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O MERCADO E A NORMA:

o Estado moderno e a intervenção


pública na economia*

Bruno P. W. Reis

O presente ensaio procura analisar o proble- tre a democracia e o desenvolvimento, a partir da


ma das relações entre o Estado e o mercado, en- clássica proposição segundo a qual a plena ope-
ração de uma economia de mercado requer a
existência de um Estado formalmente instituciona-
* O presente trabalho resulta basicamente de uma re-
lizado, não só para assegurar a operação impes-
visão das duas primeiras seções do capítulo 3 de mi-
nha tese de doutorado, Modernização, mercado e soal das normas vigentes, mas também para atuar
democracia: política e economia em sociedades distributivamente de maneira a minimizar as ine-
complexas (defendida no Iuperj em 16 de dezembro vitáveis externalidades provocadas pela intensifi-
de 1997), antecedida de trecho preparado para apre- cação dos laços de interdependência humana que
sentação no II Encontro da Associação Brasileira de a própria expansão do mercado favorece. Aqui –
Ciência Política (realizado na PUC de São Paulo, en- além da reafirmação dessa tese em sua dimensão
tre 20 e 24 de novembro de 2000) por gentil convi-
te do prof. Alberto Tosi Rodrigues (UFES). Para pu-
blicação, graças às boas sugestões do prof. Eduardo desenvolvido para o caso brasileiro. Para alcançar
Noronha (UFSCar), dividi a versão levada à ABCP sua forma atual, o texto beneficiou-se também do
em duas partes, das quais o presente trabalho cons- trabalho de dois pareceristas anônimos da RBCS, aos
titui a primeira. A segunda parte, intitulada “Merca- quais muito agradeço. Naturalmente, nenhuma das
do, democracia e justiça social: a economia política pessoas aqui aludidas detém responsabilidade sobre
do Brasil contemporâneo”, foi publicada em Teoria as fragilidades que o texto ainda apresenta.
& Sociedade, 7 (junho de 2001), e se dedica à explo- Artigo recebido em fevereiro/2002
ração de algumas implicações do argumento aqui Aprovado em abril/2003

RBCS Vol. 18 nº. 52 junho/2003


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estática, sincrônica – buscar-se-á também funda- 1.1 Mercado em Weber e a sociedade moderna:
mentar a proposição – sob uma perspectiva dinâ- a socialização entre estranhos
mica, diacrônica do mesmo problema – de que a
expansão da operação do mercado tem levado na Entre a grande quantidade de anotações pes-
modernidade a uma expansão concomitante da soais que os herdeiros de Max Weber transforma-
esfera de atuação do Estado, e que seria ainda no ram no volume póstumo Economia e sociedade, há
mínimo precipitado pretender identificar na moda um pequeno fragmento incompleto sobre o merca-
ideológica neoliberal das últimas décadas uma re- do (Weber, 1994, pp. 419-422), que quero tomar
versão dessa tendência histórica. Embora seja re- como ponto de partida do presente trabalho. Pois
levante a esse propósito lidar com processos que o mercado é uma categoria que tem sido em larga
aparentemente têm origem sobretudo no plano medida abandonada aos economistas, e o que ha-
do substrato material da vida social e seus efeitos bitualmente encontramos sobre ele são polêmicas
na arena política (ver Bruno Reis, 1997, pp. 42- insolúveis – de forte conteúdo doutrinário – acerca
107), pretendo ater-me precipuamente à direção de seu comportamento dinâmico: anárquico para
causal inversa, num plano mais contextualizado, os marxistas, estável ou tendente a um equilíbrio
para discutir os efeitos que a operação da política para os economistas neoclássicos (ou mesmo “po-
produz sobre a dinâmica econômica e, mais pre- sitivamente” anárquico para a escola austríaca de
cisamente, sobre a condução política do funciona- Hayek e Von Mises). Raramente identificaremos
mento da economia em sociedades modernas. As- na literatura a preocupação com uma apreensão
sim, na seção 1, procuro caracterizar, de maneira conceitual do fenômeno do mercado. De fato, tal-
breve, as relações do mercado com alguns atribu- vez a operação do mercado esteja por demais no
tos centrais da sociedade moderna – e para isso a centro das preocupações da economia moderna
exposição apóia-se fundamentalmente no trata- para que o economista se preocupe em definir o
mento dado ao tema por Max Weber. Na seção 2, mercado (da mesma forma, por exemplo, que a
discutem-se os efeitos produzidos sobre o funcio- biologia e a física não perdem muito tempo defi-
namento do Estado pela operação (e progressiva nindo a vida e a matéria, embora isso esteja lon-
afirmação e preeminência) do mercado na socie- ge de ser uma empresa trivial). Talvez a tarefa
dade moderna e a lógica da expansão histórica da pertença antes aos sociólogos, que encontrarão
atuação estatal sobre diversas esferas da vida so- no mercado uma forma de interação entre outras
cial ao longo dos últimos séculos. possíveis e, assim, não terão como escapar à
identificação de seus atributos distintivos. Sob
esse ponto de vista, o pequeno esboço de Weber
1. O lugar do mercado presta um serviço notável, pela densidade e ri-
queza analítica, atento às múltiplas ambigüidades
A análise dos atributos e das funções do do fenômeno, que nos ajudam a compreender as
mercado ocupa, naturalmente, um lugar proemi- disputas que alimenta.
nente no tratamento das relações entre política e O primeiro choque que a leitura do texto
economia de que nos ocuparemos daqui por weberiano provoca é a caracterização final do
diante. Assim, num primeiro momento baseio-me mercado como uma relação comunitária (Ge-
em certo fragmento de Max Weber para perseguir meinschaft) – em que a atitude na ação social re-
uma especificação de natureza sociológica do fe- pousa no sentimento subjetivo (afetivo ou tradi-
nômeno do mercado, com o propósito de estabe- cional) dos participantes de pertencer ao mesmo
lecer algumas teses preliminares que serão cru- grupo (constituir um todo) –, e não uma relação
ciais à exposição subseqüente, em que procuro associativa (Gesellschaft) – em que a atitude na
discorrer brevemente sobre o clássico tema das ação social repousa num ajuste ou numa união
relações do mercado com a sociedade moderna, de interesses racionalmente motivados.1 Embora
a democracia e o Estado moderno. afirme que o mercado é “arquétipo de toda ação
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societária racional”, que só há mercado onde há cado, há um reconhecimento evidente de que to-
uma pluralidade de interessados na troca, e que a dos podem legitimamente perseguir apenas o seu
barganha é traço imprescindível da caracterização próprio interesse individual, e a forma de intera-
do fenômeno específico do mercado, Weber fala ção que o constitui – a troca – pode perfeitamen-
claramente de “comunidade de mercado”. Mas, te se dar sem que qualquer dos participantes se
efetivamente, trata-se de uma comunidade bas- preocupe por um instante sequer com o bem-es-
tante sui generis: tar do outro; não obstante, não menos importante
na configuração da relação de mercado é o reco-
[...] do ponto de vista sociológico, o mercado re- nhecimento universal de que cada um é portador
presenta uma coexistência e seqüência de rela- de direitos que não podem em hipótese alguma
ções associativas racionais, das quais cada uma é
ser violados – caso contrário, não há troca, mas
especificamente efêmera por extinguir-se com a
roubo: um crime. É por isso que Weber afirmou
entrega dos bens de troca [...]. A troca realizada
constitui uma relação associativa apenas com a que o mercado é originariamente a forma de so-
parte contrária na troca (Weber, 1994, p. 419). cialização possível entre inimigos – de maneira ge-
nérica, pode-se dizer que se tornou a forma típica
Cada troca é caracterizada como uma relação de socialização entre estranhos.3 Reconhece-se, de
associativa, que se esgota no interesse que cada saída, que os dois participantes de uma troca não
uma das partes deve ter no bem trocado. Ademais, precisam se importar um com o bem-estar do ou-
cada uma delas constitui uma sociedade efêmera, tro, mas, paradoxalmente que seja, ainda assim é
que se extingue no ato da troca.2 Contudo, o mer- uma forma de relação interpessoal que preserva
cado resulta ser uma comunidade constituída das uma dimensão comunal, porque ambos reconhe-
trocas – dessa miríade de “sociedades racionais, cem tacitamente que são portadores de um deter-
coetâneas e sucessivas”, além de efêmeras. O fato minado elenco de direitos comuns, e esperam do
de eu pertencer ou não a um mercado – minha outro a observância desses direitos – pertencendo
condição de comprador ou vendedor potencial de ambos, portanto, a alguma forma de comunidade.
mercadorias – não está sujeito a qualquer decisão Essa ambigüidade fundamental é patente na
racionalmente motivada de minha parte (traço de- passagem abaixo, que não deixa de ecoar a tese
finidor da relação associativa), mas é uma condi- marxiana sobre o “fetichismo da mercadoria”:
ção objetivamente compartilhada com outros de
meus concidadãos a partir de certos atributos e A comunidade de mercado como tal constitui a
relação vital prática mais impessoal que pode
circunstâncias socialmente identificáveis: pelo me-
existir entre os homens. Não porque o mercado
nos, minha posse objetiva de certos bens materiais
implica a luta entre os interessados. Toda relação
em princípio trocáveis (mercadorias potenciais) e humana [...] pode significar uma luta com a outra
o reconhecimento de meu direito a essa posse. Se parte [...]. Mas porque ele é orientado de modo
não for assim, nenhuma troca é sequer possível, especificamente objetivo, pelo interesse nos bens
pois – sublinha Weber – toda barganha preparató- de troca e nada mais (Weber, 1994, p. 420).
ria, na medida em que reconhece tacitamente di-
reitos recíprocos, é um ato comunitário, assim Não passou desapercebido a Weber, portan-
como toda troca que utiliza dinheiro requer ou to, o que pode haver de repugnante no mercado
funda uma comunidade, na medida em que pre- em conseqüência da frieza e da impessoalidade
sume confiança no valor coletivamente (comunita- de sua operação. Ele reconhece que o mercado é,
riamente?) atribuído a um objeto destituído de va- efetivamente, “estranho a toda confraternização”,
lor intrínseco – a moeda. e que toda ética condena a prática do “mercado
Assim, a apreensão weberiana do conceito livre” entre irmãos. Mas é, ao mesmo tempo, e
de “mercado” identifica nele a forma de socializa- por essa mesma razão, a única relação “formal-
ção por excelência que é simultaneamente interes- mente pacífica” entre estranhos. Assim, a fetichi-
sada (“societária”) e solidária (“comunal”): no mer- zação da mercadoria e a reificação dos seres hu-
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manos identificadas (e moralmente denunciadas) nhecidas deficiências que exibe nessa tarefa – de-
no capitalismo por Marx em contraste com um sempenhe um papel de cimento social que jamais,
imperativo kantiano implícito de tomar cada ser em sociedades menos complexas, teria sido neces-
humano como um fim em si mesmo, em Weber sário (ou concebível) que exercesse. É precisa-
são consideradas mais plenamente em seu duplo mente sobre o lugar do mercado na sociedade
desdobramento: repugnantes no que concerne à moderna, sobretudo em sua dimensão política,
empatia fraternal (ou ao amor cristão) que cabe- que se detém a próxima seção.
ria esperar entre os homens sob o ponto de vista
moralmente elevado de um projeto filosófico de
emancipação humana, mas instrumentais e even- 1.2 Mercado, democracia e anonimato:
tualmente bem-vindas do ponto de vista da inte- entre a competição e a “adscrição”
ração entre estranhos que se observa rotineira-
mente em sociedades complexas (ou entre elas). Pretendo aqui desdobrar a análise anterior,
Daí a ambigüidade fundamental do mercado: com o propósito de detalhar as interações do fe-
emancipatório por autorizar a perseguição de fins nômeno do mercado com diversos aspectos espe-
pessoais, independentemente da opinião alheia; e cíficos da sociedade moderna. Inicialmente, serão
(o outro lado da mesma moeda) opressivo por analisadas as relações que se pode teoricamente
viabilizar, rotinizar e – por fim – legitimar a indi- estabelecer entre a forma de sociedade que resul-
ferença recíproca. ta do processo de modernização e o sistema mer-
Assim, talvez possamos inferir que uma socie- cantil de alocação de recursos e contingências so-
dade crescentemente complexa – “abstrata”, na ex- ciais diversas. Em seguida, passarei à discussão
pressão de Popper (1987, pp. 189-191), que formal- dos vínculos existentes entre a progressiva centra-
mente não mais se fundamenta sobre laços lidade do mercado e o processo de paulatina afir-
pessoais estabelecidos entre seus membros – ou é mação do sistema democrático de governo, para,
cada vez mais mercantil, ou cada vez mais violen- finalmente, analisar em que sentido se pode afir-
ta. Como observa Weber (1994, p. 422), “a expan- mar que se complementam ou se contrapõem as
são intensa das relações de troca corre por toda operações paralelas do mercado e do Estado.
parte paralela a uma pacificação relativa”. Mas essa
ordem relativamente pacificada será – de maneira 1.2.1 Sociedade moderna e mercado
também paradoxal, mas aparentemente inevitável –
cada vez mais “fria”, ou impessoal.4 Sob esse ponto A afinidade que a análise de Weber permite
de vista, o advento de formas complexas de socie- identificar entre a operação do mercado e a im-
dade ao longo dos últimos séculos – com a contí- pessoalização (e a racionalização) das relações
nua massificação e impessoalização das formas de sociais que tem lugar ao longo do processo de
socialização produzidas ao longo do processo co- modernização social autoriza-nos a incorporar a
nhecido por “modernização” – acaba por conferir clássica proposição de Karl Polanyi (contra uma
ao mercado uma centralidade inusitada em forma- relativa “naturalização” da operação do mercado,
ções sociais anteriores, por sua peculiar característi- comum entre autores liberais) segundo a qual a
ca, apontada por Weber, de – em virtude mesmo de regulação da vida social pelo mercado depende
sua frieza e impessoalidade – constituir a forma da vigência de valores e instituições específicos e,
possível de socialização entre estranhos. Pois so- portanto, não pode ser considerada, em nenhum
mente em sociedades bastante complexas os conta- sentido, “natural”. Para Polanyi (1957, p. 43), ne-
tos pessoais com “estranhos” tornam-se suficiente- nhuma economia havia sido, até a modernidade,
mente freqüentes para permitir ao mercado controlada por mercados. Sem querer entrar no
sobrepor-se a formas, digamos, mais cálidas e pes- árduo problema de se definir de maneira empiri-
soais de interação. E não apenas permitir, mas an- camente referida o que podemos entender por
tes exigir do mercado que – apesar de todas as co- uma economia “controlada” ou não pelo mercado
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(tenho a impressão de que Hayek ou Milton inconsciente de si e recorre de maneira arbitrária


Friedman, por exemplo, assim como os ditos “li- à postulação de necessidades funcionais que se
bertários” norte-americanos dos dias de hoje, es- autocumprem, sem consideração criteriosa dos mi-
tariam prontos a duvidar de que mesmo a econo- crofundamentos que poderiam ter produzido o
mia do século XX fosse controlada pelo efeito descrito.5 Mas o quadro é distinto quando se
mercado), cabe observar que, ao descrever minu- pode postular algum mecanismo de “seleção natu-
ciosamente o processo de construção institucional ral”, ou mesmo de imitação deliberada. Estruturas
que acompanhou a afirmação da economia de surgidas “aleatoriamente” (ou seja, por razões ex-
mercado na Europa moderna, Polanyi, perseguin- ternas ao modelo) podem se multiplicar de modo
do prioritariamente outros objetivos, deixa de se irresistível a partir dos resultados (eventualmente
dirigir a um problema fundamental, de natureza não-intencionais) produzidos. É excessiva a afir-
estritamente teórica. Ele parece não se perguntar mação de que fenômenos sociais não comportam
por que, afinal, essa estrutura – tão peculiar – des- mecanismos de “filtro” como a seleção natural, e
ponta naquele contexto específico. Já que nunca um exemplo clássico é precisamente o mercado,
existira antes, caberia indagar qual a peculiarida- que expele do sistema econômico o agente que
de da nossa época que faz emergir e disseminar- não se comporta de maneira maximizadora.6 A
se tão vigorosamente essa estrutura historicamen- tese weberiana sobre a disseminação do “espírito
te sui generis – a economia de mercado. Polanyi do capitalismo” a partir da relação com o trabalho
não se ocupa desse problema exatamente nesses que o protestantismo ascético tendia a produzir é
termos, mas é assim que pretendo abordá-lo aqui. um exemplo clássico de recurso ao mesmo meca-
Temerária que seja, a resposta a um problema nismo (Hernes, 1989, pp. 138-139 e 153-154).
formulado dessa maneira não tem como evitar Segundo a conjectura que pretendo seguir
completamente uma estrutura interpretativa de na- aqui, a sociedade complexa (“abstrata”), confron-
tureza funcionalista. Embora, no âmbito das ciên- tada com dificuldades crescentes, no longo prazo,
cias sociais, a aproximação funcionalista seja muitas para se constituir numa sociedade precipuamente
vezes descrita como eminentemente estática, cabe “adscritiva”, induzirá o preenchimento pelo mer-
observar que ela se origina na Biologia, com Char- cado da necessidade funcional de provisão relati-
les Darwin, como uma teoria da evolução das espé- vamente rápida, atomizada e descentralizada de
cies. E que, também nas ciências sociais, desempe- alocação de recursos e informação. Fernand Brau-
nha papel central naquela que é provavelmente a del (1987, pp. 40-41) já se referiu ao mercado
mais ambiciosa teorização sobre mudança já conce- como “o primeiro computador posto ao serviço
bida: o materialismo histórico de Karl Marx, confor- dos homens”, embora ressaltasse que sua capaci-
me argumentou persuasivamente G. A. Cohen dade reguladora é apenas parcial, não podendo
(1978). De fato, é difícil conceber qualquer teoriza- abarcar a totalidade da “vida material”.7 Essa inter-
ção sobre processos de mudança social de largo al- pretação funcional, é claro, não pode explicar ge-
cance que deixe de aludir – nem que seja em neticamente o “surgimento” do mercado (até por-
nome da parcimônia teórica – às condições ideais que, em menores dimensões, ele já existia), mas
de estabilidade ou instabilidade de determinadas pode perfeitamente sugerir uma explicação para a
configurações sociais descritas de maneira sistêmi- sua disseminação, a partir de mecanismos de “fil-
ca: assim temos a grande quantidade de estudos tro” (análogo à seleção natural) e de imitação.
sobre a passagem do “feudalismo” para o “capita- Não deverá surpreender, portanto, a constata-
lismo”, da “antigüidade” para o “feudalismo”, da ção de um claro trade-off histórico entre “adscrição”
“sociedade aristocrática” para a “sociedade moder- (ascription) e mercado, mecanismo por excelência
na”, da “atividade econômica tradicional” para o de estratificação social competitiva. Observe-se,
“capitalismo racional”, do “laissez-faire” para o com efeito, que, mais do que uma relação causal,
“welfare state”. É evidente que, com muita fre- a exclusão mútua entre mercado e adscrição é ma-
qüência, esse funcionalismo é metodologicamente téria de definição e implicação: com adscrição,
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não há liberdade (autonomia) para competir, ma- complexa das demais reside precisamente no fato
ximizar ou mesmo, em geral, para se envolver em de que se trata de uma sociedade entre “estra-
transações.8 Ademais, como vimos, somente em nhos”, num grau superior a qualquer outra forma
sociedades altamente complexas os contatos pes- de sociedade até hoje existente. Assim, pode-se
soais com “estranhos” tornam-se suficientemente prever que, excetuado o cenário (sempre possí-
freqüentes para permitir ao mercado sobrepor-se vel) de uma catástrofe civilizacional – por exem-
a modos menos formais de interação. plo, uma hecatombe nuclear ou ambiental – e se
Podemos esboçar, assim, dois arquétipos so- portanto aceitamos a sociedade complexa como
ciais polares – certamente não exaustivos, mas um dado da realidade com a qual doravante con-
portadores de muitas de nossas referências norma- viveremos, então estamos condenados a reservar
tivas ideais. De um lado, a solução de Platão na ao mercado um papel extremamente relevante na
República, adscrição plena: para produzir a justiça configuração de qualquer mundo futuro que con-
temos de nos conformar a uma ordem em que cebamos. Mesmo que admitamos que ele nem
cada um reconhece o seu lugar e se contenta, fe- sempre tenha exercido esse papel (como nos
liz, com ele, posto que designado por aquele que alerta Polanyi), ou mesmo que reconheçamos que
conhece plenamente a verdade e a justiça. De ou- ele não poderá ser o único princípio organizador
tro, o reino do liberalismo econômico ortodoxo, da sociedade e que formas variadas de hierarqui-
puro achievement, em que há plena mobilidade, zação e introjeção de valores estarão seguramen-
mas ao preço do risco do fracasso, que pode re- te presentes (como nos faz ver Durkheim).11 A
sultar na própria incapacidade de sobrevivência.9 propósito, este é um aspecto importante de nos-
É seguro afirmar que jamais virá a existir socieda- so problema: a afirmação aparentemente inevitá-
de alguma que reproduza fielmente qualquer des- vel de uma organização social mais e mais com-
ses extremos – como ocorre com qualquer tipo petitiva não deve nos autorizar a esperar a
ideal. Porém, uma questão crucial se impõe a esta abolição de toda e qualquer estratificação ou hie-
altura: diante da constatação do advento de for- rarquia. Pois achievement e competição impli-
mas extremamente complexas de sociedade no cam e supõem hierarquia, explicitando de modo
bojo da modernização, seria razoável esperar dramático o que há de contraditório no princípio
construir uma sociedade platônica, de “lugares do mercado: todos devem ser igualmente capa-
marcados”? Numa sociedade complexa, como já zes de competir, e todos devem ser vistos como
observou Douglass North,10 multiplicam-se expo- legítimos competidores, mas, ao mesmo tempo, o
nencialmente situações “olsonianas”, em que cada êmulo básico da competição é a afirmação de si,
indivíduo – virtualmente anônimo em diversas a distinção, a reprodução de desigualdades, a
arenas, tendo em vista o número crescente dos in- hierarquização.
tegrantes potenciais de grupos sociais relevantes
– vê-se estimulado a se comportar como “carona”, 1.2.2 Mercado e democracia
tornando implausível a presunção de que todos
poderão introjetar as noções de dever implicadas Com a imprevisibilidade típica das “socieda-
por papéis sociais fortemente personalizados (que des comerciais” no que concerne às possibilida-
supõem intensa interação face a face), negligen- des de acumulação de riqueza (logo, à multiplica-
ciando oportunidades de recompensas tópicas in- ção das fontes potenciais de poder na sociedade),
dividuais. E o corolário lógico de uma sociedade bem como a atomização decisória induzida pelo
cada vez mais complexa é a crescente competição princípio mercantil, impõe-se cedo ou tarde um
interna – especialmente se, como ressaltou We- relativo igualitarismo político como forma de in-
ber, o mercado é na sua origem a forma de socia- corporar de modo rotineiro os relativamente im-
lização possível entre estranhos, e um traço sa- previsíveis deslocamentos das fontes de poder em
liente que distingue a moderna sociedade uma economia de mercado. Esse igualitarismo
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poderá se manifestar ou – na melhor hipótese – relação entre democracia e mercado. Um exem-


pelo estabelecimento de normas constitucionais plo recente dessa postura pode ser encontrado
em alguma medida “democráticas”, ou então – em Rueschemeyer, Stephens e Stephens (1992, p.
precariamente – pela violência intermitente, típica 7), que atribuem o avanço da causa democrática
do pretorianismo militar, que freqüentemente ten- não ao mercado, mas antes às próprias “contradi-
de também a ser antitradicionalista e antiaristocrá- ções” do capitalismo, expressas no fortalecimento
tico. Mas o fato é que com as oscilações da fortu- gradativo das classes operárias e médias concomi-
na a que todos os atores estão idealmente tante a um enfraquecimento da classe proprietária
submetidos numa economia de mercado, torna-se de terras. Não pretendo negar que essa aproxima-
impossível a longo prazo acomodar os interesses ção do problema tenha, de fato, sua relevância
relevantes num sistema de atribuição exclusiva- empírica, servindo para descrever com maior pro-
mente adscritiva e aristocrática de status político. ximidade histórica o drama dos acontecimentos
Caso se queira preservar um sistema como esse, efetivamente verificados em vários casos impor-
será imprescindível impor severos limites à área tantes de afirmação de regimes democráticos. Em
que se mantém aberta à competição econômica outras palavras, dado o grande número de regi-
mercantil. E, na eventualidade de expansão con- mes autoritários que já existiram no interior do
tinuada da operação do mercado, caso se queira sistema capitalista e que continuarão a existir num
evitar a instabilidade institucional recorrente, pro- futuro visível, bem como a evidente resistência à
vavelmente violenta, será imperiosa a configura- democracia movida pelas classes dominantes, a
ção de um análogo político-institucional – ainda movimentação dos atores na ribalta das disputas
que precário – da imprevisibilidade, da competi- políticas acaba fazendo com que a “afinidade ele-
ção e da agregação atomizada de preferências ob- tiva” entre democracia e mercado pareça se dar
servadas no mercado. Na ausência da aceitação tão “em última instância” que perderia qualquer
pacífica de uma rígida hierarquia social e sua ne- acuidade prospectiva.
cessária complementação na introjeção de papéis Por outro lado, esse ponto de vista descon-
sociais hierarquicamente definidos, não há como sidera o fato de que as classes dominantes, so-
evitar, cedo ou tarde, a generalização da reivindi- bretudo nos países da periferia capitalista, costu-
cação do direito a voz na arena política.12 mam resistir não apenas à democracia, mas
Dito dessa maneira simples, contudo, esse ar- também à operação competitiva do próprio mer-
gumento talvez dê a entender uma trajetória suave cado. Tendo isso em vista, o argumento de Rues-
de afirmação universal de direitos políticos igualitá- chemeyer e os Stephens parece-me antes contor-
rios, democraticamente compartilhados por todos – nar a afinidade entre democracia e mercado,
quase como uma postulação de implicação mútua mais do que propriamente contestá-la. Pois eles
entre capitalismo e democracia, a ser constatada parecem não se perguntar detidamente sobre os
empiricamente em qualquer caso histórico que se motivos pelos quais ocorreu em tantos lugares,
analise. É evidente, porém, que a relação de afini- durante os últimos séculos, aquele fortalecimen-
dade e dependência recíproca entre democracia e to das classes operárias e médias, concomitante
mercado acima postulada não impede que o pró- ao enfraquecimento da classe proprietária de ter-
prio processo de modernização – tanto em sua di- ras. Com efeito, a existência de uma classe pro-
mensão material como em seus desdobramentos prietária de terras poderosa é a fonte histórica
políticos – se dê de maneira conflituosa e mesmo por excelência da “adscrição” social:13 se ela se
violenta, produzindo desdobramentos específicos enfraquece, isso por si só já é um sintoma da afir-
em contextos históricos variados. mação de uma sociedade mais competitiva – e,
Apoiados, portanto, em abundante evidên- em alguma medida, mercantil, se se trata de uma
cia histórica de coexistência entre uma organiza- sociedade complexa. E o enfraquecimento dessa
ção capitalista da economia e regimes politica- classe aparece como condição relevante do avan-
mente repressivos, muitos autores contestarão a ço da causa democrática na interpretação de
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Rueschemeyer e os Stephens. exclui a hipótese de que a crescente centralidade


Ademais, parece-me evidente que tanto a do princípio competitivo do mercado na estrutu-
competição no mercado econômico como a de- ração das relações sociais (que, segundo Polanyi,
mocracia repousam – ao menos parcialmente – so- só se tornou realmente preponderante nos últi-
bre os mesmos princípios de legitimidade, os mes- mos dois séculos) imponha, sim, a presença de
mos postulados morais individualistas: a afirmação critérios meritocráticos em princípio universalistas
de si, a busca individual da felicidade, a legitimi- na atribuição de poder pelo sistema político. A
dade de se ir à procura de interesses próprios.14 E modernização efetivamente corrói a viabilidade
isso tem importância na medida em que se pode de qualquer critério ostensivamente adscritivo,
ter constituído num trunfo relevante nas mãos dos aristocrático, de atribuição de poder político. Não
trabalhadores em sua luta pela democracia. Assim pela conversão dos atores relevantes ao dogma
como slogans comunistas puderam ser apropria- das virtudes da competição, mas simplesmente
dos pela oposição ao regime no Leste Europeu, o pela possibilidade inextirpável de o sucesso eco-
liberalismo teria servido também aos adversários nômico no mercado produzir focos de poder ex-
da burguesia. Mas, num plano mais fundamental, ternos a qualquer elite previamente delimitada.
há sutilezas importantes na relação entre capitalis- Essa é de fato a raiz da inspiração básica de Toc-
mo e mercado, nas quais Rueschemeyer e os Ste- queville sobre a passagem – para ele inexorável –
phens não tocam, aceitando simplesmente a iden- da sociedade aristocrática de seus antepassados
tificação entre um e outro. Sob esse prisma, para a sociedade democrática que então se anun-
pode-se perguntar até que ponto tem vigência o ciava. O desafio político crucial desde então é
princípio do mercado numa sociedade em que criar condições que permitam que a livre afirma-
uma oligarquia se apodera dos recursos repressi- ção de interesses típica do mercado se dê dentro
vos do Estado em proveito próprio. Por definição, de marcos globais de solidariedade tão abrangen-
não tem vigência na esfera da política.15 E dificil- tes quanto for possível, de maneira a se evitar tan-
mente operará na esfera econômica um princípio to o contínuo perigo hobbesiano de fragmentação
competitivo de alocação de recursos, já que o po- social e confrontação belicosa daqueles interesses
der coercitivo do Estado será empregado para as- individuais, como o chauvinismo paroquial e na-
segurar uma posição monopolística aos membros cionalista – que, nos momentos iniciais do pro-
da oligarquia – e, como diz Braudel (1987, pp. 45- cesso de constituição do Estado nacional, parece
50), o monopólio é o “contramercado”, usualmen- se mostrar inevitável.16
te desfrutado pelos “amigos do príncipe, aliados
ou exploradores do Estado”. 1.2.3 O mercado contra o Estado?
Todavia, como já disse, não quero dar a en-
tender que presumo um processo suave ou histo- Sob esse prisma, podemos analisar por um
ricamente linear em qualquer sentido. Se entendo novo ângulo os claros limites da contraposição
que o papel central desempenhado pelo mercado entre a extensão do poder do Estado e a franca
na moderna sociedade complexa induz a alguma operação do mercado (comum entre liberais orto-
competição também na esfera política, isto não doxos, defensores do “Estado mínimo”), ao mes-
pode ser entendido como uma afirmação de que mo tempo em que podemos identificar o sentido
o processo de constituição do Estado nacional te- específico em que essa contraposição se torna
nha de se pautar invariavelmente por princípios compreensível. Já nos referimos à elaboração we-
competitivos, ou democráticos. Pelo contrário, beriana, em que o mercado aparece como uma
como sublinhou Charles Tilly (1975, p. 613), ori- forma paradoxal de relação comunitária, compos-
ginariamente a concentração da autoridade no ta por uma vertiginosa proliferação de relações
centro administrativo dos Estados nacionais se associativas efêmeras, e como essa dimensão co-
deu claramente a expensas dos (parcos) direitos munal se expressa no reconhecimento mútuo de
políticos da maioria dos habitantes. Mas isso não direitos compartilhados, para além do qual cessa
O MERCADO E A NORMA 63

toda confraternização entre os participantes na cantil requererá a devida socialização dos agen-
troca. Se é assim, a proteção a direitos individuais tes, sob pena de inviabilizar o mecanismo de tro-
é condição indispensável para a simples existên- cas. Ademais, como já observaram diversos auto-
cia da troca – e, como é evidente, só haverá pro- res, estratégias que podem ser individualmente
teção adequada desses direitos numa sociedade racionais para os agentes no mercado levam fre-
complexa onde houver Estado em condições de qüentemente (na ausência de constrangimentos
impor de maneira eficaz a vigência das normas externos ao estrito interesse imediato dos agentes
envolvidas. É certo que a garantia da atuação des- envolvidos na competição) ao colapso econômico
sas normas não se pode dar de maneira estrita- materializado nas crises de superprodução, ou en-
mente coercitiva, e tanto Robert Putnam (1993), tão simplesmente ao “fechamento” do mercado
numa linha empírico-indutiva, como Robert Axel- por intermédio de privilégios corporativos e bar-
rod (1984), num plano experimental, e Michael reiras diversas à livre movimentação do capital e –
Taylor (1976, 1987), num plano formal-dedutivo, sobretudo – da mão-de-obra.18 Cabe, a propósito,
argumentaram de maneira persuasiva em favor da sublinhar o paradoxo de que o mercado abando-
importância de um ambiente em que recompen- na o estado de concorrência perfeita a partir do
sas e punições recíprocas sejam exercidas de momento em que os atores passam a agir racio-
modo rotineiro e disseminado, de maneira a indu- nalmente em função de seus interesses e tentam
zir comportamentos cooperativos “espontâneos” a construir – usando em proveito próprio os dife-
partir da expectativa de retaliação dos demais ao renciais de poder que o resultado mesmo da com-
comportamento desviante.17 Evidentemente, um petição no mercado lhes confere – monopólios
ambiente semelhante favorece o desempenho efi- ou oligopólios que lhes garantam vantagens estra-
caz das instituições, pois simplesmente desonera tégicas em sua competição com os demais agen-
o Estado de parcela importante do custo de fisca- tes no mercado. Segue-se a conclusão de que, ex-
lização (e repressão) em que necessariamente in- cluída uma ação normalizadora externa, um
corre. Se o Estado pode contar com a adesão da mercado em concorrência perfeita é logicamente
população às normas vigentes, de maneira não só incompatível, no longo prazo, com a suposição
a cumpri-las rotineiramente, mas também a punir de agentes maximizadores se apenas admitimos
os recalcitrantes – ou ao menos denunciá-los às no modelo um comportamento propriamente es-
autoridades competentes –, então é lícito esperar tratégico, e não estritamente paramétrico.19 Enfim,
um desempenho mais eficiente das instituições somente existe a operação plena do mercado
políticas. Mas o Estado permanece sendo o fiador onde há livre perseguição de interesses particula-
em última instância de qualquer norma legal, es- res sob a égide de normas e costumes muito espe-
crita ou consuetudinária, vigente numa coletivida- cíficos, e onde o Estado – pelo adequado funcio-
de política – e tem não apenas a faculdade, mas namento de suas instituições – é capaz de
mesmo o dever de, quando necessário, recorrer à comparecer como fiador eficaz dessas normas
coerção física para assegurar-se da observância junto ao público e de coordenar as expectativas
dessas normas. E não há motivo para se presumir recíprocas numa direção que se possa dizer cole-
que as normas necessárias à operação rotineira tivamente desejável.
do mercado sejam apenas as destinadas à prote- Há, decerto, muita controvérsia sobre temas
ção da propriedade privada e da integridade físi- afins a este. Num trabalho célebre, Ronald Coase
ca dos participantes. Como mostra Abram De (1960) argumenta em favor da tese de que, na au-
Swaan (1988, pp. 1-12), saúde e educação, por sência de custos de transação, negociações dire-
exemplo, podem ser bens tão públicos quanto a tas entre os interessados lidarão com desecono-
segurança. Epidemias podem, em princípio, de- mias externas de maneira mais eficiente que a
vastar uma economia, sem permitir às pessoas regulação por terceiros (tipicamente, governos).
que se defendam “privadamente”; em outro pla- Em última análise, ele afirma que, na ausência de
no, o componente “comunal” da interação mer- custos de transação, as externalidades tal como
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definidas pelos cânones da economia do bem-es- do, ao contrário, a mera constatação de que deter-
tar simplesmente não existem.20 Pareceria mesmo minados interesses coletivos privados poderiam
dispensável entrar no mérito do resultado de Coa- ser mais bem atendidos mediante uma atuação or-
se, pois admite-se comumente que os custos de ganizada e que a provisão de incentivos seletivos
transação crescem com a complexidade da eco- garantisse a transformação de grupos latentes em
nomia (North, 1994, p. 10), o que faz com que no coalizões distributivas, abrindo assim a cada mem-
contexto relevante eles sejam positivos, e eleva- bro do grupo de interesse a possibilidade de apro-
dos. Restaria, porém, a conclusão segundo a qual priação de uma fatia maior do produto global da
toda redução de custos de transação seria estrita- economia. Isso, por sua vez, explicita o caráter um
mente desejável, por reduzir externalidades e tanto estéril, em termos práticos, da proposição do
aproximar-nos de alocações socialmente ótimas mesmo Olson (1982), de que um mercado sem
de recursos. Todavia, Farrell (1987) e McKelvey e grupos de pressão seria mais eficiente: um merca-
Page (1999), ao buscarem formalizar o chamado do nesses moldes simplesmente jamais existirá,
“teorema de Coase”, ajudaram a explicitar outras uma vez que o poder coercitivo exclusivo do Es-
premissas necessárias ao resultado encontrado – tado tem de continuar existindo – até para a ga-
o que incluiu uma suposição forte de simetria in- rantia do processo de trocas sob a égide do mer-
formacional. Assim como a ausência de custos de cado – e sua mera existência estimula a formação
transação, a simetria informacional também torna de lobbies. E quanto mais lobbies houver, mais gru-
o resultado de Coase tão menos plausível quanto pos serão obrigados a formar o seu próprio lobby
mais complexa for a sociedade, e o esforço des- para não se tornarem as principais vítimas do pro-
medido por reduzir custos de transação pode cesso. Usando a terminologia da teoria dos jogos,
mesmo agravar as assimetrias provavelmente exis- trata-se de um “dilema do prisioneiro”, onde todos
tentes. Em trabalho de menor visibilidade, Avi- estariam melhor sem lobbies, mas, ao mesmo tem-
nash Dixit e Mancur Olson (1996) levantaram ou- po, todos são obrigados a se defender dos lobbies
tro aspecto, relativo à desconsideração de dos outros com o seu próprio lobby (Bruno Reis,
problemas de ação coletiva. Eles mostraram que a 1994, p. 115). Portanto, a meta da cooperação uni-
consideração apressada do argumento de Coase versal em assuntos distributivos é individualmente
pode conduzir a conclusões excessivamente oti- inatingível e individualmente instável. Se todas as
mistas (“panglossianas”), por não levar em conta organizações estiverem atuando de modo predató-
problemas de ação coletiva – crescentemente im- rio, uma atuação cooperativa isolada seria suicí-
portantes à medida em que aumenta o número de dio; se, por outro lado, todas estiverem cooperan-
atores envolvidos, e por motivos “inteiramente do, a organização que resolver ser agressiva
alheios à relação entre números [de atores] e cus- poderá auferir lucros extraordinários. A presença
tos de transação” (Idem, 1996, p. 10). de grupos de pressão deve ser tomada, portanto,
Impõe-se reconhecer, nesse ponto do argu- como um fenômeno inseparável da própria natu-
mento, a lógica férrea da emergência e da atuação reza da democracia moderna.21
dos grupos de interesse a partir da garantia dos di- Mas, para além da complementaridade recí-
reitos civis. A presença desses grupos é parte in- proca entre Estado e mercado, eu dizia – no início
dissociável da vida democrática, fruto da simples desta seção – que se pode também depreender da-
possibilidade de livre encaminhamento de deman- qui a raiz da contraposição simplificadora entre Es-
das ao Estado. E, se admitimos a possibilidade de tado e mercado, e delimitar a problemática especí-
problemas de ação coletiva nos termos estabeleci- fica a que se reporta. Argumentei em outro trabalho
dos por Mancur Olson (1965, 1982), a organização (Bruno Reis, 1997, pp. 58-66) em favor da tese we-
de grupos de interesses e lobbies tenderia a emer- beriana clássica de que a provisão da necessária
gir até mesmo independentemente da percepção “coordenação de expectativas” numa sociedade
de qualquer instabilidade ou falta de proteção so- complexa – onde os tradicionais mecanismos “face-
cial no livre funcionamento do mercado, bastan- a-face” de controle social tornam-se inviáveis – im-
O MERCADO E A NORMA 65

põe a burocratização das relações sociais. Igual- limites mínimos o mesmo aparato administrativo
mente incontornável, porém, se apresenta a expan- encarregado de zelar pela observância do mais ex-
são do papel do mercado como um paradoxal dis- tenso leque de direitos individuais jamais propos-
ciplinador “automático” da conduta social numa to na história da humanidade (Bruno Reis, 1997,
sociedade “de estranhos” (“abstrata”, diria Popper), pp. 50-58). Dada a formidável dimensão mesmo
como é em larga medida a moderna sociedade de sua tarefa mínima, a capacidade de intervenção
complexa. Isso produz uma simbiose peculiar en- sobre a vida social com que o Estado moderno
tre o Estado e o mercado, uma complementarida- tem de se prover necessariamente superará, em
de recíproca entre competição e burocracia que faz muito, a de qualquer outra formação política que
uma depender da outra para sua plena operação. o tenha antecedido. De fato, ao admitir com fre-
Assim, se o mercado depende da aceitação incon- qüência que o Estado é um mal, ainda que um mal
dicional da vigência de determinadas normas im- necessário, o liberalismo vê-se diante da tarefa ir-
pessoais para a regulação da competição de modo recusável de conter dentro de limites “mínimos”
a impedir que esta degenere em conflito, também esse mesmo Leviatã, cuja existência legitima. Mas
é verdade que a plena vigência da impessoalidade isso não nos autoriza a imaginar que o Estado li-
característica de um regime administrativo burocrá- beral possa estar menos presente na vida dos ci-
tico requererá competição em algum nível, ainda dadãos que qualquer Estado despótico pré-moder-
que se reconheça – como Weber – que ela é per- no. Pelo contrário, pode-se argumentar que a
feitamente compatível com formas autoritárias de natureza mesma das tarefas que os próprios prin-
governo.22 De qualquer maneira, mesmo sendo a cípios liberais lhe outorgam obriga o Estado libe-
existência da economia de mercado dependente da ral a exercer maior controle e maior vigilância que
organização concomitante de um ordenamento ad- seus antecessores sobre os atos dos cidadãos, ain-
ministrativo burocrático, persiste a delimitação pos- da que o governante esteja, simultaneamente,
sível entre aquilo que é hierarquicamente estabele- mais constrangido por normas legais do que em
cido de maneira diretamente burocrática, de um outras formações políticas.24
lado, e o conjunto de atividades que são, por assim Mas, para além de considerações doutriná-
dizer, “deixadas” para a regulação automática da rias, o problema da contenção do Estado torna-se
competição mercantil – o que produz nos autores insolúvel ex ante a partir do momento em que se
liberais a visão do mercado como “ordem espontâ- constata que, tendo a necessidade de se financiar
nea” e os induz à defesa do “Estado mínimo”. En- com recursos materiais extraídos de poupanças
tretanto, dada a relativa ineficácia da sanção moral privadas para o cumprimento mesmo de uma pau-
numa sociedade complexa, a modernidade parece ta “mínima” (digamos, a garantia policial da pro-
presa de uma opção inescapável: onde as normas priedade privada), o Estado não pode evitar com-
vigentes não produzirem alguma regulação compe- pletamente interferir na vida econômica da
titiva mercantil da coexistência, haverá apenas a coletividade que o sustenta, uma vez que, como
plena regulação hierárquica, tipicamente burocráti- existem infinitas maneiras de se gerar riqueza em
ca e de alcance relativamente limitado – ou, então, uma sociedade, logo haverá variados modos de se
o conflito puro e simples e a prevalência violenta cobrarem impostos e – como eles evidentemente
dos mais poderosos.23 não são neutros no plano distributivo – alguma ar-
bitrariedade estará necessariamente envolvida na
estipulação da norma tributária, que resultará do
2. Explicitando o dilema: jogo natural de pressões e contrapressões, próprio
o mercado como Dr. Frankenstein da arena política. Ao deter, para o adequado cum-
(ou, de como o Estado vem a agir) primento de sua obrigação mínima de manter a
segurança da coletividade, o monopólio do uso le-
Já qualifiquei em outro trabalho como esqui- gítimo dos instrumentos de coerção física dentro
zofrênica a aspiração liberal de conter dentro de de determinado território, o Estado deverá estar
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em condições de impor (em nome da própria con- mente prevalecentes na sociedade. Incluem os
servação da ordem e da lealdade de determinados sistemas públicos de educação e de saúde, bem
setores da sociedade) compensações que even- como toda legislação trabalhista e os diversos ser-
tualmente contemplem de maneiras variadas qual- viços de assistência social. Num esquema que fi-
quer grupo que se julgue de algum modo prejudi- cou famoso e que, apesar da simplificação evi-
cado pelas normas existentes – grupos esses que, dente, não está muito distante da realidade, pelo
por definição, terão pleno direito de vocalizar e menos no que toca ao caso britânico, Marshall
defender seus interesses junto ao Estado. Em que (Idem, pp. 81-86) fez corresponder a afirmação
pese o formato extremamente simplificado que o institucional das três dimensões da cidadania aos
argumento assume aqui, é plausível supor que três últimos séculos: direitos civis no século XVIII,
mecanismos semelhantes tenham ajudado a pro- políticos no XIX e sociais no século XX.
duzir a enorme distância entre o Estado liberal efe- É bastante óbvia a tensão embutida na con-
tivamente existente e o “Estado mínimo” dos so- vivência dessas três formas de liberdade, especial-
nhos dos liberais mais dogmáticos. É uma mente no que diz respeito à afirmação simultânea
distância análoga àquela que separa o “socialismo dos direitos civis e dos direitos sociais. Seria fácil
real” (a hipertrofia do Estado) dos mais dourados ilustrá-la pela maneira como uma lei trabalhista,
sonhos socialistas (a extinção dele), ainda que tal- por exemplo, interfere na liberdade de agentes
vez não tão grande quanto ela.25 privados em acertar como queiram um contrato
Não fosse pelo livro de Abram De Swaan de trabalho. Como lembra o próprio Marshall
(1988), talvez a formulação mais instrutiva da evo- (Idem, pp. 86-87), a decadência do controle dos
lução histórica desse problema se encontrasse ain- salários pelo governo britânico no século XVIII
da, sem paralelo, nas conferências proferidas em está relacionada, entre outras coisas, à aplicação
1949 por T. H. Marshall (1965) em Cambridge. dos direitos civis na esfera econômica. Trata-se da
Marshall explora determinadas ambigüidades con- liberdade de se trabalhar onde se queira, segun-
tidas na idéia de cidadania que abrem algumas do um contrato livremente firmado pelas partes
fendas na formulação estritamente liberal da ques- diretamente envolvidas. Ao final do século XVIII,
tão, por onde se pode depreender certa lógica a idéia que hoje temos da cidadania estava dividi-
conducente à iniciativa governamental na formu- da: o que hoje chamamos direitos sociais – asso-
lação de políticas sociais. O traço mais conhecido ciados à regulamentação, à proteção de determi-
desse texto é a célebre divisão da cidadania em nados grupos no interior da sociedade – era
três dimensões típicas: direitos civis, direitos polí- considerado “velho”, um resquício de costumes
ticos e direitos sociais (Idem, pp. 78-79). Os direi- herdados das corporações de ofícios e das guildas
tos civis são basicamente aqueles necessários à li- medievais; os direitos civis, por sua vez – a legíti-
berdade individual, caros à tradição liberal. Com ma afirmação de interesses individuais de cida-
origem na afirmação da liberdade religiosa e da dãos livres –, eram o “novo”. Ao longo de todo o
tolerância, incluem a liberdade de consciência, século XIX, a existência de proteção social, em
de opinião e de expressão, bem como o direito de vez de ser um requisito da cidadania, era, ao con-
propriedade e os direitos processuais penais, trário, incompatível com ela. Aquele que necessi-
como a presunção de inocência até prova em tasse de proteção não poderia ser considerado
contrário, o julgamento por júri popular etc. Já os um cidadão, e até 1918 os eventuais beneficiários
direitos políticos dizem respeito à participação no da Poor Law britânica perdiam qualquer direito
exercício do poder político, sobretudo o direito político que porventura possuíssem. Os Factory
de votar e o de ser votado. Finalmente, os direi- Acts, por sua vez, embora tenham melhorado as
tos sociais, segundo Marshall, englobam um feixe condições de trabalho dos operários, somente se
de direitos relacionados a níveis mínimos de bem- aplicavam a mulheres e crianças, em respeito à
estar e de segurança econômica, além de uma condição de cidadãos dos homens adultos, que
vida civilizada de acordo com os padrões cultural- não poderiam sofrer uma violência contra sua li-
O MERCADO E A NORMA 67

berdade de estabelecer e cumprir um contrato de menos num contexto em que se afirma concomi-
trabalho. Tanto que, lembra Marshall (Idem, p. tantemente a universalização dos direitos civis. Daí
89), “campeões dos direitos das mulheres foram explicar-se a relativa rapidez (aproximadamente
rápidos em detectar o insulto implícito. As mulhe- um século) com que se passou da instauração re-
res eram protegidas porque não eram cidadãs”. gular do sufrágio no Ocidente para a generalização
Em princípio, a expansão de direitos civis do sufrágio universal.28
igualmente acessíveis a todos, decorrente da afir- Uma vez incorporados ao sufrágio, os novos
mação da visão liberal da cidadania, não deveria setores do eleitorado estão em condições muito
entrar em conflito com as desigualdades da socie- melhores para dirigir pleitos ao governo. E este,
dade capitalista; ao contrário, segundo Marshall por sua vez – detendo, com vistas à segurança de
(Idem, pp. 95-96), era necessária à sua manuten- todos, o monopólio do uso legítimo da força –,
ção. Isso porque, como foi dito, o núcleo da idéia pode, se quiser ou julgar conveniente, atender a
de cidadania à época de afirmação do capitalismo esses pleitos, ainda mais que sua ação estaria ago-
estava contido nos direitos civis. E isto os torna- ra legitimada por uma suposta “vontade popular”.
va, além de imprescindíveis à própria instauração Confirmando os piores pesadelos dos liberais mais
de uma economia competitiva de mercado, talvez ortodoxos, a aurora do século XX iria restaurar o
a única fonte de legitimação das crescentes desi- espectro da “tirania da maioria” que o liberalismo
gualdades econômicas produzidas durante todo o elitista posterior à Revolução Francesa se esforça-
primeiro século da Revolução Industrial – que po- ra por banir. As conseqüências trágicas dessa per-
diam aparecer, assim, ainda que de maneira ina- cepção não tardaram em se fazer sentir, e têm sido
ceitavelmente cruel, como um preço a ser pago arduamente combatidas, desde o fim da Segunda
pela conquista da liberdade. Não chega a ser sur- Guerra Mundial, mediante certa “intolerância com
preendente, portanto, que date dessa época a de- os intolerantes” que busca evitar, na prática, uma
núncia do liberalismo como “ideologia da burgue- possibilidade que, desgraçadamente, não pode ser
sia”. Sendo, todavia, os direitos sociais modernos excluída por completo com instrumentos legais: o
em boa medida uma subversão dos direitos civis “suicídio da democracia”, em que o eleitorado es-
caros à tradição liberal,26 resta explicar o fato de colhe ser governado despoticamente.29
que, bem ou mal, eles acabaram incorporados à A partir do início do século XX, portanto, ge-
coleção de direitos englobados pela moderna no- neraliza-se a intervenção governamental nas dispu-
ção de cidadania, lado a lado com os mesmos – tas na indústria, o que traz como contrapartida na-
anteriormente incompatíveis – direitos civis. tural a intervenção, fragmentada que seja, das
A expansão dos direitos políticos na direção corporações no funcionamento do governo. Pois
do sufrágio universal constitui uma primeira linha decisões tomadas a partir de um processo de co-
de explicação possível. A partir do momento em participação intensa das diversas partes interessadas
que há sufrágio eleitoral de qualquer espécie para têm maiores possibilidades de serem coletivamente
o preenchimento do comando do governo, a ques- respeitadas e acatadas. E a elitista democracia bur-
tão de se determinar a extensão precisa do eleito- guesa do século XIX começa lentamente a se mo-
rado passa a ser uma pergunta aberta, em princí- ver, impulsionada pela expansão paulatina da
pio, a inúmeras respostas, e – o que é mais participação das massas na arena política, na di-
importante – a resposta eventualmente dada a essa reção do Estado de bem-estar social típico das na-
pergunta pode interferir de maneira decisiva no re- ções mais industrializadas da segunda metade do
sultado da disputa.27 Com isso, os governos passa- século XX. Em parte, um motor provável subja-
vam a ter um forte incentivo a tomar a iniciativa de cente a esse movimento terá sido a constatação
expandir por conta própria o sufrágio, buscando de que, como nos lembra Marshall (1965, p. 123),
beneficiar-se eleitoralmente disso, antes que a opo- a generalização do respeito aos direitos da cida-
sição, uma vez no poder, o fizesse. O sufrágio não- dania traz consigo maior propensão da população
universal é um arranjo instável, transitório, pelo a arcar com os deveres da cidadania.30 E aquele
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Estado burguês que então se instalava em toda a diante da conveniência de responder a esse desa-
Europa vinha tendo sua autoridade fortemente fio de modo positivo, incorporando, tanto políti-
contestada – sobretudo no continente, é verdade ca como materialmente, as camadas sociais antes
– desde meados do século XIX, principalmente a mantidas à margem do sistema. Vê-se aí como a
partir da conclamação revolucionária contra ele própria lógica deflagrada pela universalização dos
dirigida pelo movimento operário. direitos civis termina por redundar, não obstante
A circunstância em que se iniciara o século as tensões admitidas, na aberta reivindicação po-
XIX – com a derrocada dos antigos regimes ante pular e posterior chancela estatal dos direitos so-
os novos valores liberais somada à degradação ciais. Esse é o preço da universalização dos direi-
flagrante das condições de vida nos centros urba- tos civis numa sociedade desigual. É por isso que
nos – terá seguramente desempenhado um papel Ralf Dahrendorf (1992, pp. 49-52) irá dizer que “a
importante na disseminação de uma atitude con- sociedade civil não é um jogo privado [...] à par-
testadora perante a nova ordem industrial e, mes- te das instituições do governo, muito menos con-
mo, na sobrevivência do sonho revolucionário. tra elas”. Ao contrário, as prerrogativas da cidada-
Pois o século já se iniciara trazendo na ordem do nia são efetivas “somente se há estruturas de
dia o sonho da instauração revolucionária de uma poder que as sustentem”. A cidadania, prossegue
nova sociedade. Desde a Revolução Francesa essa ele, acaba sendo “o único status legalmente impo-
promessa se renovava de maneira dramática no sitivo que restou”. Mas esse status impositivo é ao
palco das disputas políticas e na imaginação dos mesmo tempo irrecusável, pois se a livre opera-
cidadãos mais afeitos a uma esteticização român- ção do mercado reproduz continuamente desi-
tica da política. E essa promessa era continuamen- gualdades, a operação estável da democracia terá
te frustrada pelos malogros parciais ou totais das conseqüentemente de requerer – como nos lem-
sucessivas rebeliões, bem como pelas assustado- bram Rueschemeyer, Stephens e Stephens (1992,
ras condições de vida de grande parte da popula- p. 41) – “uma separação institucional razoavel-
ção da época. O sonho democrático parecia se mente forte – o termo técnico é diferenciação –
instalar sob o signo de uma gigantesca fraude. entre o reino da política e o sistema geral de de-
Mas a revolução, por outro lado, parecia uma rea- sigualdades na sociedade”. O que significa dizer
lidade palpável, pois ainda ecoavam os trovões que requererá, em alguma medida, uma ação ofi-
da Revolução Francesa, cabeças coroadas haviam cial contínua, voltada para a permanente reafir-
rolado, e toda a Europa permaneceu por décadas mação institucional da igualdade de status neces-
politicamente convulsionada.31 A indignação com sária tanto à operação democrática do regime
o mundo que estava diante de seus olhos, soma- político como à operação eficiente do mercado
da a uma boa dose de wishful thinking, levou os econômico. Não é por acaso que o liberalismo eco-
revolucionários de então a imaginarem iminente nômico ortodoxo é freqüentemente acusado de
o colapso de uma ordem socioeconômica que flertar com o autoritarismo político, como se deu
apenas começava a se instalar. Tudo isso ajuda a nos casos do regime de Pinochet, no Chile, e do
explicar como a bandeira da liberdade se viu pro- Extremo Oriente nos anos de 1970-1980.32
gressivamente substituída pela bandeira da justiça Quase quarenta anos mais tarde, a análise
social nos projetos dos reformadores sociais (que, de Abram De Swaan detalha e complementa a
atentos à tensão existente entre ambas, parecem contribuição de Marshall, incorporando ao trata-
não se dar conta de sua complementaridade recí- mento do tema elementos da teoria olsoniana da
proca), e como os direitos civis se vêem relega- ação coletiva. O problema de que se ocupa De
dos à categoria de preconceitos burgueses por Swaan – análogo ao de Marshall, mas formulado
uma parcela relevante dos atores políticos desde de acordo com as ênfases e as preocupações típi-
aquela época até o colapso do “socialismo real” cas do individualismo metodológico – é explicitar
em 1989. Diante dessa contestação frontal à sua a maneira pela qual questões como saúde, educa-
legitimidade, os governos desde então se vêem ção e pobreza se transformaram, durante os últi-
O MERCADO E A NORMA 69

mos séculos, em assuntos coletivos, dos quais se (1965). Ou seja, se ao aristocrata medieval não era
espera que a autoridade pública venha a se ocu- deixada escolha senão lidar ele mesmo, privada-
par rotineiramente. Na introdução a seu estudo, mente, com os riscos e as oportunidades ofereci-
De Swaan (1988, p. 2) enuncia a questão que pre- dos, ao burguês moderno é, em princípio, possí-
tende resolver: “Como e por que as pessoas vie- vel comportar-se como um “carona” em relação a
ram a desenvolver arranjos coletivos, nacionais e esse problema. Se outros se encarregarem de trei-
compulsórios para lidar com deficiências e adver- nar e disciplinar a força de trabalho, cooptar po-
sidades que pareciam afetá-las separadamente e liticamente as massas etc., ele se beneficiará do
clamar por remédios individuais?” resultado independentemente de seu próprio es-
Sua resposta apóia-se sobre dois pilares. O forço. Se, por exemplo, esforços coletivos organi-
primeiro remete à sociologia política de Norbert zados se encarregam das condições sanitárias em
Elias e sua postulação – filha direta da sociologia que vivem os pobres num centro urbano, toda a
clássica dos tempos de Durkheim e Weber – de população estará livre de uma possível epidemia
uma contínua extensão e intensificação, ao longo mortal, tendo ou não contribuído para a tarefa;
do tempo, das “cadeias de interdependência hu- igualmente, se uma máfia privada impõe a ordem,
mana”. O segundo, de natureza mais formal, en- todos desfrutarão da “segurança” proporcionada,
foca os efeitos das externalidades provocadas por independentemente de terem contribuído ou não
essa crescente interdependência, que forçarão os para o “policiamento”. O resultado previsível é
atores a se ocuparem publicamente de males que esses esforços não serão viabilizados, a não
“alheios” (De Swaan, 1988, pp. 2-3). Diferentemen- ser que se institua uma contribuição compulsória
te do que se teria passado, por exemplo, no con- para a sua realização, normalmente na forma de
texto medieval, em que – segundo De Swaan – os impostos, mas eventualmente também como um
pobres representavam sobretudo a possibilidade serviço obrigatório (não é por acaso que toda má-
de riscos e benefícios individuais para aqueles fia pratica extorsão).
socialmente estabelecidos (basicamente, o risco Para De Swaan, o welfare é o análogo mo-
de violência pessoal ou contra a propriedade in- derno da caridade medieval. Se os habitantes do
dividual, assim como um possível servidor pes- castelo, periódica e espontaneamente, exerciam
soalmente leal no trabalho ou na guerra), em tem- em interesse próprio, num ritual festivo qualquer,
pos modernos as ameaças e os benefícios a sagrada virtude da caridade, em tempos moder-
potenciais provindos dos desfavorecidos afetam nos a impessoalidade que paradoxalmente se dis-
os ricos sobretudo coletivamente, pois são amea- semina nas relações sociais em conjunto com a in-
ça à ordem pública, à harmonia das relações de tensificação das “cadeias de interdependência
trabalho e mesmo à saúde pública, ao mesmo humana” impede que o sistema continue a funcio-
tempo em que se constituem parte de um exérci- nar apoiado em contribuições espontâneas. Mas,
to coletivo, impessoal, de potenciais trabalhado- de qualquer maneira, a ordem normativa se im-
res, recrutas, consumidores e eleitores.33 A conse- põe, agora apoiada sobre contribuições compulsó-
qüência imediata desse fenômeno reside em que rias determinadas em normas impessoais burocra-
se de um lado o senhor medieval podia (aliás, ti- ticamente implementadas. Pois, na ausência dessa
nha de) lidar individualmente com as ameaças e coordenação impositiva, o cenário seria fatalmen-
as oportunidades representadas pelos “seus” po- te de radical instabilidade e imprevisibilidade.
bres – seja assegurando contra eles sua proteção Também aqui, no trabalho de De Swaan, temos
pessoal, seja conquistando-lhes a lealdade pessoal –, um argumento de natureza funcionalista, em que
do outro lado a proteção contra os perigos ofere- a “coordenação de expectativas” desempenha o
cidos pelos deserdados de hoje, assim como a papel de variável homeostática central. Mas, em
possibilidade de se beneficiar deles, se apresen- vez de tomá-la por assegurada, como um funcio-
tam ao moderno burguês como um problema de nalista mais entusiasmado tenderia a fazer, De
ação coletiva tal como sistematizado por Olson Swaan se indaga sobre suas condições de obten-
70 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 52

ção, e o faz seguindo uma metodologia individua- Todavia, é claro que não podemos tomar a
lista, apoiada em recursos analíticos típicos da identificação desse caso de desenvolvimento his-
teoria da escolha racional. Tanto que De Swaan toricamente observado e transformá-lo numa pro-
(1988, p. 8) reconhece que a incerteza quanto à posição ao mesmo tempo histórica e teórica que
possibilidade de adversidades, por si só, não nos afirmaria sua existência necessária, ou que o de-
conduziria à compulsoriedade da contribuição, senvolvimento observado até aqui prosseguirá
mas antes a alguma forma de associação de segu- inexoravelmente o seu curso rumo a uma aproxi-
ro voluntário apoiado num cálculo probabilístico mação do estádio “pós-ideológico” tal como deli-
de risco pessoal. O fator decisivo a tornar inevitá- neado por Fábio W. Reis (2000a, p. 150).35 Ade-
vel a contribuição compulsória é a multiplicação mais, mesmo quando se observa esse percurso, a
das externalidades enfrentadas a partir da intensi- linha evolutiva geral pode comportar tantas e tão
ficação dos laços de interdependência no interior profundas oscilações de alcance histórico mais
da sociedade moderna, urbana. curto que ela com freqüência se torna praticamen-
Observe-se como, tanto em Marshall como te imperceptível no curso de uma vida humana –
em De Swaan, vemos operar diferentes mecanis- e isto, é claro, tem grave relevância moral. Assim,
mos pelos quais o processo de afirmação de inte- o período coberto por Marshall e De Swaan assis-
resses termina por desenvolver-se na direção de tiu a restaurações monárquicas, golpes de Estado
uma ampliação paralela dos marcos de solidarie- autoritários, processos violentos de decomposição
dade institucionalmente prescritos na sociedade, ou fragmentação de Estados, políticas oficiais de
tal como se dá na definição de desenvolvimento segregação de diversas naturezas, guerras interna-
político elaborada por Fábio W. Reis (2000a, pp. cionais em escala sem precedentes etc.
123-160). Em Marshall, vemos a livre perseguição Contemporaneamente, lidamos – apesar do
do interesse privado, chancelada pelos direitos ci- que há de positivo, sob o ponto de vista de um
vis, resultar, por sua própria dinâmica, em inicia- internacionalismo humanista, no processo de in-
tivas redistributivas contidas nos direitos sociais, ternacionalização política observado na formação
ou seja, numa expansão dos marcos de solidarie- de blocos regionais internacionais – com os riscos
dade em que opera a sociedade. Em De Swaan, envolvidos no recente processo de desregulamen-
um irresistível processo de crescente interdepen- tação econômica no plano infranacional, que fre-
dência recíproca induz a que o interesse indivi- qüentemente tem resultado em certo desmantela-
dual de cada um seja melhor atendido com a co- mento do conjunto de normas que compõem os
letivização compulsória do combate a uma série direitos sociais. De um ponto de vista como o de
de externalidades geradas por problemas em De Swaan, esse movimento só pode significar uma
princípio individuais. Com efeito, parece que a li- oscilação temporária na tendência geral de coleti-
vre busca da realização do interesse individual vização – agora no plano internacional – de as-
por todos requererá a mitigação de diferenças so- suntos que hoje nos pareceriam estritamente afei-
ciais extremas porventura existentes.34 Nesse sen- tos a agendas políticas domésticas. Pois, dado o
tido, a história do Ocidente nos últimos séculos processo inexorável de intensificação da interde-
tal como a descrevem Marshall e De Swaan ilus- pendência humana, claramente reafirmado e
tra, a despeito de todas as suas idas e vindas, um aprofundado pela globalização em voga, diversas
caso inequívoco de progressivo “desenvolvimen- externalidades não tardariam a se fazer sentir, tais
to político” aparentemente ainda em curso no como crescente pressão migratória internacional,
processo de institucionalização de blocos regio- aumento da turbulência política doméstica nos
nais internacionais, que prossegue o percurso de países centrais etc., impondo novas soluções co-
ampliação dos marcos de “solidariedade” – não letivas de natureza compulsória – mais regula-
obstante as pressões a que se encontram subme- mentação, portanto.36 O problema é que “oscila-
tidas presentemente as possibilidades de imple- ções” como essa podem abarcar gerações inteiras,
mentação eficaz dos direitos sociais. e sua profundidade é imprevisível ex ante. Até
O MERCADO E A NORMA 71

onde as chamadas externalidades podem ir antes num compromisso um tanto frágil, apoiado na
de se encontrar uma solução consensual para elas crença de que a observância de determinados pro-
(ou melhor, antes que se torne racional para cada cedimentos políticos universalistas resultará de al-
ator relevante aderir a uma solução institucional gum modo no benefício de todos (Bruno Reis,
para elas) é uma questão em aberto, e, assim, lon- 1997, pp. 66-71), então a questão da sobrevivên-
gos períodos de grave turbulência política são cia material dos pactuantes deve estar encaminha-
sempre uma possibilidade.37 da (e, depois da experiência do welfare state, es-
A situação nos dias de hoje torna-se particu- perar-se-á certamente uma sobrevivência material
larmente delicada a partir do momento em que se não menos que “confortável”). Se se dissemina a
constata que – assim como se teria dado no pro- percepção de que o sistema político simplesmen-
cesso de coletivização dos problemas sociais se- te se torna injusto, deixando de promover alguns
gundo a descrição de De Swaan – a última onda valores socialmente compartilhados, então todo o
de internacionalização de mercados coloca cada aparato institucional democrático se tornará parti-
país diante de um problema de ação coletiva per- cularmente vulnerável a eventuais “ataques caris-
feitamente análogo àquele com que se depararam máticos”.39 E o problema contemporâneo revela-se
as diversas burguesias nacionais há aproximada- muito mais grave do que o de séculos passados,
mente um século. Apanhado em um trade-off en- descrito por Marshall e De Swaan, a partir do mo-
tre proteção social e competitividade comercial, mento em que se constata que os indispensáveis
cada governo se vê aparentemente diante do dile- mecanismos institucionais de normalização de
ma entre desmantelar – ainda que de forma par- condutas num plano internacional se encontram
cial – o sistema nacional de seguridade social para num estádio de desenvolvimento muito inferior
manter algum dinamismo econômico à custa do àquele em que se encontravam os diversos Esta-
aumento das desigualdades internas, ou então dos nacionais há, digamos, um século atrás – e,
preservar as conquistas sociais anteriores em mesmo ali, o processo de incorporação não dei-
nome da preservação da paz social interna, mas à xou de ser acidentado e traumático.
custa de certo comprometimento do dinamismo
econômico e de um aumento expressivo do de-
semprego, que certamente acabarão por compro- 3. Notas finais: democracia,
meter, em alguma medida, aquela mesma paz so- modernidade e mercado
cial que se buscava preservar (Esping-Andersen,
1995). Disso resulta que, enquanto não se impuser As fontes de legitimidade da democracia
uma solução que seja legalmente compulsória moderna colocam-na, portanto, numa posição
para todos os países, e que inclua a previsão de delicada, em que suas perspectivas de estabilida-
sanções rapidamente aplicáveis, e eficazes, para de passam a depender de uma combinação ra-
os países que a transgredirem, todos serão induzi- zoavelmente complexa de fatores. Em primeiro
dos a se comportar de modo agressivo no merca- lugar, a adesão a princípios democráticos requer
do internacional, comprometendo conquistas so- o abandono progressivo de fins substantivos a
ciais anteriores.38 Dado, porém, o papel central serem perseguidos pelo sistema político, em fa-
desempenhado pelos direitos sociais – conforme vor de uma valorização crescente de determina-
se pode inferir da interpretação de Marshall – na dos procedimentos a serem seguidos. No limite,
universalização do pleno exercício dos direitos ci- esses procedimentos apóiam-se em formas espe-
vis em sociedades marcadas (hoje como ontem) cíficas de tratamento entre as pessoas tomadas
por fortes desigualdades internas, parece imprevi- individualmente, pessoas essas cujo bem-estar
sível o efeito desse desmantelamento da legislação (definido de maneiras variadas por cada uma de-
social sobre a legitimidade futura do arcabouço las) se torna o grande fim legítimo a ser busca-
institucional das democracias contemporâneas. do, o que é consistente com a máxima kantiana
Pois, se a institucionalização democrática se baseia que obriga a todos a tomarem cada ser humano
72 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 52

como “um fim em si mesmo”. Todavia, temos mais ortodoxos) de forma a assegurar níveis míni-
claramente um problema aqui quando constata- mos de igualdade de oportunidades entre os cida-
mos que desses procedimentos, dessas formas dãos, abaixo dos quais a competição mesma per-
de tratamento, as pessoas evidentemente espe- deria toda a credibilidade entre os contendores,
ram resultados específicos para as suas vidas, induzindo-os ou à acomodação cínica que não
nem sempre compatíveis uns com os outros. hesita um segundo em burlar as regras da compe-
Pois, na sociedade moderna, liberal, o fim a ser tição em proveito próprio quando a ocasião se
coletivamente perseguido não mais pode consis- apresenta, ou à contestação frontal da legitimida-
tir em um feito coletivo, mas sim numa certa li- de do sistema (ou mesmo – o que não é raro – a
berdade – desfrutada individualmente – para ambas). Com efeito, o poder público tem a atri-
buscarmos o fim que pessoalmente nos aprou- buição complexa e paradoxal de interferir conti-
ver, contanto que ele não inclua o uso direto de nuamente na operação do mercado para de fato
violência sobre terceiros. O problema reside em refundar permanentemente o próprio mercado,
que – como nos diria De Swaan – não há manei- ao mantê-lo em um estado tão próximo quanto
ra de o sistema se assegurar a priori contra as possível da “concorrência perfeita” e amparar mi-
“externalidades” que a livre busca da felicidade nimamente os casos de insucesso, dada a tendên-
por cada um necessariamente produzirá sobre as cia concentradora que resulta da livre interação
chances de realização da felicidade de outros. dos agentes econômicos no mercado. Na ausên-
Disso resulta a sensação, compartilhada por tan- cia de interferência externa, essa tendência crista-
tos em nosso tempo, de estarmos no interior de lizaria relações econômicas originariamente mer-
uma imensa e insensível engrenagem, um enor- cantis em relações coercitivas adscritivamente
me moedor de carne. É evidente que, na ausên- definidas, a partir do uso irrestrito – por alguns
cia de algum controle externo (e talvez mesmo poucos – do poder econômico que resultaria de
na presença dele), a pura operação dessa engre- seu sucesso inicial na competição mercantil.
nagem impessoal reproduz inevitavelmente desi-
gualdades de todo tipo, que impedem mesmo a
genuína competição por não permitir concreta- NOTAS
mente a necessária “igualdade de oportunida-
des” para todos. A disseminação da idéia de que 1 Para uma exposição sumária dos significados de “re-
vivemos em uma sociedade que “não se importa lação comunitária” e “relação associativa”, ver Weber
com as pessoas” subverte o desafio básico do Ilu- (1994, pp. 25-27), que elabora esse tema a partir da
distinção original de Ferdinand Tönnies entre Ge-
minismo, que inspira toda a modernidade (tomar
meinschaft e Gesellschaft.
cada um como um fim em si mesmo), e pode
provocar graves crises de legitimidade e autorida- 2 De fato, a “troca estritamente racional referente a
fins e livremente pactuada no mercado: um com-
de do sistema, pondo em permanente risco a
promisso momentâneo entre interesses opostos,
própria sobrevivência da democracia.40 porém complementares” é para Weber (1994, p. 25,
A sociedade moderna tem diante de si o de- grifos do autor) um dos três tipos puros de relação
safio complexo de equilibrar-se perante esse pro- associativa, em conjunto com a “união livremente
blema. Ela tem de permitir a cada um buscar a pactuada e puramente orientada por determinados
própria felicidade segundo uma compreensão fins”, e a “união de correligionários, racionalmente
motivada com vista a determinados valores”.
pessoal do que seja essa felicidade, impondo, de
um lado, uma feroz competição entre as pessoas 3 Na formulação de Hayek (1967, p. 168), a primeira
(na medida em que contesta a legitimidade de cri- troca efetuada entre membros de duas tribos distin-
tas marca o início da passagem da organização tribal
térios adscritivos de estratificação), mas ao mesmo
“para a ordem espontânea da Sociedade Aberta” (tra-
tempo vê-se obrigada a intervir continuamente dução minha), pois é o primeiro ato que atende a
nessa competição (de certa maneira desvirtuando, propósitos recíprocos sem atender a nenhum propó-
sim, seus resultados, como se queixam os liberais sito comum.
O MERCADO E A NORMA 73

4 Talvez precisamente por reação a esse processo é base que se encontra por toda a parte e cujo volu-
que se explique a longa persistência do romantismo me é simplesmente fantástico. À falta de termo me-
como movimento culturalmente relevante durante lhor, designei essa zona espessa, rente ao chão, de
toda a modernidade, “talvez o mais importante mo- vida material ou civilização material”.
vimento cultural ocidental do período moderno”,
8 Devo a Fábio W. Reis a advertência para este ponto.
como diz Edward Tiryakian (1992, pp. 84-85), que
o identifica como exemplo de um processo de 9 Era certamente com base numa contraposição aná-
“reencantamento”, paralelo ao “desencantamento” loga a essa que Hayek costumava qualificar o socia-
identificado por Weber, e alimentado mesmo por lismo como “uma nostalgia da sociedade arcaica, da
este último. solidariedade tribal” (Sorman, 1989, p. 192).
5 Um veemente ataque à legitimidade do recurso ao 10 North (1990, p. 93, apud Putnam, 1993, p. 178) vê o
funcionalismo em ciências sociais, que denuncia com comportamento “oportunista” como uma estratégia
propriedade seus abusos mais comuns, pode ser en- crescentemente compensadora, à medida que a so-
contrado em Jon Elster (1989a). Uma convincente de- ciedade se torna mais complexa.
fesa do recurso ao funcionalismo, tomados os devidos
cuidados, encontra-se, porém, em G. A. Cohen (1990). 11 Contraposta ao otimismo de Herbert Spencer quan-
to à capacidade integradora do mercado, a posição
6 Para uma apresentação rápida de meus pontos de de Durkheim parte da constatação da corrosão ine-
vista sobre a controvérsia em torno do funcionalis- vitável da solidariedade mecânica na sociedade mo-
mo nas ciências sociais e, contra a posição defendi- derna, mas, diferentemente da fé liberal no merca-
da por Elster, sobre a fecundidade potencial de sua do, para ele a solidariedade orgânica não seria
utilização conjunta com o aparato analítico da “es- capaz de prover sozinha uma integração totalmen-
colha racional”, ver Bruno Reis (1997, pp. 18-28). te espontânea dos interesses individuais. Mecanis-
Sou grato a um dos pareceristas anônimos da RBCS mos impessoais como o mercado não bastam. Não
por me fazer ver a necessidade de me estender um podem ser os únicos mecanismos de integração, ou
pouco mais sobre esse ponto. melhor, não se pode pretender que a integração
7 O conceito de “vida material” tem um significado seja totalmente espontânea, não regulada normati-
peculiar em Braudel (1987, pp. 13-14), que o expôs vamente. De onde decorre a preocupação durkhei-
da seguinte maneira: “Parti do cotidiano, daquilo miana acerca do caráter “anômico” das sociedades
que, na vida, se encarrega de nós sem que o saiba- modernas (McCarthy, 1991, p. 121).
mos sequer: o hábito – melhor, a rotina – mil gestos 12 É evidente o parentesco existente entre esse argu-
que florescem, se concluem por si mesmos e em mento e a teoria pluralista da democracia, que tal-
face dos quais ninguém tem que tomar uma decisão, vez encontre sua formulação mais acabada em Ro-
que se passam, na verdade, fora de nossa plena bert Dahl (1971). Na visão de Dahl, é crucial para a
consciência. Creio que a humanidade está pela me- democracia que nenhum grupo social isoladamente
tade enterrada no cotidiano. Inumeráveis gestos her- tenha acesso exclusivo a qualquer recurso de poder
dados, acumulados a esmo, repetidos infinitamente – visão esta que, como lembra Fernando Limongi
até chegarem a nós, ajudam-nos a viver, aprisionam- (1997, p. 19), é tributária direta de Montesquieu, Ma-
nos, decidem por nós ao longo da existência. São dison e Tocqueville. Com efeito, é exatamente este
incitações, pulsões, modelos, modos ou obrigações o argumento subjacente à visão de Tocqueville so-
de agir que, por vezes, e mais freqüentemente do bre um presumível movimento inexorável do mun-
que se supõe, remontam ao mais remoto fundo dos
do contemporâneo rumo à “sociedade democrática”.
tempos. Muito antigo e sempre vivo, um passado
Logo na introdução de “A democracia na América”
multissecular desemboca no tempo presente como o
(1979, p. 185), ele o enuncia, em seu estilo: “Desde
Amazonas projeta no Atlântico a massa enorme de
que os cidadãos começaram a possuir a terra através
suas águas agitadas. Foi tudo isso que tentei captar
de modalidades estranhas à propriedade feudal, e
sob o nome cômodo – mas inexato, como todas as
quando a riqueza mobiliária, tornando-se conheci-
palavras de significação excessivamente ampla – de
da, pôde, por sua vez, proporcionar influência e dar
vida material. Bem entendido, trata-se de uma par-
poder, não se fizeram descobertas nas artes, não se
te apenas da vida ativa dos homens, tão profunda-
introduziram mais aperfeiçoamentos no comércio e
mente inventores quanto rotineiros”. Em trabalho
na indústria, sem criar número equivalente de ele-
anterior, Braudel (1995, p. 12) completa: “[...] uma
mentos novos de igualdade entre os homens”.
zona de opacidade, muitas vezes difícil de observar
por falta de documentação histórica suficiente, se 13 De acordo com o trabalho etnológico de Stanley
estende sob o mercado: é a atividade elementar de Udy (1959, apud F. W. Reis, 2000a, pp. 231-233), a
74 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 52

adscrição viria junto com o sedentarismo acarretado 19 Acompanho aqui a definição que Thomas Schelling
pela agricultura, em contraste com o que se daria oferece logo na primeira página de The strategy of
comumente em sociedades tribais de caçadores, em conflict (1963, p. 3): “O termo ‘estratégia’ é toma-
geral nômades, nas quais “o problema da utilização do, aqui, da teoria dos jogos, que distingue entre jo-
ótima dos recursos materiais e humanos se coloca gos de destreza, jogos de azar e jogos de estraté-
com agudeza”, o que faria com que prevalecessem gia, sendo estes últimos aqueles em que a melhor
formas de organização do trabalho que “tendem a linha de ação para cada jogador depende do que
caracterizar-se por traços tais como especificidade outros jogadores fazem. O termo pretende concen-
quanto à divisão do trabalho [e] ênfase no desem- trar-se na interdependência das decisões dos ad-
penho ao invés de em qualidades ‘adscritivas’”. Ao versários e nas suas expectativas sobre o compor-
contrário, a sociedade camponesa de agricultura se- tamento de cada um dos demais. Este não é o uso
dentária poderia arcar com um declínio da eficiên- militar da expressão.”.
cia que presumivelmente resulta do predomínio de
formas adscritivas de organização do trabalho, em 20 Para uma apresentação um tanto anedótica, mas
virtude da segurança econômica comparativamente bastante clara (e simpática), do “teorema de Coase”,
maior, propiciada pela atividade agrícola sedentária. ver George Stigler (1991, pp. 79-85).
14 Para uma afirmação bastante conhecida da tese de 21 Não há espaço no âmbito deste ensaio para desen-
que a democracia repousa sobre um ponto de vista volver plenamente esse ponto, mas a teoria de
moralmente individualista (“uma concepção indivi- Douglass North (1990) sobre mudança institucio-
dualista da sociedade”), pode-se recorrer a Norber- nal (que – tributária de Coase – baseia-se funda-
to Bobbio (1986, p. 22). mentalmente em arranjos estabelecidos no plano
das interações individuais, que obedeceriam a um
15 E, portanto, não opera o “mercado político” tal
como definido por Fábio W. Reis (2000a, esp. pp. imperativo coletivo de eficiência), também parte
131-153). de premissas fortes, de conseqüências analoga-
mente “panglossianas”. Jack Knight (1992), ao con-
16 Para uma exposição da dialética entre solidariedade ceber as instituições políticas como subprodutos
e interesses, referida à operação de um critério nor- de conflitos distributivos e apoiar-se em modelos
mativo de avaliação do cumprimento da “função de barganha com assimetria de recursos, gerou re-
política” em qualquer sociedade, ver Fábio W. Reis sultados mais indeterminados (equilíbrios não ne-
(2000a, pp. 123-160). cessariamente eficientes) e reclama haver produzi-
17 Para uma apresentação bastante sucinta desses ar- do uma teoria mais abrangente, que teria as
gumentos, ver Bruno Reis (1997, esp. pp. 90-94), demais como casos especiais, resultados possíveis
onde descrevo o argumento de Putnam sobre a re- sob condições específicas. Agradeço a um parece-
lação entre comunidade cívica e desempenho insti- rista anônimo da RBCS por chamar minha atenção
tucional como uma corroboração empírica da solu- para a omissão desse tema em uma versão anterior
ção cooperativa espontânea de Taylor e Axelrod do trabalho, e a James Johnson pela esclarecedora
para o dilema do prisioneiro. A solução de Taylor é interlocução na matéria.
quase idêntica à de Axelrod, exceto pelo fato de
22 Os maiores sistemas burocráticos existentes na
Axelrod se ater a jogos entre dois atores. A bem da
história, mesmo que completamente desprovidos
precisão, portanto, o argumento de Putnam seria
mais propriamente uma corroboração de Taylor do de qualquer conteúdo democrático tal como se
que de Axelrod. compreende hoje, envolviam sempre algum im-
portante componente competitivo (ou meritocráti-
18 Ver, por exemplo, Claus Offe (1989, pp. 78-80). Já co), seja na admissão a seus quadros – como pa-
Marx e Engels haviam se referido a regulamenta- rece ter sido o caso durante séculos na China
ções legais tanto do trabalho quanto de mecanis- (Spence, 1995, p. 63) e no Japão (Evans, 1992, pp.
mos do mercado como formas de “proteger os ca- 152-154) –, seja internamente, na competição pe-
pitalistas de si próprios”. Na Ideologia alemã (apud los postos de comando – como aparentemente se
Jon Elster, 1989b, p. 148), eles se referem explicita- deu na União Soviética durante a maior parte de
mente – e com um vocabulário muito pouco “poli- sua existência.
ticamente correto” para os padrões de hoje – ao
problema da “carona”: “A atitude do burguês para 23 Habermas pretende em sua obra rejeitar precisamen-
com as instituições de seu regime é a mesma do ju- te esse dilema, mas não sou persuadido de que sua
deu para com a lei; ele a evita quando isso é pos- solução seja bem-sucedida. Para uma crítica extensa
sível em cada caso individual, mas quer que todos da posição de Habermas, remeto o leitor a Fábio W.
os outros a observem”. Reis (2000b, pp. 23-101, particularmente pp. 68-89,
O MERCADO E A NORMA 75

dedicadas à discussão da ação estratégica). Ver tam- 28 Além disso, como lembra Fábio W. Reis (2000a, p.
bém Thomas McCarthy (1991, esp. pp. 122-124). 184), “o Estado, através de sua ação no plano so-
cial, tem de ser ele mesmo o agente produtor, no
24 Esse duplo movimento é apenas parcialmente cap-
limite, da própria capacidade de reivindicação –
tado pela distinção estabelecida por Michael Mann
ou o agente produtor de condições propícias ou
(1992, pp. 168-173), entre o “poder despótico” (de-
tendentes a um mercado político no sentido posi-
crescente) e “poder infra-estrutural” (crescente) do
tivo da expressão [...], incluindo de maneira des-
Estado.
tacada os requisitos da própria dimensão civil da
25 Esse argumento certamente pode ser exposto em cidadania”.
termos analiticamente mais precisos, e é o que fa-
29 A intolerância contra os intolerantes foi enfatica-
zem Adam Przeworski e Fernando Limongi (1993,
mente defendida por Karl Popper (1987, pp. 289-
pp. 176-177): “O mercado é um sistema no qual re-
cursos limitados são alocados para usos alternativos 290) como ingrediente indispensável de uma prote-
por meio de decisões descentralizadas. No entanto, ção eficaz às instituições democráticas. É claro que
no capitalismo, a propriedade é institucionalmente persiste nessa estratégia a dificuldade insanável da
separada da autoridade: os indivíduos são ao mes- caracterização unilateral da intolerância alheia.
mo tempo agentes no mercado e cidadãos. Portan- 30 Lembremo-nos aqui da dupla dimensão da cidada-
to, existem dois mecanismos pelos quais os recur- nia assinalada por George Armstrong Kelly (1979,
sos podem ser alocados e distribuídos entre os apud F. W. Reis, 2000a, pp. 217-219): ao mesmo
agentes econômicos: o mercado e o Estado. O mer- tempo “civil” (no que toca à proteção de prerroga-
cado é o mecanismo pelo qual os indivíduos votam tivas individuais contra intromissões injustificadas,
a favor de uma alocação com os recursos que pos- provenientes sobretudo do Estado) e “cívica” (na-
suem, e esses recursos são sempre distribuídos de- quilo que concerne à observância obrigatória de
sigualmente; o Estado é um sistema que aloca re- normas compulsórias).
cursos que não possui, sendo os direitos
distribuídos diferentemente do mercado. Segue-se 31 François Furet (1989, pp. 61-64), ao chamar atenção
que a alocação de recursos que os indivíduos pre- para a ambigüidade fundamental do conceito de re-
ferem enquanto cidadãos, em geral, não coincide volução em Marx (“ao mesmo tempo essencial e
com a que eles obtêm via mercado”. Esse mesmo obscuro”, pois não se sabe se a revolução revela ou
argumento aparece também em Adam Przeworski e cria uma nova sociedade, uma vez que ela “ora in-
Michael Wallerstein (1989, p. 256). Ao final, apoia- clui, ora exclui o conceito da necessidade históri-
dos em Zhiyuan Cui (1992), Przeworski e Limongi ca”), destaca a obsessão da cultura política européia
(1993, p. 189), completam: “[...] se os mercados são pelo exemplo da Revolução Francesa em particular,
incompletos e a informação imperfeita, a economia e da revolução em geral, como “a figura principal –
só pode funcionar se o Estado proteger os investi- e necessária – da transformação histórica moderna”.
dores (responsabilidade limitada dos acionistas), as 32 Brian Barry (1985, pp. 315-317) ironiza aqueles
empresas (lei das falências) e os depositantes (sis- que, comprometidos primariamente com a idéia do
tema bancário com dois tipos de bancos, um deles livre funcionamento do mercado, se vêem diante
obrigado a fazer seguro dos depósitos). Mas esse do problema de obter uma aprovação democrática
tipo de envolvimento do Estado inevitavelmente in- da população para que se mantenham de mãos
troduz uma restrição orçamentária leve (soft budget atadas governos eleitos também democraticamente.
constraint). O Estado não pode simultaneamente Não é à toa, segundo ele, que países autoritários
proteger os agentes privados e não atender às suas como Hong Kong, Taiwan e Coréia do Sul se tor-
reivindicações, mesmo quando estas decorrem de
nam freqüentemente as “meninas dos olhos” de
risco moral (moral hazard).”
tais economistas.
26 Como diz o próprio Marshall (1965, p. 122), “os di-
33 Wanderley Guilherme dos Santos (1993, pp. 22-23)
reitos sociais em sua forma moderna implicam uma
também se refere à imposição compulsória do con-
invasão do contrato pelo status”.
sumo de um “mal público” aos empresários pela
27 Como apontou E. E. Schattschneider (1960, cap. II), crescente organização operária. A peculiaridade do
a clivagem e a abrangência da disputa são parâme- argumento de De Swaan decorre, porém, do fato de
tros decisivos na determinação do resultado de um que ali a dinâmica da interdependência entre ricos e
conflito político qualquer. E, no cap. VI, ele não pobres na sociedade moderna configura um proble-
deixa de atribuir à dinâmica do conflito político a ma de ação coletiva independentemente da organiza-
extensão progressiva do direito de voto. ção dos atores diretamente envolvidos.
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34 Em corroboração a esta interpretação podemos 39 Conforme o enuncia S. N. Eisenstadt (1968, p. 69),


evocar quase toda a literatura sobre welfare state e apoiado no esquema parsoniano: “Um sistema ins-
social-democracia, que tradicionalmente os inter- titucional nunca é inteiramente ‘homogêneo’ no
preta como uma “resposta do capitalismo” às reivin- sentido de ser inteiramente aceito ou aceito no mes-
dicações operárias e ao sucesso que a ideologia so- mo grau por todos aqueles que nele participam, e
cialista experimentava até meados do século XX. essas orientações diferentes para com as esferas
Esse argumento encontra talvez sua melhor formu- simbólicas centrais podem todas se tornar focos de
lação em Adam Przeworski (1989), que evita escru- conflito e de mudança institucional potencial”. O
pulosamente “teleologias objetivas” e apóia a des- que faz com que todo sistema institucional seja, em
crição desse processo sobre opções racionais feitas maior ou menor medida, vulnerável a um eventual
pelos diversos atores envolvidos, inclusive – e, tal- “ataque” carismático, conforme se avalie em cada
vez, principalmente – os operários. momento o seu desempenho no cumprimento des-
sa “missão” – ou, mais precisamente, na realização
35 Para Karl Popper (1991, pp. 112-124), uma proposi-
de valores socialmente predominantes.
ção pode ser ou teórica ou histórica, mas nunca
ambas ao mesmo tempo. Assim pode-se afirmar 40 Não obstante, apesar de inúmeros exemplos em
que o mundo evoluiu numa certa direção (proposi- contrário freqüentemente expostos na imprensa,
ção histórica); podem-se também produzir hipóte- não há motivo para crer que as pessoas na socieda-
ses explicativas – potencialmente generalizáveis – de moderna se importem menos umas com as ou-
daqueles acontecimentos (proposições teóricas), tras do que aquelas que tenham vivido em qualquer
que poderão ou não tornar plausíveis certas previ- outra formação social. Afinal, nenhuma outra socie-
sões futuras sobre o mundo; mas não se pode sim- dade se importou tanto com o reconhecimento da
plesmente postular, sem mais, que o mundo se legitimidade do interesse de cada indivíduo no pla-
move numa determinada direção (proposição ao no de sua autojustificação formal, nem construiu
mesmo tempo teórica e histórica). tantas instituições e costumes destinadas a protegê-
los. Aparentemente, o que ocorre hoje é que, ex-
36 Menciono aqui a turbulência política nos países cen-
pandindo dramaticamente o número de pessoas
trais não por entender que ela não se daria nos paí-
com que de algum modo interagimos no cotidiano,
ses periféricos (muito pelo contrário), mas sim por-
a sociedade moderna terá aumentado a incerteza
que – conforme o argumento de De Swaan – a
em que nos movemos no interior da multidão, tal-
eventual turbulência política nestes só produziria
vez também no que diz respeito à segurança de
efeitos na direção de uma coletivização compulsória
cada um, mas sobretudo quanto à própria eficácia
do problema (ou seja, uma regulamentação interna-
ou necessidade do gesto individual, o que conduz
cional qualquer destinada a lidar com ele) na medi-
muitas vezes a episódios deprimentes como o da ví-
da em que produzisse externalidades patentes sobre
tima de homicídio cujos gritos são ouvidos por de-
os países centrais. De maneira idêntica, no plano
zenas sem que nada seja feito para ajudá-la, nem
doméstico, a questão social só começou a se tornar
mesmo avisar à polícia. De fato, Avinash Dixit e
um problema coletivo quando a miséria dos pobres
Mancur Olson (1996, pp. 10-13) demonstram for-
passou a criar transtornos para a vida dos ricos.
malmente que “quando os números são grandes o
37 Um diagnóstico menos pessimista se poderia extrair bastante, a racionalidade individual muitas vezes
de Steven Vogel (1996), para quem o recente pro- faz com que resultados coletivamente racionais se-
cesso de reforma regulatória nos países industriais jam menos prováveis” (tradução minha).
avançados tem consistido mais de uma re-regula-
mentação que de uma desregulamentação – mesmo
no plano doméstico.
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214 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 18 Nº. 52

O MERCADO E A NORMA: O ES- MARKET AND THE NORM: MO- LE MARCHÉ ET LA NORME:
TADO MODERNO E A INTERVEN- DERN STATE AND PUBLIC INTER- L’ÉTAT MODERNE ET L’IN-
ÇÃO PÚBLICA NA ECONOMIA VENTION ON THE ECONOMY TERVENTION PUBLIQUE
DANS L’ÉCONOMIE

Bruno P. W. Reis Bruno P. W. Reis Bruno P. W. Reis

Palavras-chave Key words Mots-clés


Mercado; Democracia; Sociedade Market; Democracy; Modern so- Marché; Démocratie; Société moder-
moderna; Direitos sociais; Estado ciety; Social rights; Modern state. ne; Droits sociaux; État moderne.
moderno.

Este artigo parte de uma discussão This article starts from a discussion Cet article est issu d’une discussion
da concepção weberiana do merca- on the weberian conception of the de la conception de marché suivant
do como a forma por excelência de market as a means by excellence to Max Weber, comme étant la forme
“socialização entre estranhos” para foment “socialization among stran- par excellence de la “socialisation
refletir teoricamente sobre moder- gers” to then reflect theoretically on entre inconnus”, pour réfléchir théo-
nização e mercado. Para além das modernization and market. Beyond riquement à propos de la moderni-
evidentes sugestões envolvidas na evident suggestions involved in the sation et du marché. Au-delà des
reflexão sobre o papel do mercado reflexion on the role of market in the suggestions évidentes qui font partie
no mundo contemporâneo, procu- contemporary world, it aims to esta- de la réflexion à propos du rôle du
ra-se estabelecer alguns nexos es- blish some specific nexus – despite marché dans le monde contempo-
pecíficos – não obstante todas as all the tensions involved – between rain, nous cherchons à établir quel-
tensões envolvidas – entre o arqué- market archetype and the operation ques liens spécifiques – malgré tou-
tipo do mercado e a operação dos of the modern democratic political tes les tensions en jeu – entre
sistemas políticos democráticos systems. l’archétype du marché et l’opération
modernos. des systèmes politiques démocrati-
ques modernes.

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