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Originalmente, bíblia era um nome plural, que significava “os livros”. E indicava, de
fato, o conjunto dos rolos que cada sinagoga ou igreja guardava em seu armário. A
lista dos livros sagrados não era igual para todos: muitos textos, hoje considerados
apócrifos, podiam ser incluídos; outros, hoje essenciais, nem sempre constavam.
Cada bíblia tinha sua coleção: afora o Pentateuco, presente em todas, elas podiam
incluir só um livro de Isaías, mas dez Apocalipses; ou todas as cartas de Paulo, mas
não os Atos dos Apóstolos; e assim por diante. A redução dessas bibliotecas a um
único volume, ou poucos, levou ao estabelecimento de um cânone: Evangelhos, só
quatro; Apocalipse, um; Macabeus, livros de Tobias e Judite – entram ou não
entram? Foram discussões que duraram séculos e ainda deixaram sequelas (algumas
bíblias protestantes não consideram livros que a católica inclui).
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Mudou também a postura: em geral o rolo é lido de pé, demanda um gesto amplo
para que uma porção razoável de texto seja descortinada. Lê-se em voz alta, diante de
um público, se não real, pelo menos presumido. O rolo é público por natureza, e
conseguiu resistir à concorrência do códice até hoje, em alguns nichos, por seu
caráter ritual ou cerimonial: diplomas, anúncios solenes, ofícios eclesiásticos. O
códice, ao contrário, é compacto e pesado: é feito para ser apoiado numa mesa, numa
estante, sobre os joelhos. Para lê-lo, nos debruçamos. O costume de ler em silêncio,
que ainda surpreendia Agostinho quando o observava em Ambrósio, e que Borges
comenta no ensaio “Do culto dos livros”(em Outras Inquisições), está provavelmente
ligado à difusão dos códices.
Por tudo isso, é leviano dizer que uma biblioteca inteira cabe num iPad. O que cabe
são textos, não livros. A telinha é muito mais parecida com o rolo do que com o
códice: os caracteres correm potencialmente ao infinito, ainda que seja mantida a
divisão por páginas (mais por sobrevivência de um hábito do que por necessidade do
meio eletrônico). Na telinha, o livro não tem capa ou aparência própria. Seu uso
exemplar não é a leitura corrida, mas a busca da palavra-chave, que atravessa o texto
em todas as direções. A escrita, nela, é sempre fragmento. O texto permanece um
fenômeno virtual, efeito ilusório e superficial de uma estrutura lógico-matemática
que só o computador lê, e nós não enxergamos. Ele está em lugar nenhum. O texto do
livro, ao contrário, está dentro dele, na estante, mesmo que não o leiamos. Entretém
conosco uma relação que não depende de um uso imediato. Em outras palavras, no
texto eletrônico o pensamento não se encarna, não convive conosco como objeto
extenso, material – como nós, sujeito a dobras, descolamentos e manchas de café.
Talvez seja por isso que não conseguimos renunciar ao livro: não queremos dispensar
a identidade espiritual e material que ele promete há milênios. Carregar o
pensamento nas mãos, fazer com que ocupe um lugar específico: é isso que o livro
permite, e talvez por isso as livrarias não desapareceram.
O disco, ao contrário, surgiu apenas no século XX. Contudo, ele se enraizou tão
profundamente em nossa experiência cotidiana que adquiriu, por um tempo que
parece prestes a se esgotar, estatuto comparável ao de seu colega milenar. Talvez
porque, ao corporificar o som, o disco complete a materialização do pensamento que
o livro iniciara há tanto tempo, transferindo para um objeto as ressonâncias afetivas
que, no caso da página escrita, ainda exigiam a atuação de um falante. A partitura
nunca foi propriamente um livro, nem sequer da maneira que uma peça teatral pode
sê-lo. O texto de um drama se presta a dois usos: pode ser encenado, mas também
pode ser lido como poema ou novela. A partitura nunca dispensa a execução, nem
que seja apenas mental.
Antes do advento do disco, uma obra musical, mais que uma partitura ou uma
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Uma encenação de ópera era replicada por vinte ou trinta dias seguidos, se tivesse
sucesso, e o melômano assistia várias vezes, quando não todo dia. Em compensação,
dificilmente ouviria a mesma peça de novo, no futuro. Para a música instrumental,
sobretudo a de orquestra, as oportunidades eram ainda mais esporádicas: um
apaixonado, mesmo o mais dedicado, teria ocasião de ouvir a Nona de Beethoven,
por exemplo, duas ou três vezes na vida, se tanto. Os profissionais compravam a
transcrição para piano para estudá-la em casa. Para os outros, é provável que
restassem apenas fragmentos de melodia e a lembrança de uma emoção efêmera –
além, naturalmente, das resenhas publicadas nas gazetas.
A leitura também pode ser reiniciada, mas isso é porque o livro transforma o tempo
da fala no espaço da página, coloca-o no plano da simultaneidade ou da eternidade,
em que tudo está presente ao mesmo tempo (mais uma causa de suas ressonâncias
religiosas). Quanto ao filme, que surge no mesmo momento que as gravações, ele
também possui, como o disco e diferentemente do livro, uma duração temporal
estabelecida. Porém, é fruído num espaço público, em que não nos é concedido
retomar à vontade um momento anterior da narrativa. Mesmo com a difusão do
filme doméstico, que aconteceu muito mais tarde, o ato de rebobinar permanece uma
operação muito mais trabalhosa do que recolocar a agulha no ponto certo; só com o
advento do DVD os filmes foram divididos em cenas, nos moldes das faixas dos CDs.
Finalmente, o filme não é só representação do tempo, mas também do espaço,
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enquanto a música, uma vez extraída pelo disco de seu contexto performático,
tornou-se tempo puro.
Toda música nasce do esforço de conciliar tempo linear e tempo periódico, o que
sempre avança e não tem volta e o que constantemente recomeça. Cadências,
repetições, refrões e estribilhos servem para isso. Parece que algum tipo de retorno se
torna necessário para que o passar do tempo seja percebido como forma. Mas,
enquanto a música permaneceu atrelada a sua execução por um intérprete, a
repetição nunca era exatamente igual, e o caráter linear prevalecia. Com a repetição
mecânica que o disco consente, o aspecto cíclico passa a dominar; a volta da capo já
não é apenas um recurso interno da composição, e sim a característica fundamental
da audição: o disco é feito para se ouvir de novo. Isso nos torna mais impacientes
com a retomada de seções inteiras da música barroca e clássica, que gravava na
memória do ouvinte elementos importantes da composição, ou simplesmente
preenchia o tempo do evento sem esforços excessivos de atenção. Por outro lado, o
disco esvazia o sonho romântico, que perdurou até o atonalismo de Schöenberg, de
uma música em transformação contínua, idêntica ao tempo vivido, durchkomponiert
(inteiramente composta) sem barras de repetição. Eliminar a repetição se tornou
impossível: na vitrola, a música pode ser reiniciada a qualquer momento.
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passa junto com o tempo, enquanto no disco riscado, que repete sempre o mesmo
sulco, é o próprio tempo que emperra (daí, provavelmente, a sensação de angústia).
Quando gravadas, as composições minimalistas (as de Steve Reich, sobretudo) não se
submetem à reprodução mecânica, mas dela fazem emergir uma sensação aguda e
especialmente concentrada da passagem do tempo. Como quase nada acontece nele,
o tempo se revela de maneira mais patente, não como círculo, mas como espiral.
Mesmo quando executada ao vivo, toda música minimalista me parece embutir a
experiência do disco.
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pelo métier.
A duração limitada dos primeiros discos teve, a meu ver, duas consequências: a
primeira é o predomínio do gênero canção. Três minutos é um tempo muito curto
para desenvolver uma estrutura suficientemente rica no campo da música
instrumental, mas não para estabelecer uma relação satisfatória entre texto e
melodia. Certamente, foram as exigências de gravação que impuseram o padrão de
primeira parte, segunda parte e da capo sobre todas as outras formas de canção, mas
essa já era a forma mais comum do Lied, da ária de ópera e de muita tradição
folclórica. A maioria dos Lieder de Schubert e de Schumann durava mais ou menos
três minutos, e era baseada no princípio de que a linha melódica deveria se adequar
perfeitamente ao sentido poético e não poderia ser desenvolvida muito além dele, sob
pena de perder a correspondência com o texto. Nesse sentido, Schubert não
trabalhava de forma muito diferente de Paul McCartney ou Chico Buarque – para
todos os outros gêneros musicais, as diferenças entre música erudita e música
popular são bem mais marcantes. Enfim, de todos os formatos tradicionais, a canção
romântica é a que mais facilmente podia se adequar às exigências do novo meio. A
ópera, o gênero então mais popular, também foi segmentada em trechos curtos, na
prática canções, e nessa veste determinou o surgimento do primeiro grande star do
disco, Enrico Caruso. Por outro lado, talvez não seja por acaso que um dos maiores
instrumentistas de jazz dessa época, Armstrong, tenha se tornado mais popular como
cantor do que como trompetista. Houve um “século da canção” (para retomar o título
de um livro de Luiz Tatit) porque houve um século do disco.
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Os primeiros discos de longa duração, em vinil (long playing), foram lançados nos
Estados Unidos em 1948: mais de vinte minutos de cada lado, suficientes para uma
sinfonia média do século XVIII. Até nas grandes obras românticas, raramente um
único movimento supera essa extensão. Quanto à música popular, a vantagem não
foi apenas a possibilidade de desenvolver composições mais complexas: mesmo
respeitando a duração já tradicional de três ou quatro minutos para cada peça, agora
era possível montar as faixas numa sequência preestabelecida, segundo escolhas
refletidas. Analogamente ao que aconteceu na passagem do rolo ao códice, uma série
de obras distintas se tornou uma só. Alguns LPs lançados na década de 50 são
verdadeiras declarações de poética, como as Canções Praieiras, de Dorival Caymmi,
já em 1954. Entre os jazzistas, Miles Davis foi mestre em pensar o LP como uma obra
unitária (Kind of Blue, Sketches of Spain etc.), mas foi seu antigo parceiro, John
Coltrane, quem explorou todas as possibilidades que o novo formato oferecia, como
nas longas improvisações sobre um único acorde de A Love Supreme (1965). De
resto, o disco em vinil possibilitava também a revisão e a reorganização do repertório
anterior em conjuntos que permitiam reconhecer sua grandeza: Cole Porter e Irving
Berlin se tornaram clássicos da música popular americana graças, sobretudo, aos
songbooks de Ella Fitzgerald. Algo parecido aconteceu no Brasil, primeiro com as
releituras de João Gilberto, depois com os cantores e compositores da MPB.
Mas não foi apenas o indiscutível avanço técnico que fez do disco em vinil o agente de
mudanças revolucionárias: foi sua associação com a nascente sociedade de consumo.
A posição de cada indivíduo num contexto social passa a ser determinada pela posse
de certos objetos. Nenhum deles era tão poderoso quanto o disco para encarnar
formas específicas de sociabilidade, porque os discos já eram, como vimos,
sociabilidade objetivada. As gerações que cresceram nas décadas de 50, 60 e 70 (a
época de ouro dos LPs) basearam suas escolhas existenciais nos discos. Não
apreciavam jazz, pop, folk ou rock: eram jazz, pop, folk ou rock. As estrelas da
música popular tinham autoridade de poetas, carisma de líderes revolucionários e
charme de atores de Hollywood.
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Foi nessa época e por esses meios, muito mais do que pelas vanguardas do começo
do século XX, que a música contemporânea alcançou sua plena autonomia em
relação à tradição clássico-romântica, quanto a recursos, formas e modalidades de
escuta. Foi dessa época, provavelmente, a melhor música erudita do século. Mas é
dessa época também o melhor jazz, do bebop ao free; quase todo o rock relevante, de
Elvis Presley aos Clash; a bossa nova e o auge da MPB; Janis Joplin e Maria Callas; a
melhor Ella Fitzgerald e o melhor Frank Sinatra. E, num lugar que é só deles, são
dessa época os Beatles.
Nesse exato sentido, não poderá haver disco melhor que Sgt. Pepper’s, porque a
Lonely Hearts Club Band é a personificação perfeita do que o meio significou, no
auge de sua potência. A banda não existe fora do disco, ela é o disco, assim como não
existe fora do disco o público que aparece na capa, e que se propõe como rede de
referências para o outro público que está fora dela, mas que adquirindo o disco
participa da mesma comunidade: indivíduos disparatados, mas todos de alguma
forma excepcionais – de Karl Marx a Marilyn Monroe, incluindo os próprios Beatles
já imortalizados como figuras de cera –, todos prensados num espaço apertado e
festivo, mas de uma festividade ironicamente provinciana e ingênua. É importante
que seja apertado: o som também o é. Extremamente elaborado, exuberante, feito de
inúmeras superposições e distorções, ele também seria impossível ao vivo: não existe
senão no disco.
Por incrível que pareça, os Beatles e seu arranjador e diretor de estúdio, George
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Depois veio o compact disc, que deveria potenciar o que o vinil já tornara muito
poderoso. Mas algo deu errado. É indicativo, para começo de conversa, que tenha
mantido ou aumentado pouco a duração do LP, embora pudesse conter muito mais
informação. Até do ponto de vista gráfico, capas e encartes de CDs não passam, na
maioria dos casos, de capas e encartes de LPs reduzidos ao tamanho de bulas de
remédios. Quando tentam fugir disso, transformam-se em pequenos livros. Parecem
incapazes de desenvolver uma visualidade autônoma. Hoje, quando o CD está
desaparecendo, é fácil reconhecer que não se alforriou do LP. Mais difícil é identificar
as causas.
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Não espanta, então, que também a escuta da música, vencida a frágil resistência do
CD, tenha se refugiado na rede. Mas isso tem consequências estéticas que é
importante avaliar. A primeira é o fim da organização sequencial das faixas. Escolhe-
se uma canção por vez, e o mecanismo de busca se encarrega de indicar outras
composições próximas (“Se você gostou dessa música, também vai gostar dessa
outra”). É um critério meramente estatístico, que não permite a construção de
universos originais e complexos. Dificilmente, por esses meios, Dear Prudence seria
associada a Revolution 9. Uma poética baseada na livre associação de estilos
diferentes necessita de um ouvinte que escute a sequência inteira, ou pelo menos a
reconheça como unidade. Mas a internet não tem contornos: nela, cada faixa emerge
de uma totalidade indeterminada, e nela volta a afundar.
Em segundo lugar, com o encolhimento das vendas das gravadoras e dos recursos
das rádios, a fonte principal de lucro voltou a ser o concerto ao vivo. No campo da
música erudita, por exemplo, as encomendas de corpos estáveis tradicionais
(orquestras sinfônicas, teatros de ópera, conjuntos de câmara com orgânico fixo) são
mais uma vez determinantes para a carreira de um compositor. Mas isso significa
compor para formações mais tradicionais ou, em todo caso, predeterminadas.
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