconstitucionalidade ou de
ilegalidade, mesmo se sabendo que houve casos em que foram aplicadas
normas inconstitucionais ou ilegais, tais destinatários dessas decisões devem
se conformar com elas desde que tenham transitado em julgado.
Mas, a norma também comporta excepção que, no nosso entender, é
problemática. O nº 3 do artigo 70º da Lei Orgânica do Conselho Constitucional,
estabelece que “ficam ressalvados os casos julgados, salvo decisão em
contrário do Conselho Constitucional, quando a norma respeitar a matéria
penal ou disciplinar e for de conteúdo menos favorável ao arguido”.
Ora, é princípio constitucional, conforme resulta do nº 2 do artigo 60º da
Constituição da República de Moçambique, sempre que houver uma alteração
legal – o que inclui a declaração de inconstitucionalidade – e dela resultar
benefício para o arguido, tal situação deve ser obrigatoriamente aplicada em
benefício do arguido.
Isto é, ao abrigo do nº 1 do artigo 56º da Constituição da República de
Moçambique, os direitos e liberdades individuais são directamente aplicáveis,
vinculam as entidades públicas e privadas, são garantidos pelo Estado e
devem ser exercidos no quadro da Constituição e das leis. O que se extrai
desta norma é que todas as normas inerentes aos direitos e liberdades
fundamentais – como é o caso da aplicação das normas penais –, no caso
dessa norma penal for declarada inconstitucional e esse efeito for favorável aos
arguidos ou reclusos condenados em processos com caso julgado já formado,
a aplicação dessa norma em favor desses condenados, deve ser directamente
aplicável.
Por conseguinte, é nosso posicionamento que a Lei Orgânica do Conselho
Constitucional não deve fazer depender a aplicação desse facto em benefício
dos arguidos à sua declaração pelo Conselho Constitucional, porque isso já
resulta directamente da Constituição.
O nº 4 do artigo 70º da Lei Orgânica do Conselho Constitucional traz situações
dúbias que, no nosso entender, também trazem problemas sobre os critérios
de fixação dos efeitos de inconstitucionalidade ou de ilegalidade de normas. A
disposição legal em causa dispõe que “quando a segurança jurídica, razões de
equidade ou o interesse público de excepcional relevo, que deve ser
fundamentado, o exigirem, o Conselho Constitucional fixar efeitos da
inconstitucionalidade ou da ilegalidade com alcance mais restritivo do que o
previsto…”
A segurança jurídica “é um princípio jurídico que estabelece que o direito deve
oferecer, àqueles a ele sujeitos, a capacidade de regular suas condutas de
maneira razoavelmente previsível e estável”.[7] Portanto, na definição dos
efeitos da inconstitucionalidade, se razões de segurança jurídica o justificarem,
fundamentando, o Conselho Constitucional pode fixar os efeitos de
inconstitucionalidade com efeito mais restritivo. Portanto, nesse caso, se o
fundamento para a fixação do efeito mais restritivo da inconstitucionalidade, o
Conselho Constitucional deverá sempre indicar a razão ou qual é a lógica ou
em que termos se pretende garantir a segurança jurídica nessa matéria
específica. A fundamentação consiste na exposição clara e expressa das
razões de facto e de direito que justificam a decisão[8].
A equidade consiste na “adaptação da regra existente à situação concreta,
observando-se os critérios de justiça. Pode-se dizer, então, que a equidade
adapta a regra a um caso específico, a fim de deixá-la mais justa”. À equidade
estão adjacentes dois princípios essenciais do Direito: a paridade e a
equivalência. A paridade é um princípio que emerge da própria lógica da
necessidade de salvaguarda do direito à igualdade de tratamento entre as
pessoas em várias relações jurídicas, permitindo que para situações da mesma
natureza sejam estabelecidas as mesmas consequências ou benefícios. Por
sua vez, o princípio da equivalência obriga que uma determinada prestação ou
consequência seja estabelecida na medida do prejuízo ou da contraprestação
que a justifica[9].
Por sua vez, o interesse público é definido como a necessidade de uma
actuação tendente à satisfação das necessidades da colectividade, do
desenvolvimento económico e social, da estabilidade, convivência e
tranquilidade sociais.[10] Contudo, em relação a esse critério, o que a norma
estabelece não é o mero facto de haver alguma razão de interesse público que
justifique a fixação de efeito da inconstitucionalidade com um sentido mais
restrito. Contudo, a norma estabelece que esse facto de haver um “interesse
público” que possa justificar a fixação dos efeitos de inconstitucionalidade com
carácter restritivo não basta. É necessário que tal interesse público seja de
excepcional relevo. Ora, o conceito de interesse público de excepcional relevo
não está densificado, pois não se sabe qual é o interesse público que não é de
excepcional relevo para, com base nisso, identificar qual é o interesse público
de excepcional relevo que possa justificar a fixação mais restritiva dos efeitos
de inconstitucionalidade.
É nosso posicionamento que esta disposição dá muita liberdade ao Conselho
Constitucional de fixar os efeitos de inconstitucionalidade ou de ilegalidade sem
que os critérios usados estejam fortemente estabelecidos para uma orientação
mais segura. Portanto, “a segurança jurídica, razões de equidade ou o
interesse público de excepcional relevo” como critérios da fixação do efeito da
inconstitucionalidade ou de ilegalidade não estão densificados e a sua não
densificação deixa possibilidade de arbitrariedade, o que não engrandece o
nosso sistema por criar riscos na fixação dos efeitos da declaração de
inconstitucionalidade ou de ilegalidade.
Conforme ensina Jorge Miranda, a declaração de inconstitucionalidade, ainda
que em termos perfunctórios, pode representar a inexistência jurídica – o que
implica que o acto inconstitucional não produz nenhuns efeitos desde a origem,
sem necessidade de declaração por qualquer órgão; Nulidade – o acto
inconstitucional não produz efeitos desde a origem ou desde que o seu
conteúdo colida com a norma constitucional, é insanável, não se pode
convalidar, mas torna-se necessária uma decisão pelo órgão de fiscalização
para a sua declaração; Anulabilidade – o acto inconstitucional produz efeitos
até à anulação pelo órgão de fiscalização, e Irregularidade – quando a
inconstitucionalidade não prejudica a produção dos efeitos pelo acto, podendo,
porém, trazer algumas consequências ou sanções.[11]
c) Inutilidade superveniente da lide e inutilidade superveniente da decisão
de mérito
A inutilidade superveniente da lide dá-se quando o efeito jurídico pretendido
através do processo se tornou lógica, natural ou juridicamente irrealizável ou
sem utilidade durante a instância. Nos termos da alínea e) do artigo 287º do
Código de Processo Civil, a inutilidade superveniente da lide é causa de
extinção da instância. Portanto, “a instância extingue-se ou finda de forma
anormal todas as vezes que, ou por motivo atinente ao sujeito, ou por motivo
atinente ao objecto, ou por motivo atinente à causa, a respectiva relação
jurídica substancial se torne inútil, i.e., deixe de interessar a sua apreciação”.
[12]
Por sua vez, o Conselho Constitucional refere-se, como é o caso do Acórdão
4/CC/2007, de 16 de Agosto[13], Acórdão nº 06/2007, de 30 de Novembro[14],
Acórdão nº 2 /CC/2018, de 22 de Março,[15] Acórdão nº 04/CC/2010, de 7 de
Maio[16], Acórdão 4/CC/2020, de 26 de Março,[17] a uma inutilidade
superveniente de mérito sempre para situações em que se pede a fiscalização
sucessiva, seja concreta ou abstracta, de inconstitucionalidade ou ilegalidade e
se constate que as normas são caducadas ou na pendência do recurso a
norma em fiscalização seja revogada. Salvo melhor entendimento, esta
interpretação é causada pela inconsistência da lógica da declaração do efeito
da inconstitucionalidade que dá espaço para que o efeito “ex nunc” seja
suficiente na resolução do assunto, o que no nosso entender não deveria ser
bastante, pois deveria ser privilegiado o efeito “ex tunc”, conforme resulta do nº
1 do artigo 70º da Lei Orgânica do Conselho Constitucional.
d) Casos de jurisprudência sobre a fiscalização da constitucionalidade
sobre normas revogadas no Direito Comparado
Olhando para o caso específico de Portugal, o Tribunal Constitucional da
República Portuguesa dispõe de abundante jurisprudência acerca da utilidade
do conhecimento do pedido de declaração de inconstitucionalidade de normas
entretanto revogadas.
De acordo com a orientação desde há muito firmada, o entendimento do
Tribunal Constitucional Português é de que a revogação da norma objecto do
pedido de declaração de inconstitucionalidade não determina, sem mais, a
inutilidade da intervenção do Tribunal Constitucional.[18]
Isto é, como “a revogação reveste, em princípio, eficácia prospectiva (ex nunc),
enquanto, em sede de fiscalização abstracta sucessiva, de acordo com o artigo
282.º, n.º 1, da CRP, a declaração de inconstitucionalidade comporta, em
regra, eficácia retroactiva (ex tunc), subsiste a possibilidade de persistir
interesse jurídico relevante na eliminação dos efeitos produzidos medio
tempore”.[19]
Contudo, o conhecimento do pedido que tenha por objecto norma revogada fica
sempre subordinado à demonstração de um interesse jurídico relevante.
Segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional Português, “o modo como
a existência de um interesse jurídico relevante na apreciação do pedido deve
ser determinada foi sintetizado no Acórdão n.º 171/2021 [e] afere-se em função
de uma dupla exigência: por um lado, que a norma revogada tenha produzido
efeitos jurídicos constitucionalmente relevantes durante a sua vigência; por
outro, requer-se que declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória
geral seja indispensável para atingir efeitos correctivos ou eliminatórios de
largo alcance, mormente quando seja conhecida a pendência de número
significativo de casos em que foram aplicadas as normas objecto de controlo”.
[20]
Nessa senda, nos termos da jurisprudência do Tribunal Constitucional
Português, o interesse jurídico relevante na declaração de inconstitucionalidade
de uma norma revogada, “não existirá sempre que se verifique uma de três
situações. Em primeiro lugar, quando seja previsível que a declaração de
inconstitucionalidade ou ilegalidade venha acompanhada de uma decisão de
fixação de efeitos, nos termos do n.º 4 do artigo 282.º da Constituição, que
mitigue ou elimine a sua repercussão no passado. Em segundo lugar, quando
se demonstre que a declaração de inconstitucionalidade de normas não
alteraria a posição jurídica dos interessados, designadamente porque as
decisões que as aplicaram transitaram em julgado, as normas eventualmente
inconstitucionais seriam mais favoráveis aos arguidos ou os efeitos jurídicos
produzidos são, por natureza, irreversíveis. Em terceiro lugar, quando seja
reduzido o número de casos em que sejam aplicáveis as normas revogadas,
casos esses em que permanece aberta a via do recurso de
constitucionalidade”.[21]
Refira-se, porém que ao abrigo do artigo 282º da Constituição da República
Portuguesa, a inconstitucionalidade tem efeitos sui generis, estando, entre
outros, fixado o efeito ex tunc (artigo 282, nºs 1 e 2), a repristinação das normas
anteriores à declarada inconstitucional, ressalva de casos julgados e a
possibilidade de fixação do efeito pelo Tribunal Constitucional com alcance
mais restritivo (artigo 282º, nº 4).
Conforme se constata, sob ponto de vista comparativo, quanto aos aspectos
meramente formais, tanto o ordenamento jurídico moçambicano, como o
português possuem a mesma teoria ecléctica quanto aos efeitos da declaração
de inconstitucionalidade ou de ilegalidade. Na verdade, o ordenamento jurídico
moçambicano importou de forma taxativa o regime português.
Porém, nos casos em que está em causa a fiscalização de
inconstitucionalidade de normas revogadas, no regime português, a declaração
de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, conforme se constata,
sempre poderá ter lugar quando se vislumbrar que é indispensável para
eliminar os efeitos dessa norma inconstitucional, mas revogada. Portanto, com
o mesmo regime dos efeitos, o ordenamento jurídico português não fixa
inutilidade de uma decisão de mérito simplesmente porque a norma já foi
revogada.
O que diferencia o regime português do moçambicano é o tratamento do
assunto pela jurisprudência, pois a jurisprudência constitucional portuguesa,
conforme demonstrado, permite a apreciação da inconstitucionalidade ou
ilegalidade de normas revogadas quando persistir interesse na eliminação
dessa norma inconstitucional enquanto a jurisprudência constitucional
moçambicana, com o regime jurídico idêntico ao de Portugal, quanto aos
efeitos da inconstitucionalidade ou da ilegalidade, independentemente da
persistência do interesse relevante na eliminação dos efeitos da
inconstitucionalidade ou da ilegalidade, sempre que uma norma estiver em
fiscalização e na pendência do recurso tal norma for revogada, imediatamente
decide-se pela inutilidade superveniente de uma decisão de mérito, o que no
nosso entender é mau para o aperfeiçoamento dos direitos e liberdades
fundamentais, pois deixa espaço para que efeitos de uma norma
inconstitucional ou ilegal continuem a se manifestar na esfera jurídica dos
cidadãos.
Conclusão
A primeira grande conclusão que se retira desta abordagem é a de que a teoria
dos efeitos da inconstitucionalidade, embora esteja, doutrinalmente, mais ou
menos evoluída, na prática ainda encontra muitas barreiras na sua fixação
pelos Estados para a melhor eficácia da existência das normas constitucionais.
Igualmente, tanto em Portugal como em Moçambique, o efeito da declaração
de inconstitucionalidade tem uma lógica sui generis e o desenvolvimento
prático da sua implementação depende muito da orientação que é fixada e
aprofundada pela jurisprudência. Neste caso, conforme amplamente se
demonstrou, a possibilidade de apreciação de inconstitucionalidade de normas
revogadas é permitida em Portugal considerando a lógica do efeito da
declaração de inconstitucionalidade e o efeito da revogação que pode não
eliminar todos os vícios que a norma criou quando vigorou, desde que
preenchidos os pressupostos lógicos referidos.
Contudo, orientação diversa tem o Conselho Constitucional da República de
Moçambique, pois sempre que a norma tiver sido derrogada ou tiver sido já
revogada, ab initio, declara não haver importância para uma decisão de mérito
sem discorrer sobre a importância ou não da eliminação dos efeitos da
inconstitucionalidade ou ilegalidade da norma, considerando ao facto de que a
declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade tem efeito prospectivo – ex
tunc e pode ser preponderante na eliminação do mal que foi criado pela
inconstitucionalidade ou ilegalidade, o que no nosso entender, constitui um
desamparo constitucional.
Por conseguinte, urge uma nova orientação na fiscalização da
constitucionalidade para garantir que uma norma que seja inconstitucional ou
ilegal e que tenha produzido efeitos e a sua revogação não tenha eliminado os
efeitos que ainda podem ser eliminados, o que pressupõe, como já referido, a
existência de um interesse relevante na eliminação dos efeitos da
inconstitucionalidade ou ilegalidade.

[1] GOUVEIA, Jorge Bacelar (2005). Manual de Direito


Constitucional, Apud António Chuva, et al. (2012). Estudos de Direito
Constitucional Moçambicano – Contributos para a reflexão. CFJJ-FDUEM-
ISCTEM, Maputo, pág. 467
[2] CANOTILHO, José Joaquim Gomes (2003). Direito Constitucional e Teoria
da Constituição, Almedina, 7ª Edição, págs. 890 – 891
[3] Cf. MIRANDA, Jorge (1988). Manual de Direito Constitucional. Tomo II:
Introdução à Teoria Geral da Constituição, 2ª Edição Revista, Coimbra. Pág.
312
[4] PRATA, Ana (2008). Dicionário Jurídico. 5ª Edição, Almedina. Págs. 1399 e
1497
[5] Cfr. Artigo 7º do Código Civil.
[6] Lei do Trabalho.
[7] Cf. https://pt.wikipedia.org/wiki/Seguran%C3%A7a_jur%C3%ADdica.
Consultado no dia 30 de Março de 2022, às 15 horas e 19 minutos.
[8] Cf. Artigo 252º da Constituição da República, artigo 158º do Código de
Processo Civil e artigo 122º da Lei nº 14/2011, de 10 de Agosto.
[9] Cf. De Vasconcelos, Pedro Pais. Et al (2019). Teoria Geral do Direito Civil.
9ª Edição, Almedina, págs. 25 e 26
[10] Tal entendimento pode-se extrair do artigo 5º da Lei nº 14/2011, de 10 de
Agosto; artigos 18º e 20º, ambos da Lei nº 7/2012, de 08 de Fevereiro.
[11] MIRANDA, Jorge (2022). A Fiscalização da Constitucionalidade, 2ª Edição
Revista e Actualizada, Almedina, págs. 99 a 104.
[12] Cf. http://www.joaojcoelho.pt/recente/processo-civil/8311-
ap1124114tbtmrc1-.html. Consultado no dia 18 de Fevereiro de 2022.
[13] Cf. BR nº 35, I Série, 4º Suplemento, de 31 de Agosto de 2007.
[14] Cf. BR nº 52, I Série, 2º Suplemento, de 28 de Dezembro de 2007.
[15] Cf. BR nº 63, I Série, de 29 de Março de 2018.
[16] Cf. BR nº 021, I Série, de 26 de Maio de 2010.
[17] BR nº 222, I Série, de 19 de Novembro de 2020.
[18]Cf. http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20220127.html.
Consultado no dia 11 de Fevereiro de.2022, às 14 horas e 21 minutos.
[19] Acórdão n.º 171/2021, Acórdãos n.ºs 17/1983, 238/1988, 135/1990,
308/1993, 397/1993, 804/1993, 806/1993, 186/1994, 57/1995, 580/1995,
117/1997, 673/1999, 45/2000, 32/2002, 140/2002, 187/2003, 76/2004, 19/2007,
31/2009 e 239/2012.
Cf. http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20220127.html.
[20] Vg. Acórdãos n.ºs 238/88, 186/94, 188/94, 57/95, 117/97, 497/97, 45/2000,
32/2002, 485/2003, 76/2004, 19/2007, 497/2007, 31/2009, 539/2012), devendo
tal indispensabilidade ser evidente e manifesta (v. os Acórdãos n.ºs, 238/88 e
32/2002. http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20220127.html.
[21] Cf. Acórdão nº
127/2022. http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20220127.html. Op.
cit. Pág. 3

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