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organização familiar…”
Sérgio, não sabia como começar - então comecei copiando essa frase aí
de cima, é Caetano Veloso numa entrevista ao JB, vim lendo pelo
caminho, não consegui me livrar dela.
Agora estou aqui, escrevendo para você no meu quarto antigo, que
minha mãe conserva tal-e-qual, como se eu um dia fosse voltar para
casa. E lá se vão - quantos mesmo? - sei lá, quinze vinte anos, qualquer
coisa assim.
Chove. Faz frio. É bom estar aqui. Tão bom. Me sinto protegido. Ficamos
vendo velhas fotografias, bebendo vinho e rindo muito. Meu irmão Felipe
vestiu um modelinho de couro negro e saiu “para dar uma prensa numa
caixa de supermercado”. Márcia está tão bonita. E Rodrigo, meu
sobrinho, que tem dois anos e não parece quase me desconhecer. Deixei-
os vendo um filme antigo dos Beatles, Lennon repetindo “don´t let me
down” - e agora percebo que meu inglês anda tão precário que não
lembro se é d´ont ou don´t.
Cansado, cansado. Quase não dormi. E não consigo tirar você da cabeça.
Estou te escrevendo porque não consigo tirar você da cabeça. Hesito em
dizer qualquer coisa tipo me-perdoe ou qualquer coisa assim. Mas quero
te contar umas coisas. Mesmo que a gente não se veja mais. Penso em
você, penso em você com força e carinho. Axé.
Foi mau, ontem. Fui mau, também. Menos com você, mais comigo
mesmo. Depois não consegui dormir. Me bati pela casa até quase oito da
manhã. Teria telefonado para você, não fosse tão inconveniente. Acabei
ligando para Grace, pedi paciência, chorei, contei, ouvi.
Não era nada com você. Ou quase nada. Estou tão desintegrado.
Atravessei o resto da noite encarando minha desintegração. Joguei
sobre você tantos medos, tanta coisa travada, tanto medo de rejeição,
tanta dor. Difícil explicar. Muitas coisas duras por dentro. Farpas. Uma
pressa, uma urgência.E uma compulsão horrível de quebrar
imediatamente qualquer relação bonita que mal comece a acontecer.
Destruir antes que cresça. Com requintes, com sofreguidão, com textos
que me vêm prontos e faces que se sobrepõem às outras. Para que não
me firam, minto. E tomo a providência cuidadosa de eu mesmo me ferir,
sem prestar atenção se estou ferindo o outro também. Não queria fazer
mal a você. Não queria que você chorasse. Não queria cobrar
absolutamente nada. Por que o Zen de repente escapa e se transforma
em Sem? Sem que se consiga controlar.
Te escrevo com um cigarro aceso e uma xícara de chá de boldo. A
escrivaninha é muito antiga, daquelas que têm uma tampa, parece piano.
Tem um pôster com Garcia Lorca na minha frente. Um retrato enorme de
Virginia Woolf. E posso ver na estante assim, de repente, todo o Proust, e
muito Rimbaud, e Verlaine, Faulkner, Ítalo Svevo, William Blake. Umas
reproduções de Picasso. Outras de Da Vinci. Um biscuit com um pierrô
tão patético. Uma pedra esotérica ainda de Stonehenge, Inglaterra, uma
caixinha indiana. Todos os meus pedaços aqui.
Fiz fantasias. No meu demente exercício para pisar no real, finjo que não
fantasio. E fantasio, fantasio. Até o último momento esperei que você me
chamasse pelo telefone. Que você fosse ao aeroporto. Casablanca,
última cena. Todas as cartas de amor são ridículas. Esse lugar confuso
de que fala Caetano. E eu estava só começando a entrar num estado de
amor por você. Mas não me permiti, não te permiti, não nos permiti.
Pedro Paulo me dizendo no ouvido “nunca vi essas luz nos seus olhos”.
Tão artificial, tão estudado. Detesto ouvir minha voz no gravador ou ver
minha imagem em vídeo. Sôo falso para mim mesmo. A calma, o
equilíbrio, as palavras ditas lentamente, como se escolhesse. Raramente
um gesto, um tom mais espontâneo. Tão bom ator que ninguém percebe
minha péssima atuação.
O escritor é uma das criaturas mais neuróticas que existem: ele não
sabe viver ao vivo, ele vive através de reflexos, espelhos, imagens,
palavras. O não-real, o não-palpável. Você me dizia “que diferença entre
você e um livro seu”. Eu não sou o que escrevo ou sim, mas de muitos
jeitos. Alguns estranhos.
Não há nenhum subtexto nisto que te escrevo. Não acho bonito que a
gente se disperse assim, só isso. Encontre, desencontre e nada mais,
nunca mais, é urbano demais - e eu nasci praticamente no campo, até os
15 anos quase no campo, céu e campo. Não sei se a gente pode
continuar amigo. Não sei se em algum momento cheguei a ver você
completamente como Outra pessoa, ou, o tempo todo, como Uma
Possibilidade de Resolver Minha Carência. Estou tentando ser honesto e
limpo. Uma possibilidade que eu precisava devorar ou destruir. Porque
até hoje não consegui conquistar essa disciplina, essa macrobiótica dos
sentimentos, essa frugalidade das emoções.
E toda essa peste, meu amigo. O que tem me mantido vivo hoje é a
ilusão ou a esperança dessa coisa, “esse lugar confuso”, o Amor um dia.
E de repente te proíbem isso. Eu tenho me sentido muito mal vendo
minha capacidade de amar sendo destroçada, proibida, impedida, aos 36
anos, tão pouco. Nem vivi nada ainda. E não sou sequer promíscuo. Dum
romantismo não pós, mas pré todas as coisas - um romantismo que exige
sexualidade e amor juntos. Nunca consegui. Uns vislumbres, visões do
esplendor. Me pergunto se até a morte - será? Será amor essa carência e
essa procura de amor, nunca encontrar a coisa?
Das minhas heterossexualidades, dois filhos mortos, não ficou nada. Das
minhas homossexualidades, esse pânico lento e uma solidão medonha. A
hora é tão grave.
Não quero me tornar uma pessoa pesada, frustrada, amarga. Não vou me
tornar assim. Então vacilo, escorrego e a mania de perfeição virginiana e
a estética libriana no dia seguinte me dizem “que vergonha, que
vergonha, que vergonha”.
De repente me passa pela cabeça que você pode estar detestando tudo
isso e achando longo e choroso e confuso. Mas eu não quero ter
vergonha de nada que eu seja capaz de sentir. Tento não ficar assustado
com a idéia que este tempo aqui é curto, que eu vou voltar a São Paulo e
que talvez não veja mais você. Sei que não fico assustado demais, e
enfrento, e reconstituo os pedaços, a gente enfeita o cotidiano - tudo se
ajeita. Menos a morte.
Mas de tudo isso, me ficaram coisas tão boas… Uma lembrança boa de
você, uma vontade de cuidar melhor de mim, de ser melhor para mim e
para os outros. De não morrer, de não sufocar, de continuar sentindo
encantamento por alguma outra pessoa que o futuro trará, porque
sempre traz, e então não repetir nenhum comportamento. Ser novo.
Caio F.