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débora maciel souza, filha-fruto de lucí e miguel

quando era criança li que débora significa abelha rainha


arco-ciclo da água entre o ar e a terra
semente nova
cíclica
transitória
transi-terra-tempo-tento
nasc(ida) em franca-sp
num outono de 1999
vivendo em brasília-df
mulher negra da diáspora, dissidente sexual
neta de dona preta
faz um bom tempo eu descobri que posso fazer jogos de palavras, percebi que posso me eternizar
nisso, então é nisso que eu me enterro, continuo.
traversia transatlântica pra chegar numa terra fértil, atraversamos pra continuar costur(andando) e
(te)sendo por essa rede ancestral tec(ida), pra continuar sobrevivendo através da oralidade, da
palavra, da força da sacralidade do que in(vento). minha sensibilidade pra me compor no mundo
está nos que vieram de lá e também nos que sempre estiveram aqui.
minha escrita é ponte pra atraversarem.
na poesia que me (in)funda, nesse enquanto, tem luedji luna, tatiana nascimento, conceição
evaristo, beatriz nascimento, cristiane sobral, anelis assumpção, daisy serena, manoel de barros,
nayyirah waheed, xênia frança, nego bispo, fatoumata diawara, asa, assata shakur.

facebook: débora maciel


instagram: _deboramaciels
e-mail: deboramacielsouza@gmail.com
no br(eu) tem nós
há um tempo
havia um véu muito bem claro
muito bem higiênico
eles ainda me cobrem
eles ainda me cobram
sem apreço
pra eles eu tenho um só preço
mas sou peça rara, não estou no estoque
não me toquem
cuidado, frágil
me colocam à venda
e eu estou vendo tudo
me desvendo da claridade desse lugar
me desvendei pra entender que habito um não lugar
somos bravos
enquanto dormíamos
nos atravessaram de uma margem à outra
nos atravessam sem pedir licença
nós, cobertos de raízes e ancestralidades
nos (des)cubriram
seguimos acordados desde então
levantamos
aos poucos estamos a postos
não tenho mais dono
não há mais sono
há sonhos
no desencontro
de uma ponta à outra há nossos encontros
nossa valentia
nossa força que pulsa
e o brilho desse lugar vem do meu corpo
e a luz desse lugar vem das nossas ideias
eu volto, todas as voltas pra buscar vocês
eu caminho buscando os olhares dos nossos
eu vivo por esse calor de sentir que vocês também existem
vó preta nasceu em Lavras-MG
na terra que ela lavrou
eu cresci semente franca (SP)
folhinha nova na ponta dessa árvore
fo(linha) nova na página desse livro
hoje eu me lavro
agora me livro no planalto central
vou continuar (pa)lavr(ando) essa terra
vou continuar palavre(ando) esse livro
o medo é a impulsão
e o deslocamento é a pulsação
a travessia é minha pressão
os nossos cruzamentos, impressão

com minha ansiedade eu aprendo


(dist)ansiedade
(distan)cidade
(dist)ânsia
minha (itiner)ânsia

eu sou a anfitriã nesse lugar que eu acabei de chegar


eu me recebo
nesse abrigo
abre comigo
abre caminho
eu me peço licença pra chegar
pra me entregar e me perceber
eu me peço a benção pra me permitir

eu (des)canso
eu (per)corro
eu não me deito
esse não é o meu leito
lar provisório
inconstância permanente

eu atravesso o meu avesso


eu verso atrás, agora e depois
antes, em frente e aqui
lá, enfrente, dentro e ali
o mundo é todo meu
e nele eu não me comporto
o inverso desse berço
me nasce
essa corrente é minha nascente
a correnteza me resnasce

o ponto de (part)ida
é a ruptura
eu me (re)torno
essa é a (es)cura

a paz é utópica
na guerra eu sigo
'caosando'
no caos, eu ando
eu sigo correndo
cais, sinto
nos ais, eu aprofundo
eu sigo

meu oceano
é um cântico
eu não sei o que é fer(ida)
o que é arrepio nesse corpo
minha mãe diz que
cresci com pipoquinhas nas juntas
meu corpo é pele de c(ouro)
an(corais) de mundos
rota-gira-trans(lição)
per(i)manente
[essas balinha que cêis dá no troco num dá pra cumê]

no mercado
mar
ca(í)do dessa gente
brasileira
brasa, leito
preto tem que comprá
pra comer o pão que o de branco amassou
paga num suadô
sua dor
e o troco vem
em balinhas
e o troco
vem
em bala
embala o tiro
ao alvo
pro alto
bala
perdida
sem pedida
em linhas
em esquinas
escolhidas
em morros

bala no troco
estrala no tronco
chi
co(r)te nas costas
nas cotas
nas contas

mistura
me atura, neguinha
estupro, atiro, enfio
mais um fi
pra vancê podê se discurpá
mistura mistura mistura
preta demais
preto demais
leva de volta
é áfrica demais pra podê ficá
leva a rapa de volta
queimada demais
pra podê cuidá
clareia clareia clareia
areia leva de volta pro mar
embranquece embranquece embranquece
esquece, que pra tua casa cê não vai voltar
os mais clarin, pardin, tudo brasileiro
sem eira
nem beira
deixa
deixa fora do eixo
deixa zonziá
filho bastardo
basta, arde
tardo e falho
mais tarde
bem mais tarde
se nois quisé cê vai podê passá

passá
rinho
fora do ninho
em desalinho
que é pra desaprendê avuá

no meu canto
longe de lá
no meu pranto
pra poder lavar
com o meu santo
pra podê me cuidá

ca
fé, algo
dão
e cana
africana
(áfrica)nta
pra poder lembrá

a preta sobe, gira, rodeia e planta


que é pra raiz nenhuma, o de branco poder arrancá
levaram pro tronco
deixaram no toco
devolveram o troco

é que essa mordaça


me fez aço
é que essa cor
rente
me fez passo
é que essa cor
agem
é meu traço
quanto mais nos matam
mais preto a gente (re)nasce
quanto mais nos queimam
teimam
mais a gente continua preto
mais br(asa), mais fogo, mais preto
mais car(vão) nessa fogu(eira)
quanto mais nos sopram
mais a gente em chama preta
me ch(ama) preta
me incendeiam preta
quanto mais apagam
mais a gente encandeia

a vela que trago nesse b(arco)


é (c)antiga
nav(e)io de longe

eles mata(m)
'eu sou atlântica'

eles tentam afog(o)ar


a gente chora, nos cantos
corre em rio
em risco

a gente morre no mar


pra (re)nascer na costa
a gente morre no caminho pra sobreviver na ima(r)gem
esses corpos pretos caem
gritam nos c(ais)
e eu, morro
e a gente, morre morro
nós nos morros
amontoados de corpos
(amor)toados de corpos

corpos escritos em mim


corpos escrevividos em mim
corpos (mar)caídos em nós

queimam a chama viva


queimam os corpos vivos
apagam a vela, apagam os corpos
a gente ascende dos nossos
que sobreviveram, viram, vêm, vão
eu tenho chov(ido) bastante
meu choro é maré que a lua en(cheia)
do deságue
e da entrega
deságua
desenterra
des(a)fogo
desaflu(ar)
confluência
por um fio
elemento sangue
lágrima sal
tempero suor
nada, estanca
mergulha
corrente
itinerante
contínua
fluxa
flu-rente ao céu e à terra
i(r)mergir até virar pó
emergir até a miragem-coragem de me abrir inteira
inunda queda d’água que faz brotar
"a cheia do rio que sinto"
a mingu(ânsia) do caminho que me aterro
a cr(essência) da entrega, instinto
a terra nova em que me enterro
cerrado velho que (me)u (re)parto
transâtlantica travessia que me verso
trânsito antigo que já é meu avesso
renasci amanhã na (v)éspera dessa costa
no litoral do meu riso disperso
eu plantei meu ch(ouro) inteiro
travei um pouso guardado no peito
pisei no planalto central do voo
nesse meu ciclo
meu pai fez chover num (a)gosto certeiro
preta
dourada
preta
dourada
preta
dourada
preta
dourada

toca
beija
contorna
minha pé
rola pra lá
minha pé
rola pra cá

mãos de concha
me dedilha
m(olha) meu litoral
“sobe pra pegar ar”

fico cheiro de sol com você aqui


fico cheia de lua com você aqui
preta
que beija meu mar
preta
que doura minha pele
preta
feita de fim de tarde
preta
feito começo de noite

luz su(ave) que pisca os olhos pra entrar


tua voz me dissolve
me quebra, faz (maré)ar

tua boca me puxa


me estrelece
faz encantar

“something as simple as the sun asking me out”

o encontro perfeito do encaixe


o jogo perfeito de luzes
golden hour
suástica virar cata-vento na mão dos erê lá na casa da vó
estatística de saber sobreviver contra o nosso tempo orgânico
onda futurística de aprender no movi-tempo de exu pra
afrografar nosso es-passo
tática ancestral de palavrear
pra lavrar nossa terra ontemhojeamanhã
nesse quadro
atin(giram) marielle
(a)tingiram matheusa
a tinta de marcos vinícius
atin(gira) mestre moa
milhares de corpos tin(giram) nesse solo
quer me fazer temer a queda d’água, logo eu que sou filha dos ciclos
quer nos atirar na terra que car(rega) o barro que é feito nosso corpo
o mágico da diáspora é que agora todos eles membram a terra-chão
membros de um organismo vivo
axé cir(cura)
sangue preto
de tinta branka
barro preto sempre levanta
família tradicional
assiste e
no(vela) nosso enterro
a cada plim plim
uma velha história senhorial
uma caravela num velório
num roteiro colonial
brankocispatriarcal
acordo cordial
heteronormativizante
nós numa rota ancestral
viveiro de mudas auto falantes
a gente acon(tece) fora da rede
eles diz torce nosso discurso em qualquer canal
máquina de moer soturna
que eles vo(e)mitem numa malhação, às seis, sete, nove
nós somos um capítulo-conspiração que globo nenhum captura
ainda tão nos escambos
enquanto luzia (re)surge nos escombros
nos in(cômodos) do museu nacional
ainda nos (mata)m, crescemos
a gente sempre (sobre)vive
em nosso sangue es(corre) eras

somos anos-luz(ias)
queria dis(parar)
no nosso h(ori)zonte
não sabia
que a gente diáspora
agora
amanhã, hoje, ontem
suncê tá pra virar
vir-ação
tá pra vir pra cá
tá pra ir pra lá
nesse balanço
nesse sopro
cada toque pra te chamar
dia aqui
dia lá
nessa an(dança)
eu não sou daqui
não sou dessa terra
eu não sou daqui
eu nasci bem longe daqui
eu não sou daqui
eu ainda tô chegando nessa cidade
eu não sou daqui
eu ainda tô me (acon)chegando nesse lugar
eu não sou daqui
mas quase sempre acontece da gente se enraizar
quase sempre acontece da gente se reinventar
sou mala de memória
me moram os meus guardados
carrego nostalgi(r)a
eu tenho uma pressa com tudo que eu pulso
eu sou uma acele(b)ração de tudo que eu chego
tem uma urgência no que a gente escorre
no que a gente escreve
agência dos nossos corpos em jogo
imergência do nosso cansaço
emergir de um toque feito nosso
surgir num sentido sagaz
nossa língua que só a gente entende
pra transfigurar num feixe completo
na iminência do meu fim
eu escorro dessa ampulheta com uma lógica que não é minha
do desnorteio dessa bússola toda invertida
sou a potência do ponto cego dessa gente
saio do alvo-mirada
numa descendência a ser per(corrida)
v(entre) lá e cá
eu me parto
aparto do ninho
eu me aperto
diz perto
aporto o ciclo
aportamos a conspiração
nós (re)partimos
nós nos parimos
nós parimos a liberdade
eu paro v(entre) cá e lá
paremos aqui eu me (in)vento
rumos (re)tra(n)çados eu me intento
quatro ponto
cardeal
com frequência
solar-espectral
insurgência
cardinal
de incidência
ancestral
dissidência
sexual
disse (ca)dência
(a)temporal
com fluência
ventral
desacelera
meu tempo no peito dela
assossega
meu tento no tempo dela
desfaz
qualquer lógica-compulsória
ela d(entra) e
fica
só mais um pouquinho
pra cada amarra-cadêteunamoradinho? deles no meu corpo
uma desamarra
minha marra
em derramar
marrom
em me esculp(ir)
deslizando nela toda
sentir seu coração pulsando na ponta dos meus dedos
amar a preta
é um desarme
me desarmar de qualquer moinho-adãoeeva
desfaz mecânica de reprodução
quebra engenho pra procriar ordem-sexista-cristã
me derreto inteira
pulsa meu plexo cardíaco
é minha visão transpassada
exercício em olhar pro meu reflexo
eu vivo esse céu todos os dias
e continuo aqui
eu (in)fundo meu ciclo todos os dias
e não chego ao fim
(re)novo no fim do mundo
cir(curo) começo meio começo meio começo
e perma(nasço) aqui
eu chovo essa queda todos os dias
e (rota)ciono aqui
enraizo
rezo
eu regenero numa gênese revivida
reinventada
eu (re)ciclo no giro completo do balanço da terra
no cerrado a mata entra em autocombustão
a terra sempre queima
as sementes antes impermeáveis
agora recebem água
de onde eu venho o ar é úmido e chove metade do ano
no cerrado a gente entra em autocombustão
nasce o que tem que nascer
morrer o que tem que morrer
acorda o que estava adormecido
brota o que tem que ser semeado
depois da queimada
fagulha tudo dentro
me beija no período fértil
chupa até beber o suco da minha fruta
ela é de uma terra que me assenta
sou frutífera
me (re)colhe
até sentir nosso corpo-terra estreme(sendo)
gota por gota
faísca por faísca
folha por folha
travessia transatlântica
traversia br(asa)
atraversamos o c(u)ântico
atraverso o a(verso)
atraver(sei)
que meus passos vêm de um passado longe
meus versos vão pra um futuro perto
versejar
ensejo
no an(seio) da terra-magia
meu caminho-movimento é
ponte-fonte-arco
pra transcursar
as desviantes
nossa sobrevivência
será assentada sobre a fundação da poesia
corpo-transi-terri-tório
transi-tempo
terri-tento
corpos desvi
antes de cês me matar
eu já atraver(sei) esse vão
foram feitores
nós somos feitura
de rainhas, reis e santos
eles nos ferradura
o deus do ferro nos guia
a cada fratura um ponto pra reinventar a estrutura
meu verso de memória é costura
fragmento de um passadopresentefuturo
circular
e (r)adiante
esculp(ir) a fresta
fer(ida) pra cura
recordar pra me (re)compor em
acordes e acordos de um tempo-espaço mil(u)nar
(re)acordar numa terra-sono-viagem
reme(moro) num sonho-futuro-agora
nessa corda firme
cada fi(lh)o dessa rede tece meu andar
cada seiva
cada trança
cada entrelaço
cada encruz-encontro
pra traçar as fendas
por cada um de nós
que nos vãos
vão su(cum)bir
pelos nossos traços
pelos nossos riscos

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