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ARTIGO DE REVISÃO

Crack: farmacocinética,
farmacodinâmica, efeitos clínicos e tóxicos
Crack: pharmacokinetics, pharmacodynamics, and clinical
and toxic effects
Raquel Augusta de Castro1, Raquel Neves Ruas1, Renan Costa Abreu1, Renata Bernardi Rocha1, Renata
de Figueiredo Ferreira1, Renato Cançado Lasmar1, Sofia Andrade do Amaral1, Antônio José Daniel Xavier2

DOI: 10.5935/2238-3182.20150045

RESUMO

Esta revisão apresenta os aspectos químicos e farmacológicos do crack, além de seus efeitos 1
Acadêmico(a) do Curso de Medicina da Faculdade
de Ciências Médicas de Minas Gerais – FCMMG. Belo
clínicos e toxicológicos. Foram abordados trabalhos publicados entre os anos de 1990 e 2012, Horizonte, MG – Brasil.
por intermédio de buscas sistemáticas utilizando o banco de dados Scielo, Lilacs e jornais 2
Médico. Perito Médico Judicial. Professor da FCMMG e
da Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG. Belo
eletrônicos disponíveis na internet. O crack possui como substância ativa a cocaína, derivada Horizonte, MG – Brasil.
de folhas da planta Erythroxylum coca. Independentemente da sua forma de consumo
(intravenosa, inalatória, oral e intranasal), exerce seus efeitos tóxicos a partir dos principais
metabólitos: benzoilecgonina e metil-éster de ecgnonina. A alta lipossolubilidade apresenta-
da permite que atravesse a barreira hematoencefálica e placentária, tendo especial afinidade
pelo cérebro. Atua como potente agonista adrenérgico, dopaminérgico e serotoninérgico e
bloqueador dos canais de sódio voltagem-dependentes, o que justifica seus efeitos clínicos e
potencial tóxico. A intoxicação aguda irá se manifestar pela hiperatividade desses sistemas.
O entendimento da toxicologia do crack é importante para detecção e manejo clínico da
intoxicação aguda, da sua abstinência e consequências do seu uso crônico.
Palavras-chave: Cocaína Crack; Cocaína Crack/farmacocinética; Toxicologia; Farmacologia.

ABSTRACT

This review presents the chemical and pharmacological aspects of crack in addition to its
clinical and toxicological effects. Studies published between 1990 and 2012 were evalu-
ated through systematic searches in the Scielo, Lilacs, and electronic journals databases
available on the internet. Cocaine is the active substance in crack, derived from Erythrox-
ylum coca plant leaves. Regardless of its form of consumption (intravenous, inhalation,
oral, and intranasal), it exerts toxic effects from its main metabolites: benzoylecgonine
and ecgonine methyl ester. The high fat solubility presented allows their crossing of the
blood-brain barrier and placenta with a special affinity for the brain. It acts as a potent
adrenergic, dopaminergic, and serotonergic agonist, and voltage-dependent sodium
channels blocker, which justifies its potential clinical and toxic effects. Acute intoxication
will manifest in the hyperactivity of these systems. The understanding of crack toxicology
is important for the detection and clinical management of acute poisoning, abstinence,
and consequences of chronic use.
Key words: Crack Cocaine; Crack Cocaine/pharmacokinetics; Toxicology; Pharmacology.
Recebido em: 17/03/2013
Aprovado em: 15/06/2016

INTRODUÇÃO Instituição:
Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais – FCMMG
Belo Horizonte, MG – Brasil

O nome cocaína refere-se, popular e comercialmente, aos sais de cocaína (clo- Autor correspondente:
Antônio José Daniel Xavier
ridrato de cocaína e sulfato de cocaína), que são os dois produtos mais puros do E-mail: ajdxavier@gmail.com

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processo de refinação da coca (feita com folhas da FARMACOCINÉTICA


planta Erythroxylum coca). Os sais de cocaína são ter-
morresistentes, pouco voláteis e seu ponto de fusão A cocaína é bem-absorvida pela maioria das vias
é de 190°C. São conhecidos por “pó”, “talco”, “neve”, de administração, sendo importante a determinação
“farinha”, “branquinha” (Figura 1).1-3 dessas vias para caracterizar a velocidade com que
se produz o começo de sua ação, sua concentração
sanguínea e a duração do efeito euforizante da droga.
Os efeitos psicoativos têm início mais rápido quando
é administrada por via intravenosa e inalatória, com-
parado à administração oral e intranasal. Os sais de
cocaína são muito difusíveis em água e termolábeis,
permitindo sua fácil absorção pela mucosa nasal. O
crack é insolúvel em água, mas solúvel em lipídios e
solventes orgânicos; e tem como sua principal via de
entrada a inalatória.1,2,6
O início dos efeitos psicoativos produzidos pela
cocaína demora entre oito segundos e 30 minutos e
permanecem por cinco a 90 minutos, dependendo,
em parte, da via de administração. O crack leva, em
média, seis a oito segundos para iniciar sua ação e
Figura 1 - Estrutura química da cocaína. dura entre cinco e 10 minutos. Quando injetada,
Fonte: Mosquera e Menéndez MC.1
a droga demora o dobro do tempo para iniciar sua
ação. A duração do efeito da cocaína via intravenosa
Denomina-se pasta-base, ou pasta de cocaína, e fumada é menor, o que implica que o consumidor
uma sustância branca acastanhada, semissólida ou tem que administrar várias doses para alcançar um
sólida, que se obtém como produto intermediário da estado intenso de euforia. A injeção intravenosa e a
refinação dos sais de cocaína. É um produto gros- inalação de cocaína produzem níveis máximos de
seiro, que contém muitas impurezas, como metanol, concentração no plasma depois de três a cinco e um
éter, acetona, permanganato de potássio, ácido ben- a três minutos da administração, respectivamente.2,5-9
zoico, querosene, gasolina e ácido sulfúrico e é de-
nominado basuco ou crack.1,2,4
O crack é obtido a partir da mistura da pasta-ba-
se de coca ou da cocaína refinada com bicarbonato
de sódio e água. O composto, quando aquecido a
mais de 100ºC, passa por processo de decantação,
em que as substâncias líquidas e sólidas são sepa-
radas. O resfriamento da porção sólida gera a pe-
dra de crack, que concentra os princípios ativos da
cocaína e ganhou esse nome devido aos estalidos
emitidos quando fumado.2-6 Figura 2 - Concentração sanguínea em função do tempo
Essa forma de cocaína tem a propriedade de transcorrido depois de sua administração intravenosa.
fundir-se aos 98ºC e alcançar o ponto de ebulição Fonte: Pérez AO.9
aos 250ºC, o que permite ser fumada. Por ser pro-
duzido de maneira clandestina e sem qualquer con- Ao fumar o crack, o seu princípio ativo, que é a co-
trole, o crack possui diferenças no nível de pureza, caína, é rapidamente absorvido pelos capilares pul-
podendo conter outros tipos de substâncias tóxicas. monares e segue para a corrente sanguínea. Dessa
Em razão de suas impurezas e das sustâncias agre- maneira, a cocaína se distribui por todo o organismo
gadas, possui custo menor que o da cocaína e por e, devido à sua alta lipossolubilidade, atravessa a bar-
isso seu consumo é maior em grupos economica- reira hematoencefálica e placentária, tendo especial
mente menos favorecidos.2,3 afinidade pelo cérebro. A cocaína tem volume de dis-

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tribuição de 2 L/kg. A biotransformação do princípio ■■ atua pré-sinapticamente sobre o transportador ve-


ativo inicia-se rapidamente no sangue devido ao pH sicular da dopamina, localizado nas terminações
do meio aquoso, o qual é potencializado por colines- nervosas mesolímbicas e nigroestriais, responsá-
terases e posteriormente se completa no fígado, onde vel por armazenar a dopamina previamente sinte-
é hidrolisada por colinesterases, produzindo seus tizada no citoplasma e/ou a dopamina recaptada
metabólitos principais, a benzoilecgonina e a metil- na fenda sináptica;
-éster de ecgnonina. Outros metabólitos menores, ■■ possui afinidade por sítios de receptores serotoni-
como a norcocaína e o cocaetileno (metabólito ge- nérgicos, muscarínicos (M1, M2) e sigma.
rado quando a cocaína é administrada com etanol),
são também detectados em quantidades menores.1,2,6 Os efeitos sistêmicos ocorrem como resultado
A cocaína e seus metabólitos não se ligam às da capacidade de, simultaneamente, aumentar os
proteínas plasmáticas. A vida média de seus meta- níveis de catecolaminas bem como bloquear a sua
bólitos oscila entre 4 e 6 horas e é maior que a da co- recaptação, o que leva ao agonismo contínuo em
caína livre, que é de aproximadamente 60 minutos. ambos os receptores, alfa e beta. A exposição à
A quantidade encontrada no sangue corresponde cocaína produz miríade de sinais e sintomas. A ex-
fielmente à quantidade exposta aos receptores. Em posição aguda pode estar associada a hipertermia,
pessoas com superdosagem, apresenta concentra- hipertensão arterial, taquicardia, midríase, estupor
ções diferentes e importantes no cérebro e sangue, e depressão respiratória e cardíaca, podendo obs-
chegando a encontrar no primeiro 10 vezes a con- curecer a clássica resposta ao trauma e ao choque
centração sanguínea, tomada ao mesmo tempo. Sua hemorrágico. No miócito cardíaco, diminui a velo-
eliminação se efetua principalmente por via renal, cidade de despolarização, a amplitude e a veloci-
representando 85 a 90% do total. Dessa quantidade, dade de condução do potencial de ação, podendo
apenas 1 a 5% são cocaína não metabolizada, sen- causar disritmias cardíacas e morte súbita. Provoca
do a benzoilecgonina e metil-éster de ecgonina as sensação de poder e infatigabilidade; e em altas do-
principais formas encontradas, detectadas a partir ses pode promover agitação, insônia, alucinações
de seis horas depois do consumo e com pequena e convulsões. O uso crônico associa-se ao desen-
quantidade em forma livre. Testes para verificar o volvimento de psicose e paranoia. Ambas as formas
uso de cocaína podem ser realizados por análise do de cocaína, cloridrato e base livre (crack), têm alto
sangue, da urina e do cabelo. O teste toxicológico potencial de desenvolver vício.1,2,6,7
urinário é o teste de referência e identifica o metabó-
lito benzoilecgonina, que pode ser detectado quatro
a 48 horas após exposição à droga.1,6,7 ASPECTOS TOXICOLÓGICOS

A cocaína exerce seus principais efeitos através


FARMACODINÂMICA dos sistemas dopaminérgicos, adrenérgicos e seroto-
ninérgicos, podendo ser observado no:
Os efeitos da cocaína podem ser explicados por ■■ sistema dopaminérgico: no uso agudo, impede

sua ação em vários receptores:1,2,7 a recaptação do neurotransmissor dopamina na


■■ bloqueia os canais de sódio dependentes de vol- célula pré-sináptica do sistema mesocorticolím-
tagem, exercendo seu efeito anestésico local, im- bico dopaminérgico e aumenta, portanto, sua
pedindo a condução de impulsos nervosos; disponibilidade na fenda sináptica. Essa maior
■■ atua nos terminais monoaminérgicos, o que inibe a disponibilidade dos neurotransmissores dopa-
recaptação de dopamina, serotonina e noradrena- minérgicos permite estimulação maior e mais
lina a partir do bloqueio competitivo de seus trans- prolongada dos neuroreceptores D1, D2, D3, D4,
portadores. Essa ação sobre os transportadores au- D5. Muitas das alterações comportamentais que
menta a quantidade de neurotransmissor na sinapse provoca podem ser atribuídas a esse mecanismo
e estimulação sobre os receptores pós-sinápticos. de ação, porém também induz o aumento da sín-
Acredita-se que as propriedades de dependência e tese da dopamina. Em contraste com esses efeitos
vício da cocaína estão relacionadas principalmente agudos, o uso crônico de cocaína provoca esgo-
à inibição do transportador da dopamina; tamento da dopamina na fenda sináptica;1,2

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■■ sistema adrenérgico: os dois metabólitos principais ■■ sistema serotoninérgico: inibe a recaptação da


da cocaína, a benzoilecgonina e a ecgoninametiles- serotonina e de seu precursor, o triptofano, dentro
ter, atuam como agonistas adrenérgicos diretos no dos neurônios serotoninérgicos. Essa ação esti-
bloqueio do sistema de transporte na membrana da mula os autorreceptores inibitórios pré-sinápticos,
célula nervosa, impedindo a recaptação dos neuro- aumenta a concentração da serotonina (5-HT) na
transmissores norepinefrina e epinefrina na célula fenda e provoca retroalimentação negativa, que
pré-sináptica, aumentando, portanto, a disponibili- esgota rapidamente o 5-HT no cérebro. Em geral,
dade dessas substâncias na fenda sináptica.1 Essa o efeito sobre a 5-HT é inibitório. Essa via seroto-
maior disponibilidade dos neurotransmisores adre- ninérgica pode se relacionar aos efeitos alucinató-
nérgicos permite a estimulação maior e mais pro- rios e psicomiméticos produzidos pela cocaína, o
longada dos receptores adrenérgicos α1, α2 e β1, β2 que explica as alterações motoras e estereotipias
e β3. Também estimula a tiroxina-hidroxilase, que vistas nas pessoas intoxicadas.1
ajuda a produzir mais norepinefrina no neurônio. A
via norepinefrínica está relacionada ao sistema de
alerta e vigília. Também se relaciona à hiperativida- EFEITOS CLÍNICOS
de do sistema autônomo, produzindo efeitos diretos
sobre o sistema cardiovascular, endócrino, ocular, ■■ efeitos neuropsicológicos: a cocaína e seus deri-
etc. Consequentemente, verificam-se: aumento da vados têm amplo efeito sobre o comportamento e
frequência cardíaca; vasoconstrição de arteríolas e as emoções, sendo altamente propensa à depen-
veias através do músculo liso vascular; intensa mi- dência por atuar diretamente sobre o centro de re-
dríase por contração do músculo radial; aumento compensa. Seu efeito varia desde emoções pato-
das secreções salivar, gástrica e pancreática e in- lógicas, como estados acentuados de depressão,
tensa sudorose. Essa ativação noradrenérgica pode grandiosidade, ansiedade, até de grave paranoia
ser responsável pelo aumento da pressão arterial e transtornos afetivos.1,4
sistêmica e da vigilância, devido ao efeito sobre o A ação de uma dose causa perda de apetite,
tronco do encéfalo (locus ceruleus).2 Paralelamente transmite sensação de bem-estar, aumenta a re-
à descarga adrenérgica que se produz inicialmente, sistência física ao diminuir a sensação de fadiga,
também se produz estimulação da enzima adenilci- além de promover inquietude, excitação, loquaci-
clase e, portanto, aumento do segundo mensageiro dade, ansiedade e até confusão mental. A euforia
AMPc a partir da adenosina trifosfato (ATP), o que inicial pode ser seguida de ansiedade, agitação,
gera resposta adrenérgica caracterizada por acele- delírio, psicose, tremor, rigidez muscular ou hipe-
ração geral das funções fisiológicas;1 ratividade e convulsões.1,4
A euforia é fenomenologicamente diferente
das euforias produzidas por outras sustâncias
(opiáceos, álcool, etc.) e inclui ativação, efeito
ansiolítico inicial, desinibição, curiosidade e in-
teresse, autoconfiança e autoestima aumentadas,
em estado de alerta e sem alucinações ou confu-
são. As consequências adversas podem ser exa-
gerações dos componentes da euforia e incluem
desinibição, desequilíbrio do juízo, generosidade
atípica, hipersexualidade, ações compulsivas re-
petitivas e extrema agitação psicomotora.1,4
A agitação se converte em disforia, dependen-
do da dose e da duração do consumo. Acompa-
nha-se de mistura de ansiedade e irritabilidade. A
ansiedade varia de leve a pânico acompanhado
de delírio. Pode haver desorientação em casos
Figura 3 - Mecanismo de ação adrenérgica da cocaína graves, à semelhança de síndrome cerebral orgâ-
Fonte: Adaptado de Mosquera e Menéndez.1 nica, com transtornos do sensório. Essa disforia

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pós-cocaína leva à readministração, porém o in- que determinem se outros fatores como hiper-
dividuo pode estar exausto ou carecer de dinhei- tensão arterial sistêmica, tabagismo, etilismo ou
ro ou sofrer tolerância. tendência genética predispõem a eventos cere-
Consequentemente, aparece um período com- brovasculares com o uso da cocaína.6,12
posto de duas fases: inicialmente, estimulação e, ■■ efeitos em outros sistemas: no olho, a cocaína
logo, depressão (chamado “crash”). Nesta, surge produz midríase devido à contração do músculo
o desejo de parar e descansar e são procuradas radial da íris, secundária à estimulação do recep-
então sustâncias que facilitam o sono (opiáceos, tor α1 e visão borrada secundária ao relaxamento
barbitúricos, ansiolíticos, álcool, etc.) ou apare- do músculo ciliar para visão à distância, por esti-
ce um período de hipersonolência e hiperfagia. mulação inibitória do receptor β2. No trato uriná-
É observada síndrome de esgotamento no abuso rio, produz retenção urinária moderada, secundá-
de cocaína depois de intoxicação prolongada, ria a relaxamento do músculo detrusor da bexiga,
que consiste em letargia e sono profundos, que contração do trígano e esfíncter vesical. Nos pul-
podem durar várias horas ou dias, seguidos de mões, produz broncodilatação, diminuição das
recuperação espontânea.1,4 secreções bronquiais e melhor capacidade venti-
■■ efeitos cardiovasculares: o coração manifesta latória pulmonar. No tecido adiposo, ocorre esti-
cronotropismo e inotropismo positivos, em con- mulação dos receptores β3, ocasionando libera-
comitância ao encurtamento da diástole cardía- ção de ácidos graxos livres, por ação lipolítica
ca, resultado do aumento da frequência cardíaca, sobre os adipócitos. Nas ilhotas pancreáticas há
que posteriormente causa diminuição da eficiên- estimulação dos receptores α2 inibitórios e β2
cia do coração, aumento do período refratário excitatórios, produzindo diminuição na secreção
efetivo da fibra muscular, enquanto encurta o de insulina pelo efeito α2 inibitório e aumento na
tempo de condução do tecido condutor.1,4 secreção de glucagon por estimulação do recep-
O aumento na frequência cardíaca associa-se tor β2 excitatório, com aumento da produção de
ao aumento da demanda de oxigênio e, por causa glicose. Esses efeitos no pâncreas resultam no au-
da vasoconstrição periférica, eleva-se a pressão ar- mento da glicose sanguínea.1,4
terial sistêmica. Esses dois efeitos são mediados por
receptores α1, β1 e β2, localizados na vasculatura
arterial periférica (α1 e β2) e no coração (β1).1,4 TOXICIDADE AGUDA
Na vasculatura se produz estimulação excita-
tória sobre os receptores α1 das coronárias, ori- A cocaína administrada topicamente, como anes-
ginando sua constrição. Nas arteríolas cerebrais tésico local, não apresenta efeitos sistêmicos notá-
e pulmonares há estimulação dos receptores α2 veis e sua ação é predominantemente anestésica,
de tipo inibitório, ocasionando vasodilatação. Es- por estabilização da membrana axonal e bloqueio da
sas ações moleculares explicam o alto risco de a condução nervosa periférica. A verdadeira ação sis-
superdosagem de cocaína produzir infarto agudo têmica da cocaína se apresenta com a administração
do miocárdio e disfunção por mecanismos, como pelas vias nasal, pulmonar e parenteral, que desenca-
vasoespasmo e oclusão coronariana por trombo. deiam rapidamente efeitos notáveis no organismo.2,4
Pode associar-se à dissecção aguda da coronária A dose tóxica varia amplamente e depende da
após o uso da droga.1,4,6,10,11 tolerância individual, da via de administração (as-
■■ efeitos neurológicos: o uso de cocaína está as- pirada, fumada, injetada) e do uso concomitante de
sociado a eventos cerebrovasculares, isquêmicos outras drogas (álcool, heroína e outros agentes) e
(45%) e hemorrágicos (55%). A angiografia cere- outros fatores. Produz efeitos em 1-2 minutos, quan-
bral de pacientes que sofreram acidente vascular do é administrada via intravenosa. Pode produzir
pode apresentar estenose ou oclusão, única ou níveis altos transitórios no cérebro e coração capa-
múltiplas, de grandes vasos, como da artéria ca- zes de provocar convulsões ou arritmias cardíacas,
rótida interna. Acredita-se que portadores de mal- enquanto a mesma dose via nasal pode causar só
formações vasculares ou aneurismas cerebrais euforia. Considera-se que níveis sanguíneos de co-
estejam mais propensos a sofrerem hemorragia caína entre 100 e 200 mcg% produzem alterações
após o uso de cocaína. São necessários estudos clínicas evidentes.2,4,13

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As complicações agudas capazes de levar o usu- tolia, insuficiência respiratória, edema agudo de
ário a procurar serviço médico são individuais. As pulmão, cianose perioral, pulso fino ou não pal-
complicações psiquiátricas ocorrem em 35,8% dos pável, diminuição das funções vitais, inconsciên-
casos, destacando-se episódios de pânico, depres- cia e morte. Verificam-se, com frequência, as ten-
são e psicose. Os sintomas psicóticos (delírios para- tativas de suicídio. Essa sintomatologia se observa
noides, alucinações) podem desaparecer esponta- com níveis acima de 3 mg por 100 mL de sangue.
neamente após algumas horas (ao final da ação da
cocaína), mas agitações extremas podem necessitar O diagnóstico da toxicidade aguda é feito ao se
de sedação com benzodiazepínicos intramusculares observar, geralmente, adulto jovem que desenvolve
(midazolam 15 mg).12 síndrome adrenérgica de curta duração com agita-
Em geral, as alterações clínicas produzidas pela ção psicomotora, movimentos estereotipados e dor
cocaína se apresentam em três fases:1,4,13,14 torácica. Os exames complementares que podem
■■ Fase I. Estimulação inicial: as suas ações primá- ajudar a definir seu diagnóstico incluem: hemograma
rias são efeitos anestésicos locais, estimulação do (leucocitose frequente), eletrólitos (atenção para os
sistema nervoso central e inibição da recaptação níveis de cálcio, magnésio e potássio, pois sua defi-
neuronal de catecolaminas. A euforia induzida ciência pode mimetizar a intoxicação por cocaína),
pela cocaína se deve ao bloqueio da recaptação glicemia (hiperglicemia), ureia e creatinina (podem
de dopamina induzido pela droga, porém seu estar elevadas), gasometria e pH (acidose), CPK
uso crônico pode causar redução dos níveis de (elevada nos casos de rabdomiólise), urina I (mio-
dopamina e alteração da função dopaminérgica globinúria na rabdomiólise), radiografia de tórax e
cerebral. Essa primeira fase é rápida (na absorção eletrocardiograma (em caso de dor torácica), CK-MB
nasal, inicia-se 3-5 minutos depois do contato; na e troponina (em caso de enfarte do miocárdio), tomo-
endovenosa, de 10-60 segundos; e na fumada; em grafia computadorizada de crânio, punção lombar
3-10 segundos) e se caracteriza clinicamente por (pacientes com sintomatologia neurológica persis-
euforia, agitação, aumento da amplitude do pul- tente), culturas de sangue e urina.13
so, da frequência cardíaca e da pressão arterial A superdosagem é a complicação aguda mais co-
sistêmica, cefaleia, náuseas, vômitos, vertigem, nhecida relacionada ao consumo de cocaína, sendo
instabilidade emocional e movimentos involun- considerada emergência médica. Caracteriza-se como
tários (“tiques”) de pequenos músculos da face;, falência de um ou mais órgãos, decorrente do seu uso
e nos olhos ocorre midríase. Essa sintomatogia agudo e consequente aumento de estimulação cen-
pode ser observada com níveis sanguíneos supe- tral e simpática. Seus sinais clínicos são: palpitações,
riores a 40 mcgr%. sudorese, cefaleia, tremores, ansiedade, hiperventila-
■■ Fase II. Estimulação tardia ou avançada: ocorre ção, espasmo muscular e sinais de superestimulação
entre 30 e 60 minutos depois do contato com a adrenérgica como midríase, taquicardia, hipertensão
cocaína, com acentuação da taquicardia, hiper- arterial sistêmica, arritmia e hipertermia. Pode evoluir
tensão arterial sistêmica, desencadeamento de para crises convulsivas, angina do peito com ou sem
arritmias ventriculares, dificuldade respiratória, infarto agudo do miocárdio, hemorragia intracrania-
respiração irregular e hipertermia; hipercinesia, na e rabdomiólise e morte frequentemente por insufi-
encefalopatia maligna, convulsões tônico-clôni- ciência cardíaca e/ou respiratória.14
cas e status epilepticus. Essas manifestações clíni- A desintoxicação constitui-se em abordagem de
cas podem ser observadas com níveis de cocaína curta duração, de duas a quatro semanas, realizada
no sangue entre 100 e 200 mcgr%; em ambiente ambulatorial/domiciliar e hospitalar.
■■ Fase III. Depressão: é a fase mais grave da intoxi- Essa abordagem tem sido cada vez mais valoriza-
cação aguda por cocaína, apresentando-se como da no processo de tratamento, uma vez que parece
depressão dos diversos sistemas do organismo e, aumentar a adesão às medidas subsequentes.14 Nos
de acordo a dose ingerida, ocorre 1-2 horas de- casos menos graves, a sintomatologia de intoxicação
pois do consumo. Essa fase caracteriza-se por por cocaína são, geralmente, de curta duração e res-
coma arreflexivo e arresponsivo, midríase fixa, pondem bem ao uso de benzodiazepínicos, em do-
paralisia flácida, instabilidade hemodinâmica, ses suficientes para normalizar o ritmo cardíaco e a
insuficiência renal, fibrilação ventricular ou assis- pressão arterial sistêmica. Pacientes assintomáticos,

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