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OS RASTROS PERDIDOS: O ESTATUTO CRIMINAL DA BRUXARIA NA

INGLATERRA DO SÉCULO XVII

Bruno Galeano de Oliveira Gonçalves


Mestrando, Universidade de São Paulo
bruno_galeano@yahoo.com.br

Durante séculos a bruxaria foi passível de punição. Mas isso não significa que ela
tenha sido um crime que abarcou sempre as mesmas práticas mágicas, considerado
ofensivo da mesma maneira e punido do mesmo modo. O estatuto da bruxaria seria
estabelecido a partir de uma noção da mesma e de um contexto legal, de modo que, apesar
das permanências, a bruxaria como crime estaria sujeita à atuação dos processos históricos.
Na Idade Moderna, entre os séculos XVI e XVII, a bruxaria foi considerada um dos
crimes mais perigosos e nefastos, senão o mais perigoso e o mais nefasto.
Desde o final da Idade Média, tinha se tornado hegemônica entre os letrados e as
autoridades a opinião de que a bruxaria era uma realidade e traria tormentos aos cristãos
através de um pacto diabólico. Assim dizia o Malleus maleficarum, no final do século XV:

“a opinião mais certa e mais católica é a de que existem feiticeiros e bruxas que,
com a ajuda do diabo, graças a um pacto com ele firmado, se tornam capazes, se
Deus assim permitir, de causar males e flagelos autênticos e concretos, o que não
torna improvável serem também capazes de produzir ilusões, visionárias e
fantásticas, por algum meio extraordinário e particular” (KRAMER;
SPRENGER, 2001, p.56).

Segundo a Summis desiderantes effectibus, tendo chegado a Roma boatos de que


“muitas pessoas, de ambos os sexos, a negligenciar a própria salvação e a desgarrarem-se
da fé católica” nas dioceses de Mainz, Colônia, Trèves, Salzburgo e Bremen “entregaram-
se a demônios, a íncubus e a súcubus, e pelos seus encantamentos [...] têm assassinado
crianças ainda no útero da mãe, [...] destruído homens, mulheres, bestas de carga, rebanhos,
[...] pomares, [...] pastos” (KRAMER; SPRENGER, 2001, p.43), Inocêncio VIII,

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consternado com a notícia, concedeu aos dominicanos Kramer e Sprenger poderes
inquisitoriais para que não deixassem abominações como essas sem punição. Dois anos
depois foi publicado o Malleus maleficarum. O tratado adquiriu autoridade muito
rapidamente, tendo apresentado uma síntese convincente de um dado conceito de bruxaria e
conselhos a respeito de como defendê-lo e lidar com ele (LEVACK, 1988, pp.50-52).
Contudo, durante a Idade Média, tinha sido estabelecido que a feitiçaria e o
malefício deveriam ser expurgados das paróquias e os praticantes dessa arte evitados, tal
qual admoestara o apóstolo em I Cor 5,11, e que não se deveria acreditar nos relatos de
algumas mulheres miseráveis, enganadas pelo Diabo para seu próprio prejuízo e para de
toda a congregação dos fiéis. O Canon episcopi era expressão dessa doutrina:

“também não deve ser omitido que algumas mulheres detestáveis, pervertidas
pelo Diabo, seduzidas por ilusões e fantasmas de demônios, acreditam e
professam elas mesmas que durante a noite cavalgam em certas bestas junto de
Diana, a deusa dos pagãos, e uma inumerável multidão de mulheres, que no
silêncio da madrugada transpõem grandes distâncias, que obedecem aos
comandos dela como se fosse sua senhora, que são invocadas a seu serviço em
dadas noites. Mas gostaria eu que fossem somente elas que perecessem em sua
infidelidade e não levassem tantos consigo para a destruição. Pois uma
inumerável multidão, enganada por essa falsa opinião, acredita ser isso verdade e
assim acreditando, afasta-se da fé verdadeira e é envolvida no erro dos pagãos
quando julga que há algo de divino ou algum poder exceto o do Deus uno”
(KORS; PETERS, 1972, p.29).

O Malleus maleficarum buscou reduzir esse caráter ilusório da bruxaria à realidade


da mesma para preservar-se da autoridade do Canon episcopi. Ele reconhecia que os
demônios eram capazes de ludibriar as pessoas, mas defendia que essas mesmas criaturas
poderiam causar males materiais aos homens, sendo essa uma opinião mais aceitável, pois,
entre outras coisas, o temor que se apossou da inteligência européia alimentavam a idéia
ainda mais forte de que existiria uma conspiração contra os cristãos (GINZBURG, 1991).
Essa concepção era uma novidade no seu todo, não nos seus elementos
constitutivos, dado que tal idéia de bruxaria tinha sido estabelecida a partir de
características secularmente atribuídas às bruxas, como a elaboração de filtros e venenos, o
assassinato de crianças e a associação entre elas e certos elementos noturnos (COHN,
1980). Nos séculos XVI e XVII, a bruxaria foi encarada pela maioria dos letrados na

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Europa como uma ameaça à cristandade, descrita como a abjuração da fé, a adoração ao
Diabo, o famigerado sabá, o estabelecimento de um pacto entre a bruxa e o Diabo através
do qual ela faria coisas assombrosas e nocivas aos cristãos. Francesco Maria Guazzo, no
seu Compendium maleficarum, publicado em 1608, na Itália, chegou a descrever a
conspiração das bruxas por meio de ilustrações em que um homem pisoteia a cruz, algumas
pessoas prestam homenagem ao trono diabólico e outras tantas comem e festejam,
dançando com demônios. James VI, o então rei da Escócia, dizia o seguinte:

“O Diabo usa as bruxas como instrumentos para certos fins, porém todos
tendendo para um único fim. Mais precisamente, o aumento da tirania de Satã e a
oposição à propagação do reino de Cristo. [...] Assim como o ministro enviado
por Deus que ensina publicamente sem erros como servir a Deus em espírito e
verdade, assim o espírito impuro [Satã] ensina pessoalmente os seus discípulos
como causar todo o tipo de mal” (JAMES,1996, pp.23-24).

Quando compôs o seu pequeno tratado de demonologia, o Daemonologie, no final


do século XVI, o rei dos escoceses acreditava que estivesse sendo vitima de uma
conspiração diabólica presidida pelo seu inimigo, o duque de Boswell. O casamento do
monarca com Anna da Dinamarca tinha sido acertado e como era de costume a princesa foi
esperada na Escócia. Contudo, os navios que a levavam foram avariados por incidentes
misteriosos e impedidos de deixar a Dinamarca por causa de um tempo ruim e persistente.
O rei então içou velas e foi ao reino da sua futura esposa, casando-se com ela lá. Quando
retornou, fez com que fossem conduzidas investigações a esse respeito e logo bruxas
confessaram ter atuado contra o rei e a rainha, tanto na Dinamarca quanto na Escócia. O
próprio monarca estivera presente em alguns interrogatórios e julgamentos, tendo
acompanhado com apreensão o desenrolar do episódio que culminou com a condenação de
muitas mulheres de North Berwick. A bruxaria tornou-se mais do que uma idéia, ela era
uma concepção operacionalizada, em resumo, um estereótipo (TREVOR-ROPER, 1990).
Assim sendo, a novidade dessa concepção de bruxaria era que ela tornava as bruxas
tão ameaçadoras e tão comuns que deixava de sobressalto qualquer autoridade com o poder
de persegui-las. A existência de uma conjuração diabólica em que se fazia parte através do
acordo demoníaco e da celebração do sabá explicaria os infortúnios do cotidiano e assim
essa concepção aproximaria uma noção mais erudita da bruxaria de outra mais

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popularizada. O estereótipo da bruxa era uma elaboração dos eruditos que expressava o
medo da subversão da ordem, mas manifestava também o temor da gente comum de que a
bruxaria arruinasse as plantações, matasse os animais e adoecesse as pessoas, sendo, então,
uma opinião aceitável e passível de ser posta em prática, mas não o seria necessariamente.
A caça às bruxas desenvolveu-se entre os séculos XV e XVIII na maioria dos
territórios europeus. Entretanto, as bruxas não foram nem concebidas, nem perseguidas da
mesma maneira ou levadas aos tribunais pelos mesmos motivos; existia uma pluralidade
nesse processo que impõe a necessidade de associar estudos e teorias para entendê-lo
minimamente (ANKARLOO; CLARK; MONTER, 2002). Mas, no que diz respeito a este
breve artigo, a pluralidade da perseguição às bruxas pode ser entendida como resultado da
associação de uma noção de bruxaria e de um contexto legal, de modo que se possa aceitar
que em alguma localidade a crença na bruxaria poderia ter prosperado e mesmo assim não
ter instaurado uma caça abrangente e intensa.
A idéia de que as bruxas estariam mancomunadas com os demônios para o tormento
da cristandade era conhecida em praticamente toda a Europa. Contudo, como ela não era
aceita totalmente e muito menos colocada em prática nalguns lugares, tornar-se-ia um
estereótipo quando, entre outras coisas, a bruxaria fosse considerada um crimen exceptum.
O crimen exceptum era uma categoria que abrangia crimes tão extraordinários, secretos e
ofensivos que de tão nefastos seriam ultrajantes para toda a comunidade e deveriam ser
expurgados (LARNER, 1992, pp.79-105). Diferentemente de outros crimes, como o furto e
até mesmo o homicídio, não se poderia conviver com o crimen exceptum, ele era tão
ameaçador que deveria ser extirpado, recorrendo a métodos extraordinários.
A bruxaria poderia ser considerada um crimen exceptum quando entendida como
uma espécie de heresia ou de traição, um crime interno, secreto, o que, contudo, nem
sempre acontecia, tendo existido lugares, como a Inglaterra, em que o estatuto criminal
corrente da bruxaria era semelhante ao do homicídio.
O tratamento dado a um crimen exceptum foi essencialmente estabelecido pela
Igreja em decorrência da perseguição aos hereges. Tendo sido recuperado entre os séculos
XI e XII, o direito romano, a partir do século XIII, introduziu na Europa alguns
procedimentos mais racionais e centralizados na administração da justiça que acabaram

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sendo adotados pelos tribunais eclesiásticos e seculares (BAILEY,2003, pp.73-75). Surgia
o sistema inquisitorial que, apesar de não ter sido a causa da perseguição às bruxas,
contribuiu para a operacionalização da concepção da bruxaria como conjuração diabólica.
O sistema inquisitorial, entre outras coisas, tinha atribuído aos tribunais a iniciativa
de perseguir um dado crime a partir de uma determinada acusação e de submeter a uma
investigação as eventuais testemunhas e acusados, inclusive lançando mão da tortura. O
combate a ofensas secretas tinha tornado admissível que no caso de um crime gravíssimo,
abjeto a comunidade, crimen exceptum, não fosse necessário comprovar um delito
propriamente e considerado suficiente para a condenação do acusado alguns poucos
testemunhos ou a confissão, facilitada pela tortura, assegurada pelo direito romano.
A aceitação da idéia da bruxaria como conspiração e do procedimento inquisitorial
estavam na vanguarda do pensamento europeu, associavam-se bastante bem e estabeleciam
a bruxa como uma idéia com desdobramentos teóricos e práticos palpáveis.

“elas [as bruxas] devem ser executadas de acordo com a lei de Deus, a lei civil e
imperial, e a lei municipal de todas as nações cristãs”, sendo “um grande crime
condenar um inocente ou deixar um culpado escapar” (JAMES, 1996, pp.48-49).

Mas, apesar de ter sido estabelecido sobre fundações sólidas, as quais, deve-se
enfatizar, tinham ido além da conceituação da bruxa e da aplicação da lei, o estereótipo da
bruxa foi contestado e, eventualmente, o crime de bruxaria, tal qual entendido nos séculos
XVI e XVII, deixou de ser perseguido e, finalmente, de existir.
Entre meados do século XVII e XVIII, os julgamentos de bruxas na porção
ocidental da Europa tornaram-se menos comuns e as legislações contra a bruxaria foram
revogadas, colocando fim à caça às bruxas (GIJSWIJT-HOFSTRA; LEVACK; PORTER,
1999, pp.53-59). Até o século XVII tinha sido comum que a bruxaria fosse encarada como
um crime gravíssimo que correspondia ao exercício de uma conspiração diabólica contra a
cristandade, entretanto, a partir do século XVIII, ela se tornou menos ameaçadora,
entendida como impostura e credulidade, em suma, como uma espécie de charlatanismo
(LEVACK, 1988, pp.227-242). O fim da caça às bruxas, portanto, teria expressado uma

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mudança no estatuto criminal da bruxaria, cuja consideração, apesar de interessante por si
só, pode contribuir para esclarecer o desgaste da crença em bruxas e da demonologia.

II

James VI subiu ao trono da Inglaterra em 1603, tornando-se James I. Ele era um


homem instruído, tinha tido uma educação clássica e não esteve alheio à situação
intelectual de sua época, interessado no movimento dos corpos celestes, nas estratégias dos
demônios e nas atribuições da realeza. Assim como um Bodin, James VI e I tratava de
demonologia por considerá-la uma necessidade intelectual e principalmente por acreditar
que ela fosse uma maneira de expressar sua concepção de monarquia (CLARK, 1992,
pp.188-213). O soberano Stuart concordava com os proponentes do direito divino dos reis,
acreditando ser seu dever manter a ordem em prol da cristandade, liberta, entretanto
ameaçada pelo catolicismo e pela bruxaria. As duas principais obras do rei, o
Daemonologie, escrito na juventude, na Escócia, e o Basilikon Doron, elaborado na
maturidade, na Inglaterra, mostram que teorias demonológicas e teorias políticas puderam
ser associadas num único anseio. Sendo assim, com a ascensão do monarca escocês ao
trono da Inglaterra, poder-se-ia esperar que tais idéias de bruxaria e de realeza fossem
expressas através de uma intensa caça às bruxas, mas não foi isso o que aconteceu.
A idéia de bruxaria e a administração da justiça na Inglaterra continuaram muito
parecidas com o que eram na Idade Média. Foram preservadas a bruxaria como malefício e
o procedimento acusatório, entretanto a ascensão do rei James trouxe algumas mudanças,
mas misturadas às permanências.
A bruxaria entre os ingleses era entendida essencialmente como malefício, ou seja,
o emprego da magia para o prejuízo de uma dada pessoa. Desde a Idade Média, a bruxaria
foi considerada pelos nobres um recurso para resolver as suas disputas, tendo sido Lady
Alice Kyteler acusada de bruxaria no século XIV, assim como a duquesa de Gloucester,
Eleanor Cobham, no século XV, e Jane Shire, conjugue de Ricardo III, e averiguou-se
também o uso da bruxaria contra a rainha Elizabeth (ANKARLOO; CLARK; MONTER,
2002, p.78). As bruxas eram também consideradas um problema para a maioria da

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população inglesa quando recorriam à sua arte para causar doenças e morte ou trazer
desastres naturais, como secas, tempestades e geadas (THOMAS, 1991). A bruxaria era
parte de uma miríade de práticas mágicas, não sendo temida por isso, mas porque era uma
maneira de traição e infortúnio, de modo que o apelo dos clérigos de que a bruxaria seria
uma atividade herética e diabólica não encontrou todo o respaldo entre as autoridades e a
população em geral (HOLMES, 1992, pp.21-47). Assim sendo, ainda que a lei contra a
bruxaria tenha se tornado mais dura nos reinados de Elizabeth I e James I, através dos atos
de 1563 e 1604, estabelecendo, por exemplo, a pena de morte em decorrência do malefício
e da intenção de causá-lo, em caso de reincidência, segundo a lei de 1604, e o mesmo para
a conjuração de maus espíritos, essa era uma pena aplicada da mesma maneira que a traição
ou o homicídio. A bruxaria na Inglaterra não foi entendida como heresia, uma ofensa
fundamentalmente à igreja, mas como atentado à propriedade, ao bem-estar e à autoridade,
sendo, então, coibida mais intensamente nesses termos, segundo o sistema acusatório.
O procedimento acusatório era utilizado pela maioria das cortes européias na Idade
Média, em especial nas cortes seculares. Originário do direito germânico, o sistema
acusatório consistia na existência de um litígio entre duas partes no qual uma delas deveria
levar a acusação ao tribunal. O tribunal não detinha a iniciativa para instaurar uma ação
criminal, ele era apenas o foro em que as partes se confrontavam. O acusador tinha a
responsabilidade de obter provas suficientes para condenar os acusados, as quais,
comumente, consistiam em testemunhos, mas caso não o fizesse, a corte poderia determinar
a realização de algum teste que determinaria a culpa e a inocência, como imergir o acusado
na água, colocar a mão do mesmo em água fervente ou estabelecer que acusador e acusado
enfrentar-se-iam num duelo. O ordálio era uma maneira de submeter a contenda entre as
partes ao julgamento divino, o qual, segundo o que se acreditava, não deixaria padecer o
inocente e escapar o culpado, de modo que o acusado imerso na água seria acolhido pelo
batismo e não morreria afogado, a mão posta na água fervente seria depois de algum tempo
e a vitória do acusado sobre o acusador evidenciaria o caráter injurioso da acusação. Sendo
assim, se fosse estabelecida a culpa do acusado, ele seria punido, mas, se ficasse clara a sua
inocência, o acusador seria considerado culpado e castigado (BAILEY, 2003, pp.01-02).

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A ascensão dos Stuart deu continuidade ao intuito dos Tudor de consolidar a
monarquia de maneira firme e central no governo da Inglaterra. A administração da justiça,
entre outras coisas, não foi ignorada pelas duas dinastias, de modo que, desde Henrique
VIII, o caráter personalista e centralizador dos reis ingleses buscava submeter os foros
locais aos tribunais londrinos, ou seja, inseri-los num sistema de justiça escrito, abrangente,
centralizado e hierarquizado. Tal „revolução judicial‟, como sugeriram alguns estudiosos,
estabelecia a primazia dos interesses reais através da burocratização e da profissionalização
no ministério da justiça (ANKARLOO; CLARK; MONTER, 2002, pp.63-64). Mas, ao
contrário do esperado, o enrijecimento da legislação contra as bruxas, através do ato de
1604, e a maior centralidade da justiça inglesa não promoveram as ondas de pânico em
relação à bruxaria. Conseguiu-se manter um relativo controle e brandura da perseguição por
causa do procedimento acusatório que desencorajava acusações e restringia os episódios de
bruxaria às localidades e da tutela burocrática que buscava prevenir as ondas de pânico que
poderiam colocar em xeque a autoridade. Mais do que perseguir bruxas, James I desejava
ser um modelo de monarca e para isso deveria manter a ordem e aplicar a lei corretamente.
Desde a perseguição às bruxas na Escócia, o soberano se mostrou cada vez mais
desconfiado dos casos de bruxaria e esse ceticismo acabou incentivado pela sua ascensão
ao trono inglês, dado que na Inglaterra a ameaça da bruxaria não era tão ressaltada quanto
na Escócia e que na Inglaterra ele teria a alternativa de mostrar-se um modelo de monarca
através do confronto ao catolicismo (CLARK, 1992, pp.195-199). Mas isso não significaria
que o rei tivesse se tornado descrente em relação à bruxaria, apenas que ele ficou atento às
dificuldades de perseguir a bruxaria como um crime secreto.

III

No final do século XVII, as controvérsias demonológicas na Inglaterra foram


bastante marcadas, entre outras coisas, pela dificuldade em adequar a noção da bruxaria
como crime secreto às necessidades processuais do reino. A contenda entre John Webster e
Joseph Glanvill, a mais famosa polêmica demonológica da época, versava sobre o conceito
de bruxaria e a validade dos julgamentos em vista da consistência das provas.

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John Webster, médico e crítico da bruxaria, autor de The displaying of supposed
witchcraft, sustentava a existência de dois tipos de bruxas, mas nenhum deles realmente
associado aos demônios.

“Colocamos em dois grupos os que são ou que podem ser considerados bruxas: 1)
aqueles que foram e são enganadores [active deceivers], impostores tanto na
prática quanto na intenção, mas que dissimulam suas mentiras e truques em
performances diversas e variadas; [...] 2) e os que são iludidos e não o sabem ou,
ao menos, não percebem e não entendem que são ludibriados. Estes são aqueles
que estão convictos de que viram, fizeram e experimentaram coisas estranhas e
maravilhosas, as quais, na verdade, existem apenas nas fantasias degeneradas
dessas pessoas, sendo somente ilusões da melancolia [melancholiae figmenta].
Mesmo assim, as confissões destes, apesar de absurdas, vazias, tolas, falsas e
impossíveis, são aceitas como verdadeiras pelos perseguidores de bruxas
[witchmongers], falsamente atribuídas aos demônios e consideradas suficientes
para condenar o confesso à morte, quando tudo não passa de uma fantasia”
(WEBSTER, 1677, pp.39,46).

Segundo ele, a concepção de que as bruxas firmariam um pacto com os demônios e


através dele poderiam fazer coisas nefastas e assombrosas era um equívoco tremendo. Essa
falácia teria se tornado corrente, estando sustentada em erros de tradução e de interpretação
dos textos sagrados e dos gentios, assim como na ignorância e na crueldade dos defensores
da realidade da bruxaria que além de desconhecerem as coisas naturais, não identificariam
os artifícios usados nas farsas de gente miserável. As autoridades deveriam ser duras com o
impostor, pois ao professar sua idolatria, ameaçaria a salvação dos demais, mas em relação
ao iludido, deveriam ser compassivas. Assim sendo, a bruxaria era uma ameaça no
momento em que fosse feita abertamente, oferecendo risco à doutrina religiosa que poderia
ser mais facilmente confirmado do que a assinatura de um pacto com os demônios.
Joseph Glanvill, clérigo anglicano, entusiasta da Royal Society e defensor da
realidade da bruxaria, o principal autor de Saducismus triumphatus, assegurava que a
bruxaria deveria ser encarada tal qual entendida pela maioria dos letrados.

“Acredito que eu tenha descrito a bruxa ou a bruxaria em minhas considerações


suficientemente para ser entendido, segundo a concepção que eu e, creio que, a
maioria dos homens tem, que uma bruxa é aquela que pode ou apenas aparenta
fazer coisas incomuns, além do alcance da arte e da natureza ordinária, através da
sociedade com espíritos malignos” (GLANVILL, 1688, p.261).

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De acordo com ele, apesar das críticas, esse conceito de bruxaria seria o mais
correto, pois era condizente com o entendimento da maioria dos letrados do passado e do
presente e, principalmente, porque assegurava que nalguns casos a bruxaria não passaria de
falsidade e que os demônios causariam males concretos aos homens se o quisessem e se
tivessem a permissão divina. O clérigo anglicano se dedicava a mostrar a realidade da
bruxaria porque ao tê-la entendido como um acordo diabólico, considerava que fosse uma
maneira de provar a existência das coisas espirituais e enfrentar a descrença que ameaçaria
disseminar o ateísmo entre os ingleses. Apesar de advogar tal concepção de bruxaria,
Glanvill não era um entusiasta da perseguição às bruxas.
Assim como Webster, Glanvill estava certo de que a maioria das histórias e dos
casos de bruxaria era falaciosa, entretanto, isso não significaria que a bruxaria não poderia
ser provada intelectual e criminalmente.

“Em terceiro lugar, eu aceito que a maior parte da humanidade é crédula de tal
maneira que a respeito desta matéria [a bruxaria] essa gente acredita em coisas
vãs e impossíveis, como a cópula com o diabo e a real transmutação de homens e
mulheres em outras criaturas, atribui as coisas extraordinárias do artifício e da
natureza à bruxaria e é ludibriada por imposturas sutis e bem planejadas. Também
aceito que existem uma infinidade de histórias tolas e mentirosas de bruxaria e
aparições entre o vulgo, assim como que muitíssimas delas surgiriam de truques e
das superstições papistas, muitas delas inventadas e planejadas pela malícia dos
padres. Em quarto lugar, eu reconheço que a melancolia e a imaginação têm
grande vigor e poder de persuasão e que muitas histórias de bruxaria e de
aparições não são mais do que delírios. Em quinto lugar, eu estou ciente e
confesso que existem muitas doenças naturais estranhas que apresentam sintomas
incomuns e produzem efeitos maravilhosos e impressionantes e que elas foram
erroneamente imputadas à bruxaria. Em sexto lugar, eu admito que os
inquisidores e os outros perseguidores de bruxas fizeram muitas coisas ruins,
tendo dado cabo de pessoas inocentes por considerá-las bruxas, e que a vigília e a
tortura induziram inocentes a confessar coisas extraordinárias. Em sétimo e
último lugar, eu reconheço que as transações dos espíritos com as bruxas, as
quais afirmamos serem certas e verdadeiras, são em sua maioria muito estranhas e
grosseiras e que nós mal podemos indicar os seus motivos e conciliar esses
acontecimentos com a noção comumente recebida de espírito e a situação do
outro mundo” (GLANVILL, 1688, pp.264-265).

Tendo feito tais concessões aos céticos, Glanvill propunha que aceitassem em
contrapartida que a bruxaria deveria ser provada por meio da experiência, ou seja, através
de testemunhos e evidências, para que ele, enfim, apresentasse alguns relatos que
comprovariam a existência da bruxaria e das coisas espirituais.

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Apesar do testemunho sagrado ser assegurado pela mais alta qualidade, a
controvérsia em torno da sua tradução e interpretação era tamanha que levava o clérigo
anglicano e empirista entusiasta a buscar corroborar a sua opinião não apenas por meio
dele, mas também através de uma porção de histórias recentes de bruxas e de espíritos,
certificadas por numerosas testemunhas, pessoas de qualidade, instruídas e com saúde.
Confiante de que um determinado acontecimento pudesse ser estabelecido através
de testemunhos segundo alguns critérios, Glanvill apresenta logo de início a sua
experiência com a bruxaria e a atuação diabólica num caso de assombração no condado de
Wilts, entre 1661 e 1662. Segundo ele, depois de um senhorio, o senhor Mompesson, ter
prestado auxílio ao condestável na prisão de um sujeito miserável que vagava pela região
tocando um tambor, coisas estranhas passaram a acontecer em sua casa. No começo foram
apenas algumas batidas misteriosas em cima da casa, nas laterais e nas portas sem que
ninguém se apresentasse, mas depois surgiram algumas aparições e ao final a mobília era
chacoalhada e as crianças, em especial, atormentadas por algo que as perseguia. Muitas
pessoas então acorreram à casa do senhor Mompesson, dentre elas o próprio Joseph
Glanvill, e algumas delas puderam presenciar tais eventos. Glanvill descreve a sua
experiência com precisão, indicando os dias em que se passaram determinadas coisas e as
pessoas que poderiam assegurá-lo, deixando de lado, dessa maneira, qualquer evento
testemunhado por uma pessoa apenas, mesmo que ele fosse tal pessoa, e cujas causas
poderiam ser outras que não a atuação espiritual. Sendo assim, restariam algumas
experiências confiáveis, como esta:

“Elas [as crianças] foram para a cama na noite em que eu estava lá por volta das
oito horas, mas logo uma empregada desceu as escadas e nos disse que a coisa
tinha voltado. Os vizinhos e dois clérigos que estavam ali foram embora, mas o
senhor Mompesson e eu, assim como um cavalheiro que tinha vindo comigo,
subimos. [...] Lá estavam duas garotinhas ainda na cama, entre sete e onze anos
de idade, suponho. Vi que elas tinham as mãos à mostra e não poderiam produzir
o barulho que vinha da cabeceira da cama. [...] Estando ali, enfiei a minha mão no
travesseiro, dirigindo-a para onde parecia vir o barulho. Mas, ao mesmo tempo
em que o barulho cessava ali, passava a ser ouvido em outra parte da cama.
Quando tirei minha mão do travesseiro, o barulho voltou para o mesmo lugar em
que estava. Disseram-me para imitar os ruídos e arranhar algumas vezes o lençol,
cinco, sete e dez vezes, o que foi seguido e sustado no número que tinha
escolhido. Procurei debaixo e atrás da cama, revirei-a até o estrado, apertei o
travesseiro, testei a parede detrás da mesma e fiz tudo o possível para descobrir se

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existia um truque ou alguma outra causa para isso; o mesmo fez o meu amigo,
mas nós não conseguimos descobrir nada. Sendo assim, fui e ainda estou
realmente persuadido de que aquele barulho fora feito por algum demônio ou
espírito” (GLANVILL, 1688, pp.320-321)

Contudo, de acordo com Webster, além desse episódio não passar de uma
impostura, não bastaria demonstrar a existência da bruxaria através de histórias de
aparições, dado que em nenhuma delas o pacto diabólico estaria explicitado e que a
concepção da bruxaria como impostura ou como fantasia não ignoraria a existência das
criaturas espirituais: “nós não negamos a existência de bruxas absoluta e simplesmente,
[...mas afirmamos que] elas não firmam um contrato visível com o Diabo, ele não se
alimenta delas, elas não copulam com ele [...]” (WEBSTER, 1677, p.51).
Ao contrário do que sustentava Glanvill, Webster acreditava que a bruxaria não
tivesse sido suficientemente provada, rejeitava que as confissões bastassem para estabelecer
o crime e, por causa disso, supunha que os tribunais pudessem ter sido ludibriados.
A maioria das histórias de bruxaria não teria credibilidade, porque, “elas não são
atestadas por qualquer testemunha sincera e honesta, mas por relatos e depoimentos e por
aqueles que são corruptos e parciais, quando não cúmplices da fraude e da impostura”, além
de que “os narradores dessas histórias publicou-as para o seu próprio benefício e para levar
adiante a falsa doutrina, a idolatria e a superstição, não sendo elas, portanto, dignas de
crédito” e também porque “essas histórias por si mesmas aparentam estar mentindo, sendo
ridículas, contraditórias em si mesmas e contrárias à autoridade da revelação e dissonantes
em relação à razão, por isso não devem ser apreciadas de outro modo que não como
mentiras e farsas abomináveis” (WEBSTER, 1677, pp.70-71). Um relato apenas teria
alguma credibilidade se fosse atestado por testemunhas isentas, baseado na experiência de
mais de uma pessoa, se não fosse publicado para a benesse de alguém ou de um credo e
discordante em relação aos dizeres da razão e da revelação. E, além disso, um relato apenas
gozaria de total credibilidade e então poderia ser tomado como evidência se o seu autor
fosse uma pessoa física e espiritualmente saudável, detentora da normalidade das
faculdades, livre da superstição e da ignorância sobre as coisas naturais e artificiais.

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Em contraposição aos casos que supostamente assegurariam a realidade da bruxaria,
Webster apresentava episódios de bruxaria em que se descobriu a impostura e a ignorância,
sendo este o mais emblemático deles:

“Por volta de 1634 […] teria ocorrido um grande encontro de bruxas [...] na
Floresta de Pendle, no condado de Lancaster [...]. Quem dizia isso era um tal de
Edmund Robinson […], cujo pai era [...] um homem pobre, e ambos, constando
que se acreditava neles e que eram incentivados pelos magistrados, [...logo]
passaram a ir de igreja em igreja para que o menino identificasse as bruxas,
supondo que muitas delas tivessem estado no pretenso encontro [...]. Calhou do
garoto ter sido trazido à igreja de Kildwick, uma grande igreja paroquial, na qual
eu, sendo cura, pregava durante a tarde [...]. Depois das orações [...], tentei
conversar em particular com ele, mas os homens que o acompanhavam recusaram
em absoluto; então, na presença de muitas pessoas, coloquei o garoto perto de
mim e disse: „menino, diga-me a verdade, „menino, diga-me a verdade, você viu e
ouviu essas coisas estranhas a respeito do encontro das bruxas [...] ou alguém
ensinou você a falar disso? Os dois homens [...] puxaram ele de mim e disseram
que o garoto tinha sido examinado por dois juizes de paz. Mas, indo alguns
magistrados à Lancaster, onde dezessete pessoas foram condenadas pelo júri, mas
absolvidas por causa da prudência do juiz, o qual não estava satisfeito com as
evidências, e sendo informado Sua Majestade e o Conselho, o bispo de Chester
foi nomeado para examinar tais pessoas. [...] Quatro delas foram levadas à
Londres, observadas e investigadas pelos médicos e cirurgiões de Sua Majestade,
em seguida por Sua Majestade e pelo Conselho e como não surgiram indícios de
culpa, presumiu-se que foram falsamente acusados. Então, resolveu-se separar o
garoto do seu pai, [...] eles foram capturados e presos separadamente. Em pouco
tempo, o menino confessou que foi instruído e incitado a inventar e assegurar
essas coisas contra os acusados e que persistiu nisso aconselhado por seu pai e
alguns outros, cuja inveja, espírito de vingança e ganância fomentaram tais
desígnios vis e diabólicos [...]. Isso é a mais pura verdade, estando ainda vivas
muitas pessoas de reputação e integridade que podem confirmar e testemunhar o
mesmo” (WEBSTER, 1677, pp.290-292).

Glanvill objetaria que estava disposto a reconhecer que a maior parte dos casos de
bruxaria era uma farsa, mas não todos eles, já que em alguns não foi encontrado indício de
impostura. Sendo assim, dever-se-ia contentar-se apenas com a constatação de um
determinado fato. Contudo, isso não era suficiente para convencer Webster, o qual atribuía
o ônus da prova aos defensores da bruxaria, dado que se na maior parte dos casos
descobriu-se alguma farsa, então seria mais adequado supor que a farsa não foi descoberta
nesses episódios misteriosos do que que eles realmente fossem obra da bruxaria. Em suma,
Glanvill e Webster estiveram em disputa pelas possibilidades sobre as quais a crença na
realidade da bruxaria poderia permanecer, restringido, de um lado, a falsidade como

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explicação para todos os casos de bruxaria, mesmo que se aceitasse que ela pudesse ser a
razão da maioria deles, e, de outro, ampliando o alcance dessa explicação até que ela
abrangesse qualquer episódio de bruxaria, como o de Tedworth e o da Floresta de Pendle.
O episódio das pretensas bruxas de Lancaster permite apresentar algumas
considerações finais. Um garoto teria testemunhado o encontro de um grande número de
bruxas na Floresta de Pendle e logo passou a ir de igreja em igreja indicando as bruxas que
teria visto, conseguindo algum dinheiro. Com a condenação de algumas pessoas pelo júri,
as autoridades fizeram valer sua preponderância e ceticismo. A sentença foi suspensa e o
caso levado aos magistrados londrinos que revelaram a impostura. O caso exprime,
primeiramente, a dificuldade de provar uma reunião secreta entre pretensas bruxas, dada a
desconfiança do juiz, em seguida, a atuação dos witchfinders na promoção da caça às
bruxas na Inglaterra e, enfim, a intervenção das autoridades londrinas em casos
controversos e potencialmente perigosos de bruxaria. Era expressa a inadequação do
conceito de bruxaria como participação numa conspiração diabólica em função do contexto
legal da Inglaterra que se caracterizava pelo procedimento acusatório e pela modernização
da justiça através da burocratização e centralização na aplicação da lei.
A polêmica entre Webster e Glanvill manifestou tal inadequação. Glanvill
sustentava uma noção de bruxaria essencialmente definida pelo acordo diabólico, não pelo
sabá, pois o pacto diabólico poderia ser provado mais facilmente. Além de sua experiência
com a bruxaria, Glanvill apresentou os autos de um processo de bruxaria de Somerset,
enviados pelo próprio juiz responsável pelo episódio. Se não era possível provar a reunião
das bruxas através de testemunhos, os casos de Somerset indicariam que o acordo diabólico
e o malefício poderiam ser demonstrados por meio de testemunhos e evidências, como os
instrumentos supostamente utilizados no malefício e a marca impressa nas bruxas pelo
Diabo. Glanvill buscava estabelecer um conceito mais adequado ao cunho maléfico da
bruxaria na Inglaterra e aos desafios impostos pelo crimen exceptum. A dificuldade em
investigar a bruxaria dentro do procedimento acusatório tornava fundamental a discussão a
respeito da confiabilidade das provas e da acessibilidade a um crime sigiloso. Webster,
enfim, defendia uma noção de bruxaria que embora não fosse nem original, nem orgânica,
era de mais fácil adaptação ao contexto, pois se tratava de uma ofensa aberta, pública.

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A desconfiança do rei James acabou prevalecendo. Ela não negava a bruxaria ou a
existência de seres espirituais, mas supunha que inocentes tivessem sido condenados por
bruxaria. A segurança proporcionada pela crença de que a intervenção divina asseguraria o
veredicto de um tribunal ia embora a medida em que a aplicação da justiça se tornava mais
moderna, mais burocrática e mais racionalizada. Ao tratar das confissões, dos testemunhos,
evidências e episódios de bruxaria como um todo, a crítica demonológica conseguia
impingir os seus argumentos, tornando as autoridades cada vez mais prudentes em relação
aos casos de bruxaria. A dificuldade em demonstrar satisfatoriamente a bruxaria fazia com
que fosse mais seguro simplesmente rejeitar as acusações, porque os magistrados, além de
colocar em risco um inocente, punham em jogo a reputação, dada a grande repercussão e
controvérsia em torno dos casos de bruxaria. O temor de que se instaurasse o pânico a partir
de algum episódio de bruxaria tornava os magistrados locais mais receosos e as autoridades
londrinas mais atentas aos interesses das comunidades que poderiam vitimar alguns de seus
membros através de acusações de bruxaria, de modo que os escândalos em torno da
bruxaria e o ceticismo legal fizeram a justiça inglesa refratária ao crimen exceptum.

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