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ISSN 1679-1827 www.gestaoorg.dca.ufpe.br

Volume 3, Número 2, mai./ago. 2005

TEORIA – PARA QUÊ?


Pedro Demo
PROPAD/UFPE

Sumário: 1. Por que teorizar?; 2. Teoria cientifica; 3. Teoria hoje.

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO


Teoria – Para quê?
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Teorizar sobre o papel e a contra-argumentação, primazia ostensiva da


importância da teoria parece a coisa mais autoridade do argumento sobre o argumento
extravagante e inútil do mundo. Pode ser, de autoridade. Há teorias intrincadas que
mas para os afoitos, em especial leigos! Para mais parecem dificultar o acesso à realidade,
quem toma a sério o métier da reconstrução tamanha é a complexidade de sua
do conhecimento, e, em particular, o desafio linguagem, mas, em si, teorias são feitas
metodológico, é coisa das mais sérias. Apesar para explicar e nisto implicam simplificar,
da fama dúbia que a teoria tem, porque se apresentando uma arquitetura idealizada
confunde facilmente com “teoricismo” ou que, mesmo simplificada, deveria garantir
“academicismo”, representa atividade das acesso ao que haveria de mais relevante na
mais essenciais do processo de realidade teorizada. Já não cremos mais em
conhecimento. Teoricismo indica fazer teoria teorias finais, mas isto não desfaz a
pela teoria e academicismo implica fuga da necessidade de teorizar. Apenas nos
realidade, estereótipos que se resumem na preocupamos agora com teorias abertas,
“torre de marfim”, muitas vezes aplicada à feitas para provocar a dialética sem fim de
universidade. Há uma pecha merecida aí, novas argumentações.
porque fazer universidade significa ainda em
larga medida aninhar-se num campus e levar
vida bem diferente daquela dos cristãos 1.POR QUE TEORIZAR?
comuns (Duderstadt, 2003. Demo, 2004a).
Em muitos países ainda é assim: os Parece ser necessidade humana
estudantes fazem um parêntesis em suas fundamental: perante realidade opaca ou que
vidas por quatro ou cinco anos e se dedicam não se desdobra à primeira vista, tentamos
aos estudos, sendo que estudar é mexer com ordenar seus traços e sua dinâmica para
teorias, métodos, ler muito, pesquisar, caber em alguma explicação ordenada. As
pairando sobre isso tudo certo ar de mundo próprias religiões se nutrem, pelo menos em
da lua. Mesmo para quem estuda à noite, isto parte, desta necessidade: perante as
significa retirar este tempo do dia de trabalho dificuldades de entender certas coisas, como
para poder dedicar-se aos livros ou coisa sofrimento, morte, injustiça, desespero,
parecida. Esta pecha está hoje em declínio tecemos idéias, relatos, estórias, narrativas
visível, porque percebemos, muito mais que que colocam ordem neste emaranhado,
antes, ser conhecimento a dimensão mais obtendo com isso alguma tranqüilização, em
prática da vida, por mais que implique particular quando entram em cena
teorizar. Neste sentido, não há dicotomia perspectivas eternas e divinas. Segundo
entre teoria e prática, embora se trate de estudiosos das religiões, como Shermer
conceitos bem diferentes (Demo, 2004), (1997; 1999; 2001), as pessoas são
porquanto nada é mais prático para a vida do “máquinas de crença”, no sentido de que não
que teoria bem urdida e nada qualifica mais o suportam viver da incerteza e do inesperado,
conhecimento do que boa prática. Ocorre que recorrendo, por isso, a procedimentos de
na prática toda teoria é outra e na teoria toda estabilização das relações com o mundo e
prática é outra. A relevância de ambas está consigo mesmas. O que as religiões propõem
na incompletude recíproca: se a teoria não são esquemas mentais e comportamentais
enfrentar a prática, jamais muda; se a que traduzem a tranqüilidade de quem já não
prática não voltar à teoria, não se renova. conta com qualquer surpresa na vida porque
Uma não substitui a outra, nem se encaixa tudo está previsto e ordenado por um Deus
exatamente na outra. Como unidade de ou coisa parecida. Em certo sentido, as
contrário, uma desafia e necessita da outra. religiões são um tipo de teorização da
Neste texto de corte metodológico, realidade e que ganham tanto mais
procuro fundamentar a importância da fidedignidade, quanto mais se escudam em
teorização como expediente fundamental de livros sagrados que constituem referência
explicação da realidade, no contexto da pós- inamovível da vida. Podem possuir grande
modernidade (sem com isso aderir ao pós- efeito de consolo (Boyer, 2001), permitindo
modernismo tout court) (Demo, 1999). que as pessoas se sintam seguras, mesmo
Embora o uso pejorativo de teoria possa em meio às maiores adversidades. Como não
sempre estar presente, construir damos conta da vida, pois somos seres
conhecimento implica a habilidade de tecer perecíveis e frágeis, o ser humano recorre
teorias. Afinal, um texto é um “tecido”, feito aos artifícios possíveis para tranqüilizar-se,
de urdiduras teóricas bem tramadas. Teoria buscando em padronizações bem ordenadas,
supõe, como regra, idéias arrumadas, por mais que inventadas, um refúgio. Daí a
habilidade explicativa para além da força das “auto-ajudas”, que, contrariando o
descritiva, labor sistemático sobre sistemas próprio termo, prendem as pessoas em
teóricos, tessitura lógica não contraditória, esquemas lineares ordenados que induzem
capacidade eminente de argumentação e soluções garantidas.

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Ainda que saibamos pouco do cérebro auto-referente. A realidade externa


humano, é comum vermos nele pelo menos constrange o comportamento de todo ser
três partes e que correspondem a fases vivo, obviamente, mas o que acontece no ser
evolucionárias: vivo acontece a partir de dentro, na condição
a) o cérebro reptílio apresenta-se de sujeito ou de observador, como diz
como elaboração bulbosa da coluna vertebral Maturana. A realidade é reconstruída através
e guarda os centros de controle vital; nele os dos sentidos e do cérebro, que, observando-a
neurônios comandam a respiração, como sujeito, estabelece com ela relação
deglutição, batimento cardíaco e sistema de hermenêutica. Alguns chamam a isto de
busca visual; é capaz de reação rápida a construcionismo ou de construtivismo, e em
movimento ou barulho brusco; metodologia corresponde ao tema do “objeto
corresponderia à fase réptil e está construído”: a teoria não trabalha com a
particularmente voltado para a função de realidade como tal, mas com a realidade que
sobrevivência, e talvez por isso seja o que consegue manipular metodologicamente,
ainda funciona quando ocorre morte cerebral; construindo dela uma espécie de modelo
morrendo este cérebro, assim o faz o resto reduzido (Demo, 1995).
do corpo; Aqui está uma das fontes principais
b) o cérebro límbico, como fase da necessidade de teorizar: como não temos
ulterior própria dos mamíferos que provieram acesso direto e garantido à realidade externa,
dos répteis, transformou não apenas a é mister construir alguma idéia, resultando
mecânica da reprodução, mas também a em imagem reconstruída de estilo auto-
orientação do organismo com respeito à referente. Não entendemos o outro a partir
prole; enquanto os répteis são bem mais do outro simplesmente, mas através de
desapegados de sua prole, os mamíferos interpretação do outro, o que supõe
estabelecem interações muito elaboradas e teorização do outro. A perspectiva de
afetivas; dão à luz filhos vivos, não ovos, Maturana é reconhecida por muitos como
cuidam deles até à maturidade, o que teria excessivamente fechada (Demo, 2002),
introduzido uma verdadeira revolução social exacerbando a condição auto-referente do
no caminho evolucionário: aparece a sujeito. A rigor, não conseguimos distinguir
comunicação vocal, a separação faz chorar, claramente entre realidade e ilusão, já que
brincam juntos; não teríamos um juiz externo a quem
c) o neocórtex, o mais recente e recorrer. Entretanto, na práxis histórica os
maior, corresponde às funções intelectuais e seres humanos, em sua convivência, definem
racionais, como falar, escrever, planejar, níveis aceitáveis de realidade, de validade
raciocinar, simbolizar (Lewis/Amini/Lannon, certamente relativa, mas apropriados para
2000. Hawkins, 2004); para nossa glória, é o uma relação razoável com a realidade
órgão do saber pensar. externa. Varela, por conta deste reparo,
O ser humano maneja procedimentos optou pelo conceito de “enação”, para
mais sofisticados de conhecimento porque equilibrar melhor a habilidade auto-referente
dispõe de equipamento fisiológico para tanto com os constrangimentos externos
e que é o neocórtex, uma camada superior e (Varela/Thompson/Rosch, 1997). Estes são
frontal do cérebro. Não segue daí que o ser essenciais para o processo evolucionário e
humano seja “superior”, apenas é mais para a vida, ainda que, em última instância,
evoluído, pelo menos neste aspecto (em a dinâmica seja de dentro para fora. Assim, o
outros é menos dotado que outros animais, observador da realidade não apenas observa,
por exemplo, quanto à visão, ouvido, olfato, mas tenta captar traços que consegue divisar
força muscular). Como temos a tendência de na realidade, fazendo dela algum modelo de
considerar o intelecto nossa maior glória, estrutura ou dinâmica, de tal sorte que possa
facilmente reduzimos o cérebro à habilidade interagir com ela sem susto.
intelectualizada, mas esquecemos que, no Em recente obra sobre inteligência,
processo evolucionário, o cérebro sempre Hawkins (2004) aposta que inteligência real
teve funções anteriores mais vitais, como humana é a capacidade de prever
cuidar da sobrevivência. Talvez por conta comportamentos com base em memória que
disso, o cérebro tem como uma de suas padroniza traços recorrentes da realidade.
virtudes maiores a capacidade de arranjar Através da experiência de vida, o ser humano
esquemas interpretativos através de vai construindo um repertório de apreensões
ordenamentos conceituais inspirados na padronizadas da realidade e que guarda na
prática da vida e elaborados mentalmente. memória, ativando-o em novas
Leve-se em conta que o cérebro não tem circunstâncias. É interessante que Hawkins
contato direto com a realidade externa, já distingue acuradamente entre inteligência
que seu funcionamento, como a vida em real (humana) e artificial (apesar de ser um
geral, é autopoiético (Maturana/Varela, 1994. expert reconhecido na área de programação
Maturana, 2001), ou seja, interpretativo e computacional): “Computadores e cérebros

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estão construídos sobre princípios construção das tecnologias, confiabilidade do


completamente diferentes. Um é discurso e dos resultados. A segunda –
programado, outro é auto-aprendente. Um despadronizar – é essencial para inovar,
precisa ser perfeito para funcionar sem ultrapassar paradigmas, ver além da colina,
problemas, o outro é naturalmente flexível e abrir-se para o surpreendente e singular. A
tolerante a falhas. Um tem um processador mente humana age em ambas as direções.
central, o outro não tem controle Por exemplo, uma criança brasileira que
centralizado” (2004:12). Hawkins acentua, passa a viver nos Estados Unidos e brinca
assim, o traço da inteligência que está com crianças americanas, em alguns meses
sempre em jogo no conhecimento mais sabe inglês. Nunca estudou gramática, não
racionalizado que conhecemos e que é o decorou vocábulos, não assistiu a nenhum
científico. Neste, teorizar é sempre curso. Sabe inglês pela convivência cultural e
padronizar, buscar leis ou pelo menos social, através de métodos hermenêuticos de
regularidades, destacar o que se repete, até comunicação que proporcionam o domínio
descobrir, segundo metodologias mais sem maior esforço da língua estrangeira.
formalistas, invariantes da realidade e da Edelmam/Tononi, num monumental estudo
explicação (Demo, 2000). Com efeito, e com sobre a consciência e indagando
alguma base biológica, pode-se afirmar que, principalmente como a “matéria se torna
perante o desconhecido, a mente humana imaginação”, apontam para este lado da
procede tendencialmente por três passos inteligência humana. No processo
concatenados: I) procura no desconhecido o evolucionário pode-se perceber “que o ser é
que haveria de conhecido, familiar; II) prévio ao descrever, que a seleção natural é
destaca o que se repete, é regular; III) se prévia à lógica e que, no desenvolvimento do
isto não funcionar, a própria mente impõe pensamento, fazer é prévio ao compreender”
uma ordem e chamamos a isto de teoria. (2000:207). Aduzem com isso que a própria
Esta visão, porém, é unilateral, porque ignora natureza se aproveita dos dois modos: num
a face complexa não linear da inteligência lado, segue padrões e por isso possui
humana, como bem realça, entre outros, códigos, genoma, DNA; noutro, nunca se
Hofstadter (2001), quando, também repete em seus seres, porque cada ser, ao
contrapondo-se à pretensa inteligência do lado de expressões comuns, possui
computador, aponta para os horizontes mais individualidade própria irrepetível. Por um
surpreendentes e criativos. “Ninguém sabe viés intelectualista e racionalista, facilmente
por onde passa a linha divisória entre o imaginamos que o ser existe porque o
comportamento não inteligente e o descrevemos ou reconhecemos, ou a lógica
comportamento inteligente; na verdade, está na origem da seleção natural, ou que,
admitir a existência de uma linha divisória para fazer, é preciso, antes, compreender. O
nítida é provavelmente uma tolice. Mas, advento da lógica difusa também contribuiu
certamente, são capacidades essenciais para para a percepção da face menos padronizada
a inteligência: responder a situações de ou padronizável da realidade, como assevera
maneira muito flexível; tirar vantagens de Kosko (1999), ao sugerir que linhas retas não
circunstâncias fortuitas; dar sentido a existem a rigor na natureza. A natureza não
mensagens ambíguas ou contraditórias; é exata, precisa, completa. Ao contrário, é
reconhecer a importância relativa de um tumulto, como diria Morin (2002). Kosko
elementos de uma situação; encontrar chega a dizer que linha reta é coisa dos
similaridades entre situações, apesar das ditadores, que apreciam alinhar as pessoas
diferenças que possam separá-las; encontrar de maneira mais rígida possível a seu
diferenças entre situações, apesar das comando, mas que a realidade não conhece
similaridades que possam uni-las; sintetizar este tipo de comando.
novos conceitos, tomando conceitos Este reconhecimento da realidade
anteriores, e reordená-los de maneiras como tendo faces lineares e dinâmicas não
novas; formular idéias que constituem lineares apenas acentua mais ainda a
novidades. Aqui nos encontramos diante de teorização como esforço de padronização,
um aparente paradoxo. Por sua própria porque nossa mente se sente segura quando
natureza, os computadores são as criaturas consegue impor ordem ao caos. De fato, de
mais inflexíveis, incapazes de desejar e toda dinâmica pode-se descobrir
obedientes às regras. Por mais rápidos que recorrências. Nada é tão individual que não
possam ser, são também, ao mesmo tempo, tenha alguma regularidade ou recorrência, o
a síntese da inconsciência” (2001:28). que permite ordenar de alguma forma.
Observa-se nesta citação a mescla Teorizamos, porém, não só porque
arguta entre a habilidade de padronizar e precisamos nos tranqüilizar, mas igualmente
despadronizar da inteligência mais criativa. porque não temos acesso direto à realidade
Ambas as instâncias são fundamentais. A externa. A rigor, temos da realidade externa
primeira – padronizar – é crucial para o uma “teoria”, no sentido de uma imagem
domínio do objeto, manipulação da realidade, reconstruída interpretativamente. Acresce-se

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a isto ainda o argumento sociológico: a extrema fragilidade e provisoriedade de


sociedade tende a se ordenar em torno de dinâmicas e produtos, teorias científicas
normas, valores e sanções, através dos quais precisam cuidar-se e ser cuidadas de maneira
prefere comportamentos regrados, repetidos, sistemática para não sucumbirem a qualquer
medíocres. Se a cada dia mudássemos de solavanco. Basta olhar para o processo de
comportamento, não só enlouqueceríamos, defesa de dissertação ou tese na academia: o
como enlouqueceríamos os outros também. orientando precisa sobreviver à seleção que
Este tipo de regularidade social faz parte da em geral não entende bem, seguir um curso,
normalidade, por mais que seja o túmulo da fazer disciplinas obrigatórias, praticar a
criatividade (Demo, 2002a). Teoria é, neste pesquisa sistemática e controlada, engolir um
sentido, a expectativa ordenada de nossa orientador que decide sobre a qualidade da
mente frente à realidade cotidiana, embora tese e possibilidade de ser defendida, e fazer
não passe aí de senso comum. a defesa, que freqüentemente tem ares de
inquisição, na qual os examinadores muitas
vezes menos examinam, do que se
2.TEORIA CIENTIFICA produzem. E tudo isso para um tirocínio que
não passa de exercício acadêmico e vai
O que chamamos de teoria científica descansar na poeira de alguma estante
possui estruturação bastante específica, irrelevante. Neste mesmo horizonte, a
porque se trata de produção sobrevinda do mestrado profissional continua
metodologicamente controlada e no contexto impondo calafrios aos amantes da academia
de uma “comunidade acadêmica” que disputa rigorosa e clássica, porque não aceitam que
espaço e posições (Collins, 1998. Kuhn, teoria seja colocada em segundo plano, se
1975). Esta disputa pode ser vista sob o dispense pesquisa, o curso se complete em
prisma dos paradigmas, tanto mais aguçada meras aulas e a tese se reduza a um relatório
pela obra de Popper (1959), que ofereceu modesto. Enquanto para uns é sacrilégio,
como critério de cientificidade a para outros é a libertação do entupimento
“falsificabilidade” das teorias (Demo, 1995), teórico mais ou menos inútil para a vida
imaginando a atividade científica como uma concreta das pessoas. Essas rusgas desvelam
arena aberta de disputas entre teorias rivais, o campo minado da teoria científica.
permanecendo de pé e sempre Por teoria científica entende-se, em
provisoriamente aquela que detivesse geral, a estruturação discursiva que oferece
melhores argumentos no momento. Em coerência e consistência a um modo de
termos menos agressivos, mas não menos compreender a realidade, de tal sorte que
efetivos, a Escola de Frankfurt ofereceu facultaria explicar sua estrutura e/ou
critério similar da “discutibilidade” formal e dinâmica de maneira mais ou menos
política do conhecimento científico (Demo, abrangente. Faz parte dela a “hipótese de
2000. Freitag, 1986), reconhecendo que tais trabalho”, através da qual se impõe ao
critérios não se resumem aos formais como processo uma direção provisória e
quer o positivismo popperiano, mas atinge antecipada, que a pesquisa vai confirmar ou
também a dimensão política, por conta da infirmar. Hoje temos mais claro que se trata
politicidade do conhecimento (Demo, 2002). de processo extremamente seletivo, porque é
É neste sentido que se diz ser a teoria impraticável colocar numa única teoria a
científica objeto de cuidado intenso e, muitas complexidade indevassável da realidade. Mas
vezes, de muita intriga, como, por exemplo, houve um tempo – e ainda há asseclas desta
aparece na disputa mal-educada entre posição – em que se pretendia uma teoria
modernismo e pós-modernismo final ou de tudo (everything theory)
(Sokal/Bricmont, 1999. Pracontal, 2002. (Weinberg, 1996. Barrow, 1994; 1998.
Demo, 1999). O argumento mais profundo, Gribbin, 1998). Primeiro, em qualquer teoria
entretanto, é de marca epistemológica, sem há um ponto de partida que não faz parte da
escamotear sua verve política: faz parte da teoria, pelo menos no início, e que aparece
dinâmica complexa não linear do facilmente na hipótese: lança-se uma
conhecimento seu caráter disruptivo, rebelde, suspeita de explicação possível e que vai ser
questionador, porquanto conhecer não é desdobrada em procedimentos ulteriores.
afirmar ou confirmar, mas questionar, Este argumento epistemológico é potente,
confrontar-se, recusar. Aí começa o saber porque afasta desde logo explicações últimas,
pensar: quem não sabe pensar, acredita no já que não temos, a rigor, como saber onde
que pensa, mas quem sabe pensar questiona começa e onde termina a realidade. Ademais,
o que pensa (Demo, 2000a). Este tipo de se questionarmos este ponto de partida, cai o
tessitura provoca naturalmente cuidados edifício, revelando sua fragilidade natural. Por
metodológicos facilmente exacerbados, pois o exemplo, foi ponto de partida de Marx a
ambiente natural do conhecimento científico aposta de que a explicação da história estaria
não é a certeza, mas a incerteza (Salomon, fundamentalmente na dialética da infra-
2000. Demo, 2000b). Em contexto de
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estrutura econômica, enquanto que para precisa estruturar-se em paradigmas, cuja


Weber a hipótese mais verossímil seria um validade, mesmo relativa, é inegável. O
tipo de cultura protestante no caso do problema é reclamar validades que ferem sua
capitalismo. Com pontos de partida tão relatividade multicultural e epistemológica.
diferentes, o edifício teórico torna-se muito No modernismo científico, de cariz
diverso, em parte incompatível. Segundo, positivista, as pretensões exacerbadas de
sendo o exercício de teorização não apenas verdade nutriram-se de alguns horizontes
procedimento formal, mas histórica e característicos, entre eles:
culturalmente plantado, datado e localizado, a) metodologias lógico-experimentais
como quer a pesquisa pós-colonialista – na busca de conhecimento seguro, válido
(Harding, 1998. Smith, 1999), possui sempre para todos e para sempre, desenvolveram-se
também componentes não universalizáveis e metodologias que praticam controle
que correspondem, em geral, às relevâncias sistemático e replicável, com grande êxito
consideradas no momento. Este olhar por concreto, porque facultaram descobertas
vezes muito agressivo oferece o contra- monumentais da realidade (física, química,
argumento de que o conhecimento científico matemática, biologia, engenharias, medicina,
não é universal, a não ser em sua face formal etc.); esta crença foi abalada, em seu próprio
(lógica, matemática, metodologias), pela berço, por Hume em primeiro lugar e depois
simples razão de que o ser humano não é pela obra de Popper (Demo, 1995), em cujo
entidade universal: é produto evolucionário e contexto ficou claro que evidências empíricas
histórico, datado e localizado, em si são tipicamente produto teórico e/ou
descartável. Não pode haver verdade final e ideológico, já que, trabalhando a teoria com
definitiva na teorização científica, porque esta conceitos, estes não são verificáveis
é tecida por figura passageira e empiricamente; além disso, este
culturalmente marcada. Assim como seria procedimento, quando obsessivo, recai na
impróprio advogar a universalidade de uma “ditadura do método”, considerando real
cultura, a não ser por trambique prepotente, apenas o que o método pode captar (Morin,
não cabe mais solicitar para o conhecimento 1996. Demo, 1999);
científico foros de transcendência eterna. b) teorias de tudo – como já vimos
Terceiro, as teorias, como se diz hoje, são acima, foi uma das pretensões mais fortes do
“metanarrativas” (Lyotard, 1989. Demo, modernismo poder encontrar, pela via
1999), ou seja, construções feitas por analítica sistemática, mesmo reducionista e
sujeitos concretos incapazes de simplificadora (Haack, 2003), o fundo da
estabelecerem verdades inconcussas. Como realidade, a exemplo da química e física, que
propõe Habermas (1989), verdade é chegaram à estrutura atômica; chega-se a
pretensão de validade, no sentido de que, falar de “fim da ciência” (Horgan, 1997), ou
reconhecendo a validade apenas relativa (não do “que haveria ainda para ser descoberto”
relativista) das teorias, procura-se, através (Maddox, 1999), ou de “fronteira final”
de esforço metodológico sistemático e (Gribbin, 2001), insinuando-se que a
aberto, sustentar os melhores argumentos trajetória analítica estaria se completando;
possíveis e que, por definição, não podem ser com o retorno da “dialética da natureza”,
finais, cabais, fatais. Faz parte da pretensão proposto por Prigogine (1996.
de validade que a teoria não se esfarele no ar Prigogine/Stengers, 1997), e com base no
de imediato, mas demonstre certa reconhecimento da complexidade não linear
consistência no tempo a peso de argumentos da realidade (Morin, 1995. Casti, 1995.
bem tramados. Mas, na validade há mais Rescher, 1998), o sonho da teoria final
pretensão do que verdade, do que segue que (Weinberg, 1996) esboroou-se por conta
proteger obsessivamente uma teoria somente principalmente de uma questão
apressa seu esfacelamento. A qualidade da epistemológica: o ordenamento teórico linear
teoria está menos em seus cães de guarda, da realidade é certamente útil, como foi em
do que na abertura incondicional do debate particular no desenvolvimento das
franco e bem argumentado, dentro da tecnologias, mas não faz justiça à sua
convicção cada vez maior de que a finalidade tessitura também não linear, ocorrendo aí
da teoria não é parar o debate, mas dissonância irreconciliável ao final das contas
alimentá-lo indefinidamente, abrindo novos (Demo, 2002);
espaços de indagação e análise. As narrativas c) explicação imanente – uma das
não fazem mais que arrumar um relato pretensões mais fortes e efetivas do
relativamente formalizado, não juram pela modernismo foi a derrubada das referências
verdade final delas, contentam-se em ser transcendentais (religião, filosofia, teologia,
razoáveis relativamente, apresentam alquimia), colocando em seu lugar
horizontes diversos para mentes diversas. argumentos imanentes, naturais; o signo
Daí não segue o relativismo, porque, como a maior deste tento foi a obra de Darwin, que
discussão sobre paradigmas bem ilustrou, a dispensou ostensivamente qualquer hipótese
ciência, para que tenha validade histórica, divina para explicar o surgimento do ser

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humano na natureza; a ciência se basta, 1994), mostrando que a lide científica


destruindo com isso os argumentos de significa um estilo de intervenção na
autoridade, sem perceber, no entanto e à realidade, que não é apenas explicada,
revelia que, fazendo-se autoridade única, compreendida, mas manipulada, em
tornava-se, como sempre dizia Feyerabend particular, dominada. Para tanto, é notória a
(1977; 1979), a religião mais preferência por procedimentos lineares, por
fundamentalista dos novos tempos; apesar razão de método. Em vez de se colocar a
da esperteza da pretensão modernista, realidade como razão maior de ser, coloca-se
incidiu em extrema ingenuidade ao não o método, que acaba decidindo o que é real.
perceber que, apegando-se à imanência e Teoria restringe-se, assim, a gesto
sendo esta evolucionária e histórica, não formalizante extremado, tendo-se em mente
caberiam pretensões universais e finais; sempre a busca de leis ou regularidades que,
d) guerra entre ciências humanas e podendo sobreviver a todos os testes, se
naturais – apesar da “consiliência” de Wilson tornariam “universais”. Na prática, porém, no
(1998), que aposta na reconciliação das discurso há mais ordem do que explicação,
ciências pela via do método das ciências assim como em qualquer dissertação ou tese
naturais, persiste a crença difundida de que há mais forma do que realidade. Ocorre,
ciência em sentido estrito são apenas as porém, que esta metodologia teve e tem
ciências naturais, porque praticam métodos êxito inegável, em especial nas aplicações
lógico-experimentais; esta crença vai ainda a tecnológicas e que formam uma das maiores
ponto de desacreditar os antigos humanistas, glórias da ciência. Nossas tecnologias são
em favor dos “novos humanistas” (Brockman, lineares, reversíveis, algorítmicas, como é,
2003), tendo estes como vantagem estudar o por exemplo, o computador. Este não sabe
ser humano através dos métodos científicos pensar (pelo menos por enquanto) (Dreyfus,
modernistas; a noção de “dialética da 1997), mas é muito efetivo em processar e
natureza” de Prigogine coloca as coisas na armazenar informação. Por ser linear é
outra direção: o futuro da ciência estaria no também confiável, marca importante para o
contexto das ciências humanas; mas é ser humano que, por exemplo, dificilmente se
preciso reconhecer que o êxito do positivismo disporia a voar em avião não linear!
científico é tanto, em particular nos Estados Concretamente, a ciência tripudia sobre a
Unidos, que a “ditadura do método” ainda face linear da realidade, a ponto de a
não parece ceder perceptivelmente; declarar única existente, não porque o seja,
e) dicotomias entre métodos mas porque assim o método espera e, ao
quantitativos e qualitativos – embora exista final, decide. Por isso, em toda teorização
já reconhecimento amplo de que não há predomina o ordenamento formal: cada
dicotomias, porquanto a realidade, em sua conceito precisa estar bem definido; as
complexidade, exige a ambos os métodos e categorias precisam modular uma catedral de
que no fundo são o mesmo esforço de cercar componentes bem orquestrados; o texto tem
realidade transbordante, persiste a noção de capítulos sucessivos e amarrados; o intento
que métodos qualitativos são concessivos e pressupõe um roteiro de procedimentos que
não podem disputar espaço com os vai da introdução à conclusão, passando
quantitativos; muitas vezes a discussão é pelas partes teórica, metodológica e
atrapalhada pelos abusos dos métodos analítica; há regras mais ou menos estritas
qualitativos (Demo, 2001), mas isto não elide de como formatar o texto, argumentar, citar,
sua necessidade por razão epistemológica inclusive de apresentação externa; a
precípua: a complexidade da realidade é orientação não está longe da domesticação,
tamanha, em particular em dinâmicas como preferindo-se geralmente o orientando fiel ao
seres vivos e humanos, culturas, fenômenos competente. A ciência tem a seu favor,
políticos e profundamente subjetivos, que obviamente, que entendemos melhor o que
não é devassável apenas quantitativamente; está ordenado. Não nos sentimos bem no
ao mesmo tempo, tornou-se claro que nos caos e é por isso que dizemos “caos
próprios métodos, aparentemente neutros e estruturado”: mesmo no caos há estruturas,
objetivos, vibram pressupostos porque não saberíamos formular uma idéia
epistemológicos, ontológicos e ideológicos caótica de caos. Idéia já é coisa ordenada.
(Harding, 1998. Smith, 1999), porque é
impossível fazer ciência sem sujeito; a figura
central da ciência ainda é o cientista, não o 3.TEORIA HOJE
método; este é apenas instrumental,
enquanto aquele é a razão de ser. Teorizar ainda está na ordem do dia.
Foucault, mais que outros, captou a O que incomoda geralmente é termos de
politicidade dos procedimentos de teorização, reconhecer que se trata de empreendimento
em particular sob a ótica da “ordem do limitado e de validade muito relativa. Pelas
discurso” (Foucault, 2000. Portocarrero, pretensões modernistas, ciência deveria
substituir a eternidade. Embora seja
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Teoria – Para quê?
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fantástica contradição performativa pretender fundo, nem para cima, nem para baixo.
argumentações finais – porque se elide a Ainda, como somos parte deste processo
contra-argumentação – um problema crucial evolucionário e histórico, não caberia
do modernismo foi a crítica sem autocrítica. pretender entendê-lo de cima ou de fora.
Guinada importante aconteceu com a “teoria Entendemos sempre de modo multicultural,
crítica” (Freitag, 1986), porque buscava, como parte, parcialmente. Por isso mesmo,
entre outras coisas, coerência entre crítica e em toda teorização há, tendencialmente,
autocrítica, no fundo, refazendo a dinâmica mais ordenamento, ajeitamento,
central do conhecimento disruptivo: o que, manipulação, do que realidade como tal, que
acima de tudo, o conhecimento questiona é a sempre se esgueira na sombra, qual jogo de
si mesmo. Este resgate socrático é o que há esconde-esconde.
de mais pós-moderno, no bom sentido, O pós-modernismo, a par de
mostrando também que nem sempre o que propriedades respeitáveis, produziu também
parece novo é tão novo assim. Com efeito, a inúmeras irresponsabilidades, à medida que
coerência da crítica está na autocrítica, facilmente institui o vale-tudo teórico, o
colocando perspectiva mais aberta aos relativismo metodológico ou a fragmentação
procedimentos de teorização. Em toda cultural irrecuperável. Tem-se a impressão de
teorização há pretensões lineares, porque a que fazer teoria é dizer qualquer coisa,
tentação da ordem é muito forte, tendo oferecer discurso frouxo, colher da internet
raízes, como víamos, também biológicas: um fórmulas prontas, “chutar” à vontade.
ser frágil, como é o ser humano, usa o Qualquer tese pode ser aceita, já que todo
cérebro também – talvez sobretudo – para olhar observa de maneira própria, subjetiva.
garantir sua sobrevivência, não para brincar Trocamos a rigidez de paradigmas clássicos
de matemática e lógica. Racionalidade não é por paradigma nenhum. Faço aqui o esforço
tudo (Damásio, 1996), sem falar que de construir um meio termo, mesmo que no
racionalidade tende a expressar-se meio estejam não só a virtude, mas também
multiculturalmente. Apreciamos dinâmicas a mediocridade. Quando se alude a um meio
que facilmente dominamos pela via da termo, pode-se facilmente implicar
formalização teórica, mas deixamos de banalizações de consensos fáceis que fazem
perceber que nelas já nada ocorre de novo e todo mundo encontrar-se e abraçar-se. Não
inovador. A natureza mostrou-se tão criativa me refiro a isso. Ao contrário, proponho
porque, ao lado de replicações lineares estilos dialéticos de consenso, tão frágeis que
evolutivas, contém as não lineares, o que carecem do maior esforço possível e
desabrocha naturalmente em criatividade imaginável de teorização metódica e
ilimitada. Cada ser é, num sentido, similar, e, conseqüente (Demo, 1994; 2005). É sempre
noutro sentido, único. A ciência desdobra-se possível retirar dupla conclusão: porque tudo
sobre as similitudes, regularidades, é tão frágil, vale qualquer coisa; ou, porque
recorrências, porque, ao repetirem-se, não tudo é tão frágil, precisamos cuidar tanto
trazem sobressalto. Prefere ter da natureza mais da arte de bem argumentar. Estou
esta noção ordenada e que caberia, ao final, interessado nesta segunda conclusão.
numa fórmula matemática simples. Neste sentido, aproximo teorizar de
Entretanto, este olhar parece ultrapassado, bem argumentar e, se possível, faria
não só porque nossas teorias, até hoje, são coincidir. Argumentar significa aduzir razões
perecíveis, incompletas, relativas, mas bem formuladas, tecidas, tramadas
também porque temos em nós mesmos e na teoricamente, para que possam merecer a
natureza mistérios que parecem atenção e até mesmo o acatamento do outro.
indevassáveis (Davies, 1999. Wright, 2000). Seu centro é o questionamento, porque
A ciência avança, sem dúvida, e as argumentar sempre começa com
tecnologias são exemplo convincente, mas desconstruir. Não é necessário entender mal
não temos como afirmar que poderíamos um esta idéia, como se azedume fosse sua sina.
dia explicar a realidade em termos Pode ser, mas não é disto que se trata.
definitivos, finais. O fato mais marcante na Desconstruir significa o primeiro gesto do
história da ciência (Burke, 2003) parece ser conhecimento disruptivo, não envolvido na
que todas as teorias se mostraram reprodução do que já existe e se diz, mas em
incompletas, também aquelas gestadas nas sua reconstrução. Desconstruir é, por
ciências naturais. Popper teria razão: não exemplo, saber “contraler” (Demo, 1994),
passam de hipóteses que apenas podemos, como sugeria Paulo Freire (1997). Frente à
no máximo, corroborar, nunca verificar. realidade, o gesto primeiro de quem
Quando se chegou ao nível atômico da argumenta (não engole) é de a questionar,
análise da realidade física, imaginávamos ter desvelando o que tem por trás, o que nela se
chegado ao fundo do poço, aí onde a matéria esconde, o que nela se impõe, o que nela se
apresentaria sua estrutura final. Logo a adultera. O segundo gesto será reconstrutivo,
seguir descobriu-se que o mundo subatômico para contrapropor. Ao mesmo tempo,
é incomensurável também. Não parece haver argumentar implica contra-argumentar,

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Pedro Demo
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porque se insere em atividade comunicativa falsa, mas a propriedade da respectiva


dialética entre parceiros que se respeitam e argumentação, sua inteligência ou falta de
confrontam. A arte de argumentar, assim, inteligência, sua condução bem arquitetada
não pressupõe calar o outro, nem mesmo por ou mal posta, seu olhar instigante ou banal.
obra de argumento tão bem feito que o outro Há argumentos equivocados, claramente,
fique sem resposta. Pressupõe provocar o mas esta preocupação não é principal, já que
outro a entrar no mesmo diapasão, a em todo argumento, por mais bem feito que
participar como sujeito que contribui e seja, há incompletudes insuperáveis. O erro é
questiona, a peticionar sua parceria para parte da verdade científica (Hecht, 2003).
continuar inovando o conhecimento. Não está em jogo o acerto pura e
Argumentar exige esfera pública aberta livre, simplesmente, mas doses maiores ou
não porque a comunicação humana não seja menores, mais e menos criativas e
estratégica (esta tese de Habermas não se inteligentes, de acerto relativo. Por isso, uma
sustenta sociologicamente) (Bourdieu, 1996; tese pode ser, hoje, provocativa, deixar mais
1996a. Mészáros, 2004), mas precisamente perguntas que respostas e mesmo
pelo contrário: sendo estratégica a reconhecer que certa direção não pôde ser
comunicação humana, as artimanhas do concluída. A tese, longe de ser produto final,
poder não podem prevalecer, embora assim o é apenas etapa que, como tal, precisa ser,
tentem sistematicamente. Para que prevaleça antes de tudo, vencida. Também, por ser rito
o bem comum ou o interesse coletivo, os de passagem, não é o caso encalhar-se nele.
parceiros precisam exercer, uns sobre os É mais arguto livrar-se dele.
outros, devido controle democrático. O Teoria é como rede que se joga no rio
controle democrático mais inteligente que se para pegar peixe. Esta metáfora é apenas
conhece é aquele inspirado e fundado na artifício explicativo, obviamente. Não pega
autoridade do argumento, porque permite tudo, nem nela cabe tudo. Para pegar peixe
convencer, sem vencer. pequeno, é mister rede mais fina. Não
Assim, não esperamos mais funciona em qualquer lugar: onde há leito
necessariamente concordância com as cheio de obstáculos, é possível que a rede se
teorizações, porque divergir delas é, no prenda e rompa. Assim como seria impróprio
fundo, mais importante do que com elas pretender uma rede universal para peixes
acordar. Esperamos que as teorizações sejam universais, é incongruente postular teorias
tão bem tramadas, que mereçam atenção e cabais. No seu lado de arte, fazer teoria
até mesmo acatamento, não sendo isso, depende muito da subjetividade e
porém, seu teste crucial. Seu teste crucial e criatividade de cada qual, além da
sempre relativamente frágil e incompleto é o experiência acadêmica. Apelando também
esforço de bem argumentar. Numa tese de para a “retórica”, a aceitação de teorias
doutorado, por exemplo, não pretendemos depende vastamente da habilidade de
mais que a “vítima” apresente texto elaborar e principalmente de apresentar
irrecusável por conta de sua habilidade (Perelman/Olbrechts-Tyteca, L. 1996.
formalizante, extensão das citações e revisão Perelman, 1997). É por isso que nas defesas
bibliográfica, acuidade dos exercícios de tese os orientandos mais espertos –
estatísticos, domínio de conteúdos, porque juntamente com seu orientador esperto –
tudo isso é instrumental. O que mais cuidam não só da retórica da apresentação,
queremos ver na tese é “saber pensar” mas principalmente que estejam na banca
(Demo, 2000a). A discussão que pode/deve examinadores que gostam de escutar o que
ocorrer na defesa da tese não colima mostrar têm para ouvir. Afinal, não está na Bíblia que
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Pedro Demo
Doutor em Sociologia - Universität Des Saarlandes
Professor Titular da Universidade de Brasília.
E-mail: pedrodemo@uol.com.br
Telefone: (61) 3072389
Endereço: Universidade de Brasília, Instituto de Ciências Sociais, Departamento de Sociologia.
Minhocão, Asa Norte. CEP 70910900 - BRASILIA, DF.

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