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A

Júlio Cesar Ferrão Pinheiro∗

Revista de Filosofia
Ecos de Nietzsche na Teoria da
Ciência de Max Weber

RESUMO

O presente artigo procura evidenciar as influências do filósofo alemão Friedrich Nietzsche na teoria
da ciência de Max Weber. Por maiores que sejam as discrepâncias entre os pensamentos desses
dois autores – e não podemos deixar de salientar: são muitas – há, certamente, inúmeros pontos
afins e que compõem uma gama enorme de possibilidades de estudos comparativos. Este trabalho
representa somente uma parte deste universo pouco explorado, mas bastante rico. Certo é: podemos
sim encontrar em Max Weber resquícios do pensamento de Nietzsche. Não é tarefa das mais fáceis,
dado que o sociólogo pouco versava em seus textos sobre a influência do filósofo alemão. Através
deste ensaio procuramos deixar às claras, na medida do possível, quais eram tais influências.

Palavras-chave: Teoria do conhecimento; Nietzsche; Weber; Verdade; Valor.

ABSTRACT

This article seeks to highlight the influences of German philosopher Friedrich Nietzsche’s theory of
science of Max Weber. As impressive as the discrepancies between the ideas of these two authors
- and we cannot fail to point out: there are many - there are certainly many points and the like that
comprise an enormous range of possibilities for comparative studies. This work represents only a
part of this universe unexplored, but very rich. Sure is: yes we can find in Max Weber traces of Ni-
etzsche’s thought. Not an easy task, as the sociologist few verses in his writings about the influence
of German philosopher. Through this test we tried to make clear the extent possible, what were
these influences.

Key words: Theory of knowledge; Nietzsche; Weber; Truth; Value.


Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e bolsista pela CAPES.

46 Argumentos, Ano 2, N°. 4 - 2010


Considerações Iniciais a economia política numa base histórica em
contraposição às correntes naturalistas e positi-
Uma das características centrais do pen- vistas, então dominantes (KASLER Apud FILIPE,
samento de Max Weber é a dispersão metodo- 2004, p. 43). Isso está presente na polêmica
lógica, científica e filosófica que aparenta uma da chamada “Querela dos Métodos” que fora
renuncia a qualquer núcleo teórico central. bem fundamentada por Weber em seus ensaios
Não se trata aqui de incoerência, confusão de sobre a objetividade das ciências sociais e das
gêneros ou ecletismo. Basta considerar sua obra ciências políticas.
metodológica para ver que ele evitava qualquer
tipo de inconsistência lógica na elaboração de Objetividade do Conhecimento:
suas teorias. A fragmentação que se constata em
Weber é resultado de sua preocupação com a
uma Questão de Valor
análise rigorosa que se impõe por força da pes-
Escrito em 1914, Objetividade do Co-
quisa (FREUND, 1987, p. 10). Veremos adiante
nhecimento na Ciência Social e na Ciência
que tal preocupação rigorosa faz parte de um
Política é a um só tempo, uma reflexão negativa
esforço epistemológico no sentido de tentar
e positiva. Negativa, pois se trata de uma crítica
demolir muitas das ilusões impostas às ciências
aos antigos dirigentes da Revista Arquivo, que,
da cultura, sobretudo aquelas provenientes do
segundo Weber, atribuíam às ciências sociais
monismo naturalista e do materialismo histórico.
tarefas que não são próprias do conhecimento
Mas atenção! Weber não era um opositor radical
científico. Positiva, no sentido de que é propósito
da sistematização, apenas considerava que no
do seu autor mostrar como se dá a construção
estado atual da ciência, exposta a incessantes
dos conceitos das ciências sociais e sua validade
reviravoltas, não era possível edificar sistemas
objetiva, isto é, como conhecimento fundado em
em definitivo.
regras universalmente válidas.
A produção epistemológica de Weber
Normalmente, diria Weber, não é tarefa
pode ser condensada sob a forma de três ante-
do cientista se preocupar com questões de
cedentes fundamentais: o filosófico, o teórico e
ordem metodológicas, pois é de opinião que
o organizativo (KÄSLER apud FILIPE, 2004, p.
o papel da metodologia, no caso das ciências
41). Interessam-nos os dois primeiros. O ante-
individualmente consideradas, se reveste de
cedente filosófico diz respeito à profunda crise
uma utilidade muito limitada;
da consciência histórica e social da Europa
no quarto de século que precedeu à Primeira [...] existe, porém, uma situação de
Guerra Mundial. A propósito desta crise, teóri- exceção, em que cada cientista tem
cos como Freud, Nietzsche, Marx, dentre outros, legitimidade para fazê-lo, nomeada-
puseram em dúvida as concepções de homem mente quando uma disciplina científica
conhece uma crise, crise essa que leva
então em voga, bem como as ficções de um
a que se propague a incerteza quanto
mundo racionalmente ordenado e a crescente
à natureza do próprio trabalho desen-
separação do abismo que separa o mundo da
volvido. (FILIPE, 2004, p. 45).
realidade do mundo da interpretação. Essa
crise teórica da modernidade colocou à prova Ora, trata-se aqui não menos da natureza
a possibilidade de uma ciência da sociedade problemática concreta da própria disciplina das
em geral, fazendo com que muitos teóricos se ciências da cultura do que o domínio próprio de
inclinassem cada vez mais para concepções de sua metodologia específica, ou seja, a reflexão
mundo onde o subjetivismo e o irracionalismo metodológica que Weber procura fazer em seus
limitavam sobremaneira o valor explicativo do ensaios sobre a objetividade é, pois, um meio,
prognóstico de todo e qualquer saber (FILIPE, não um fim e seu primeiro questionamento pode
2004, p.42). ser formulado nos seguintes termos: “em que
O segundo antecedente fundamental é sentido existem ‘verdades objetivamente válidas’
aquele que Käsler denomina como o debate no domínio da ciência da cultura em geral?”
em torno da determinação da economia po- (FILIPE, 2004, p. 46).
lítica alemã, sobretudo entre teóricos como O problema que se põe é bem concreto,
Roscher, Knies, Shmoller que pretendiam fundar determinado por uma flutuação geral das te-

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orias econômico-políticas e pelo antagonismo [...] a equiparação do conhecimento cien-
das duas principais escolas ou orientações: a tífico a um conhecimento a partir de pon-
histórica e a racionalista. Tratava-se, em suma, tos de vista, portanto, um conhecimento
em tal “contenda”, de saber se parcial representa uma corroboração
do ponto de vista de Menger.” (FILIPE,
a Economia deve ser concebida como ciên- 2004, p.47).
cia histórico-individualizadora e dotada de
conteúdo normativo ou como ciência valo- A idéia aqui posta é a de que a realidade
rativamente neutra e voltada para a busca é, por todo o sempre, singular e não pode ser
de determinadas regularidades gerais da conhecida através de leis. Todavia, essa mesma
ação humana. (COHN, 1979, p. 67). idéia é mais precisada por Weber com a afir-
mação de que o estabelecimento de leis não é
A escola histórica entendia que a econo-
em si rejeitado, mas tão só enquanto fim último
mia política deveria ser uma ciência preocupada
da ciência social.
unicamente com a descrição do comportamento
Não há dúvidas de que a querela dos mé-
do homem concreto, tal como viviam no mundo.
todos é apenas a vertente metodológica de um
Ou seja, a economia ocupar-se-ia
problema inteiramente diferente, a saber: a antí-
[...] da realidade indivisível da vida social, tese entre ciência da realidade e ciência de leis.
devendo, por conseguinte, rejeitar a Deste modo, estamos associando a polêmica dos
elaboração de conceitos claros, uma vez métodos com a interrogação sobre a objetividade
que sua universalidade implica, neces- das ciências da cultura em geral. Certamente,
sariamente, uma abstração da realidade”
(FILIPE, 2004, p. 47). [...] é o que poderá se comprovar se
acompanharmos, nos próprios textos
Carl Menger é peça fundamental nesse de Weber, o planteamento da questão
debate. Segundo Gabriel Cohn, foi ele quem mais radical, que é a da relação entre a
desencadeou a controvérsia metodológica realidade e o conceito, através de uma
breve descrição do desenvolvimento da
entre historicistas e os economistas adeptos do
economia política. (FILIPE, 2004, p. 49).
racionalismo (COHN, 1979, p. 69). Contra os
historicistas, Menger toma o indivíduo como Weber salienta que a economia nasceu
unidade nuclear de análise, abstraindo-o de seu preocupada com questões práticas tais como
contexto social e histórico. Em outras palavras, acumular mais riqueza, como produzir de modo
para Menger a tarefa da economia política teó- mais eficiente etc., a economia é, pois, uma
rica “seria o conhecimento das relações causais técnica, assim como o são as ciências médicas.
por meio da aplicação de conceitos claros e Associara-se, assim, uma orientação de acordo
universais, embora necessariamente ‘parciais.” com o modelo das ciências da natureza, na
(FILIPE, 2004, p.47). Menger constrói, pois, o certeza de que o conhecimento de leis da vida
chamado agente econômico racional: um tipo econômica serviria da melhor maneira àquelas
ideal que permite avaliar e julgar as ações eco- finalidades. O preconceito aqui é o de que
nômicas do dia a dia. Ora, apropriando-se dos somente aquilo que está conforme leis gerais
resultados do trabalho de Menger, Weber pôde é digno de conhecimento científico. Todos os
munir-se de material crítico para enfrentar o demais acontecimentos, ou seja, aqueles que
historicismo de Roscher e Knies, principais alvos eram tidos por “acontecimentos individuais” só
de sua crítica e seguir adiante no seu projeto interessavam como tipos e, como tais, serviam tão
metodológico – não custa lembrar que Weber somente como exemplificações para as leis. Seu
repudiava as idéias desses autores que tomam os ataque deve-se em parte, às concepções econô-
povos como “unidades orgânicas impulsionadas micas do materialismo histórico que, segundo o
por forças internas, em que o complexo orgânico próprio Weber, reduzem os problemas da história
mais abrangente é a humanidade, ou por no- a motivações puramente econômicas e, também,
ções como a de reconhecimento recíproco dos à influência do panlogismo hegeliano, mas,
fenômenos (COHN, 1979, p.119). Naturalmente, principalmente, ao monismo naturalista.
como veremos, Weber não compartilhava da Weber manifesta sua desaprovação ao
preocupação de Menger em buscar leis gerais, uso desse método pelas mesmas razões que
por outro lado, o levaram a rejeitar a concepção materialista

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da história: as generalidades conceituais dei- uma concepção ética e intelectualmente
xam de fora da análise as individualidades inaceitável da racionalidade humana,
históricas que não podem ser subsumidas às mas tão somente de chamar a atenção
leis gerais. Deixemos que o próprio Weber para as dificuldades de ordem cognitiva
nele implicadas. Weber não exclui a
exponha suas razões:
possibilidade nem afirma a total inutili-
[...] repetidas vezes acreditou-se poder dade de uma ciência social nomológica,
encontrar o critério decisivo também nas limitando-se apenas a sublinhar as insu-
ciências da cultura, na repetição regular, ficiências, as limitações cognitivas (...)
‘conforme leis’, de determinadas cone- desse projeto. (GUSMÃO, 200, p. 240).
xões causais. Segundo essa concepção,
o conteúdo das ‘leis’ que somos capazes A natureza qualitativa do objeto das ciên-
de reconhecer na inesgotável diversida- cias sociais não dispensa a utilização do conhe-
de do curso dos fenômenos deverá ser o cimento nomológico, não é disto que Weber dis-
único fator considerado cientificamente corda. Sua divergência é de outra ordem, qual
‘essencial’. Logo tenhamos demonstrado seja, a de que os fenômenos sócio-econômicos
a ‘regularidade’ de uma conexão causal, possam ser investigados mediante conheci­mento
seja mediante uma ampla indução histó­ de leis gerais. E com mais razão, pois, para ele,
rica ou por meio do estabelecimento para essas leis não dão conta do que é específico dos
a experiência íntima da sua evidência ime- fenômenos sociais: a intervenção de motivos es-
diatamente intuitiva, admite-se que todos
pirituais; vale dizer, a intencionalidade humana
os casos semelhantes – por mui numerosos
presente em todos os acontecimentos sociais.
que sejam – ficam subordinados à formula
assim encontrada. Tudo o que na realidade
Ora, mas a “intervenção de motivos espirituais”
individual continue a resistir a seleção feita não transforma os acontecimentos sociais num
a partir desta regularidade, ou é conside- mundo de indeterminação? Implícito nesta
rada como uma remanescente ainda não questão está a idéia de que os fenômenos do
elaborada cientificamente [...] ou deixado mundo físico, por não depender da vontade hu-
de lado. (WEBER, 2001, p. 125). mana, são racionais; tudo aconteceria segundo
uma ordem inteligente que faz tudo confluir para
Analisando os motivos da crítica webe-
uma regularidade. Weber não concorda com
riana ao monismo naturalista, Luís de Gusmão
esta posição, pois, para ele a ciência é uma só
precisa que a aplicação deste método termina
e pode ser aplicada em qualquer campo da re-
por sacrificar aquilo que importa às ciências da
alidade. Pois entende que os fenômenos sociais
cultura investigar. E o que seria? “[...] as cone-
não são mais previsíveis ou menos previsíveis do
xões e os significados culturais específicos das
que os do mundo físico.
diferentes manifestações da vida social” (GUS-
Ora, Weber compreende que a realidade
MÃO, 2000, p. 247). E a razão disto torna-se
não é racional em si mesma. A despeito das
ainda mais clara nesta passagem:
irregularidades do acaso e da ação humanas,
Na perspectiva deste monismo, o termo nada impede o pesquisador de conhecer o
causalidade e a expressão regido por mundo social. Ele pode construir tipos ideais a
leis são tidos como sinônimos. A explica- partir dos quais ordena conceitualmente a rea-
ção causal aqui é reduzida às conexões
lidade que se manifesta de forma desordenada,
fixadas por uma lei geral. Fora dessas
conexões só teríamos o contingente, o
como um amontoado caótico de fenômenos
acidental, o indeterminado. (GUSMÃO, independentes entre si, sem nenhuma conexão
2000, p.248). intrínseca entre eles. (WEBER, 2001, p. 126). Se
os fenômenos sociais são tão previsíveis quanto
Mas não é tudo! Vale lembrar que Gusmão os são os fenômenos naturais, então, a objeção
tem o cuidado de esclarecer que a crítica de de Weber ao monismo naturalista só pode ser de
Weber ao monismo não pretende natureza epistemológica. Vejamos o que Weber
[...] rechaçar o ideal epistemológico de expõe a respeito disto:
uma teoria formal e abstrata, estrutura [...] quanto mais vasto é o campo abrangi-
axiomatizada de leis universais, sob a ale- do pela validade de um conceito genérico
gação de que nesse ideal se expressaria [...] tanto mais nos afasta da riqueza da re-

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alidade, posto que, para poder abranger Isto se deve, diz Filipe, ao fato de que,
o que existe de comum no maior número para Weber:
possível de fenômenos, forçosamente
deve ser o mais abstrato e pobre de con- [...] o pressuposto transcendental de
teúdo. (WEBER, 2001, p. 130). qualquer ciência da cultura não consiste
em considerarmos como valiosa uma
Weber recusa o conhecimento nomoló­ determinada civilização ou a civilização
gico não porque não existam regularidades nos em geral, mas no fato de sermos ho-
acontecimentos humanos, mas, sim, porque as mens civilizados [ou seres de cultura],
leis são conceitos abstratos. dotados da capacidade e da vontade de
tomar conscientemente posição em face
O conhecimento de leis sociais não é do mundo e de lhe conferir um sentido.
um conhecimento do socialmente real, (FILIPE, 2004, p. 51).
mas unicamente um dos diversos meios
auxiliares de que nosso pensamento se Tal pressuposto transcendental das ci-
serve para esse efeito.” (WEBER, 2001, ências da cultura, diz Filipe, traduz-se, para
p. 130). Weber, “numa reinserção ou reativação de um
Se tais leis têm alguma utilidade para as patrimônio histórico por meio da metodologia.
ciências da cultura, ela deve ser unicamente de (FILIPE, 2004, p. 52).
natureza heurística. Isso se torna ainda mais importante se tiver-
Para Filipe, o pressuposto da idéia de mos em mente que a realidade, na concepção
uma ciência da cultura enquanto ciência da de Weber, não é detentora de sentido algum. A
realidade, dado por Weber, é a tomada de realidade surge-lhe, na verdade, como um largo
posição a favor de uma abordagem assente em rio de acontecimentos ou sucessos. (FILIPE, 2004,
pontos de vista (FILIPE, 2004, p. 51). Em outras p. 52). Cada fenômeno é determinado por incon-
palavras, o conceito de cultura é um conceito táveis causas que sucedem outras tantas, ou seja,
de valor e os fenômenos que devem ser dignos a reprodução da realidade sob a forma de uma
de conhecimento são aqueles que se revestem série ilimitada de proposições seria inexeqüível.
de significados culturais. Ora, mas quem deve O conhecimento, portanto, não pode derivar da
atribuir tais valores? Por que estudar determi- realidade a sua legitimação:
nado fenômeno e não outro? É possível que
[...] o conceito exprime mais do que a
um dado valor seja superior a outro ou, melhor realidade, ao conter em si a represen-
dizendo, se queremos estudar um fenômeno tação de um objeto. Na realidade, com
social em uma dada sociedade podemos afir- efeito, não existem quaisquer objetos. É
mar categoricamente, de antemão, que esta ou a própria ciência quem cria os objetos,
aquela sociedade, que este ou aquele fenômeno por meio de uma transformação ou mani-
reveste-se de uma categoria superior em detri- pulação mental dos fenômenos. (FILIPE,
mento dos demais? Absolutamente! Diria Weber: 2004, p. 55).
[...] o conhecimento da realidade cultural é
Portanto, só o trabalho metodológico é
sempre um conhecimento subordinado a pontos
capaz de proporcionar alguma legitimação na
de vista especificamente particulares.” (WEBER,
construção de conceitos enquanto representa-
2001, p. 131). Trata-se, pois, de mera questão
ções objetivas, já que tal legitimação não pode
pessoal? Não exatamente, pois
vir da realidade.
[...] quando exigimos do historiador ou A ciência, incapaz de reproduzir o real,
do sociólogo a premissa elementar de não pode ser, portanto, uma cópia ou imagem
saber distinguir entre o essencial e o da realidade. Em outras palavras: conhecimento
secundário, de possuir para esse fim os
não é reprodução do mundo, é somente uma
pontos de vista necessários, queremos
unicamente dizer que ele deverá saber
construção conceitual. Se todo conhecimento
referir – consciente ou inconscientemen- se assenta em bases conceituais, a aversão “aos
te – os elementos da realidade a ‘valores conceitos claros” da escola histórica, exposto
culturais’ universais, e destacar aquelas acima, seria um convite à confusão? Não é bem
conexões que, para nós, se revestem de assim que pensa Weber. Para ele é de tal manei-
significado. (WEBER, 2001, p. 131). ra discrepante a distância entre conhecimento

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e realidade, que não se poderá falar propria- determinadas relações [...] chegaram a
mente da objetividade na esfera das ciências da atuar, em algum grau sobre a realidade,
cultura, mas, ao contrário, que a salvação das podemos representar e tornar compre-
ciências da cultura se dá, justamente, à custa ensível pragmaticamente a natureza
particular dessas relações mediante um
de sua objetividade.
tipo ideal. (WEBER, 2001, p. 137).
A sentença soa contraditória, mas faz todo
sentido. Vejamos esta passagem: Não nos cabe aqui entrar nos pormenores
[...] se a própria realidade não fornece
do modelo de construção de tipos ideais. Basta
qualquer instrução, tem de haver um prin- aqui salientar que, de maneira alguma, o tipo
cípio que oriente a escolha e a combinação ideal possui valor prático. Ele não é a medida da
dos elementos [...] a relação teórica com realidade, no sentido de um ideal a ser atingido
valores, ou seja, o interesse do investigador pela sociedade. A construção do tipo ideal não
por quaisquer desses fenômenos que ele interessa como fim, mas como meio. Ele é um
considera culturalmente relevantes, deter- poderoso instrumento de investigação e sua
mina a seleção. (FILIPE, 2004, p. 56). função é de tornar o real acessível à pesquisa.
Com efeito, sem o elemento subjetivo ja- Uma vez que o conhecimento tem sempre
mais existiria conhecimento. Weber deixa isso a ver com um objeto que, mediante a aplicação
bem claro no seu texto sobre a objetividade: de um valor subjetivo à realidade e, portanto,
através de uma seleção e de uma concentra-
[...] sem as idéias de valor do investiga- ção arbitrárias, é convertido num “indivíduo
dor, não existiria nenhum princípio de
histórico”, todo conhecimento determinado “no
seleção, nem o conhecimento sensato
do real singular, da mesma forma como
domínio da ciência da realidade encontra os
sem a crença do pesquisador na signifi- limites de sua validade na possibilidade infinita
cação de um conceito cultural qualquer, da apropriação dessa mesma realidade através
resultaria completamente desprovido de da importância conferida a outros elementos
sentido todo o estudo do conhecimento (fatores) ou de uma articulação dos mesmos”.
da realidade individual, pois também a (FILIPE, 2004, p. 63). A impossibilidade de
orientação de sua conduta pessoal e a di- legitimar o conhecimento na objetividade, ou
fração de valores no espelho de sua alma seja, na estrutura objetiva da realidade faz com
conferem ao seu trabalho uma direção. que o caráter “subjetivo do conhecimento” seja
(WEBER, 2004, p. 132). sempre substituível e ultrapassável. Como bem
esclarece Filipe em seu livro, o fim de uma forma
Subjetivização Libertadora
científica não é a demonstração de seu erro,
mas o evidenciar de seus limites. E no pará­grafo
O grande progresso metodológico dado
posterior, Filipe deixa isso ainda mais claro,
por Weber no ensaio da objetividade é a defi-
quando afirma que
nição plena do alcance e da validade do tipo
ideal. Qual é a natureza desta construção? A [...] é o próprio abismo que separa ciência
resposta que se encontra em Weber é a de que da realidade que vai permitir a desen-
se trata de um tipo de construção de quadros volução genética do ponto de vista, até
ideais dos eventos da sociedade. Quadros ideais este se converter num sistema evidente e
que se revestem inteligível. (FILIPE, 2004, p. 63).

[...] do caráter de uma utopia, obtida O tipo ideal liberta o pesquisador para
mediante a acentuação mental de de- aquilo que é sua vocação: a exploração incansá-
terminados elementos da realidade. A vel de perspectivas:1 mas ao mesmo tempo, per-
sua relação com os fatos empiricamente mite que ele imponha limites às suas valorações
dados consiste apenas em que, onde na medida em que lhe exige o máximo de rigor
quer que se comprove ou se suspeite que lógico-conceitual, pois o lembra freqüentemente

1
Este é o destino, inclusive, da própria ciência. Vejamos o que Weber diz a respeito: “Na ciência, sabemos que nossas realizações se
tornarão antiquadas em dez, vinte, cinqüenta anos. É esse o destino a que está condicionada a ciência: é o sentido mesmo do trabalho
científico [...] Toda realização científica suscita novas ‘perguntas’: pede para ser ‘ultrapassada’ e superada. Quem desejar servir à ciên-
cia tem de resignar-se a tal fato.” (WEBER, 1974, p. 164).

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que, afinal, aquele conceito fora obtido através ação que se manifesta de maneira arbitrária.
de um ponto de vista seu. E porque arbitrária? Por que não remete a ne-
O importante aqui é tentar não confundir nhum outro modo de vida, a nenhuma relação
o leitor. Definitivamente soa estranho que algo de “causa e efeito”.
participe da pesquisa e ao mesmo tempo tenha Weber, por seu turno, explicitou seu pers-
que ser alijado da mesma para que o trabalho pectivismo quando postulou para as ciências da
do pesquisador ganhe alguma validade. Não é cultura uma concepção das ações humanas ba-
tarefa das mais fáceis explicitar tal ponto de vista seadas nas condutas subjetivamente orientadas.
e Weber jamais corroborou com facilidades. Seu
O fato de serem orientações implica que as
estilo é mesmo esse. O leitor pouco familiarizado ações humanas não possuem um sentido
com Weber ficaria perplexo ao ver sua teoria da dado; o fato de serem subjetivas revela o
ciência terminar num relativismo subjetivista, caráter eminentemente singular e represen-
mas este relativismo é tomado por Weber como tativo dos sentidos. (RENARDE, 2003, p. 3).
algo positivo. O sacrifício da objetividade é feito
sem qualquer impedimento, porque liberta a Por mais racionalizada que seja a ação,
ciência do peso de tradições petrificadas para esta nunca deixa de ser um ato subjetivo, pois
novas possibilidades de novos pontos de vista, o sentido visado é sempre dado pelo agente
e mantêm o sentido da ciência mesmo numa interessado e ao contexto em que tal agente
época de pluralidade. Esta se afigura ser a está inserido. Daí que Weber procura sintetizar
única oportunidade de defender uma ciência este seu postulado numa ciência da cultura que
comprometida com pontos de vista de valor. lide com “tipos ideais” na medida em estes evi-
denciam: 1) que o conhecimento parte de um
ponto de vista particular e 2) que a objetividade
Ecos de Nietzsche na Teoria da não é uma propriedade da realidade, mas um
Ciência de Max Weber constructo conceitual de representação teó­
Para acharmos afinidades entre esses dois rica. Desta forma, assim como Nietzsche, Weber
teóricos, é quase imperativo começarmos pelo recusará o mecanicismo clássico ao pensar em
entendimento comum que Weber e Nietzsche termos de multiplicidade causal.
faziam de Kant. Ambos compartilhavam com Outro aspecto importante nas afinidades
Kant a idéia básica de ser o conhecimento da entre Weber e Nietzsche diz respeito ao papel da
ordem da representação, jamais uma imagem ciência na vida geral da humanidade tal como
fidedigna da realidade. (RENARDE, 2004, p. 48). Weber o aborda na Ciência como Vocação. Lá é
O conhecimento, pois, visto desta maneira, é exposto o ideal de ciência antiga, em compara-
algo que se circunscreve ao mundo humano ção com o presente, consubstanciado na alegoria
e não ao mundo das coisas. Em outros termos, da caverna de Platão, enquanto teoria do verda-
compartilham os dois teóricos da máxima de deiro ser. O homem, liberto de seus grilhões “é
Kant segundo a qual só podemos conhecer o o filósofo; o sol, porém, é a verdade da ciência,
mundo na justa medida dos limites de nosso a única que reflete não ilusões e sombras, mas o
intelecto e de nossa sensibilidade. Como bem verdadeiro ser.” (WEBER, 1974, p. 167). Depois,
afirma Renarde Freire, a esse legado podemos Weber se pergunta: “quem, hoje, vê a ciência
chamar de perspectivismo do conhecimento. desse modo?”, ao que responde prontamente:
(RENARDE, 2004, p. 49). Ou seja, ambos se Hoje, os jovens pensam exatamente o
recusam a conceder ao conhecimento qual- inverso: as construções intelectuais da
quer atributo de verdade essencial. Este ficará ciência constituem um campo irreal de
circunscrito ao caráter interpretativo. Vê-se a abstrações artificiais, que, com sua mão
primeira característica fundamental desses dois ossuda, procuram agarrar a essência da
verdadeira vida, sem jamais consegui-lo.
autores: seu anti-substancialismo.
(WEBER, 1974, p. 167).
Nietzsche foi bastante radical em seu
perspectivismo operando mesmo uma subjetivi- A que se dá, pois, o entusiasmo de Platão
zação plena do conhecimento como estudo do frente à contestação tão “sombria” que Weber
aparente e do arbitrário. No seu entender, todo dá para a ciência moderna de sua época? Na
modo de vida é expressão da subjetividade em mesma página Weber explica:

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[...] o entusiasmo de Platão em A Repú- “situou o conhecimento dentro do seu
blica deve, em última análise, ser expli- perspectivismo das forças, verdadeira
cado pelo fato de que pela primeira vez potencialidade instintiva e impulsiva
o conceito, um dos grandes instrumentos que permite aos homens criar toda uma
de todo conhecimento científico, foi riqueza de valorações e também inventar
conscientemente descoberto. (WEBER, certezas racionais; o conhecimento não
1974, p. 167). se refere a organismos e sistemas, mas
é da ordem de ‘vontades’ arbitrárias e
Vejamos agora como Nietzsche trata do ilógicas.” (RENARDE, 2004, p. 52).
assunto nos termos de seu programa filosófico
de “inversão do platonismo” exposto no aforismo Não custa lembrar que, para Weber, no
43 do seu livro Aurora intitulado Quantas Forças cerne de toda produção científica há uma raiz
Devem Agora Confluir no Pensamento: valorativa. Esses valores estão isentos de uma
motivação racional stritu sensu, não se elevam
[...] afastar-se da consideração sensorial,
plenamente à consciência, atrelados que estão a
elevar-se à abstração – outrora isso foi
um registro incomunicável. (RENARDE, 2003, p.
realmente visto como elevação: já não
podemos sentir exatamente dessa forma.
57). O modo como esses teóricos interpretavam os
Regalar-se em pálidas figurações de pa- valores é que irá se diferenciar. Nietzsche os inter-
lavras e coisas, jogar com tais seres invisí- pretava em relação aos afetos, Weber em relação
veis, inaudíveis, intangíveis, foi percebido às condutas das quais se podem ter consciência.
como uma vida em outro mundo superior, Mas este é assunto para outra discussão.
a partir do fundo de desprezo pelo mundo
palpável aos sentidos, sedutor e mau.
Referências Bibliográficas
(NIETZSCHE, 2004, p. 40-41).
Depois argumenta no mesmo parágrafo as COHN, G. Crítica e resignação: fundamentos da
razões que levaram Platão e seus asseclas a con- sociologia de Max Weber. São Paulo: TAQ, 1979.
siderarem tal fenômeno um fenômeno superior:
FILIPE, R. G. De Nietzsche a Weber: hermenêu-
Não só os conhecimentos foram desco- tica de uma afinidade electiva. Lisboa: Instituto
bertos separadamente e aos poucos, mas Piaget, 2004.
também os meios do conhecimento, os
estados e operações que no homem an- FREUND, J. Sociologia de Max Weber. 4. ed. Rio
tecedem o conhecer. E a cada vez parecia de Janeiro: Forense Universitária, 1987.
que a operação recém descoberta ou o
GUSMÃO de, L. A Concepção de Causa na
estado recém experimentado não era um
meio para todo conhecer, mas já conteúdo,
Filosofia das Ciências Sociais de Max Weber, In.
meta e soma de tudo que o era digno de SOUZA, J. A Atualidade de Max Weber. Brasília:
conhecer. (NIEZTSCHE, 2004, p. 41). Editora Universidade de Brasília, 2000.
Fica patente, pois, a influencia de Niet- NOBRE, R. F. Perspectivas da Razão: Nietzsche,
zsche no que parece ser, para Weber, caráter Weber e o conhecimento. Belo Horizonte: Ar-
importante do conhecimento científico levado a gvmmentym Editora, 2004.
termo não só pela razão, mas pela paixão, pela NOBRE, R. F. Weber, Nietzsche e as respostas
vocação, em suma, pela “vivência” da ciência. éticas à crítica da modernidade. Trans/Form/
É bem verdade, porém, que a inspiração jamais Ação, São Paulo: v. 26, n. 1, p. 53-86, 2003.
poderá substituir o trabalho, mas o certo é que NIETZSCHE, F. Aurora: reflexões sobre os pre-
para Weber somente através dessas duas frentes, conceitos morais. São Paulo: Companhia das
paixão e trabalho, podemos buscar inspiração Letras, 2004.
para produzir conhecimento. Como não compa-
rar tais “fontes criadoras” àquelas forças de que WEBER, M. Ensaios de sociologia. GERTH, H.
fala Nietzsche presentes no pensamento criador H; MILLS C. W. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar
e que muitas vezes estão ocultas sob verdadeiros Editores, 1974.
mantos de infindáveis jogos de força? WEBER, M. Metodologia das ciências sociais,
Para Nietzsche não poderia haver razão parte 1. 4. ed. São Paulo: Cortez; Campinas:
desinteressada, pois Edit--ora Estadual de Campinas, 2001.

Argumentos, Ano 2, N°. 4 - 2010 53

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