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‘ENTREVISTA

Lilia Moritz Schwarcz


Quase pretos, quase brancos
C ARLOS H AAG
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FOTOS MIGUEL BOYAYAN

‘Q
uando vós nos feris, não sangramos nós?
Quando nos divertis, não rimos nós? Quando
nos envenenais, não morremos nós? E se nos
enganais, não haveremos nós de nos vingar? Se
somos como vós em todo o resto, nisto tam-
bém seremos semelhantes. Se um judeu enga-
nar um cristão, qual a humildade que encon-
tra? A vingança. Se um cristão enganar um judeu, qual
deve ser seu sentimento, segundo o exemplo cristão?
A vingança, pois”, fala Shylock, o polêmico persona-
gem de O mercador de Veneza, de Shakespeare. Lon-
ge de defender a violência, o bardo retrata um senti-
mento, infelizmente tão humano, embora de “cienti-
ficismo” newtoniano, da “ação-reação-ação” etc. quan-
do a questão são as supostas diferenças raciais. A mi-
nistra Matilde Ribeiro, da Secretaria Especial de Po-
lítica da Promoção da Igualdade Racial, disse, em
entrevista recente, que “não é racismo quando um ne-
gro se insurge contra um branco, porque quem foi
açoitado a vida inteira não tem a obrigação de gos-
tar de quem o açoitou”. Concordar ou não concordar?

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O dilema, hamletiano, é dos mais vo e de sua capacidade de servir de base tiçamento por cultura e aculturação.“Os
complexos. Como, aliás, é tudo o que se para o tão sonhado desenvolvimento problemas nacionais passam a ser relidos
refere à raça, em especial num país co- econômico, político e cultural. Balizados à luz do referencial cultural, e não bioló-
mo o Brasil. Afinal, aqui,“ninguém é ra- na interpretação racista, postas as ori- gico. Assim, ao contrário das mazelas dos
cista”, como determinou, em 1988, no gens mestiçadas do povo brasileiro, serí- genes, supostamente eternas, os da cul-
centenário da Abolição, uma pesquisa amos incapazes ao desenvolvimento e ao tura eram alteráveis por processos que
cujos resultados eram sintomáticos: 97% progresso”, escreve o professor do Depar- mudassem hábitos sociais herdados”, ex-
dos entrevistados afirmaram não ter pre- tamento de Economia da Universidade plica Paixão. O racismo à brasileira.
conceito. Mas, ao serem perguntados se Federal do Rio de Janeiro, Marcelo Pai- Do lado jurídico, Sílvio Romero, de
conheciam pessoas e situações que reve- xão, em seu artigo “O justo combate”. Recife, passou a defender que “o proces-
lavam a discriminação racial no país, O conceito de “raça”já chega ao Brasil “fo- so caldeador seria de importância fun-
98% responderam com um sonoro “sim”. ra do lugar”, necessitando do “jeitinho damental para a adaptação aos trópi-
“A conclusão informal era que todo bra- brasileiro” para funcionar. “Se falar na cos dos descendentes de europeus e, as-
sileiro parece se sentir como uma ‘ilha de raça parecia oportuno, o tema gerava pa- sim, os eurodescendentes brasileiros, sem
democracia racial’, cercado de racistas radoxos: implicava admitir a inexistên- perder seus atributos originais, incorpo-
por todos os lados”, avalia a antropóloga cia de futuro para uma nação de raças rariam o legado dos outros grupos ra-
Lilia Moritz Schwarcz, do Departamen- mistas como a nossa. A saída foi preco- ciais, absorvendo suas melhores quali-
to de Antropologia da Universidade de nizar a adoção do ideário científico, po- dades”. Daí para o entusiasmo racial de
São Paulo, autora, entre outros, de Retra- rém, sem seu corolário teórico, ou seja, Gilberto Freyre foi um pequeno passo,
to em branco e negro, O espetáculo das ra- aceitar a idéia da diferença ontológica cuja grande inovação, nota Paixão, foi
ças e As barbas do imperador. Democra- entre as raças sem a condenação à hibri- valorizar as matrizes genéticas e os hábi-
cia racial ou inferno racista? “O primei- dação, já que o país, a essas alturas, esta- tos culturais ordinários que formaram o
ro procedimento é destacar o caráter va irremediavelmente miscigenado”, ob- povo brasileiro, sem perder tempo com
pseudocientífico do termo ‘raça’, mesmo serva Lilia.“Incômoda era a situação des- pudores de ordem ético-racial. O bra-
porque seu sentido é diverso de lugar ses intelectuais, que oscilavam entre a sileiro agora deveria se orgulhar de sua
para lugar e suas determinações de cará- adoção de modelos deterministas e a ve- mistura. Embora não seja um conceito
ter biológico têm efeito apenas relativo e rificação de que o país, pensado nesses diretamente forjado por Freyre, logo se
estatístico. Não há como imputar à natu- termos, era inviável.” Pior: modelo de su- começou a falar, pelo globo, da “demo-
reza o que é da ordem da cultura: a hu- cesso na Europa de meados dos oitocen- cracia racial”brasileira, ainda que ela sur-
manidade é uma, as culturas é que são tos, as teorias raciais chegaram tardia- ja num momento em que nem sequer
plurais”, analisa Lilia. mente ao Brasil.“Raça, desde então, apa- democracia política existia no país. Em
Curiosamente, o racismo é um tema rece como um conceito de negociação, São Paulo, Florestan Fernandes, irado
nascido com a modernidade, que “ape- sendo que as interpretações variavam.” com Freyre, retruca esse otimismo (em
sar de tão globalizada, encontra-se mar- O debate anacrônico se deu em vá- verdade, o autor de Casa-grande & sen-
cada por ódios históricos, nomeados a rios territórios: as escolas médicas de Re- zala não escondeu o sadismo que existia
partir da raça, da etnia e da origem”. So- cife e do Rio de Janeiro (onde nasceu a na relação entre escravos e senhores, en-
mos “quase brancos, quase pretos”, co- “medicina política”), as faculdades de di- tre negros e brancos) com a tese de que
mo cantam Caetano e Gil, em Haiti, e, reito, o Instituto Histórico e Geográfi- a assimetria da escravidão permaneceu
por isso passamos nossa história a dis- co Brasileiro, os museus etnológicos e a a funcionar.
cutir esse “quase”.“A raça, no Brasil, sem- literatura, mesmo a de ficção. Represen- Segundo Fernandes, o processo de
pre foi um tema usado (e abusado) por tante médico, o maranhense-baiano Ni- modernização trouxera uma possibili-
‘pessoas’ fora do estatuto da lei. Nessa so- na Rodrigues assumia um darwinismo dade de não efetiva realização de uma
ciedade marcada pela desigualdade e pe- racial que preconizava a separação das democracia racial, já que o nosso mode-
los privilégios a ‘raça’ fez e faz parte de raças: a seleção natural daria cabo, no lo, como o da relação senhor-escravo,
uma agenda nacional pautada por duas processo competitivo, das inferiores, que permanecia dependente e periférico. Dis-
atitudes paralelas e simétricas: a exclu- seriam postas sob controle ou elimina- criminar, longe de exceção, seria uma
são social e a assimilação cultural. Ape- das. Com ele, a medicina adquiriu fo- tradição entre nós. Nos anos 1990 antro-
sar de grande parte da população per- ros políticos na medicina legal: “Os pólogos como Lilia e Peter Fry vão reto-
manecer alijada da cidadania, a convi- exemplos de embriaguez, alienação, epi- mar de forma crítica o “mito da demo-
vência racial é, paradoxalmente, infla- lepsia, violência etc. passaram a compro- cracia racial”, valorizando, em especial,
cionada sob o signo da cultura e reco- var os modelos darwinistas sociais em o conceito de “mito”, já que não se podia
nhecida como ícone nacional.” Isso não sua condenação do cruzamento, em seu acreditar na tal democracia de raças.“As-
é de hoje. alerta à ‘imperfeição da hereditarieda- sim como não se pode negar o racismo,
“Passado o secular período do escra- de mista’”, observa Lilia. O médico alago- não se pode abrir mão de falar das sin-
vismo, entre 1890 e 1920, a elite brasilei- ano Arthur Ramos, representante do sé- gularidades dessa sociedade misturada.
ra se debateu com a angústia quanto às culo XX, preferiu “dourar” a pílula do Não apenas a mistura biológica, mas a
origens genéticas mestiças de nosso po- doutor Nina, modificando raça e mes- miscigenação dos costumes e da religião”,

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escreveu Lilia. A democracia racial é um convivemos com um grande otimismo:


mito, não há dúvida.“Mas o mito guar- raça sempre deu muito o que falar no
da uma importância por ele mesmo, ten- Brasil, para o bem e para o mal, como
do em vista sinalizar um desejo coletivo, elemento de detração ou como elemen-
ausente de outras realidades, onde a dis- to de positivação. Esse senso comum, ele
criminação racial não faria questão de se já foi ciência, ou seja, o preconceito já foi
manifestar de forma velada. Consideran- conceito. No final dos dezenove, a pon-
do que toda sociedade se articula em tor- ta de lança científica brasileira e a in-
no de mitos de origem (como o ameri- ternacional diziam que a mistura de ra-
can way of life ou a liberdade, igualdade
e fraternidade, dos franceses), o da de-
mocracia racial seria apenas um entre
outros”, avalia Paixão. “Dessa maneira,
se vai longe o contexto intelectual de fi-
nais do século passado; se já não é mais
ças era prejudicial e que um país forma-
do por raças muito diferentes estava fa-
dado à decadência. Nina Rodrigues, da
Escola de Medicina da Bahia, era o arau-
to dessa idéia. Ele mostrava, a partir da
idéia de que a esquizofrenia, a bebida, a

O racismo é
sempre deletério,
cientificamente legítimo falar das dife- loucura, inclusive as tatuagens, eram de- sempre
renças raciais a partir de modelos darwi- monstrações de que os indivíduos eram
nistas sociais, a raça, porém, permane- degenerados e que essa degeneração pas- uma perversão.
ce como tema central do pensamento saria para o corpo da nação. Essa seria
brasileiro”, acredita Lilia. uma nação sem futuro. Essa visão não Não há nada
era só de Rodrigues; nós a encontráva-
■ Quando até a secretária Especial de Po- mos em Euclides da Cunha, cujo relato de natural nele,
lítica da Promoção da Igualdade Racial maravilhoso é cheio de confrontos: o ser-
usa o “senso comum” para justificar o ra- tanejo é um desequilibrado, um degene- que é uma
cismo, o que se pode esperar da sociedade? rado, porque é fruto de raças muito equi-
— Foi evidentemente uma declaração libradas e diferentes. Ao mesmo tempo, construção
infeliz. Mas é preciso desmontar o que ele também é “rocha viva, a rocha dura”.
há por trás do senso comum, dessa fala Euclides da Cunha não dá conta de que, cultural nascida
que “aflora”. O racismo é sempre deleté- nem por que, enfim, esse mestiço sobre-
rio. Ele impede que você avalie uma pes- vive. Sílvio Romero, por exemplo, tem das profundas
soa, partindo de uma formação física, so- uma frase sensacional que revela o es-
bretudo da coloração da pele, ou então pírito de época: “É preciso não ter pre-
diferenças sociais
que você atribua à coloração da pele uma conceito. Os homens são diferentes”. En-
explicação de ordem biológica. O racis- tão, nessa época, ter preconceito era afir-
que nos dividem
mo é sempre uma perversão. Não há na- mar a igualdade. Agora isso virou um
da de natural nele, que é uma constru- senso comum. Nos anos 1930 há uma
ção cultural nascida das profundas dife- exaltação oficial da mestiçagem como
renças sociais que nos dividem. Eu acho nossa profunda singularidade, a saída
correto que se recorra à história para ten- que o Brasil dará para o mundo. A ci-
tar entender e modificar esse panorama, ência passa a deslegitimar a idéia de que
formar uma política. Mas chamar de na- a mestiçagem é ruim. O senso comum
tural qualquer tipo de racismo é fazer da assume isso também.
história um campo de batalha ideoló-
gico. Não há naturalidade aí. Acho que ■ Essas teorias chegam aqui “copiadas” ou
isso pode levar de fato a uma excitação, passam por uma adaptação?
a um ódio e, sobretudo, a algo que de que — O movimento no Brasil estava na
todos devemos discordar, que é transfor- contramão, porque, no momento em
mar a raça humana numa essência, nu- que as teorias raciais viram a palavra de
ma realidade. Ela não é raça, é uma cons- ordem da ciência brasileira, estavam en-
trução social e política. trando em descrédito na Europa. E no
momento em que as teorias raciais pas-
■ Como ciência e racismo se relacionaram sam a ser desacreditadas no Brasil, isso
historicamente no Brasil? já nos anos 1930, 40, na Europa elas vol-
— O Brasil é um país de paradoxos, por- tam com força, com a questão do na-
que ao mesmo tempo que nós carrega- zismo. As idéias, quando entram nesse
mos esse tremendo pessimismo, que foi momento da história brasileira, e nessa
do século XIX até os anos 1930, depois configuração social, política e específica,

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ganham uma nova dimensão e, inclu- migração, e emigrantes brancos, e pede


sive, na nova leitura, uma seleção. Afinal, o movimento dos dois lados. De um, a
uma coisa é pensar na eugenia em povos emigração branca e selecionada e, de ou-
não misturados, outra é a eugenia em tro, faz um elogio à esterilização de mes-
povos já misturados, os chamados de la- tiços. Quer dizer, o país da alentada de-
boratórios raciais. Aqui, o que houve? mocracia racial estava a um passo do
Um casamento de teorias que em outros apartheid social.
lugares acabaria em desastre. Claro que
são as teorias do evolucionismo com as ■ De que forma a raça foi usada como for-
teorias mais deterministas raciais, por- ma de criar uma identidade nacional?
que o determinismo racial supõe o quê? — Esse é um processo lento, porque sa-
Não há como misturar. O evolucionis- bemos que nações são construções, pro-


mo prevê o quê? A idéia de que certas jetos feitos de memórias. Como dizia
misturas podem ser benéficas e outras Walter Benjamin,“a memória é um pas-
não. Há uma seleção. Não foi uma cópia, sado feito de agora, repleto de agora”. A
Não falar mas uma tradução. memória é feita de algumas lembran-
ças e de muitos esquecimentos. Um pro-
a respeito não ■ Como entender as tentativas de bran- cesso de formação de uma memória na-
queamento da nação, por meio de imi- cional é um processo de esquecimento,
significa que grantes, separação de raças e outras ini- de seleções e de reelaborações. Até de
ciativas? uma literatura, como a de 1922, que
você não viveu — Essa saída, via branqueamento, é um mostrou que criamos um Estado, mas
exemplo da solução à brasileira, porque não uma nação. A identidade, ela é uma
o problema. não é dizer que o Brasil evitou o bran- construção contrastiva e o material, o
queamento. Claro que não, porque há to- fermento da identidade, era a idéia da di-
As pessoas do um movimento na Europa que prevê ferença. Então era preciso fermentar es-
a política da eugenia. Mas para poder sa noção da diferença. Esse bolo vai sen-
negam e jogam aplicar a política de branqueamento num do cozinhado durante o século XIX e a
no outro contexto já “branco” é diferente de pen-
sar em política de branqueamento num
gestão de Pedro II é fundamental para
entender esse modelo de Brasil que vai
o racismo país em que a população está africaniza-
da. Já se pede uma política de emigração.
se construindo. Pedro II não era gran-
de adepto dos modelos racialistas, mas
que na verdade João Batista Lacerda, do Museu Nacio- não se pode dizer que não fosse influen-
nal, vai participar do Congresso Oficial ciado pela época, pois, lembrando Sílvio
é de cada um das Raças. Naquele momento, vivemos Romero, nesse momento, assumir as di-
no contexto do pan-americanismo, há ferenças era não ter preconceito. Daí a
um receio político de que os Estados Uni- seleção do indígena como o ícone da na-
dos pratiquem uma política de invasão cionalidade, embora o indígena roman-
dos nossos territórios e Lacerda leva co- tizado. Essas teorias raciais entrariam em
mo saída o branqueamento. Ele mostra fins do século XIX na Faculdade de Di-
como, num estágio de cem anos, o Brasil reito, na Faculdade de Medicina, nos cír-
seria branco, pela seleção natural e pela culos militares. Mas foi no começo do
implementação de políticas migratórias século XX que esse debate em torno da
brancas. Para ter noção do “calor da ho- raça fica mais evidenciado. O interessan-
ra”, Lacerda é considerado pessimista, te é que, para a confirmação da identi-
pois falou em um século, o que seria de- dade, a raça teve que ser positivada: as-
mais para o branqueamento da nação. Is- sim como no Império você positiva o in-
so sem esquecer de política de migração dígena, no século XX, positiva-se a mes-
implementada sobretudo por Pedro II. tiçagem. A mestiçagem de nosso profun-
Pode-se entender a política de migração, do veneno se transforma na grande vir-
mas por que branca? A explicação está no tude: é o momento em que você tem a
conteúdo racial ideológico dessa políti- oficialização da capoeira, a descrimina-
ca. Há, por exemplo, um professor da Fa- lização do candomblé, o futebol se trans-
culdade de Medicina do Rio de Janeiro, forma numa prática negra, Nossa Senho-
Renato Kehl, que era partidário do mo- ra Aparecida se transforma numa santa
delo da África do Sul. Ele faz um elogio à mestiça, ícone nacional. Nos anos 1930
política sul-africana, que selecionava a a raça vira de fato um elemento da na-

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cionalidade, mas como “a boa raça”, “a trutural do mito, eles trabalham em es- também é um racismo que sempre joga
boa mistura”, e uma mistura racial se piral, falam entre si e o tempo todo de no outro a cota de preconceitos. Pode
transforma cada vez mais numa mistu- elementos que estão aqui na nossa reali- ser o argentino, no caso do futebol. O la-
ra cultural. dade social. Então, eu penso que é preci- do bom do momento em que nós vive-
so levar a sério o mito, porque ele já foi mos é enfim que as pessoas estão pas-
■ Como se pode reunir preocupação com desmontado muitas vezes e continua sando a refletir sobre essa questão. Não
raça e racismo? presente. O que significa levar a sério o falar a respeito não significa que você
— Na verdade, não há uma solução de mito? Não é dizer “temos democracia ra- não viveu o problema. As pessoas negam
continuidade. Pode parecer, pela etimo- cial”. Não, não temos. Praticamos uma e jogam no outro o racismo que na ver-
logia, raça e racismo, que há, mas não política perversa de exclusão e de discri- dade é de cada um.
obrigatoriamente. Estávamos à beira de minação. Então, não há a tal democracia
uma política de apartheid social, de po- social ou racial, mas também não acho ■ O que acontece quando se junta a ques-
líticas raciais evidentes. Estávamos para que devemos apostar em modelos de fo- tão racial à de gênero?
implementar uma política oficial de ra- ra, análises que dicotomizam a realida- — Já é uma discriminação duplicada.
cialização, o que não aconteceu. Já o ideá- de entre negros e brancos. Talvez essa se- Não é a dupla jornada de trabalho, mas
rio modernista transformou o tema da ja a afirmação mais infeliz da ministra, é a dupla jornada de preconceito, porque
raça num tema da humanidade. A pri- aparada em modelos que não são os pra- se existe um leque de representações ne-
meira definição de Macunaíma é um ticados neste país. A mestiçagem é uma gativas com relação ao malandro, ao
homem sem raça; daí para o homem realidade, mas o problema não é a cons- mestiço, quando se refere à mulher, is-
sem nenhum caráter é jogar a questão tatação da mestiçagem, mas a qualifi- so aumenta. A mulata é palco para a idéia
para o bojo da cultura. O ideário mo- cação positiva sempre da mestiçagem. de que não é só a preguiça, mas os atos
dernista transformou raça, cultura em Mestiçagem não é sinônimo de igualda- sexualmente condenáveis; há a influên-
etnia e desfalcou o tema para pensar de de. Mestiçagem não é obrigatoriamen- cia da prostituição, a traição, a mulata
alguma forma em modelos de assimila- te sinônimo de ausência de discrimina- que é matreira.
ção. A idéia modernista de Macunaíma, ção. É esse vácuo que me incomoda.
daquilo que você deglute, do que você ■ Enfim, como antropóloga, qual é a sua
devolve, é um pouco essa idéia de que ■ Podemos pensar, enfim, que ainda se visão do futuro do conceito de raça e do
você devolve o homem ao caldeirão de possa manter o conceito de raça? “ser brasileiro”?
cultura. É claro que essa noção, de algu- — Raça não é uma realidade ideológi- — Nós acionamos várias brasilidades de-
ma maneira, via o conflito, mas fazia o ca, mas raça é uma construção, muitas pendendo do lugar, do momento e da si-
oposto. A vantagem da literatura à Ni- vezes perversa, porque ela leva a um tuação, porque é um conceito baseado,
na Rodrigues é que em nenhum mo- campo de hierarquização. Dito isso, raça sobretudo contrastivo. A identidade se
mento ela camufla o conflito, antes ex- é uma construção, identidade também constrói pela imposição que ela apresen-
põe diferença. O problema de Rodrigues é uma construção. Estamos nesse cam- ta, pela posição que ela ilumina. Escre-
não era o diagnóstico, mas o remédio po: identidade também não é uma cons- vi um artigo para um jornal de Portugal
que ele implementava. trução que se faz em contexto e com lu- sobre um jogo de futebol, em Paraisópo-
tas sociais e com tensões sociais a todo lis, que se chama “Preto contra Branco:
■E sua idéia da “ilha de democracia ra- momento. Então seria preciso pensar é um jogo de futebol, no final do ano”.
cial, cercada de racismo”, o brasileiro que por que é que no Brasil raça sempre foi Nele as pessoas mudam de posição: num
só vê o racista no outro? material para pensar em identidade e ano jogam pelo Preto, noutro pelo Bran-
— Arthur Ramos teria sido o primeiro o que é que seria esse racismo à brasilei- co. Daí, você nota como, primeiro, a iden-
a falar de democracia racial, mas Frey- ra. Eu acho que existe, sim, um racismo tidade é uma questão circunstancial e
re levou a fama. Mas é preciosismo sa- à brasileira, cuja grande complexidade raça, uma situação, no senso comum,
ber quem foi o primeiro, pois o tema es- é que ele é uma idéia que é, sobretudo, “passageira”. As pessoas “embranque-
tava na agenda nacional. Tanto que en- de caráter privado. Isso tem se alterado cem”, “empretecem”. O que é uma pro-
controu lastro na discussão nacional, via e muito. Esse racismo brasileiro ainda se va de como raça, não como um concei-
Estado Novo, e ganhou resultados fora manifesta na esfera do privado, por con- to biológico, mas raça como uma cons-
do Brasil. Não se pode esquecer o impac- ta da ausência de movimentos no corpo trução social, continua a ser acionada no
to que essa idéia teve no exterior, como da lei. O que está havendo é uma inver- nosso imaginário. O que eu posso dizer,
no caso da pesquisa da Unesco que cha- são. Estamos tentando colocar no cor- sem medo de errar, é que as raças sem-
mou o Brasil de caso exemplar, uma gran- po da lei políticas de compensação, pra- pre deram o que pensar no Brasil, por-
de democracia racial. A idéia do mito é ticando políticas que de alguma manei- que, enfim, elas sempre acionaram, em
forte e ganha diferentes conotações. ra estão retornando e racializando o de- momentos estratégicos, que a identida-
Quando falamos em mito, não é no sen- bate. Esse racismo à brasileira é de cará- de, também pensada como uma cons-
tido da mentira. Hoje se pensa menos no ter privado, por não se manifestar no trução, é transformada num elemento
que o mito esconde e mais no que o mi- corpo da lei e por não se manifestar nas conformador de políticas públicas e de
to revela. Quando se pensa na análise es- estâncias mais oficiais. Além de tudo ele políticas de Estado. ■

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