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CHODERLOS DE LACLOS

LIGAÇÕES PERIGOSAS
Texto integral
EDITORES ASSOCIADOS
TÍTULO ORIGINAL: LES LIAISONS DANGEREUSES
TRADUÇÃO: JOÃO PEDRO DE ANDRADE E ALFREDO AMORIM

PREFÁCIO DO REDATOR
Esta obra, ou antes, esta colecção, que o público achará talvez
ainda volumosa em demasia, não contem todavia mais do
que um pequeno número das cartas que compunham a totalidaDE
da correspondência de onde foi extraída. Encarregado de a
pôr em ordem pelas pessoas a cujas mãos chegou, e que eu sabia
terem a intenção de a publicar, pedi apenas, como prémio dos
meus cuidados, a permissão de suprimir tudo o que me parecesse
inútil; e de facto conservei apenas as cartas que me pareceram
necessárias, quer para a compreensão dos acontecimentos, quer
para o desenvolvimento dos caracteres. Se acrescentarmos a este
ligeiro trabalho o de repor por ordem as cartas que deixei ficar,
ordem para a qual eu próprio quase sempre segui a das datas, e,
enfim, algumas notas curtas e raras, e que, na sua maior parte
não têm outro objectivo senão o de indicar a origem de algumas
citações ou de motivar alguns cortes que me permiti fazer, ter-se-á
inteiramente ideia da parte que tive nesta obra. A minha
missão não ia mais longe.
Eu tinha proposto alterações mais consideráveis, quase todas
relativas à pureza de dicção ou de estilo, contra a qual se
encontrarão muitas faltas. Desejei também ser autorizado a cortar
diversas cartas demasiado longas, e das quais algumas tratam
separadamente, e quase sem transição, assuntos absolutamente
estranhos uns aos outros. Este trabalho, que não foi aceite,
não seria bastante sem dúvida para dar mérito à obra, mas
ter-lhe-ia pelo menos tirado parte dos defeitos.
Foi-me objectado que eram as próprias cartas que se pretendia.

* Devo prevenir também que suprimi ou mudei todos os nomes das pessoas
que intervêm nestas cartas; e que, se no número daqueles que lhes substituí,
se encontrarem nomes que pertençam a alguém, terá sido unicamente por erro
da minha parte, e do qual não se deverá tirar qualquer conclusão. (N. do A.)

dar a conhecer, e não apenas uma obra feita segundo as cartas;


que seria tanto contra a verosimilhança como contra a verdade
que, de oito á dez pessoas que colaboraram nesta correspondência,
todas escrevessem com igual pureza. E à minha réplica
de que, longe disso, não havia, pelo contrário, nenhuma
que não tivesse cometido erros graves, foi-me respondido que
todo o leitor razoável esperaria seguramente encontrar erros
numa colecção de cartas de alguns particulares, visto que em
todas as que se têm publicado de diferentes autores estimados, e
mesmo de alguns académicos, não se encontrava nenhuma totalmente
ao abrigo desta censura. Estas razões não me persuadiram
e achei-as, como as acho ainda, mais fáceis de dar que de
receber; mas não me competia mandar, e submeti-me. Somente
me reservei o direito de protestar e de declarar que não era essa
a minha opinião; o que faço neste momento.
Quanto ao mérito que esta obra possa ter, talvez me não
caiba explicá-lo, pois a minha opinião não deve nem pode ter
influência sobre a de ninguém. Entretanto, todos os que, antes
de começar uma leitura, ficam satisfeitos por saber aproximadamente
com o que podem contar, esses, dizia eu que continuem:
os outros farão melhor em passar imediatamente para a
obra em si; sabem já o que lhes basta.
O que posso dizer antes do mais é que se a minha intenção
foi, como reconheço, dar a conhecer estas cartas, estou todavia
muito longe de esperar daí um êxito: e que não se tome esta sinceridade
da minha parte pela modéstia fingida de um autor;
pois declaro com a mesma franqueza que, se esta colecção não
me tivesse parecido digna de ser oferecida ao público, eu não me
teria ocupado dela. Tratemos de conciliar esta aparente contradição.
O mérito de uma obra compõe-se da sua utilidade ou do
agrado que desperta, e mesmo duma coisa e doutra, quando
disso é susceptível; mas o êxito, que não prova sempre o mérito,
deve-se frequentemente mais à escolha do assunto que à sua
execução, ao conjunto dos motivos que apresenta do que à
maneira como eles são tratados. Ora contendo esta colecção,
como o seu título anuncia, as cartas de toda uma sociedade, reina
nela uma diversidade de interesse que enfraquece o do leitor.
Além disso, sendo quase todos os sentimentos que aí se exprimem
fingidos ou dissimulados, deixam de poder mesmo excitar
um interesse que não seja o de curiosidade sempre muito abaixo
do de sentimento, e que, sobretudo, conduz menos à indulgência
e deixa tanto mais aperceber as faltas que se encontram nos
pormenores, quanto estes se opõem constantemente ao desejo
que unicamente se quer satisfazer.
Estes defeitos são talvez resgatados, em parte, por uma qualidade
que do mesmo modo tem origem na natureza da obra; é a
variedade dos estilos; mérito que um autor atinge dificilmente,
mas que se apresentava aqui por si próprio, e que ao menos exclui
o aborrecimento da uniformidade. Algumas pessoas poderão
ainda esperar encontrar para seu proveito um número assaz
grande de observações, ou novas ou pouco conhecidas, e que se
encontram dispersas nestas cartas. E nisso se resume, segundo
creio, tudo que se pode esperar como motivos de agrado, usando
aliás de um juízo extremamente favorável.
A utilidade da obra, que porventura será ainda mais contestada,
parece-me todavia fácil de estabelecer. Julgo pelo menos
que é prestar um serviço aos costumes divulgar os meios que
empregam os que os têm maus para corromper os que os têm
bons, e creio que estas cartas poderão concorrer eficazmente
para esse fim. Encontrar-se-á também nelas a prova e o exemplo
de duas verdades importantes que dir-se-ia serem desconhecidas,
tão pouco elas são praticadas: a primeira, que toda a mulher
que consente em receber no seu meio um homem sem moral
acaba por se tornar a sua vítima; a outra, que é pelo menos imprudente
toda a mãe que admita que outra pessoa além dela
tenha a confiança de sua filha. Os jovens de um e de outro sexo
poderiam também aprender aqui que a amizade que as pessoas
de maus costumes parecem dedicar-lhes tão facilmente não é
mais que uma perigosa cilada, tão fatal à sua felicidade como à
sua virtude. Parece-me, no entanto, muito de temer aqui o abuso,
que anda sempre tão perto da medida justa; e, longe de
aconselhar esta leitura à mocidade, parece-me mais importante
afastar dela todas as deste género. A época em que tal leitura
pode deixar de ser perigosa e tornar-se útil parece-me ter sido
bem escolhida, para o seu sexo, por uma boa mãe não apenas
inteligente, mas de inteligência bem guiada. "Julgo", me dizia
ela, depois de ter lido o manuscrito desta correspondência,
"que prestarei um bom serviço a minha filha, dando-lhe este livro
no dia do seu casamento." Se todas as mães de família pensarem
isto da obra, felicitar-me-ei eternamente por tê-la publicado.
Mas, partindo ainda desta suposição favorável, afigura-se-me
sempre que esta colecção deve agradar a pouca gente. Os
homens e as mulheres de costumes depravados terão interesse
em denegrir uma obra que pode ser-lhes prejudicial; e como não
lhes falta astúcia, talvez se lembrem de pôr do seu lado os rigoristas,
alarmados pelo quadro de maus costumes que não houve
receio de apresentar-lhes. Os que se julgam espíritos fortes não
terão qualquer interesse por uma mulher devota, que por isso
mesmo será para eles uma mulher sem importância, enquanto
que os devotos ficarão descontentes por verem sucumbir a virtude,
queixando-se do fraco poder com que é mostrada a religião.
Por sua vez, as pessoas de gosto delicado hão-de enfastiar-se
com o estilo demasiado simples e defeituoso de algumas
destas cartas, enquanto que o comum dos leitores, seduzido
pela ideia de que tudo o que é impresso é o fruto de um trabalho,
julgará ver em algumas outras a maneira dificilmente conseguida
de um autor que se mostra por detrás da personagem
que fala a seu mandado.
Enfim, talvez venha a dizer-se, na generalidade, que cada
coisa não vale senão no lugar onde está colocada; e que, se ordinariamente
o estilo demasiado castigado dos autores tira de facto
toda a graça às cartas de sociedade, as negligências destas se
tornam verdadeiros erros e as tornam insuportáveis, uma vez
entregues à publicação.
Confesso com sinceridade que todas estas censuras podem
ter fundamento; creio também que me seria impossível responder-lhes,
e mesmo sem ir além da extensão de um prefácio. Mas
deve compreender-se que, se me fosse necessário responder a
tudo, seria isso sinal de que a obra não responderia a nada; e
que, se eu assim o pensasse, teria suprimido ao mesmo tempo o
prefácio e o livro.

PRIMEIRA PARTE

CARTA I

CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY

no convento das Usulinas de...

Bem vês, minha boa amiga, que cumpro a minha palavra, e


que as toucas e laços não ocupam todo o meu tempo; sempre
me há-de ficar algum para ti. Mas olha que só hoje vi mais adereços
do que nos quatro anos que passámos juntas; e creio que a
orgulhosa Tanvillel terá maior aborrecimento com a minha
primeira visita, em que eu conto perguntar por ela, do que ela
pensou que nos causaria todas as vezes que vinha ver-nos
in fiorch.
A Mamã consultou-me sobre todos os pormenores; trata-me
muito menos como pensionista do que noutro tempo.
Tenho uma criada de que disponho, e escrevo-te a uma secretária
muito bonita, de que possuo a chave, e onde posso fechar
tudo o que quiser. A Mamã disse-me que a verei todos os dias
logo que ela se levante; que bastará que eu esteja penteada para
jantar, porque estaremos sempre sós, e que então ela me dirá a
hora em que devemos juntar-nos à tarde. O resto do tempo está
à minha disposição, e tenho a minha harpa, o meu desenho e
livros como no convento; só não estará a madre Perpétua para
ralhar comigo, e dependerá apenas de mim estar sempre sem
fazer nada: mas como não tenho a minha Sofia para conversar e
para rir, prefiro então ocupar-me dela.
Ainda não são cinco horas; não devo estar com a Mamã senão
às sete: ora aqui está um grande intervalo, para o caso em
que tivesse alguma coisa a dizer-te! Mas ainda não me falaram

* Pensionista do mesmo convento.

de nada; e sem os preparativos que vejo fazer, e a quantidade de


costureiras que vêm por minha causa, julgaria que ninguém
pensa em casar-me, e que é mais um disparate da boa Josefina.
Mas a verdade é que a Mamã me disse tantas vezes que uma
menina deve ficar no convento até casar, que julgo que Josefina
tem razão, visto que ela me fez sair de lá.
Acaba de parar uma carruagem à porta, e a Mamã mandou-me
que fosse ter com ela imediatamente. Se fosse o senhor?
Ainda não estou vestida, a minha mão treme e o meu coração
bate. Perguntei à criada de quarto se sabia quem estava com
minha mãe: "Ora", disse ela, "é o senhor C..." e ria. Oh! Creio
que é ele. Voltarei com certeza a contar-te o que se passou. O
nome já eu sei. Não devo fazer esperar. Adeus, até daqui a um
momento.
Como te vais rir da pobre Cecília! Oh! Como fiquei envergonhada!
Mas tu terias caído como eu. Quando entrei nos aposentos
da Mamã, vi um senhor vestido de preto, de pé, por
detrás dela. Cumprimentei-o o melhor que pude e fiquei sem me
poder mexer do meu lugar. Podes imaginar como eu o examinava!
"Senhora", disse ele a minha mãe, saudando-me, "trata-se
na verdade de uma menina encantadora, e sinto melhor do que
nunca o valor dos vossos obséquios". A estas palavras tão positivas"
tomou-me um tal tremor que não me podia suster; deparei
com uma poltrona e sentei-me nela, toda vermelha e confusa.
Mal eu me tinha sentado, eis que o homem se lança a meus
pés. Então a tua pobre Cecília perdeu a cabeça; eu estava, como
disse a Mamã, verdadeiramente espavorida. Levantei-me lançando
um grito agudíssimo;... olha, como naquele dia do trovão.
A Mamã soltou uma gargalhada e disse-me: "Então, que
tem? Sente-se e dê o seu pé a esse senhor." Na verdade, minha
querida amiga, o senhor era um sapateiro. Não posso dizer-te
como fiquei envergonhada; por felicidade só ali estava a Mamã.
Julgo que, quando for casada, não voltarei a servir-me daquele
sapateiro.
Hás-de convir que já sei muitas coisas! Adeus. São perto de
seis horas, e a minha criada de quarto disse-me que tenho de me
vestir. Adeus, minha querida Sofia; gosto tanto de ti como
quando estava no convento.

1 Rodeira do convento.

P. S . - Não sei por quem enviar esta carta; por isso espero
que Josefina venha.

Paris, 3 de Agosto de 17* *.


CARTA II

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

no castelo de..

Volte, meu caro Visconde, volte; que faz o senhor, que pode
o senhor fazer em casa de uma velha tia cujos bens lhe estão
garantidos? Parta imediatamente; é-me preciso aqui. Tive uma
excelente ideia, e desejo confiar-lhe a execução. Estas palavras
deveriam bastar-lhe; e, muito honrado pela minha escolha, devia
vir, com solicitude, receber de joelhos as minhas ordens.
Mas o senhor abusa das minhas bondades, mesmo depois que
deixou de aproveitá-las; e na alternativa de um ódio eterno ou
de uma excessiva indulgência, a sua felicidade quer que a minha
bondade a conduza. Desejo pois instruí-lo sobre os meus projectos:
mas jure-me que como fiel cavaleiro não correrá nenhuma
aventura sem que esta seja levada ao fim. Ela é digna de um herói:
o senhor servirá o amor e a vingança; será enfim uma astúcia
a mais a pôr nas suas memórias: sim, nas suas memórias,
pois eu quero que elas sejam publicadas um dia, encarrego-me
de as escrever. Mas deixemos isso, e voltemos ao que me preocupa.

Madame de Volanges vai casar a filha: é ainda um segredo;


mas desde ontem que estou na posse dele. E quem julga que ela
escolheu para genro? O Conde de Gercourt. Quem diria que eu
viria a ser prima de Gercourt? Sinto-me possuída de tal furor!...
Pois bem! Não adivinhou ainda? Oh, inteligência lenta! Já lhe
perdoou, pois, a aventura da Intendente? E eu, não tenho razões
para me queixar dele mais ainda, seu monstro? Mas vou-me
acalmar, e a esperança de me vingar lança a serenidade na minha
alma.
Decerto já se tem aborrecido cem vezes, tal como eu, com a
importância que Gercourt atribui à sua próxima conquista, e
com a tola presunção que o dispõe a crer que evitará a sorte inevitável.
Conhece as suas ridículas prevenções a favor das educações
claustrais, e o seu preconceito, ainda mais ridículo, em relação
à modéstia das louras. Eu apostaria, de facto, que, apesar
das sessenta mil libras de renda da pequena Volanges, ele nunca
faria esse casamento se ela fosse morena, ou se não tivesse estado
no convento. Provemos-lhe pois que é apenas um tolo; com
certeza há-de sê-lo um dia, não é isso que me preocupa: mas o
agradável seria que ele começasse por aí. Como nós nos divertiríamos
no dia seguinte ouvindo-o gabar-se, pois ele há-de gabar-se;
e depois, se o Visconde chegar a instruir essa rapariguinha,
será preciso muito pouca sorte se o Gercourt não se tornar
como qualquer outro, a fábula de Paris.
Aliás, a heroína deste novo romance merece todos os seus
cuidados: é na verdade bonita; tem apenas quinze anos, é um
botão de rosa; acanhada, de facto, como já se não usa, e de
modo nenhum afectada: mas vós, os homens, não temeis isso;
além do mais, é senhora de certo olhar langoroso que na verdade
promete muito. Acrescente a tudo isto que sou eu que a recomendo:
não tem mais que agradecer-me e obedecer.
Receberá esta carta amanhã de manhã. Exijo que amanhã
às sete horas da tarde esteja em minha casa. Não receberei ninguém
senão às oito, nem mesmo o Cavaleiro reinante: esse não
tem cabeça para tamanha empresa. Bem vê que o amor não me
cega. Às oito horas outorgo-lhe a liberdade, e às dez voltará

* Para entender esta passagem, deve saber-se que o Conde de Gercourt


tinha deixado a Marquesa de Merteuil pela Intendente de..., que lhe tinha
sacrificado
o Visconde de Valmont, e que foi então que a Marquesa e o Visconde se
ligaram um ao outro. Como esta aventura é muito anterior aos acontecimentos
de que tratam estas cartas julgou-se dever suprimir toda a correspondência que
com ela se liga. (N. do A.)

para cear com o belo objecto, pois a mãe e a filha ceiam sempre
em minha casa. Adeus; passa do meio-dia, em breve deixarei de
me ocupar do Visconde.

Paris, 4 de Agosto de 17* *

CARTA III

CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY

Ainda não sei nada, minha boa amiga. A Mamã tinha ontem
muita gente a cear. Apesar do interesse que tinha em examinar,
os homens principalmente, aborreci-me muito. Toda a gente,
homens e mulheres, olhava muito para mim, e depois punham-se
a falar ao ouvido; e eu bem via que era de mim que falavam.
Isto fazia-me corar; era coisa em que eu não tinha mão.
Bem queria impedi-lo, pois reparei que, quando olhavam para
as outras mulheres, elas não coravam; ou talvez fosse a pintura
que não me deixava ver o seu embaraço, pois deve ser muito difícil
deixar de corar quando um homem nos olha fixamente.
O que mais me inquietava era não saber o que pensavam a
meu respeito. Creio no entanto ter ouvido duas ou três vezes a
palavra bonita; mas ouvi muito distintamente dizer acanhada. E
isso deve ser verdade, pois a senhora que pronunciava essa palavra
é parente e amiga de minha mãe. Pareceu-me mesmo que de
repente tinha sentido amizade por mim. Foi a única pessoa que
falou comigo um pouco durante toda a noite. Amanhã ceamos
em casa dela.
Ouvi ainda, depois da ceia, um homem que estou certa que
falava de mim, e que dizia a outro: "É preciso deixar amadurecer,
veremos este Inverno." Talvez seja esse que deve casar comigo;
mas sendo assim, não será antes de quatro meses! Bem
desejaria saber de que se trata.
Chegou agora Josefina, e diz-me que está com pressa. Mas
quero contar-te ainda uma das minhas acanhezas. Oh, creio que
essa senhora tem razão!
Depois da ceia puseram-se a jogar. Eu fiquei perto da
Mamã; não sei como isso aconteceu, mas adormeci quase a seguir.
Acordou-me uma estrepidosa gargalhada. Não sei se riam de
mim, mas assim o creio. A Mamã permitiu que me retirasse, e
com isso deu-me grande prazer. Imagina que passava das onze
horas. Adeus, minha querida Sofia; ama sempre muito a tua
Cecília. Podes estar certa de que a sociedade não é tão divertida
como a imaginávamos.
Paris, 4 de Agosto de 17* *

CARTA IV

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

em Paris

As suas ordens são encantadoras; e a sua maneira de as dar


é mais amável ainda. A minha amiga poderia fazer amar o despotismo.
Não é a primeira vez, como sabe, que eu lamento não
ser já o seu escravo; e por muito monstro que diga que eu sou,
não recordo nunca sem prazer o tempo em que me honrava com
epítetos mais doces. Muitas vezes mesmo desejo voltar a merecê-los,
e acabar por dar, a seu lado, um exemplo de constância
ao mundo. Mas outros interesses mais altos nos chamam: conquistar
é o nosso destino. É preciso segui-lo. Talvez ao fim do
caminho voltemos a encontrar-nos; pois, seja dito sem que se
zangue, minha bela Marquesa, a verdade é que a senhora me
segue com um passo pelo menos igual. E visto que, separando-nos
para a felicidade do mundo, cada um de nós prega por seu
lado a sua fé, parece-me que, nesta missão de amor, a minha
amiga faz mais prosélitos do que eu. Conheço o seu zelo, o seu
ardente fervor. E se Deus nos julgasse segundo as nossas obras,
a senhora seria um dia a padroeira de alguma grande cidade,
enquanto que o seu amigo seria quando muito um santo de aldeia.
Admira-se desta linguagem, não é verdade? Mas há oito
dias que eu não ouço nem falo outra; e é para me aperfeiçoar
nela que me vejo forçado a desobedecer-lhe.
Não se zangue e ouça-me. Depositária de todos os segredos
do meu coração, vou confiar-lhe o maior projecto que jamais
formei. Que me propõe a minha amiga? Seduzir uma jovem que não
viu nada, que não conhece nada; que, por assim dizer, me
seria entregue sem defesa; que com certeza se embriagará com
uma primeira homenagem, e que será levada mais pela curiosidade
do que pelo amor. Há vinte homens que nessa empresa seriam
tão bem sucedidos como eu. Já não acontece o mesmo com
a empresa que me preocupa; o seu êxito valer-me-á tanto prazer
como glória. O amor que prepara a minha coroa hesita ele próprio
entre a mirta e o loureiro, ou antes os reunirá para honrar o
meu triunfo. Até a minha boa amiga será tomada de um santo
respeito, e dirá com entusiasmo: "É este o homem segundo o
meu coração. "
A minha amiga conhece a mulher do Presidente Tourvel, a
sua devoção, o seu amor conjugal, os seus princípios austeros.
Eis o alvo do meu ataque; eis o inimigo digno de mim; eis o fim
que eu pretendo atingir:

Et si de l'obtenir ce n'emporte le prix,


J'aurais du moins !honneur de l'avoir entrepris.

É permitido citar maus versos, quando são de um grande


poeta.

; Como deve saber, o Presidente de Tourvel está em Borgonha,


seguindo um grande processo (espero fazer-lhe perder outro
mais importante). A sua inconsolável metade deve passar
aqui todo o tempo desta aflitiva viuvez. Uma missa por dia, algumas
visitas aos pobres da região, orações de manhã e à noite,
passeios solitários, piedosas conversas com a minha velha tia, e
uma vez por outra um triste jogo de whist, deviam ser as suas
únicas distracções. Estou-lhe preparando outras mais eficazes.
O meu anjo bom conduziu-me aqui para a sua felicidade e para
minha. Insensato! Eu lamentava as vinte e quatro horas que ia
sacrificar em consideração aos respeitos familiares que são de
uso. Como eu seria castigado se me obrigassem a voltar a Paris!
Felizmente são precisas quatro pessoas para jogar o whist; e
como não há aqui mais ninguém além do prior do lugar, a

* E se eu não conseguir o prémio de o obter, Terei ao menos a honra de o


haver tentado.
La Fontaine. (N. do A.)

minha eterna tia instou muito comigo para que eu lhe sacrificasse
alguns dias. Já adivinhou que acedi. Não imagina os mimos que
ela me prodigaliza desde esse instante, e principalmente como
ela está impressionada por me ver assistir regularmente às suas
orações e à missa. Nem por sombras lhe passa pela cabeça qual
a divindade que eu ali vou adorar.
E aqui estou eu, há quatro dias, entregue a uma paixão forte:
A minha amiga sabe com que força eu sei desejar, e como os
obstáculos pesam pouco para mim; mas o que ignora é quanto a
solidão vem reforçar o ardor dos desejos. Apenas uma ideia me
ocupa; penso nela de dia, sonho com ela de noite. É-me absolutamente
necessário possuir essa mulher, para me salvar do ridículo
de estar apaixonado por ela; pois aonde não conduz um
desejo contrariado? Ó delicioso prazer! Eu te imploro para a
minha felicidade, mas principalmente para o meu descanso.
Como nós os homens somos felizes por as mulheres se defenderem
tão mal! Sem isso, seríamos junto delas apenas tímidos escravos.
Neste momento sinto-me possuído de reconhecimento
pelas mulheres fáceis, o que, naturalmente, me conduz a seus
pés. Ante eles me ajoelho para obter o meu perdão, e nessa postura
termino esta longa carta. Adeus, minha amiga: longe de
mim qualquer reserva.

Do castelo de, 5 de Agosto de 17 * *

CARTA V

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Sabe, Visconde, que a sua carta é de uma insolência rara, e


que eu poderia ter-me zangado? Contudo, ela provou-me claramente
que o Visconde perdeu a cabeça e só isso o salvou da
minha indignação. Amiga generosa e sensível, esqueço a injúria
que me dirige para me ocupar apenas do perigo que corre; e
embora seja muito aborrecido raciocinar, cedo à necessidade
que tem neste momento dos meus raciocínios.
O Visconde, possuir a Presidente de Tourvel! Mas que ridículo
capricho! Reconheço bem a sua má cabeça que não sabe
desejar senão o que crê não poder obter. Que tem pois essa
mulher? Traços regulares, se quiser, mas nenhuma expressão;
sofrível de corpo, mas sem graça; vestida sempre de modo que
faz rir! Com os seus molhos de lacinhos no pescoço e o corpete
que lhe chega ao queixo! Digo-lho como amiga, não lhe seria
preciso ter duas mulheres como aquela para perder toda a minha
consideração. Lembre-se do dia da festa de caridade em
Saint-Roch, em que o Visconde tanto me agradeceu por eu lhe
ter proporcionado tal espectáculo. Parece que ainda a estou
vendo, dando a mão àquele trangalhadanças de cabelos compridos,
pronta a cair a cada passo, tendo sempre o cesto de quatro
varas em cima da cabeça de alguém, e corando cada vez que a
cumprimentavam. Quem lhe diria então que chegaria a desejar
essa mulher? Vamos, Visconde, tenha a bondade de corar e voltar
a si. Prometo-lhe guardar segredo.
E depois, veja a série de coisas desagradáveis que o esperam!
Que rival terá a combater? Um marido! Não se sente humilhado
só ante esta palavra? Que vergonha se for mal sucedido! E
mesmo no caso de triunfar, que pequena glória o espera! Digo-lhe
mais: não conte tirar dali nenhum prazer. É isso possível
com as mulheres recatadas? Quero dizer com as que o são de
, boa fé: reservadas até no meio do prazer, não podem oferecer
senão meios gozos. O abandono inteiro de si mesma, o delírio
da volúpia em que o prazer se depura pelo seu excesso, estas
vantagens do amor não são conhecidas por tais mulheres. Aqui
lho profetizo: na mais feliz das suposições, a sua Presidente julgará
ter feito tudo pelo Visconde tratando-o como seu marido, e
na intimidade conjugal, mesmo a mais terna, há sempre dois.
Neste caso é muito pior ainda; essa virtuosa senhora é devota, e
a sua devoção é das que condenam a uma eterna infância. É
possível que o Visconde venha a saltar o obstáculo, mas não se
gabe de vir a destruí-lo: vencedor do amor de Deus, não o será
do medo do Diabo; e quando, tendo a sua amante nos braços,
tivesse conhecido mais cedo essa mulher, é possível que fizesse
dela qualquer coisa; mas tem já vinte e dois anos e há cerca de
dois que é casada. Creia-me, Visconde, quando uma mulher se
encodeou a tal ponto, é preciso abandoná-la à sua sorte; nunca
há-de passar de uma espécie.
No entanto, é por esse belo objecto que o Visconde recusa
obedecer-me; que se enterra no túmulo de sua tia, e que renuncia
à aventura mais deliciosa e mais de molde a proporcionar-lhe
honrarias.Por que fatalidade será que Gercourt tem sempre
qualquer vantagem sobre o Visconde? Falo-lhe sem má disposição,
acredite: mas,neste momento,estou tentada a crer que o
senhor não merece a sua reputação; estou tentada principalmente
a retirar-lhe a minha confiança.Nunca poderei acostumar-me
a dizer os meus segredos ao amante de Madame de
Tourvel.
Saiba no entanto que a pequena Volanges já fez andar uma
cabeça à roda.O jovem Danceny está louco por ela; e na verdade
ela canta melhor do que é dado a uma pensionista de convento.
É quase certo que ensaiam muitos duetos e ia jurar que de
bom grado ela se prestaria ao uníssono; mas este Danceny é
uma criança que perderá o seu tempo em galanteios sem chegar
a nada de positivo.Pelo seu lado a pequenota é bastante arisca;
e,seja o que for que aconteça,sempre há-de ser menos divertido
do que se o Visconde se resolvesse a intervir.Por isso estou
aborrecida e com certeza o Cavaleiro ouvirá ralhar à sua chegada.
Eu aconselho-o a ser submisso,pois neste momento não me
custaria nada romper com ele.Estou certa de que,se eu tivesse a
boa lembrança de o deixar neste momento,ele ficaria cheio de
desespero; e nada me diverte tanto como um desespero amoroso.
Chamar-me-ia pérfida,e essa palavra sempre me deu prazer; ,
depois da palavra "cruel",é a mais doce para os ouvidos de
uma mulher,e a que dá mais trabalho a merecer.Falando sério
vou ocupar-me deste rompimento.Aqui está um acontecimento
de que o Visconde será o causador! Ponho-o sobre a sua consciência.
Adeus.Recomende-me às orações da sua Presidente.
Paris, 7 de Agosto de 17* *

CARTA VI

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

É pois certo não existir mulher alguma que não abuse do


ascendente que conquistou! E mesmo a senhora, a quem tantas
vezes chamei indulgente amiga, deixou enfim de o ser, e não
receia atacar-me no objecto das minhas afeições! Com que traços
ousou pintar Madame de Tourvel!... Que homem não teria
pago com a vida essa insolente audácia? Que outra mulher que
não fosse a Marquesa teria podido enunciá-la sem suscitar da
minha parte uma pequena vingança? Por favor, não me submeta
a tão rudes provas; não garanto que as possa suportar. Em
nome da amizade, espere que eu possua essa mulher, se quiser
dizer mal dela. Não sabe que só a volúpia tem o direito de dissipar
a cegueira do amor?
Mas que digo eu? Acaso Madame de Tourvel tem necessidade
de ilusão? Não; para ser adorável basta-lhe ser ela própria.
Censura-a a Marquesa por se vestir mal; estou de acordo: todos
os vestuários a prejudicam; tudo o que a esconde a desfeia. É no
abandono do trajo caseiro que ela é verdadeiramente encantadora.
Graças aos calores opressivos que sofremos, um simples
roupão de pano deixa-me ver as suas formas redondas e flexíveis.
Uma ligeira musselina cobre-lhe a garganta; e os meus
olhares furtivos, mas penetrantes, descobriram-lhe já as linhas
sedutoras. O seu rosto, diz a Marquesa, não tem nenhuma expressão.
E que poderia exprimir, nos momentos em que nada
lhe fala ao coração? Não, sem dúvida, ela não tem, como as
presumidas mulheres do nosso meio, aquele olhar mentiroso
que nos seduz algumas vezes e nos engana sempre. Não sabe
cobrir o vazio de uma frase com um sorriso estudado; e embora
tenha os mais belos dentes do mundo, não costuma rir senão do
que a diverte. No entanto é preciso ver como, nos jogos engraçados,
ela oferece a imagem de uma alegria ingénua e franca!
Como, junto de um infeliz que ela se apressa a socorrer, o seu
olhar anuncia o contentamento puro e a bondade compadecida!
É preciso ver, principalmente à menor palavra de elogio ou de
afago, desenhar-se, no seu rosto celeste, o comovente embaraço
de uma modéstia que não é fingida. Modesta e devota, é-o sem
dúvida, mas daí a julgá-la fria e inanimada!... O que penso dela
é bem diferente. Que extraordinária sensibilidade não deve ter
para beneficiar com ela o marido, e para amar sempre um ser
sempre ausente! Que prova mais forte se pode desejar? Todavia,
consegui descobrir mais uma.
Quando há dias saímos a passear, arranjei as coisas de maneira
que nos foi necessário transpor um barranco; e, embora
muito lesta, Madame de Tourvel é ainda mais tímida. É fácil de
ver que uma mulher virtuosa tem sempre receio de saltar o barranco.
Foi-lhe necessário confiar-se à minha pessoa. Tive nos
meus braços essa mulher modesta. Os nossos preparativos e a
passagem da minha velha tia tinham feito rir às gargalhadas a
jovial devota: mas, no momento em que a agarrei, por um movimento
propositadamente desastrado, os nossos braços enlaçaram-se
mutuamente. Apertei o seu seio contra o meu; e, nesse
curto intervalo, senti o seu coração bater mais rápido. O rosto
coloriu-se-lhe de uma adorável vermelhidão, e no seu pudibundo
embaraço pude ver que o seu coração tinha palpitado de
amor e não de receio. Entretanto minha tia enganou-se - como
a minha amiga - e disse: "A criança teve medo"; mas a encantadora
ingenuidade da criança não lhe permitiu a mentira, e fez
que ela respondesse singelamente: "Oh! Não, mas.... Esta simples
palavra esclareceu-me. Desde aquele momento, a doce esperança
substitui a cruel inquietação. Possuirei esta mulher;
hei-de arrebatá-la ao marido, que a profana: ousarei roubá-la
ao próprio Deus que ela adora. Que delícia ser alternadamente
o objecto e o vingador dos seus remorsos! Longe de mim a ideia
de destruir os preconceitos que a rodeiam! Servirão para aumentar
a minha felicidade e a minha glória. Que creia na virtude,
mas que a sacrifique por mim; que as suas faltas a aterrem
sem poder evitá-las; e que, agitada de mil terrores, ela não possa
esquecê-los, vencê-los senão nos meus braços. Consentirei então
que ela me diga: "Adoro-te" ; ela só, entre todas as mulheres, será
digna de pronunciar essa palavra. Eu serei, verdadeiramente,
o Deus que ela prefere.
Falemos de boa fé: nas nossas combinações tão frias como
fáceis, aquilo a que chamamos felicidade é apenas prazer. Poderei
confessar-lho? Pensava eu que o meu coração estava gasto, e,
encontrando em mim apenas os sentidos, lastimava a minha
velhice prematura. Madame de Tourvel restituiu-me as encantadoras
ilusões da juventude. Junto dela, não tenho necessidade
de prazer para ser feliz. A única coisa que me mete medo é o
tempo que me vai tomar esta aventura; pois não ouso deixar
nada ao acaso. Muito embora me lembrem as minhas audácias
bem sucedidas, não posso resolver-me a pô-las em prática. .Para
que eu seja verdadeiramente feliz; é preciso que ela se dê; e não é
pequena empresa.
Estou certo de que a Marquesa admiraria a minha prudência.
Ainda não pronunciei a palavra amor; mas já chegámos às
palavras confiança e interesse. Para a enganar o menos possível,
e principalmente para prevenir o efeito das murmurações que
poderiam chegar aos seus ouvidos, descrevi-lhe eu próprio,
como acusando-me, alguns dos meus defeitos mais conhecidos.
A Marquesa havia de rir se visse a candura com que ela me faz
sermões. Diz ela que quer converter-me. Nem ela imagina ainda
o que lhe virá a custar tal tentativa. Está longe de pensar que
defendendo, como ela diz, as infortunadas que eu levei à perdição,
advoga de antemão a sua própria causa. Esta ideia veio-me
ontem no meio de uma das suas prédicas, e eu não pude recusar-me
ao prazer de a interromper, para lhe afirmar que falava
como um profeta. Adeus, minha bela amiga. Bem vê que não
estou perdido sem recurso.

* P. S . - A propósito, esse pobre Cavaleiro, matou-se de desespero?


Em boa verdade, a Marquesa é uma pessoa cem vezes
pior do que eu, e sentir-me-ia humilhado se tivesse amor-próprio.

Do Castelo de..., 9 de Agosto de 17

CARTA VII
CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY

Se nada te disse do meu casamento, é porque não estou mais


adiantada do que no primeiro dia. Acostumo-me a não pensar
nisso e sinto-me muito bem no meu género de vida. Estudo muito
canto e harpa; parece-me que gosto mais desses estudos desde
que não tenho professor, ou antes, desde que tenho um professor
melhor. O Cavaleiro Danceny, aquele senhor de que falei,
e com quem cantei em casa de Madame de Merteuil, tem a bondade
de vir aqui todos os dias, e de cantar comigo horas inteiras.
É extremamente amável. Canta como um anjo, e compõe
lindas músicas para as quais escreve também as palavras. É
pena que ele seja Cavaleiro de Malta! Acredito que, se ele se
casasse, a mulher seria muito feliz... É cativante a doçura do seu
trato. Diz coisas sem ar de galanteio, e no entanto tudo o que ele
diz agrada. Conversa muito comigo, sobre a música e sobre outras
coisas; mas sabe insinuar nas suas críticas tanto interesse e
animação, que é impossível não lhe agradecer. Simplesmente,
quando olha para nós, tem o ar de dizer qualquer coisa que nos
prende. Além de tudo isto, é muito paciente. Ontem, por exemplo,
tinha sido convidado para um grande concerto; preferiu
ficar todo o serão comigo e com a Mamã. Isto deu-me muito
prazer, pois, quando ele não está, ninguém fala comigo e aborreço-me;
ao passo que quando ele está presente, cantamos em
conjunto e conversamos. Tem sempre alguma coisa para me
dizer. Ele e Madame de Merteuil são as duas únicas pessoas
amáveis que encontrei. Mas tenho de dizer-te adeus, minha querida
amiga: prometi que teria hoje estudada uma arieta de
acompanhamento muito difícil, e não quero faltar à minha palavra.
Vou lançar-me ao estudo até que ele venha.

7 de Agosto de 17 * *

CARTA VIII

A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE VOLANGES

Ninguém pode ser mais sensível do que eu, senhora, à confiança


que me testemunhais, nem ter maior interesse do que eu
pelo futuro casamento de Mademoiselle de Volanges. De toda a
minha alma lhe desejo uma felicidade da qual não duvido que
ela seja digna, e para a qual contribuirá sem dúvida a prudência
de que tendes dado prova. Não conheço o senhor Conde de
Gercourt; mas, honrado com a vossa escolha, só posso ter dele
uma ideia muito lisonjeira. Limito-me, senhora, a desejar para
esse casamento um resultado tão feliz como o do meu, que é
igualmente obra vossa, e pela qual cada vez sinto maior reconhecimento.
Que a felicidade de vossa filha seja a recompensa
da que conseguistes para mim; e possa a melhor das amigas ser
também a mais feliz das mães!
Sinto-me verdadeiramente penalizada por não poder oferecer-vos
de viva voz a homenagem deste voto sincero, nem travar
conhecimento com Mademoiselle de Volanges tão cedo como
desejais. Depois de ter beneficiado das vossas bondades verdadeiramente
maternais, tenho o direito de esperar dela a amizade
terna de uma irmã. Rogo-vos, senhora, que lhe façais este pedido
da minha parte, esperando estar à altura de merecê-la.
Conto ficar no campo durante todo o tempo da ausência do
Senhor de Tourvel. Serve-me esse tempo para gozar e aproveitar
da companhia de Madame de Rosemonde. Esta senhora mantém
sempre o seu encanto; a idade nada lhe fez perder. Conserva
toda a sua memória e animação. Só o seu corpo tem oitenta e
quatro anos; o espírito tem apenas vinte.
O nosso isolamento é alegrado por seu sobrinho, o Visconde
de Valmont, que teve a bondade de nos sacrificar alguns dias.
Conhecia-o apenas pela sua reputação, a qual me não fazia desejar
conhecê-lo melhor; mas parece-me que vale mais do que
ela. Aqui, onde turbilhão do mundo não o prejudica, diz coisas
razoáveis com uma espantosa facilidade e acusa-se do mal que
tem praticado com uma candura rara. Fala-me sempre com
muita confiança e eu prego-lhe os meus sermões com muita severidade.
Vós, que o conheceis, devereis convir que seria uma
bela conversão a fazer: mas eu não tenho dúvidas de que, apesar
das suas promessas, oito dias de Paris lhe façam esquecer todas
as minhas prédicas. A sua estada aqui será pelo menos um intervalo
na sua conduta habitual: e eu creio que, atendendo à sua
maneira de viver, o que ele pode fazer de melhor é não fazer
nada. Sabendo que estou ocupada a escrevermos, encarregou-me
de vos apresentar as suas homenagens respeitosas. Aceitai
também as minhas com a bondade que vos conheço, e não duvideis
nunca dos sentimentos sinceros com que tenho a honra de
ser, etc.
Do castelo de..., 9 de Agosto de 17.

CARTA IX

MADAME DE VOLANGES A PRESIDENTE DE TOURVEL

Nunca duvidei nunca, minha jovem e bela amiga, nem da


amizade que tendes por mim, nem do interesse sincero que tomais
em tudo que me diz respeito. Não é para esclarecer esse
ponto, que espero esteja assente para sempre entre nós, que respondo
à vossa resposta: mas julgo que não poderei dispensar-me
de conversar convosco a respeito do Visconde de Valmont.
Confesso que não esperava vir a encontrar o nome desse
senhor nas vossas cartas. De facto, que pode haver de comum
entre vós e ele? Vê-se bem que não conheceis esse homem; pois
onde poderíeis ter aprendido a fazer ideia do que é a alma dum
libertino? Falais-me da sua rara candura. Ah, sim: a candura de
Valmont deve ser de facto muito rara. Ele é ainda mais falso e
perigoso do que amável e sedutor, e nunca, desde que atingiu a
idade viril, nunca deu um passo ou disse uma palavra sem ter
um projecto, e nunca teve um projecto que não fosse criminoso
ou desonesto. Minha amiga, conheceis-me bem; bem sabeis
que, entre as virtudes que me empenho em adquirir, a indulgência
não é daquelas que mais prezo. Por isso, se Valmont fosse
arrastado por paixões ardentes; se, como tantos outros, ele tivesse
sido seduzido pelos erros da juventude, embora censurasse
a sua conduta, eu lamentaria a sua pessoa, e esperaria, em silêncio,
a hora em que um regresso feliz o fizesse reconquistar a estima
das pessoas honestas. Mas Valmont não é capaz de tal: o seu
comportamento é o resultado dos seus princípios. Sabe fazer o
cálculo do que um homem pode permitir-se de horrores sem se
comprometer; e para ser cruel e mau sem perigo, escolheu por
vítimas as mulheres. Não perderei tempo a contar as que ele
seduziu; mas quantas delas lançou na perdição?
Essas escandalosas aventuras não chegaram ao vosso conhecimento,
na vida recatada e simples que tendes levado. Poderia
contar-vos coisas que vos fariam estremecer; mas os vossos
olhos, puros como a vossa alma, seriam conspurcados por
semelhantes quadros. Estou certa de que Valmont não será para
vós um perigo, e por isso não tendes necessidade de semelhantes
armas para vos defenderdes. A única coisa que tenho a dizer-vos
é que, de todas as mulheres que ele distinguiu, com êxito ou
não, nenhuma deixou de ter motivo de queixa. Só a Marquesa
de Merteuil faz excepção a esta regra geral; só ela soube resistir-lhe
e desarmar a sua maldade. Confesso que esse momento
da vida da Marquesa é o que mais a honra a meus olhos: chega
para justificar plenamente aos olhos de todos de algumas inconsequências
que haveria a censurar-lhe quando do princípio da
sua viuvez.
Seja como for, minha boa amiga, o que a idade, a experiência
e principalmente a amizade me autorizam a dizer-vos, é que
na sociedade se começa a notar a ausência de Valmont; e que,
caso se venha a saber que ele ficou algum tempo como terceiro
entre sua tia e vós, a vossa reputação ficará entre as mãos dele.
E esta será a maior desgraça que pode acontecer a uma mulher.
Aconselho-vos pois a conseguir da tia que o não retenha por
mais tempo; e, se ele teimar em ficar, creio que não deveis
hesitar em ceder-lhe o lugar. Mas por que há-de ele ficar aí?
Que faz ele no campo? Se tivésseis alguém a espiar os seus passos,
estou certa de que descobriríeis que ele apenas escolheu um
asilo mais cómodo, para algumas negras acções que pensa praticar
por esses sítios. Mas, na impossibilidade de remediar o mal,
contentamo-nos em preservar-nos dele.
Adeus, minha boa amiga. O casamento de minha filha está
um pouco retardado. O Conde de Gercourt, que esperávamos
de um dia para o outro, mandou-me dizer que o seu regimento
vai para a Córsega; e, como há ainda alguma agitação devido à
guerra, ser-lhe-á impossível ausentar-se antes do Inverno. Isso
contraria-me; mas autoriza-me a esperar que teremos o prazer
de vos ver na boda, e aborrecia-me que tal acontecimento não
tivesse a vossa presença. Adeus; estou, para além das convenções
e sem reserva, inteiramente ao vosso dispor.

P. S . - Lembranças minhas para Madame de Rosemonde, a


quem aprecio tanto como ela merece.

1 de Agosto de 17* *

CARTA X

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Está amuado comigo, Visconde? Ou dar-se-á o caso que


tenha morrido? Ou, o que se pareceria muito com isso, não vive
senão para a sua Presidente? Essa mulher, que o faz reviver as
ilusões da juventude, dentro em pouco o fará reviver também os
ridículos preconceitos dessa idade. Eis o Visconde tímido e escravo;
o que vale tanto como estar apaixonado. Renunciou às
suas felizes temeridades. Ei-lo pois a conduzir-se sem princípios,
deixando tudo ao acaso, ou antes, ao capricho. Não lhe ocorreu
que o amor é, como a medicina, somente a arte de ajudar a
Natureza? Bem vê que estou a batê-lo com as suas armas; mas
não me sinto orgulhosa por isso, pois é bater num homem caído.
É preciso que ela se dê, diz-me o Visconde; oh !, sem dúvida,
é preciso. Ela há-de entregar-se como as outras, com a diferença
de que o fará de má vontade. Mas, para que ela acabe por se
entregar, o verdadeiro meio é começar por obrigá-la. A que
ponto esta ridícula distinção é um verdadeiro despropósito do
amor! Eu digo do amor: porque o Visconde está apaixonado.
Falar-lhe de maneira diferente seria traí-lo; seria esconder-lhe a
sua doença. Diga-me, pois, ó langoroso amante, julga ter violado
as mulheres que possuiu? Mas, por muito desejo que uma
múlher tenha de se entregar, por muito apressada que esteja,
ainda lhe é preciso um pretexto; e haverá algum mais cómodo
para nós do que aquele que nos dá a aparência de ceder à força?
Por mim, confesso-o, uma das coisas que mais me lisonjeiam é
um ataque vivo e bem feito, no qual tudo se sucede com ordem
embora com rapidez; que não nos põe nunca naquela penosa
confusão de termos nós próprias um desacerto de que ao contrário
devíamos aproveitar; que sabe manter o ar de violência
até nas coisas que concedemos, e lisonjear com habilidade as
nossas duas paixões favoritas, a glória da defesa e o prazer da
derrota. Convenho que esse talento, mais raro do que se supõe,
me deu sempre prazer, mesmo quando não chegou a seduzir-me,
e que algumas vezes me aconteceu render-me unicamente
como recompensa. Tal como nos nossos antigos torneios, a Beleza
dava o prémio do valor e da destreza.
Mas o senhor, o senhor que já não é o mesmo, conduz-se
como se tivesse medo de vencer. Oh! Desde quando é que viaja
por pequenas jornadas e por amigo, quando se quer chegar,
empregam-se cavalos de posta e toma-se a estrada principal!
Mas deixemos esse assunto, que me aborrece tanto mais quanto
me priva do prazer de o ver. Pelo menos escreva-me mais vezes
do que o faz, e ponha-me ao corrente dos seus progressos. Já
reparou que há mais de quinze dias que esta ridícula aventura o
preocupa, e que abandonou todo o convívio?
A propósito, o Visconde parece-se com aquelas pessoas que
mandam regularmente saber notícias dos seus amigos doentes,
mas que nunca esperam pela resposta. No final da sua última
carta, perguntava-me se o Cavaleiro tinha morrido. Não respondi,
e o Visconde não se inquietou mais por isso. Esqueceu
porventura que o amante é seu amigo nato? Mas tranquilize-se,
não morre; ou, se tivesse morrido, seria por excesso de alegria.
Aquele pobre Cavaleiro, como ele é terno! como ele é feito para o
amor! como ele sabe sentir vivamente! Isto põe-me a cabeça à
roda. Falando sério, a felicidade perfeita que ele encontra em ser
amado por mim liga-me verdadeiramente a ele.
No mesmo dia em que lhe escrevi dizendo que ia provocar o
rompimento, a que ponto o tornei feliz! No entanto, estava-me
ocupando dos melhores meios de o fazer desesperar, quando
mo anunciaram. Fosse capricho ou raciocínio, nunca ele me
pareceu tão bem. Recebi-o entretanto de mau humor. Ele esperava
passar duas horas comigo, antes que a minha porta se
abrisse para toda a gente. Disse-lhe que ia sair; perguntou-me
onde ia; recusei-me a dizer-lho. Ele insistiu. Onde o senhor não
estiver, repliquei-lhe eu, com azedume. Felizmente para ele, ficou
petrificado com esta resposta; pois, se ele tivesse dito uma
palavra, seguir-se-ia infalivelmente uma cena que teria precisamente
o rompimento que eu projectava. Admirada com o seu silêncio,
lancei os olhos sobre ele sem outro projecto, juro-lhe,
que o de ver a expressão com que ficara. Tornei a ver naquele
rosto encantador uma tristeza, ao mesmo tempo profunda e
terna, à qual o próprio Visconde tem de concordar que é difícil
resistir. A mesma causa produziu o mesmo efeito; fui vencida
pela segunda vez. Desde esse momento, só me ocupei da maneira
de evitar que ele pudesse achar nas minhas palavras qualquer
agravo. "Saio para tratar de um assunto", disse-lhe eu com um
ar um pouco mais doce, "e esse assunto diz-lhe respeito; mas
não me interrogue. Ceio em minha casa; volte, e saberá de que
". se trata." Foi então que ele recuperou a palavra: mas não lhe
permiti que fizesse uso dela. "Estou com muita pressa", continuei.
" Deixe-me; até logo à noite. " Beijou-me a mão e saiu.
Nesse momento, para o recompensar, ou talvez para me
recompensar a mim própria, resolvi dar-lhe a conhecer a minha
casinha, de cuja existência ele não suspeita. Chamo a minha fiel
Vitória. Veio-me a enxaqueca; deito-me para todos os meus
criados; e, ficando enfim só com a verdadeira, enquanto ela se
vestia de lacaio, disfarcei-me de criada de quarto. Em seguida
ela mandou vir um fiacre à porta do jardim, e partimos juntas.
Chegada àquele templo de amor, escolhi o roupão mais galante.
É um vestuário delicioso, de minha invenção: não deixa ver
nada, e faz adivinhar tudo. Prometo dar-lhe o modelo para a
sua Presidente, quando o Visconde a tiver tornado digna de o
usar.
Depois destes preparativos, enquanto Vitória se ocupava de
outros pormenores, li um capítulo do Sofá, uma carta de Heloisa
e dois contos de La Fontaine, para recordar os diferentes tons
que eu queria tomar. Entretanto o Cavaleiro chega à minha porta,
com a pressa que tem sempre. O porteiro não o deixa entrar,
e diz-lhe que adoeci: primeiro incidente. Entrega-lhe ao mesmo
tempo um bilhete meu, mas não com a minha letra, segundo a
minha regra de prudência. Ele abre-o, e encontra escrito pela
mão de Vitória: "Às nove em ponto, no Boulevard, em frente
dos cafés." Dirige-se para lá; e, ali, um pequeno lacaio que ele
não conhece, que ele julga pelo menos não conhecer, pois é
sempre Vitória, vem-lhe anunciar que é preciso mandar embora
a carruagem e segui-lo. Todas estas peripécias romanescas lhe
esquentavam a cabeça, e uma cabeça esquentada nada prejudica.
Por fim chega, e a surpresa e o amor causam nele um verdadeiro
encantamento. Para lhe dar tempo a recompor-se passeamos
um momento no parque; depois encaminho-o para casa.
Ele vê primeiro dois talheres postos; depois uma cama feita.
Passamos ao quarto de vestir, que estava em todo o seu esplendor.
Ali, metade por reflexão, metade por sentimento, passei os
meus braços em volta dele e deixei-me cair a seus pés: "Ó meu
amigo!", disse-lhe eu, "para poder preparar-te a surpresa deste
momento, censuro-me por te ter afligido com a aparência do
meu mau humor; por ter um instante velado o meu coração aos
teus olhares. Perdoa-me os agravos; quero expiá-los à força de
amor." O Visconde julgará do efeito deste discurso sentimental.
O feliz Cavaleiro levantou-me, e o meu perdão foi selado sobre
aquela otomana onde o Visconde e eu selámos tão alegremente
e da mesma maneira a nossa eterna separação.
Como tínhamos seis horas para passarmos juntos e eu tinha
resolvido que todo esse tempo fosse para ele igualmente delicioso,
moderei os seus transportes, e a amável coqueteria veio
substituir a ternura. Julgo que nunca pus tanto empenho em
agradar, e que nunca estive tão satisfeita de mim própria. Depois
da ceia, alternadamente criança e razoável, folgazã e sensível,
por vezes mesmo libertina, aprouve-me considerá-lo como
um sultão em meio do serralho, do qual eu era de cada vez uma
favorita diferente. Na verdade, ao passo que ele repetia as suas
homenagens, se elas eram sempre dirigidas à mesma mulher, era
sempre uma nova amante que as recebia.
Enfim, ao raiar do dia foi preciso separarmo-nos; e o que ele
me disse, o que ele fez mesmo para me provar o contrário, tudo
mostrava que a necessidade era maior que o desejo. No momento
em que saíamos e por último adeus, tomei a chave daquele
feliz refúgio, e pondo-lha entre as mãos, disse: "É só para si que
a tenho. é justo que seja o seu dono. O sacrificador deve dispor
do templo." Com esta habilidade preveni as reflexões que ele
poderia fazer sobre a propriedade, sempre suspeita, duma casa
pequena. Conheço-o bastante para estar certa de que não se
servirá dela senão para mim; e se eu tivesse a fantasia de lá ir
sem ele, sempre me restava outra chave. Ele queria à viva força
marcar data para lá voltarmos; mas eu amo-o ainda demasiado
para querer gastá-lo tão depressa. Só devemos permitir-nos excessos
com as pessoas que cedo queremos deixar. Ele não o sabe;
mas, felizmente para ele, eu sei-o por dois.
Reparo agora que são três da manhã, e que escrevi um volume,
quando formara o projecto de escrever apenas uma palavra.
Tal é o encanto da amizade confiante: é ela que faz que seja o
Visconde quem amo mais; mas, na verdade, o Cavaleiro é quem
mais me agrada.

12 de Agosto de 17* *

CARTA XI

A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE VOLANGES

A vossa severa carta ter-me-ia assustado, senhora, se, por


felicidade, eu não encontrasse aqui mais motivos de tranquilidade
do que os de temor que me ofereceis. Esse temível senhor de
Valmont, que deve ser o terror de todas as mulheres, parece ter
deposto as suas armas mortíferas antes de entrar neste castelo.
Longe de vir aqui formar os seus projectos, nem mesmo trouxe
quaisquer pretensões; e a qualidade de homem amável, que até
os seus inimigos lhe concedem, quase desaparece aqui, para não
deixar senão a de bom rapaz. Foi aparentemente o ar do campo
que produziu este milagre. O que posso assegurar-vos é que,
estando constantemente ao pé de mim, parecendo mesmo que
isso lhe agrada, não lhe escapou ainda uma palavra que se pareça
com o amor, nem uma dessas frases que todos os homens se
permitem, sem ter, como ele, o que é necessário para as justificar.
Nunca ele obriga àquela reserva na qual hoje é obrigada a
manter-se toda a mulher que se respeita, para conter os homens
que a rodeiam. Sabe não abusar da animação que inspira. É talvez
um pouco pródigo em louvores; mas é com tanta delicadeza
que o faz, que obrigaria a própria modéstia a habituar-se ao
elogio. Enfim, se eu tivesse um irmão, desejaria que ele fosse tal
como o senhor de Valmont se mostra aqui. Talvez muitas mulheres
desejassem da sua parte uma galanteria mais marcada; e
confesso que lhe estou infinitamente grata por ele me julgar de
uma forma que lhe permite não me confundir com elas.
Este retrato difere muito sem dúvida do que me fizestes; e,
apesar disso, ambos podem estar parecidos, se fixarmos as épocas.
Ele próprio concorda ter cometido muitos erros, e com certeza
lhe terão atribuído alguns outros. Mas até agora encontrei
poucos homens que falassem de mulheres honestas com mais
respeito, direi quase entusiasmo. Sob esse aspecto, vós mesma
me fizeste saber que ele não engana. A sua conduta em relação a
Madame de Merteuil é disso prova. Fala-nos muito dela; e é
sempre com tantos elogios e dando mostras de uma dedicação
tão verdadeira, que cheguei a crer, antes da recepção da vossa
carta, que aquilo que ele chamava amizade entre os dois fosse
realmente amor. Acuso-me desse julgamento temerário, o qual
foi tanto mais erróneo quanto é certo que ele mesmo tomou a
seu cargo, por várias vezes, o cuidado de a justificar. Confesso
que tomei por delicadeza o que da sua parte era sinceridade autêntica.
Não sei; mas parece-me que aquele que é capaz de uma
amizade tão contínua por uma mulher tão estimável, não é um
libertino sem resgate. Ignoro, no entanto, se o comportamento
recto que ele mantém aqui se deve a alguns projenos por estes
sítios, conforme a vossa suposição. É certo que por estas cercanias
há algumas mulheres interessantes; mas ele sai pouco, excepto
de manhã, e então diz que vai caçar. É verdade que raramente
traz caça; mas assegura que é desastrado nesse exercício.
Demais, o que ele faz lá por fora inquieta-me pouco; e se eu desejasse
sabê-lo, seria apenas para ter mais um motivo que me
aproximasse da vossa opinião ou que vos conduzisse à minha.
Acerca da vossa proposta de trabalhar no sentido de abreviar
o tempo que o senhor de Valmont conta aqui estar, parece-me
muito difícil ousar pedir a sua tia que não tenha o sobrinho
junto dela, tanto mais que gosta muito dele. Prometo-vos,
todavia, mas somente por deferência e não por necessidade,
aproveitar a primeira ocasião para fazer esse pedido, quer a
Madame de Rosemonde, quer a ele próprio. Quanto a mim, o
senhor de Tourvel é conhecedor do meu projecto de ficar aqui
até ao seu regresso, e havia de admirar-se, com razão, da ligeireza
que me fizesse mudar de projecto.
São bem longos, senhora, estes esclarecimentos; mas julguei
dever à verdade um testemunho favorável para o senhor de
Valmont, e do qual ele me parece ter grande necessidade junto
de vós. Nem por isso sou menos sensível à amizade que ditou os
vossos conselhos. É a ela que fico devendo também as vossas
penhorantes informações sobre a demora do casamento de vossa
filha. Agradeço-vos muito sinceramente: mas, embora me dê
prazer a ideia de passar esses momentos convosco, sacrificá-los-ia
de bom grado ao desejo de saber Mademoiselle de Volanges
mais cedo feliz, se é que ela pode vir a sê-lo mais do que
junto de uma mãe tão digna de toda a sua ternura e do seu respeito.
Partilho com ela os doces sentimentos que me prendem a
vós, e peço-vos que aceiteis a expressão deles com bondade.
Tenho a honra de ser, etc.

13 de Agosto de 17 *

CARTA XII

CECÍLIA VOLANGES A MARQUESA DE MERTeuil

A Mamã está incomodada, minha senhora; não pode sair


hoje, e eu tenho de fazer-lhe companhia. Por esse motivo não
terei a honra de vos acompanhar à Ópera. - Asseguro-vos que
lamento bem mais não estar convosco do que o espectáculo.
Peço-vos que acrediteis. Tenho por vós tanta amizade! Tereis a
bondade de dizer ao Cavaleiro Danceny que não tenho a colecção
de que ele me falou, e que se ma puder trazer amanhã me
dará -grande prazer. Se ele vier hoje, dir-lhe-ão que não estamos;
mas é a Mamã que não quer receber ninguém. Espero que ela
amanhã esteja melhor.
Tenho a honra de ser, etc.

13 de Agosto de 17 * *

CARTA XIII

A MARQUESA DE MERTEUIL A CECÍLIA DE VOLANGES

Fiquei muito aborrecida, minha linda, por ser privada do


prazer de a ver, bem como pelo motivo dessa privação. Espero
que outra ocasião se encontrará. Desempenhar-me-ei da sua
comissão junto do Cavaleiro Danceny, que certamente ficará
muito aborrecido por saber sua Mamã doente. Se ela amanhã
me quiser receber, irei fazer-lhe companhia. Faremos um ataque,
ela e eu, ao Cavaleiro de Belleroche ao piquet, e, além de
lhe ganharmos o seu dinheiro, teremos, por acréscimo de prazer,
o de a ouvirmos cantar com o seu amável mestre; encarrego-me
de lhe fazer o pedido. Se isso convier a sua Mamã e a si,
respondo por mim e pelos meus dois Cavaleiros. Adeus, minha
linda; os meus cumprimentos à minha querida Madame de Volanges.
Beijo-a muito ternamente.

13 de Agosto de 17* *

CARTA XIV

CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY

Ontem não te escrevi, minha querida Sofia; mas não foi o


prazer o motivo, posso jurar-te. A Mamã esteve doente, e não a
deixei em todo o dia. À noite, quando me retirei, não tive cabeça
para nada; e deitei-me muito depressa, para ter a certeza de
que o dia tinha acabado. Nunca tinha passado nenhum tão
comprido. Não é que eu não goste da Mamã, mas não sei o que
era. Devia ir à Ópera com Madame de Merteuil; o Cavaleiro
Danceny devia lá estar. Bem sabes que são as duas de quem eu
mais gosto. Quando chegou a hora em que devia ir ter com eles,
senti o coração apertado, contra minha vontade. Tudo me aborrecia,
e chorei, chorei, sem conseguir impedi-lo. Felizmente a
Mamã estava deitada, e não podia ver-me. Estou bem certa de
que o Cavaleiro Danceny também ficou aborrecido; mas deve
ter-se distraído com o espectáculo e com toda agente que o rodeava.
Foi muito diferente.
Por felicidade, a Mamã está hoje melhor, e Madame de
Merteuil virá com outra pessoa e com o Cavaleiro Danceny;
mas chega sempre muito tarde, Madame de Merteuil; e quando
se esteve tanto tempo sozinha, é muito aborrecido. São apenas
onze horas. É verdade que tenho de tocar harpa; e depois levarei
algum tempo a vestir-me e a arranjar-me, pois hoje quero estar
muito bem penteada. Parece-me que madre Perpétua tem razão
e que uma pessoa se torna garrida quando vive em sociedade.
Nunca tive tanto desejo de ser bonita como de há alguns dias
para cá, e acho que não o sou tanto como pensava; e depois,
junto de mulheres que se pintam, fica-se a perder muito. Madame
de Merteuil, por exemplo: vejo bem que todos os homens a
acham mais bonita do que eu. Não me importo muito, porque
ela é minha amiga. E além disso ela afirma-me que o Cavaleiro
Danceny me acha mais bonita do que ela. É muito honesto da
sua parte ter-mo dito! Até parece que estava contente em mo
dizer. Aí está uma coisa que eu não compreendo. É porque ela
gosta muito de mim! E ele!... Oh!, foi uma coisa que me deu
muito prazer! Por isso, até,me parece que só de olhar para ele
uma pessoa fica bonita. Eu estaria a olhar sempre para ele, se
não tivesse receio de encontrar os seus olhos: pois, todas as vezes
que tal me acontece, fico confusa, e parece que me dá pena;
mas isto nada quer dizer.
Adeus, minha querida amiga. Vou-me pôr diante do espelho.
Continuo a gostar de ti como sempre.

Paris, 14 de Agosto de 17 * *.

CARTA XV

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

É muito honesto da sua parte não me abandonar à minha


triste sorte. A vida que levo aqui é realmente fatigante, pelo excesso
de repouso que me proporciona e pela sua insípida uniformidade.
Lendo a sua carta e os pormenores do seu dia encantador,
estive vinte vezes tentado a pretextar um negócio, voar a
seus pés e pedir-lhe, em meu favor, uma infidelidade ao seu
Cavaleiro, que, no fim de tudo, não merece a felicidade de que
desfruta. Sabe a Marquesa que me pôs ciumento dele? Por que
me fala da eterna separação? Renego esse juramento, pronunciado
em delírio: não seríamos dignos de o fazer, se fôssemos
obrigados a mantê-lo. Ah! Que eu possa um dia vingar-me nos
seus braços do ciúme involuntário que me causou a felicidade
do Cavaleiro! Estou indignado, confesso, só de pensar que esse
homem, sem raciocinar, sem se dar ao menor trabalho, limitando-se
a seguir totalmente o instinto do seu coração, encontra
uma felicidade que eu não atingirei nunca. Oh! Hei-de perturbá-la...
Prometa-me que serei eu a perturbá-la. A Marquesa
mesmo não se sente humilhada? Tem trabalho para o enganar, e
ele é dos dois o mais feliz. Julga que o tem preso nas suas malhas!
É a Marquesa que o está nas dele. Enquanto vela pelos
seus prazeres, ele dorme tranquilamente. Que faria de mais se
fosse sua escrava?
Saiba-o, minha bela amiga, enquanto se divide entre vários,
não sinto o mínimo ciúme: não vejo então nos seus amantes senão
os sucessores de Alexandre, incapazes de conservar, todos
juntos, aquele império onde eu reinei só. Mas que se entregue
inteiramente a um deles! Que exista outro homem tão feliz
como eu! Não posso sofrê-lo; não espere que eu o sofra. Ou
readmita-me, ou pelo menos arranje outro; e não queira trair,
por um capricho exclusivo, a amizade inviolável que nos jurámos
mutuamente.
É o momento, sem dúvida, de lhe confessar as minhas queixas
amorosas. Bem vê que me presto às suas ideias, e que confesso
os meus erros: Na verdade, se estar apaixonado é não
poder viver sem possuir o que se deseja, sacrificar a essa ideia o
tempo, os prazeres; a vida, então é certo que estou realmente
apaixonado. Não estou mais avançado do que estava. Não teria
mesmo mais nada a contar-lhe a esse respeito se não fosse um
acontecimento que me dá muito que pensar, e que não sei ainda
se deve inspirar-me receio ou esperança.
A Marquesa conhece o meu criado, tesouro de intriga e verdadeiro
lacaio de comédia: e bem pode imaginar que entre as
suas atribuições cabe a de se apaixonar pela criada de quarto, e
a de perturbar as pessoas. O patife é mais feliz do que eu: já
conseguiu uma vitória. Acaba de descobrir que Madame de
Tourvel encarregou uma criatura sua de tirar informações sobre a
minha conduta, e mesmo de me seguir nos meus passeios de
manhã, até onde possa, sem que alguém se aperceba. Que pretende
esta mulher? Assim pois a mais modesta de todas ousa
arriscar-se a um ponto que nós mal ousaríamos permitir-nos!
De que serve protestar?. . Antes de pensar em vingar-me desta
astúcia feminina, ocupemo-nos do meio de a pôr ao nosso serviço.
Até agora esses passeios de que se suspeita não tinham qualquer
objectivo; é preciso dar-lhes um. Isto merece toda a minha
atenção, e vou findar para pensar nisso. Adeus minha bela amiga.

Sempre do Castelo de. . ., 15 de Agosto de 17 * *.

CARTA XVI

CECÍLIA VOLANGES A SOfia ÇARNAY

Ah, minha Sofia, tenho novidades a dar-te! Talvez não devesse


dizer: mas é preciso que eu fale nisto a alguém; é mais forte
do que eu. Esse Cavaleiro Danceny... Estou tão perturbada
que não posso escrever. Não sei por onde começar. Depois que
te contei o lindo serão que passei com ele è com Madame de
Merteuil junto da Mamã, não voltei a falar-te a seu respeito: é
que eu não queria falar dele a ninguém; mas era nele que eu
pensava sempre. Depois, tinha-se tornado tão triste, mas tão
triste, tão triste, que me fazia pena. E quando eu lhe perguntava
porquê, dizia-me que não: mas eu bem via que sim. Enfim, ontem
ainda estava mais triste que de costume. Isso não impediu
que tivesse a gentileza de cantar comigo, como das outras vezes;
mas, sempre que olhava para mim, eu sentia apertar-se-me o
coração. Depois de termos acabado de cantar, foi fechar a minha
harpa no estojo; e, quando me trouxe a chave, pediu-me
que tocasse ainda naquela noite, logo que me encontrasse só. Eu
não desconfiei de nada; nem mesmo queria: mas ele pediu-me
tanto, que lhe disse que sim. Ele tinha as suas razões. efectivamente,
quando me retirei para o meu quarto, e assim que a criada
saiu, fui buscar a harpa. Encontrei nas cordas uma carta,
simplesmente dobrada, e não lacrada; era dele! Ah! Se tu soubesses
o que me diz! Depois de a ter lido senti tanto prazer que
nem posso pensar noutra coisa. Reli-a quatro vezes seguidas, e
depois fechei-a na minha secretária. Já a sabia de cor; e depois
de deitada repeti-a tantas vezes que nem pensava em dormir.
Assim que fechei os olhos vi-o ao pé de mim, dizendo-me tudo
quanto eu acabara de ler. Só adormeci muito tarde; e mal tinha
acordado (era ainda muito cedo), fui logo buscar a carta para a
tornar a ler à minha vontade. Levei-a para a cama e depois beijei-a
como se... Talvez seja mal feito beijar uma carta como esta,
mas a verdade é que não pude impedir-me de o fazer.

* A carta em que se fala deste serão não foi encontrada. Devemos supor
que é o que Madame de Merteuil propõe no seu bilhete, e de que também se fala
na precedente carta de Cecília Volanges.

Agora, minha querida amiga, sinto-me muito feliz, mas


também muito embaraçada; pois é certo que não devo responder
a esta carta. Sei bem que isso não se deve fazer, no entanto
ele pede-mo; e se eu não responder, estou certa de que se vai pôr
ainda mais triste. É uma desgraça para ele! Que me aconselhas
tu? É claro que a este respeito não sabes mais do que eu. Tenho
muita vontade de falar nisto a Madame de Merteuil, que é tão
minha amiga. Bem gostaria de o consolar; mas não quero fazer
nada que seja mal feito. Recomendam-nos tanto que tenhamos
bom coração! E depois proíbem-nos de seguir o que ele nos inspira,
quando se trata de um homem! Isto também não é justo.
Por acaso um homem não é o nosso próximo, como uma mulher
ou mais ainda? Pois enfim, não temos nós um pai, tal como
uma mãe, um irmão, tal como uma irmã? Além disso ainda fica
o marido. Mas se eu fosse fazer qualquer coisa que não fosse
bem feita, talvez o próprio senhor Danceny não ficasse com boa
ideia a meu respeito! Oh! Isso então era o que me faltava. Prefiro
que fique triste. E depois, enfim, estou sempre a tempo. Lá
porque ele escreveu ontem, não sou obrigada a escrever-lhe hoje.
Esta noite verei Madame de Merteuil, e se tiver coragem conto-lhe
tudo. Se fizer só o que ela me disser, nada terei a censurar-me.
Talvez ela me diga que lhe responda poucochinho, para
que ele não fique tão triste! Oh! Estou num momento muito difícil.

Adeus, minha boa amiga. Diz-me sempre o que pensas.

19 de Agosto de 17 * *.

CARTA XVII

O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES

Antes de me entregar, Mademoiselle, àquilo que chamo o


prazer ou a necessidade de lhe escrever, começo por lhe suplicar
que me ouça. Sinto que, para ousar declarar-lhe os meus sentimentos,
tenho precisão de indulgência; se apenas tivesse de justificá-los,
ela ser-me-ia inútil. Que vou eu fazer, afinal, senão
mostrar-lhe o meu íntimo? E que tenho eu a dizer-lhe que os
meus olhares, o meu embaraço, a minha conduta e mesmo o
meu silêncio lhe não tenham dito antes de mim? Por que se havia
pois de zangar por um sentimento que fez nascer? Emanado
de si, é sem dúvida digno de lhe ser oferecido; se é ardente como
a minha alma, é também puro como a sua. Seria um crime ter
sabido apreciar a sua figura encantadora, os seus talentos sedutores,
as suas graças fascinantes, essa comovente candura que
acrescenta um preço inestimável a qualidades já tão preciosas?
Não, sem dúvida. Mas, mesmo não se sendo culpado, pode ser-se
infeliz. E é a sorte que me espera, se se recusar a aceitar a
minha homenagem. É a primeira que o meu coração até hoje a
ofereceu. Se a não tivesse visto eu seria ainda, não feliz, mas
tranquilo. Vi-a; o repouso fugiu para longe de mim, e o meu
coração está inquieto. Admira-se da minha tristeza; pergunta-me
a causa. Algumas vezes julguei ver que ela a afligia. Ah!
Diga uma palavra, e a minha felicidade será obra sua. Mas, antes
de a pronunciar, pense que uma palavra pode ser também o
cúmulo da minha tristeza. Seja pois o árbitro do meu destino.
Por si vou ser eternamente feliz ou infeliz. Em que mãos mais
queridas poderia eu depositar um interesse maior?
Acabarei, como comecei, por implorar a sua indulgência.
Pedi-lhe que me ouvisse; ousarei mais, pedir-lhe que me responda.
Recusá-lo, seria deixar-me crer que ficou ofendida, e o meu
coração é garantia de que em mim o respeito iguala o amor.

P. S. - Poderá servir-se, para me responder, do mesmo meio


de que me sirvo para fazer chegar esta carta às suas mãos; parece-me
igualmente seguro e cómodo.

18 de Agosto de 17

CARTA XVIII

CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY

Pois quê, Sofia! Tu censuras de antemão o que eu vou fazer!


Tinha já bastantes inquietações; vieste tu agora aumentá-las. É
claro, dizes tu, que não devo responder. Falas disto com todo o

à-vontade; mas a verdade é que não sabes ao certo do que se


trata: não estás aqui para ver. Estou certa de que se estivesses no
meu lugar, farias como eu. Com certeza que, de maneira geral,
não se deve responder; e tu bem viste, pela minha carta de ontem,
que eu própria não queria fazê-lo. Mas é que não creio que
alguém se tenha visto alguma vez na situação em que me encontro.

E ainda ser obrigada a decidir-me sozinha! Madame de


Merteuil, que eu contava ver ontem à noite, não veio. Tudo
conspira contra mim: foi ela quem teve a culpa de eu o conhecer.
Foi quase sempre na presença dela que eu o vi, que lhe falei.
É claro que não lhe quero mal por isso: mas o que é certo é que
me abandona no momento mais difícil. Oh! Sou na verdade
digna de lástima!
Imagina que ontem ele veio como de costume. Eu estava tão
perturbada que nem ousei olhá-lo. Ele não podia falar comigo,
porque a Mamã estava presente. Tinha quase a certeza de que
ele se zangaria, quando visse que eu não lhe tinha escrito. Eu
não sabia o que havia de fazer. Um momento depois perguntou-me
se eu queria que fosse buscar a minha harpa. O coração
batia-me tão fortemente que tudo quanto pude fazer foi responder-lhe
que sim. Quando ele voltou é que foi pior. Só o olhei por
um momentinho. Ele nem sequer olhou para mim; mas tinha
um aspecto que toda a gente diria que estava doente. Isto dava-me
muita pena. Pôs-se a afinar a harpa e, depois, quando ma
trouxe, disse-me: "Ah! Mademoiselle!..." Não disse mais do
que essas duas palavras; mas disse-as num tal tom que fiquei
completamente transtornada. Pus-me logo a tocar sem saber
bem o que fazia. A Mamã perguntou-me se não cantávamos.
Ele desculpou-se dizendo que estava adoentado; e eu, que não
tinha qualquer desculpa, tive de cantar. Desejei então nunca ter
tido voz. Escolhi de propósito uma música que não sabia, pois
estava certa de que não poderia cantar nada, e assim daria a
perceber que havia qualquer coisa. Felizmente entrou uma visita;
e, logo que ouvi o ruído de uma carruagem, deixei de cantar
e pedi-lhe que fosse arrumar a harpa. Tive muito medo que ele
se fosse embora ao mesmo tempo; mas voltou.
Enquanto a Mamã e a senhora que veio visitá-la conversavam
juntas, quis olhar para ele ainda um instante. Encontrei os
seus olhos, e foi-me impossível desviar os meus. Um momento
depois vi as suas lágrimas correram, e foi obrigado a voltar-se
para não ser visto. Nesse momento não tive mão em mim; senti
que ia chorar também. Saí, e imediatamente escrevi a lápis, num
pedaço de papel: "Não esteja tão triste, peço-lhe; prometo que
lhe responderei." Com certeza não podes dizer que haja algum
mal nisto; e depois, foi mais forte do que eu. Pus o papel nas
cordas da harpa; como estava a carta dele, e voltei à sala. Sentia-me
mais tranquila. Já me tardava que a senhora se fosse
embora. Felizmente; foi uma visita curta; deixou-nos pouco
depois. Logo que ela saiu, eu disse que queria outra vez a minha
harpa, e pedi-lhe que a fosse buscar. Vi bem, pelo seu aspecto,
que não desconfiava de nada. Mas quando voltou, oh!, como
ele estava contente! Ao pôr a harpa na minha frente, colocou-se
de maneira que a Mamã não podia vê-lo, e tomou-me a mão,
que apertou... mas de uma maneira!... Foi apenas um momento;
mas eu sou incapaz de te dizer o prazer que isso me deu. No
entanto, retirei a mão; por isso não tenho nada a censurar-me.
Agora, minha boa amiga, bem vês que não posso dispensar-me
de lhe escrever, visto que lho prometi. E depois, não quero
que volte a estar triste, pois eu sofreria mais do que ele. Se
fosse alguma coisa de mal, eu não a faria. Mas que mal pode
haver em escrever, principalmente quando é para impedir que
alguém seja infeliz? O que me aborrece é saber que não sou capaz
de fazer uma carta bem feita. Mas ele há-de perceber que a
culpa não é minha. E depois estou bem certa de que só por ser
minha lhe dará prazer.
Adeus, minha querida amiga. À medida que se aproxima o
momento de lhe escrever, o meu coração bate de uma maneira
inconcebível. No entanto é preciso, visto que o prometi. Adeus .

20 de Agosto de 17* *

CARTA XIX

CECÍLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY

Estava ontem tão triste, senhor, e isso causava-me tanta


pena, que não resisti a prometer-lhe que responderia à carta que
me escreveu. Não é que eu sinta hoje menos que não o devia
fazer; mas, como lhe prometi, não quero faltar à minha palavra,
e isso deve provar-lhe a amizade que sinto pelo senhor. Agora
que já sabe, espero que não volte a pedir-me que lhe escreva
mais. Espero também que não diga a ninguém que lhe escrevi,
porque com certeza me censuravam e isso podia causar-me muitos
desgostos. Espero principalmente que não fique a fazer má
ideia de mim, o que seria o maior desgosto que eu podia ter.
Posso dar-lhe a certeza de que não teria essa complacência para
outro que não fosse o senhor. Desejaria que tivesse a bondade
de não estar triste como estava, o que me tiraria todo o prazer
que sinto em o ver. Bem vê que lhe falo com toda a sinceridade.
Só peço que a nossa amizade dure sempre; mas, suplico-lhe, não
torne a escrever-me.
Tenho a honra de ser, etc.

20 de Agosto de 17* *.

CARTA XX

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Ah, tratante, faz-me festas porque receia a minha troça!


Vamos, consinto em perdoar: escreve-me tantas loucuras, que
realmente é preciso que eu lhe desculpe a prudência do seu procedimento
em relação à sua Presidente. Não creio que o meu
Cavaleiro usasse de tanta indulgência como eu; seria homem
para não aprovar a renovação do nosso contrato e para não
achar nada de divertido na sua louca ideia. No entanto fez-me
rir muito, e senti-me verdadeiramente aborrecida de ser obrigada
a rir tanto sozinha. Se o Visconde estivesse próximo, não
sei onde me poderia ter levado essa alegria: mas tive tempo para
reflectir e armei-me de severidade. Não é o caso de recusar para
sempre; mas vou adiando, e tenho razão. Poria nisso talvez vaidade,
e, uma vez entrada no jogo, não se sabe onde se vai parar.
Serei mulher para o prender de novo, para lhe fazer esquecer a
sua Presidente; e se eu, ser indigno, o afastasse da virtude, veja
que escândalo ! Para evitar esse perigo, eis as minhas condições.
Assim que tenha possuído a sua devota e me possa fornecer
uma prova, venha, e serei sua. Mas não ignora que, nos negócios
importantes, não se recebem provas senão por escrito. Por
esta combinação, serei, por um lado, uma recompensa em vez
de sèr uma consolação, e essa ideia agrada-me mais; por outro
lado, o seu êxito será mais excitante. Venha pois, venha o mais
cedo possível trazer-me o penhor do seu triunfo: semelhante aos
nossos esforçados cavaleiros, que vinham depor aos pés das
suas damas os frutos brilhantes da vitória. Seriamente, estou
curiosa de saber o que pode escrever uma mulher virtuosa depois
de um tal momento, e que véu porá nas suas palavras, depois
de não ter deixado nenhum sobre a sua pessoa. Ao Visconde
cabe avaliar se eu me coloco num preço muito alto; mas previno-o
de que não farei qualquer abatimento... Até lá, meu caro
Visconde, achará bem que eu fique fiel ao meu Cavaleiro e que
me divirta a torná-lo feliz, apesar do pequeno desgosto que isso
causa.
Entretanto, se os meus costumes não fossem tão regrados,
creio que teria, neste momento, um rival perigoso; é a pequena
Volanges. Estou louca por essa pequena; é uma verdadeira paixão.
Ou eu me engano, ou ela virá a ser uma das nossas mulheres
da moda. Vejo o seu coraçãozinho desenvolver-se, e é um
espectáculo encantador. É já com furor que ela ama o seu Danceny;
mas por enquanto não percebe destas coisas. Quanto a
ele, embora muito apaixonado, tem ainda a timidez da sua idade
e não ousa ensinar-lhe demasiado. Os dois permanecem em
adoração na minha frente. Principalmente a pequena tem grande
desejo de me dizer o seu segredo; desde há alguns dias, em
particular, vejo-a verdadeiramente sufocada por ele, e eu prestar-lhe-ia
um grande serviço se a ajudasse um pouco. Mas não
esqueço que é uma criança, e não quero comprometer-me. Danceny
falou-me um pouco mais claramente, mas, para ele, o meu
partido está tomado, não quero ouvi-lo. Quanto à pequena, sinto-me
muitas vezes tentada a fazer dela minha discípula; é um
serviço que tenho vontade de prestar a Gercourt. Ele dá-me
tempo para isso, porque está na Córsega até ao mês de Outubro.
Tenho em mente empregar todo esse tempo, de modo a
podermos dar-lhe uma mulher inteiramente formada, em lugar
da sua inocente pensionista. Na verdade, em que se baseia a
insolente confiança desse homem, que ousa dormir tranquilo,
enquanto uma mulher, que dele tem motivos de queixa, não se
vingou ainda? Creia, se a pequena estivesse aqui neste momento,
nem eu sei o que lhe diria.
Adeus, Visconde; boa noite e bom êxito: mas, por Deus,
veja se avança. Pense que, se não possuir essa mulher, as outras
terão vergonha de terem sido possuídas.

20 de Agosto de 17 * *

CARTA XXI

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Enfim, minha bela amiga, dei um passo em frente, mas um


grande passo, e que, se não me conduziu até ao fim, me fez pelo
menos conhecer que estou no bom caminho, e dissipou o receio
em que estava de me ter perdido. Declarei enfim o meu amor; e
embora me tenha respondido o silêncio mais obstinado, obtive
a resposta talvez menos equívoca e mais lisonjeira; mas não
antecipemos os acontecimentos e voltemos mais atrás.
A Marquesa recorda-se que os meus passos eram espiados.
Pois bem! Decidi que esse meio escândalo servisse para a edificação
do público, e aqui está o que eu fiz. Encarreguei o meu
confidente de me encontrar, nos arredores, qualquer infeliz que
tivesse necessidade de auxílio. Essa missão não era difícil de
cumprir. Ontem de tarde, deu-me ele a notícia de que hoje, de
manhã, deviam ser penhorados os móveis de uma família inteira
que não podia pagar a derrama. Assegurei-me de que nessa casa
não havia nenhuma mulher ou rapariga cuja idade pudesse tornar
suspeita a minha acção; e, logo que fiquei bem informado,
declarei à ceia o meu projecto de ir à caça no dia seguinte. Devo
aqui fazer justiça à minha Presidente: sem dúvida teve ela alguns
remorsos das ordens que deu; e, não tendo força de vencer
a sua curiosidade, teve pelo menos a de contrariar o meu desejo.
Devia haver calor em excesso; arriscava-me a ficar doente; não
apanharia nenhuma caça e fatigar-me-ia em vão; e, durante este
diálogo, os seus olhos, que falavam talvez mais do que ela queria,
davam-me a conhecer que ela desejava que eu tomasse por
boas as suas más razões. Como pode crer, eu não pensava em
me render a tais razões, e resisti do mesmo modo a uma pequena
diatribe contra a caça e os caçadores, e a uma pequena nuvem
de mau humor que obscureceu, durante todo o serão, esta
figura celeste. Por um momento receei que as suas ordens fossem
anuladas e que a sua delicadeza acabasse por me prejudicar.
Fiz um mau cálculo sobre a curiosidade duma mulher; por
isso me enganei. O meu criado tranquilizou-me nessa mesma
noite, e deitei-me satisfeito.
Ao romper do Sol, levanto-me e parto. Apenas a cinquenta
passos do castelo, vejo que o meu espião me segue. Entro no terreno
da caça e caminho através dos campos para a aldeia onde
pretendia dirigir-me; sem outro prazer, na minha jornada, além
do de obrigar a correr o patife que me seguia, e que, não se atrevendo
a deixar os caminhos, muitas vezes tinha de percorrer, a
toda a velocidade, um espaço triplo do meu. De tanto o pôr à
prova, eu próprio ia cheio de calor, e sentei-me junto de uma
árvore. Pois não teve ele a insolência de deslizar para trás de
uma moita, a menos de vinte passos de distância, e de se sentar
também? Por um momento estive tentado a mandar-lhe um tiro,
que, embora fosse apenas de chumbo, lhe teria dado uma lição
suficiente sobre os perigos da curiosidade. Felizmente para
ele, tornei a lembrar-me de que estava sendo útil e mesmo necessário
aos meus projectos; esta reflexão salvou-o.
Entretanto chego à aldeia; vejo que há movimento; avanço;
interrogo; contam-me o que se passa. Chamo o cobrador; e,
cedendo à minha generosa compaixão, pago nobremente cinquenta
e seis libras, pelas quais cinco pessoas iam ser reduzidas
à indigência e ao desespero. Depois desta acção tão simples, não
imagina o coro de bênçãos que se ergueu à minha volta por parte
dos assistentes! Que lágrimas de reconhecimento corriam dos
olhos do velho chefe daquela família, e embelezavam a sua figura
de patriarca, que um momento antes a contracção feroz do
desespero tornava verdadeiramente hedionda! Eu examinava o
espectáculo e logo outro camponês mais moço, conduzindo pela
mão uma mulher e duas crianças, avança para mim a passos
precipitados, dizendo-lhes: "Ajoelhemo-nos todos aos pés desta
imagem de Deus!"; e no mesmo instante fui rodeado por toda a
família, prosternada perante mim. Confessarei a minha fraqueza;
os meus olhos tinham-se molhado de lágrimas, e senti em
mim um movimento involuntário, mas delicioso. Fiquei surpreendido
do prazer que se experimenta ao fazer-se bem; e estive
tentado a crer que aqueles a quem chamamos pessoas virtuosas
não têm tanto mérito como geralmente se diz. Fosse como
fosse, achei que era justo pagar àquela pobre gente o prazer que
acabava de me dar. Tinha comigo dez luíses: dei-lhos. Aqui recomeçaram
os agradecimentos, mas já não tinham o mesmo
grau de patético: o necessário tinha produzido o grande, o verdadeiro
efeito; o resto era apenas uma simples expressão de
reconhecimento e de espanto por uma dádiva supérflua.
Entretanto, no meio das bênçãos tagarelas daquela família,
eu não deixava de me parecer um pouco com o herói de um
drama, na cena do desenlace. Calculará decerto que entre a
multidão se mantinha a pé firme o espião fiel. O meu fim fora
atingido; separei-me de todos, e voltei para o castelo. Deitados
todos os cálculos, felicito-me da minha invenção. Esta mulher
vale bem, sem dúvida, que eu me dê a tais cuidados; eles serão
um dia os meus títulos junto dela; e tendo-lhe, de algum modo,
pago assim de antemão, terei o direito de dispor dela segundo a
minha fantasia, sem ter de me censurar.
Esquecia-me dizer-lhe que, para que tudo resultasse em meu
favor, pedi àquela boa gente que rogasse a Deus pelo bom êxito
dos meus projectos. A Marquesa verá se os seus rogos não foram
já em parte atendidos... Mas anunciam-me que a ceia está
servida e far-se-ia tarde para mandar esta carta se eu não a fechasse
ao retirar-me. Assim, o resto no próximo número. Aborrece-me
isso, pois o resto é o melhor. Adeus, minha bela amiga.
Acaba de me roubar um momento do prazer de vê-la.

20 de Agosto de 17 * *

CARTA XXII

A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE VOLANGES

Ficareis sem dúvida satisfeita, senhora, por conhecer um


gesto do senhor de Valmont, que contrasta em muito, parece-me,
com todos aqueles sob os quais vo-lo apresentaram. É uma
coisa tão penosa pensar desfavoravelmente de quem quer que
seja, tão aborrecido encontrar apenas vícios naqueles que podem
ter todas as qualidades necessárias para fazer amar a virtude!
Enfim, gostais tanto de usar de indulgência que dar-vos motivo
para reparar um juízo demasiado rigoroso é decerto servir-vos.
O senhor de Valmont parece-me ter as condições necessárias
para esperar esse favor, direi quase justiça; e vou dizer-vos
porque o penso.
Esta manhã deu ele um daqueles passeios que poderiam levar
a supor qualquer projecto da sua parte nos arredores, conforme
a ideia que vos veio; ideia que me acuso de ter partilhado
talvez com demasiada vivacidade. Felizmente para ele, e sobretudo
felizmente para nós, pois isso nos salva de sermos injustas,
um dos meus servidores tinha de ir para os mesmos lados que
ele; e foi por aí que a minha curiosidade repreensível, mas feliz,
foi satisfeita. Contou-nos o criado que o senhor de Valmont,
tendo encontrado na aldeia de... uma infeliz família cujos móveis
iam ser vendidos, por não poder pagar os impostos, não
somente se apressara a solver a dívida daquela pobre gente, mas
lhe dera até uma importância em dinheiro bastante considerável.
O meu criado foi testemunha daquela virtuosa acção, e
mais me contou que os camponeses, conversando entre si e com
ele, haviam dito que um criado que designaram, e que o meu
julga ser o do senhor de Valmont, tinha ontem ido tirar informações
sobre quais os habitantes da aldeia que poderiam estar
necessitados de auxílio. Se isto é assim, se não é unicamente
uma compaixão passageira e que a ocasião determina, então é o
projecto formado de fazer bem; é a solicitude da beneficência; é
a mais bela virtude das mais belas almas. Mas, seja acaso ou
projecto, é sempre uma acção honesta e louvável, e de que a
simples narração me enterneceu até às lágrimas. Acrescentarei
ainda, e sempre por justiça, que, quando lhe falei dessa acção,
da qual ele não dizia palavra, começou por se defender e mostrou
atribuir-lhe tão pouco valor que a sua modéstia lhe redobrava
o mérito.
Dizei-me agora, minha respeitável amiga, se o senhor de
Valmont é na verdade um libertino sem remissão? Se ele é apenas
isso e procede assim, que ficará para as pessoas honestas?
Pois quê! Os maus partilhariam com os bons o prazer sagrado
da beneficência? Permitiria Deus que uma família virtuosa recebesse
das mãos dum celerado os socorros que teria de agradecer
à sua divina Providência? E poderia ele sentir prazer em ouvir,
de bocas puras, espalharem-se bênçãos sobre um réprobo? Não.
Prefiro acreditar que os erros, por durarem longo tempo, não
são eternos; e não posso pensar que quem faz o bem seja inimigo
da virtude. O senhor de Valmont é talvez um exemplo mais
do perigo de certas ligações. Detenho-me nesta ideia que me
parece a melhor. Se, por um lado, ela pode servir a justificá-lo
no vosso espírito, por outro torna cada vez mais preciosa a terna
amizade que me liga a vós por toda a vida.
Tenho a honra de ser, etc.

P. S. - Madame de Rosemonde e eu vamos, dentro de momentos,


ver também a honesta e infeliz família, e juntar os nossos
socorros tardios aos do senhor de Valmont. Levá-lo-emos
connosco. Daremos ao menos a essa boa gente o prazer de tornar
a ver o seu benfeitor; é, creio eu, tudo o que ele deixou para
nós fazermos.

20 de Agosto de 17 * *

CARTA XXIII

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Tínhamos ficado no meu regresso ao castelo: retomo a


minha narrativa.
Mal tive tempo de me arranjar um pouco, e regressei à sala,
onde a minha bela tecia um tapete, enquanto o cura lia a gazeta
à minha velha tia. Sentei-me junto do tear. Alguns olhares, mais
doces ainda do que o costume, e quase acariciantes, depressa me
fizeram adivinhar que o criado tinha já dado conta da sua missão.
De facto, a minha amável curiosa não pôde guardar por
muito tempo o segredo que me tinha roubado; e, sem receio de
interromper um venerável pastor cuja prédica no entanto se
parecia com uma homilia, disse: "Também tenho as minhas
novidades a dar"; e imediatamente contou a minha aventura
com uma exactidão que fazia honra à inteligência do seu historiador.
A Marquesa pode imaginar como eu manifestei toda a
minha modéstia; mas quem poderia deter uma mulher que faz,
sem o suspeitar, o elogio daquele que ama? Tomei pois o partido
de a deixar continuar. Dir-se-ia que ela pregava o panegírico
de um santo. Durante esse tempo eu observava, não sem esperança,
tudo o que prometiam ao amor os seus olhares cheios de
animação, os seus gestos agora mais livres, e principalmente
aquele tom de voz que, pela sua alteração já sensível, traía a
emoção da sua alma. Logo que ela acabou de falar, Madame de
Rosemonde disse-me: "Meu sobrinho, chegue ao pé de mim;
quero abraçá-lo." Imediatamente senti que a linda pregadora
não poderia defender-se de ser abraçada por sua voz. Quis fugir,
entretanto; mais depressa a atraí para os meus braços; e,
longe de ter forças para resistir, apenas lhe restavam as bastantes
para se manter de pé. Quanto mais observo esta mulher,
mais ela me parece desejável. Apressando-se a voltar para junto
do tear, simulou, para os presentes, recomeçar a sua tarefa; mas
vi bem que a sua mão trémula não lhe permitia continuá-la.
Depois do jantar, as senhoras quiseram ir ver os infortunados
que eu tão piedosamente tinha socorrido; acompanhei-as.
Poupo a minha boa amiga ao enfado desta segunda cena de reconhecimento
e de louvores. O meu coração, impedido por uma
recordação deliciosa, apressa o momento do regresso ao castelo.
Pelo caminho, a minha bela Presidente, mais pensativa que
de costume, não dizia palavra. Eu pensava em encontrar os
meios de aproveitar o efeito que nela causara o acontecimento
do dia, e por isso mantinha igualmente silêncio. Só Madame de
Rosemonde falava e apenas obtinha de nós respostas curtas e
raras. Era quase certo que a estávamos aborrecendo: era precisamente
o que eu desejava, e fui bem sucedido. Ao descer da
carruagem, minha tia dirigiu-se aos seus aposentos, e deixou-nos
frente a frente, a minha bela e eu, numa sala mal iluminada:
obscuridade doce, que torna ousados os amores tímidos.
Não tive o trabalho de orientar a conversação para o ponto
em que desejava conduzi-la. O fervor da amável pregadora serviu-me
melhor do que não o teria feito a minha habilidade.
"Quando se é digno de fazer o bem", disse-me ela, detendo sobre
mim o seu doce olhar, "como se pode passar a vida praticando
o mal?" "Não mereço", respondi-lhe, "nem esse elogio,
nem essa censura; e não compreendo como, com a sua inteligência,
não me adivinhou ainda. Mesmo que a minha confiança
viesse a prejudicar-me, a senhora é demasiado digna dela para
que eu pudesse recusar-la. Encontrará a chave da minha conduta
num temperamento infelizmente fácil em demasia. Rodeado
de indivíduos sem moral, dei-me a imitar os seus vícios; talvez
tenha posto algum amor-próprio em ultrapassá-los. Da mesma
forma, senti-me seduzido aqui pelo exemplo das virtudes, e,
embora sem esperança de poder igualá-la, procurarei ao menos
segui-la. Talvez o acto por que hoje me louva perdesse a seus
olhos todo o valor, se conhecesse o seu verdadeiro motivo!" (A
minha amiga bem vê quanto eu estava perto da verdade.) "Não
é a mim", continuei, "que esses infelizes devem o auxílio que
lhes prestei. Onde julga ver uma acção meritória, procurei eu
apenas um meio de agradar. Eu era apenas, é forçoso dizê-lo, o
frágil emissário da divindade que adoro." (Aqui ela quis interromper-me;
mas eu não lhe dei tempo para tal.) "Neste momento
mesmo", acrescentei, "o meu segredo escapa-me devido a
uma fraqueza. Prometera a mim mesmo calar-me; era para mim
uma felicidade oferecer às suas virtudes e aos seus encantos uma
homenagem que ficaria ignorada para sempre; mas, incapaz de
enganar, quando tenho debaixo dos olhos o exemplo da candura,
não terei a censurar-me uma culposa dissimulação. Não
creia que a ofendo por uma criminosa esperança. Serei infeliz,
bem sei; mas os meus sofrimentos ser-me-ão caros; provar-me-ão
o excesso do meu amor. É a seus pés, é no seu seio que eu
deporei as minhas mágoas. Aí encontrarei forças para sofrer de
novo; aí encontrarei a bondade compadecida, e julgar-me-ei
consolado, só porque me lastimou. Adoro-a! Escute-me, lastime-me,
socorra-me!" Entretanto eu estava a seus pés, e apertava
as suas mãos nas minhas; ela, porém, desprendendo-as de
repente, e cruzando-as sobre os olhos com expressão de desespero,
exclamou: "Ah, desventurada!"; e desatou a chorar. Por
felicidade, eu a tal ponto me tinha abandonado à emoção que
chorei também; e, voltando a tomar-lhe as mãos, banhei-as de
lágrimas. Esta precaução era muito necessária, pois ela estava
tão ocupada com a sua dor que não se teria apercebido da minha,
se eu não tivesse encontrado este meio de patenteá-la.
Além disso, aproveitei o momento para contemplar à minha
vontade aquele rosto encantador, embelezado ainda pelo poderoso
atractivo das lágrimas. Senti a cabeça quente, e estava tão
pouco senhor de mim que me senti tentado a aproveitar aquele
momento.
! Que fraqueza é esta nossa? A que ponto nos dominam as
circunstâncias, se eu próprio, esquecendo os meus projectos, me
arrisquei a perder, por um triunfo prematuro, o encanto dos
longos combates e os pormenores de uma penosa derrota? Se,
seduzido por um desejo de homem moço, pensei expor o vencedor
de Madame de Tourvel a não recolher, como fruto dos seus
trabalhos, senão a insípida vitória de possuir mais uma mulher?!
Ah! Que ela se renda, mas que combata; que, sem ter a
força de vencer, tenha a de resistir; que saboreie à vontade o
sentimento da sua fraqueza, e seja obrigada a confessar a sua
derrota. Deixemos o obscuro caçador furtivo matar o veado
que surpreendeu numa cilada; o verdadeiro caçador deve forçá-lo.
É sublime este projecto, não acha? Mas talvez neste
momento eu lamentasse não o ter seguido, se o acaso não viesse
em socorro da minha prudência.
Ouvimos ruído. Alguém vinha do salão. Madame de Tourvel,
horrorizada, levantou-se precipitadamente, agarrou um dos
! candelabros e saiu. Tive de a deixar proceder. Era apenas um
criado. Logo que me assegurei disso, segui-a. Apenas eu tinha
dado alguns passos, fosse porque ela me reconhecesse, fosse por
um sentimento de vago terror, ouvi-a precipitar os passos e
lançar-se, em vez de entrar, no seu quarto, fechando a porta
atrás de si. Fui junto da porta; mas a chave estava do lado de
dentro. Tive o cuidado de não bater; seria fornecer-lhe a ocasião
de uma resistência demasiado fácil. Tive a feliz e simples
ideia de tentar ver através da fechadura, e vi de facto essa mulher
adorável de joelhos, banhada em lágrimas, rezando com
fervor. Que Deus ousava ela invocar? Existirá algum com poder
bastante contra o amor? É em vão que ela procura agora socorros
estranhos; só eu decidirei da sua sorte.
Julgando ter já feito bastante para um só dia, retirei-me
também para o meu quarto e comecei a escrever esta carta. Esperava
voltar a vê-la à ceia; no entanto, ela mandou dizer que se
sentira indisposta e se tinha deitado. Madame de Rosemonde
quis subir ao quarto dela, mas a maliciosa doente pretextou
uma dor de cabeça que não lhe permitia ver ninguém. Como
facilmente imagina, depois da ceia pouco tempo estivemos à
mesa, e também eu tive a minha dor de cabeça. Fechado no meu
quarto, escrevi uma longa carta para me queixar de tal rigor, e
deitei-me, com o projecto de a entregar esta manhã. Dormi mal,
como poderá ver pela data desta carta. Levantei-me, e reli a
minha epístola. Verifiquei que nela eu me sujeitara a uma medíocre
observação, que mostrava mais ardor do que amor, e
mais contrariedade do que tristeza. É preciso refazê-la; mas
necessitarei de estar mais calmo.
O dia começa a romper, e espero que a frescura que o acompanha
me trará o sono. Vou meter-me na cama; e, seja qual for
o império desta mulher, prometo-lhe não me ocupar dela a tal
ponto que não fique tempo para sonhar muito consigo. Adeus,
minha bela amiga.

21 de Agosto de 17 , 4 horas da manhã.

CARTA XXIV

O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL

Ah! Por piedade, senhora, dignai-vos acalmar a perturbação


da minha alma; dignai-vos dizer-me o que devo esperar ou recear.
Colocado entre o excesso da felicidade e o do infortúnio, a
incerteza é um tormento cruel. Por que vos falei? Por que não
pude eu resistir ao encanto imperioso que vos entregava os
meus pensamentos? Contente de vos adorar em silêncio, eu
gozava ao menos do amor que sentia; e esse sentimento puro,
que não era perturbado ainda pela imagem da vossa dor, bastava
para a minha felicidade. Mas essa fonte de ventura transformou-se
em fonte de desespero, desde que vi correrem lágrimas
dos vossos olhos; desde que ouvi aquele cruel ah, desventurada!
Senhora, aquelas duas palavras ressoarão por muito tempo no
meu coração. Por que fatalidade o mais doce dos sentimentos
não pode inspirar-vos mais do que horror? Que receio é esse
que sentis? Ah! Não é o receio de partilhar tal sentimento: o
vosso coração, que conheci mal, não foi feito para o amor; o
meu, que caluniais sem cessar, é dos dois o único sensível. O
vosso não tem piedade. Se assim não fosse, não teríeis recusado
uma palavra de consolação ao desgraçado que vos contava os
seus sofrimentos; não vos teríeis furtado aos olhares de quem
não tem outro prazer além de ver-vos; não vos teríeis divertido
cruelmente com a sua inquietação, anunciando-lhe que estáveis
doente sem lhe permitir que se informasse do vosso estado; teríeis
sentido que essa mesma noite, que para vós representava
doze horas de repouso, ia ser para ele século de dores.
Por onde mereci, dizei-me, esse rigor implacável? Não tenho
receio de tomar-vos por juiz: que fiz eu, além de ceder a um sentimento
involuntário, inspirado pela beleza e justificado pela
virtude, sempre contido pelo respeito, e cuja inocente confissão
foi o efeito da confiança e não da esperança? Pois traireis essa
confiança, que me pareceu vós mesma terdes permitido, e à qual
me entreguei sem reservas? Não, não posso acreditá-lo; seria
supor-vos capaz de malevolência, e o meu coração revolta-se só
com a ideia de vos achar em semelhante falta. Retiro as. minhas
censuras: pude escrevê-las, mas não pensá-las. Ah! Deixai-me
supor-vos perfeita, é o único prazer que me resta. Provai-me que
o sois concedendo-me os vossos generosos cuidados. Que infeliz
tereis já socorrido que tivesse tanta necessidade deles como eu?
Não me abandoneis no delírio em que me lançastes! Concedei-me
a vossa razão, já que me roubastes a minha! Depois de me
haverdes corrigido, esclarecei-me para terminardes a vossa
obra!
Não desejo iludir-vos: não conseguireis vencer o meu amor;
mas ensinar-me-eis a governá-lo: guiando os meus passos, ditando
as minhas palavras, salvar-me-eis ao menos da horrível
desgraça de vos desagradar. Acima de tudo, dissipai este desesperador
receio; dizei-me que me perdoais, que me lamentais;
dai-me a certeza da vossa indulgência! É certo que nunca disporeis
de tanta como eu desejaria que tivésseis; mas reclamo aquela
de que necessito. Podereis recusar-me?
Adeus, senhora. Recebei com bondade a homenagem dos
meus sentimentos; ela não impede a do meu respeito.

20 de Agosto de 17 * *

CARTA XXV

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Aqui lhe apresento o boletim do dia de ontem.


As onze horas entrei nos aposentos de Madame de Rosemonde;
e, sob os seus auspícios, fui introduzido no quarto da
doente fingida, que permanecia deitada. Tinha os olhos muito
pisados; espero que tenha dormido tão mal como eu. Aproveitei
um momento em que Madame de Rosemonde se afastara para
entregar a minha carta; recusou-se a aceitá-la, mas deixei-a sobre
a cama, e fui muito honestamente aproximar a poltrona da
minha velha tia, que queria estar junto da sua querida filha;
para evitar o escândalo, teve de guardá-la. Sem convicção alguma,
a doente disse que julgava ter um pouco de febre. Madame
de Rosemonde intimou-me a que lhe tomasse o pulso, elogiando
muito os meus conhecimentos de medicina. A minha bela teve
pois o duplo desgosto de ser obrigada a estender-me o braço, e
de sentir que a sua mentirola ia ser descoberta. De facto, tomei a
sua mão que apertei numa das minhas, enquanto que com a
outra percorria o seu braço fresco e redondo. A maliciosa pessoa
não respondeu a nada, o que me fez dizer ao retirar-me: "Não
tem sequer a mais ligeira perturbação." Calculei que os seus
olhares deviam ser severos, e para a castigar não os procurei.
Após um instante, disse que desejava levantar-se, e deixámo-la
só. Apareceu ao jantar, que foi triste; anunciou que não sairia
para passear, o que era dizer-me que eu não teria ocasião de lhe
falar. Senti bem que era o momento de soltar um suspiro e lançar
um olhar doloroso. Ela esperava isso por certo, pois foi a
única vez durante o dia que consegui encontrar os seus olhos.
Apesar de toda a sua honestidade, tem os seus pequenos ardis
como qualquer outra. Encontrei o momento de lhe perguntar
"se tinha a bondade de me instruir sobre a minha sorte", e fiquei
um pouco admirado de a ouvir responder-me: "Sim, senhor,
escrevi-lhe." Eu estava muito apressado em receber a carta;
mas fosse ainda por ardil, desastramento ou timidez, ela só
ma entregou à noite, no momento de se retirar para o seu quarto.
Aqui lha envio, juntamente com o rascunho da minha; leia e
julgue: veja com que insigne falsidade ela afirma que não sente
amor, quando eu estou convencido do contrário. E há-de queixar-se
se eu a enganar depois, quando ela não receia enganar-me
antes! Minha bela amiga, o homem mais avisado consegue
apenas manter-se ao nível da mulher mais verdadeira. Será pois
preciso acreditar em todo este contra-senso, e fatigar-me de desespero,
porque apetece à senhora simular rigor! Como é possível
evitar vingarmo-nos de tais perfídias?... Mas paciência...
Adeus. Tenho ainda muito para escrever.
A propósito, devolver-me-á a carta da desumana; pode
dar-se o caso que por diante ela pretenda dar valor a essas misérias,
e é preciso estar em regra.
Não lhe falo da pequena Volanges; falaremos disso noutro
dia.

Do castelo, 22 de Agosto de 17* *.

CARTA XXVI

A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT

Decerto, senhor, não viríeis a receber qualquer carta minha


se a minha tola conduta de ontem à noite não me obrigasse a
entrar hoje em explicações convosco. Sim, chorei, confesso-o: é
possível também que me tivessem escapado as duas palavras
que citais com tanto escrúpulo. Lágrimas e palavras, tudo notastes;
é preciso, pois, explicar-vos tudo.
Habituada a inspirar apenas sentimentos honestos, a ouvir
apenas palavras que posso escutar sem corar, a gozar por consequência
de uma tranquilidade que ouso dizer que mereço, não
sei dissimular nem combater as impressões que experimento. O
espanto e a confusão em que me lançou o vosso procedimento;
não sei que receio, inspirado por uma situação que não foi feita
para mim; talvez a ideia revoltante de me ver confundida com
as mulheres que desprezais e tratada tão ligeiramente como
elas; todas estas causas reunidas provocaram as minhas lágrimas
e puderam fazer-me dizer, com razão segundo penso, que
era desventurada. Esta expressão, que achais demasiado forte,
seria certamente demasiado fraca se as minhas lágrimas e as
minhas palavras tivessem motivo diferente; se, em vez de reprovar
sentimentos que me ofendem, eu tivesse receio de os partilhar.
Não, senhor Visconde, não tenho esse receio; se o tivesse, eu
fugiria para cem léguas de distância. Iria chorar para um deserto
a desgraça de vos ter conhecido. Talvez mesmo, apesar da
certeza em que estou de nunca vos poder amar, talvez eu fizesse
melhor em seguir os conselhos dos meus amigos: não deixar que
vos aproximásseis de mim.
Supus, e é esse o meu único erro, supus que respeitaríeis
uma mulher honesta, que não pedia mais do que achar-vos
igualmente honesto e fazer-vos justiça; que já vos defendia,
enquanto a ultrajáveis com os vossos criminosos desejos. Bem
se vê que não me conheceis; não, senhor Visconde, não me conheceis.
Se me conhecêsseis não teríeis querido transformar em
direitos os vossos agravos: porque me dirigistes palavras que eu
não devia ouvir, não vos julgaríeis autorizado a escrever-me
uma carta que eu não devia ler. E pedis-me que guie os vossos
passos, que dite as vossas palavras! Pois bem, senhor, o silêncio
e o esquecimento, eis os conselhos que me apraz dar-vos, e que
vos convém seguir: então tereis, na verdade, direito à minha
indulgência. E só de vós depende obterdes mesmo o meu reconhecimento...
Mas não, não farei um pedido a quem não teve
respeito por mim; não darei mostras de confiança a quem abusou
da minha tranquilidade. Sois vós quem me obriga a recear-vos,
talvez a odiar-vos. Eu não o desejava; queria ver em vós
apenas o sobrinho da minha mais respeitável amiga: opunha a
voz da amizade à voz pública que vos acusava. Vós destruístes
tudo; e, já o prevejo, não fareis nada para reparar o que
destruístes.
me ofendem, que a confissão deles me ultraja, e sobretudo que,
longe de poder um dia partilhá-los, me forçais a não tornar a
ver-vos se não vos impuserdes a tal respeito um silêncio que me
parece ter o direito de esperar, e mesmo de vos exigir. Junto a
esta carta a que me escrevestes e espero que fareis o favor de me
devolver esta; ficaria verdadeiramente desgostosa se ficasse algum
vestígio de um acontecimento que não deveria nunca ter-se
produzido. Tenho a honra de ser, etc.

21 de Agosto de 17 * *

CARTA XXVII

CECÍLIA DE VOLANGES A MARQUESA DE MERTEUIL

Meu Deus, como sois boa, senhora Marquesa! Como compreendeste


que me seria mais fácil escrever-nos do que falar
-vos! Na verdade, o que tenho a dizer-vos é muito difícil. Mas
sois minha amiga, não é verdade? Oh! Sim, minha boa amiga!
Vou fazer o possível por não ter medo; e, depois, tenho tanta
precisão de vós, dos vossos conselhos! Sinto-me muito triste,
parece-me que toda a gente adivinha o que eu penso; e principalmente
quando ele está presente, coro assim que alguém olha
para mim. Ontem, quando me vistes chorar, foi porque eu queria
falar-vos e havia não sei quê que me impedia; e quando me
perguntastes o que eu tinha, saltaram-me as lágrimas contra
minha vontade. Não teria podido dizer uma palavra. Se não fósseis
vós, a Mamã saberia logo do que se tratava, e que iria ser de
mim? E no entanto é assim que eu passo a minha vida, principalmente
de há quatro dias para cá!
Foi nesse dia, senhora Marquesa, sim, sempre vos digo, foi
nesse dia que o senhor Cavaleiro Danceny me escreveu: oh!,
! posso dar-vos a certeza de que quando encontrei a carta eu não
sabia do que se tratava; mas, para não mentir, não nego que
senti muito prazer ao lê-la. Podeis acreditar, gostaria mais de
; ficar triste toda a vida, do que se ele me não tivesse escrito. Mas
eu sabia bem que não devia dizer-lhe isso, e posso garantir-vos
que cheguei a dizer-lhe que tinha ficado zangada; mas ele disse
que era mais forte do que ele e eu acreditei; pois tinha resolvido
não lhe responder, e no entanto não pude deixar de o fazer. Oh!
Escrevi-lhe apenas uma vez, e mesmo isso foi em parte para lhe
dizer que não voltasse a escrever-me. Mas apesar disso ele continua;
e como eu não lhe respondo, vejo bem que ele está triste, e
isso aflige-me ainda mais. De maneira que não sei que fazer,
; nem o que resolver, e o que é certo é que sou digna de lástima.
Dizei-me, peço-vos, senhora Marquesa, será mal feito responder-lhe
de tempos a tempos? Só até que ele compreenda que
não deve voltar a escrever-me, e ficarmos como dantes; pois,
por meu lado, se isto continua, não sei o que vai ser de mim. E
estou bem certa de que se eu não lhe respondo, isso nos fará sofrer
aos dois.
Vou enviar-vos também a carta dele, ou uma cópia, e fareis
o vosso juízo; vereis que o que ele me pede não é nada de mal.
Mas se virdes que não é coisa que se deva fazer, prometo-vos
que não continuarei; entretanto, creio que pensareis como eu e
que em tudo isto não há nada de mal.
Enquanto aguardo o vosso parecer, permiti-me, senhora
Marquesa, que vos faça ainda uma pergunta: têm-me dito que é
feio amar alguém; mas porque? O que me leva a perguntar-vos
isto é que o Cavaleiro Danceny pretende que não é feio tal e que
quase todas as pessoas amam alguém; se é assim, não vejo porque
serei a única a não poder fazê-lo; ou será que só é feio para
as meninas solteiras? Pois eu tenho ouvido até à Mamã dizer
que Madame D... amava o senhor M...; e quando ela falava a
esse respeito não parecia referir-se a uma coisa má, mas no entanto
tenho a certeza de que ela se zangaria comigo se suspeitasse
da minha amizade pelo senhor Danceny. A Mamã trata-me
sempre como se eu fosse uma criança e não me diz nada. Eu julgava,
quando ela me fez sair do convento, que era para me casar;
mas agora parece-me que não. Não é que eu tenha nisso
interesse, asseguro-vos. Mas, sendo tão amiga da Mamã, sabeis
talvez o que há a esse respeito e, se o souberdes, espero que mo
direis.
Ora aqui está uma carta comprida, senhora Marquesa, mas,
como permitistes que eu vos escrevesse, aproveitei para vos dizer
tudo e conto com a vossa amizade.
Tenho a honra de ser, etc.
Paris, 23 de Agosto de 17 * *.

CARTA XXVIII

O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES

Pois quê, Mademoiselle, continua a recusar responder-me!


Não há nada que a possa comover, e cada dia leva consigo a
esperança que trouxera! Se consente que subsista entre nós uma
amizade, que amizade é essa não bastante poderosa para a tornar
sensível à minha mágoa? Se a deixa fria e tranquila, enquanto
eu passo pelos tormentos dum fogo que não posso extinguir?
Se, longe de lhe inspirar confiança, não chega sequer para fazer
nascer a sua piedade? Pois quê! O seu amigo sofre, e não faz
nada para o socorrer! Pede-lhe apenas uma palavra, e recusa-lha!
E quer que ele se contente com um sentimento tão fraco, e
tem até receio de lho confirmar!
Disse-me ontem que não desejaria ser ingrata. Ah!, creia-me,
Mademoiselle, querer pagar amor com amizade não é temer
apenas a ingratidão, é amedrontar-se só da ideia de parecer
ingrata. Entretanto, não ouso continuar a falar-lhe dum sentimento
que não pode deixar de a aborrecer, se não lhe interessa.
É preciso pelo menos encerrá-lo dentro de mim mesmo, aguardando
que possa um dia vencê-lo. Eu sinto quanto será penoso
esse trabalho; não dissimulo perante mim próprio que terei necessidade
de todas as minhas forças; tentarei todos os meios:
existe um que será o mais difícil para o meu coração, é o de repetir
muitas vezes comigo mesmo que o seu é insensível. Terei
; de experimentar vê-la menos vezes, e penso já na maneira de
encontrar um pretexto plausível.
Pois quê! Terei de perder o doce hábito de a ver todos os
dias! Ah! Pelo menos não deixarei jamais de lamentá-lo. Uma
perpétua angústia será o preço do amor mais terno; assim o terá
querido, e essa será sua obra! Jamais, sinto-o, tornarei a encontrar
a felicidade que hoje perco; só a Cecília era feita para o meu
coração. Com que prazer farei o juramento de não viver senão
para si! Mas vejo bem que não quer receber esse juramento. O
seu silêncio basta para me fazer compreender que o seu coração
não lhe diz nada em meu favor; é ao mesmo tempo a prova mais
segura da sua indiferença e a maneira mais cruel de ma anunciar.
Adeus, Mademoiselle.
Já não ouso esperar uma resposta; o amor tê-la-ia escrito
com solicitude, a amizade com prazer, a piedade mesmo com
complacência; mas a piedade, a amizade e o amor são igualmente
estranhos ao seu coração.

Paris, 23 de Agosto de 17 * *

CARTA XXXIX

CECíLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY

Eu bem te tinha dito, Sofia, que havia casos em que se podia


escrever; e asseguro-te que me censuro muito por ter seguido o
teu conselho, que nos deu tanta mágoa, ao Cavaleiro Danceny e
a mim. A prova de que eu tinha razão é que Madame de Merteuil,
que é uma mulher que com certeza o sabe muito bem,
acabou por pensar como eu. Confessei-lhe tudo. Primeiro ela
disse-me o mesmo que tu; mas quando eu lhe expliquei tudo,
concordou que era muito diferente. Exige somente que eu lhe
mostre todas as minhas cartas e todas as do Cavaleiro Danceny,
a fim de estar certa de que eu não direi senão o que for necessário.
Por isso, sinto-me agora tranquila. Meu Deus, como eu gosto
de Madame de Merteuil! É tão boa! E olha que é uma senhora
muito respeitável. Por isso não há nada a dizer.
De que maneira vou escrever ao senhor Danceny e como ele
vai ficar contente! Vai ficar ainda mais contente do que ele pensa,
pois até aqui eu só lhe falava da minha amizade, e ele queria
sempre que eu dissesse o meu amor. Julgo que é a mesma coisa;
mas enfim eu não ousava, e ele teimava nesse ponto. Contei isso
a Madame de Merteuil; ela disse-me que eu tinha razão, e que
não convinha falar de amor, enquanto uma pessoa se pode impedir
de o fazer. Ora eu tenho a certeza de que não poderei impedir-me
de o fazer por muito tempo; no fim de contas é a
mesma coisa, e isso agradar-lhe-á muito mais.
Madame de Merteuil disse-me também que ia emprestar-me
livros que falam de tudo isso, e que me ensinariam a conduzir-me,
e também a escrever melhor do que o faço; pois, como vês,
ela diz-me todos os meus defeitos, o que é uma prova de que é
muito minha amiga. Só me recomendou que não dissesse nada à
Mamã a respeito dos livros, porque podia parecer que ela julgava
que a Mamã tinha descuidado a minha educação e isso fazer
com que ela se zangasse. Oh ! Não lhe direi nada a tal respeito.
Acho no entanto muito extraordinário que uma senhora
que quase não é da minha família tenha mais cuidado comigo
do que a minha mãe! Foi uma felicidade para mim tê-la conhecido !
Ela pediu também à Mamã que me deixasse ir com ela depois
de amanhã à Ópera, para o seu camarote; disse-me que
estaríamos sozinhas e que conversaríamos todo o tempo, sem
receio de que alguém nos ouvisse: prefiro isso muito mais a ouvir
a ópera. Conversaremos também a respeito do meu casamento,
pois ela disse-me que sempre era certo que eu ia casar-me;
mas não pude saber mais do que isso. Ora não é na verdade
muito de admirar que a Mamã não me tenha dito nada a tal
respeito?

Adeus, minha Sofia; vou imediatamente escrever ao Cavaleiro


Danceny. Oh! Como eu estou contente!

24 de Agosto de 17 * *

CARTA XXX

CECÍLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY

Enfim, senhor, consinto em escrever-lhe, para que esteja


certo da minha amizade, do meu amor, visto que, sem isso, se
sentiria infeliz. Diz o senhor que eu não tenho bom coração;
garanto-lhe que se engana e espero que de agora em diante não
tenha dúvidas a esse respeito. Se se sentia triste por eu não lhe
escrever, julga que isso não me fazia pena a mim também? Mas
é que, por coisa nenhuma do mundo, eu desejaria fazer qualquer
coisa que me ficasse mal; e mesmo não estaria tão certa do
meu amor por si se não tivesse sentido mágoa por não lhe escrever.
Mas a sua tristeza custava-me muito. Espero que daqui por
diante já a não sinta e que iremos ser muito felizes.
Conto ter o prazer de o ver esta noite e que virá tão cedo
quanto possível; nunca será tão cedo como eu desejo. A Mamã
ceia em casa, e creio que lhe dirá para ficar. Espero que não esteja
comprometido como anteontem. Era então muito agradável
a ceia a que ia assistir? O certo é que foi para lá muito cedo.
Mas enfim, não falemos disso: agora que já sabe que o amo,
espero que ficará junto de mim o mais tempo que possa. Pois eu
não estou contente senão quando está ao pé de mim, e desejaria
que o mesmo acontecesse com o senhor.
Aborrece-me muito que esteja ainda triste neste momento,
mas não é minha a culpa. Logo que chegue, pedirei para tocar
harpa, a fim de que receba a minha carta o mais cedo possível.
Não posso fazer mais do que isto.
Adeus. Amo-o muito, de todo o coração. Quanto mais lho
digo, mais me sinto satisfeita. Espero que o esteja também.

24 de Agosto de 17 * *.

CARTA XXXI

O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES

Sim, sem dúvida, seremos felizes. A minha felicidade é certa,


porque sou amado por si; a sua não terá fim, se tiver de durar
tanto como o amor que me inspirou. Pois quê! Ama-me, e já
não receia falar-me do seu amor! Quanto mais mo diz, mais se
sente satisfeita! Depois de ler aquele encantador amo-o, escrito
pela sua mão, ouvi a sua linda boca confessar-mo de novo. Vi
fixarem-se em mim esses olhos encantadores que a expressão de
ternura embelezava ainda mais. Recebi a jura de viver sempre
para mim somente. Ah! Receba a minha de consagrar a vida
inteira à sua felicidade; receba-a, e pode estar certa de que não a
trairei nunca.
Que dia feliz passámos ontem! Ah! Por que é que Madame
de Merteuil não tem segredos para dizer todos os dias à sua
Mamã? Por que é necessário que a ideia do constrangimento
que nos espera venha misturar-se à lembrança deliciosa que me
prende? Por que não posso eu ter sempre segura essa linda mão
que me escreveu amo-o? Cobri-la de beijos, vingar-me assim da
recusa de me conceder um favor maior?
Diga-me, minha Cecília: quando a sua Mamã voltou para
junto de nós; quando fomos obrigados, pela sua presença, a não
dirigirmos um ao outro mais do que olhares indiferentes; quando
não podia já consolar-me, pela certeza do seu amor, da recusa
de me dar provas dele, não sentiu nenhum pesar? Não disse
consigo mesma: "Um beijo tê-lo-ia tornado mais feliz, e fui eu
quem lhe roubou essa felicidade?" Prometa-me, minha adorável
amiga, que na primeira ocasião será menos severa. Como auxílio
dessa promessa, encontrarei coragem para suportar as contrariedades
que as circunstâncias nos preparam; e as privações
cruéis serão ao menos suavizadas pela certeza de que a Cecília
partilha comigo esse segredo.
Adeus, minha encantadora Cecília. Chegou a hora em que
devo dirigir-me a sua casa. Ser-me-ia impossível deixá-la, se não
fosse para a tornar a ver. Adeus, ó ente que tanto amo e a quem
amarei cada vez mais!

25 de Agosto de 17**.

CARTA XXXII

MADAME DE VOLANGES A PRESIDENTE DE TOURVEL

Desejais pois, senhora, que eu acredite na virtude do senhor


de Valmont? Confesso que não posso resolver-me a isso, e que
farei tanto esforço em supô-lo honesto, em face da única circunstância
de que me destes parte, como em julgar vicioso um
homem de bem reconhecido como tal, de quem tivesse chegado
ao meu conhecimento uma falta. A humanidade não é perfeita
em nenhum género, nem no mal nem no bem. O celerado tem as
suas virtudes, como o homem honesto tem as suas fraquezas.
Esta verdade parece-me tanto mais necessária a ter presente
quanto é dela que depende a necessidade de indulgência para os
maus como para os bons; e é ela que preserva estes do orgulho,
e salva os outros do desânimo. Deveis sem dúvida achar que eu
uso muito mal neste momento daquela indulgência que preconizo;
mas não vejo nela senão uma fraqueza perigosa, se nos obrigar
a tratar de igual modo o vicioso e o homem de bem.
Não me permitirei perscrutar os motivos da acção do senhor
de Valmont; desejo acreditar que tais motivos são tão louváveis
como a própria acção. Mas, por isso, deixou ele de passar
a sua vida a levar a perturbação, a desonra e o escândalo ao
seio das famílias? Escutai, se o entendeis, a voz do infeliz que ele
socorreu; mas que ela não vos prive de ouvirdes os gritos das
cem vítimas que ele imolou. Ainda que ele não fosse, como dizeis,
senão um exemplo do perigo de certas ligações, deixaria
por isso de ser ele próprio uma ligação perigosa? Podeis julgá-lo
susceptível de um resgate feliz? Vamos mais longe: suponhamos
que esse milagre se cumpriu. Não ficaria ainda contra ele a opinião
pública e não basta ela para regular a vossa conduta? Só
Deus pode absolver no instante do arrependimento; Ele lê nos
corações. Mas os homens não podem julgar os pensamentos senão
através dos actos; e nenhum de entre eles, depois de ter perdido
a estima dos outros homens, tem o direito de se queixar da
desconfiança necessária, que torna essa perda tão difícil de reparar.
Pensai sobretudo, minha jovem amiga, que, para perder
essa estima, basta algumas vezes parecer atribuir-lhe pouco valor;
e não chameis injustiça a essa severidade; pois, além de
haver fundamento para crer que não se renuncia a esse bem precioso
quando se tem o direito de o pretender, quem assim procede
está na verdade mais próximo de praticar o mal quando não
é impedido por esse poderoso freio. Esse seria, entretanto, o
aspecto sob o qual vos deveria aparecer uma ligação íntima com
o senhor de Valmont, por muito inocente que ela pudesse ser.
Amedrontada pelo calor com que o defendeis, apresso-me a
prevenir as objecções que antevejo. Citar-me-eis Madame de
Merteuil, a quem foi perdoada essa ligação; ides perguntar-me
por que motivo o recebo eu em minha casa; dir-me-eis que, longe
de ser repelido pelas pessoas honestas, ele é admitido, procurado
mesmo pelo que se chama a boa sociedade. Posso, segundo
creio, responder a tudo.
Em primeiro lugar Madame de Merteuil, de facto uma pessoa
muito estimável, não tem talvez outro defeito além de depositar
demasiada confiança nas suas forças: é um guia muito hábil
que se compraz em conduzir um carro entre rochedos e precipícios
e que só o êxito justifica. É justo que a louvemos, mas
seria imprudente segui-la. Ela própria está de acordo e disso se
acusa. À medida que os seus olhos se foram abrindo, os seus
princípios tornaram-se mais severos; e não tenho receio de afirmar-vos
que ela deve pensar como eu.
Quanto ao que me diz respeito, não me justificarei mais do
que aos outros. Sem dúvida, recebo o senhor de Valmont, que é
recebido em toda a parte; é uma inconsequência mais a acrescentar
a muitas outras que governam a sociedade. Sabeis tão
bem como eu que passamos a vida a notá-las, a lamentá-las e a
entregarmo-nos a elas. O senhor de Valmont, com um bom
nome, uma grande fortuna, muitas qualidades amáveis, reconheceu
muito cedo que, para dominar na sociedade, basta saber
manejar, com igual destreza, o louvor e o ridículo. Ninguém
como ele possui esse duplo talento: seduz com um e faz-se temer
com o outro. Ninguém o estima; mas todos o lisonjeiam. Tal é a
sua existência no meio de um mundo que, mais prudente que
corajoso, prefere poupá-lo a combatê-lo.
Mas nem a própria Madame de Merteuil, nem nenhuma
outra mulher, ousaria sem dúvida ir encerrar-se no campo, quase
a sós com semelhante homem. Estava reservado á mais ajuizada,
à mais modesta de todas as mulheres, dar o exemplo dessa
inconsequência; perdoai-me esta palavra, que escapou à minha
amizade. Minha boa amiga, é a vossa própria honestidade que
está a trair-vos, em virtude da segurança que vos inspira. Pensai
entretanto que tereis por juízes, por um lado, pessoas frívolas
que não acreditarão numa virtude de que não encontram o
modelo à sua volta; e, por outro, pessoas malévolas, que fingirão
não acreditar em tal virtude, para vos castigarem de a possuirdes.
Considerai que estais fazendo, neste momento, o que
alguns homens não ousariam arriscar. De facto, entre as pessoas
jovens, de quem o senhor de Valmont se tornou em excesso o
oráculo, vejo que as mais prudentes receiam parecer ligadas
demasiado intimamente com ele; e vós não tendes qualquer receio!
Ah! Pensai, pensai muito nisto, sou eu que vos peço... Se
as minhas razões não forem suficientes para vos persuadir, cedei
então à minha amizade; é ela que me faz renovar as minhas instâncias,
é a ela que cabe justificá-las. Por certo a achareis severa
eu desejo que ela seja inútil; mas prefiro que tenhais antes de
vos queixardes da vossa solicitude do que da vossa negligência.

24 de Agosto de 17* *

CARTA XXXIII

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Uma vez que receia ser bem sucedido, meu caro Visconde
uma vez que o seu projecto consiste em fornecer armas contra si
próprio, e que deseja menos triunfar do que combater, nada
mais tenho a dizer-lhe. A sua conduta é uma obra-prima de
prudência. Seria uma obra-prima de tolice na suposição contrária;
e para lhe falar com franqueza, receio que o Visconde se
esteja a iludir.
O que eu lhe censuro não é o ter deixado de aproveitar o
momento. Por um lado, não vejo muito claramente que ele se
tivesse apresentado; por outro, sei suficientemente, digam o que
disserem, que uma ocasião perdida se torna a encontrar, ao passo
que não se resgata nunca um passo precipitado.
Mas é de verdadeiro colegial o ter sido levado a escrever.
Desafio-o neste momento a prever onde isso o pode conduzir.
Porventura espera provar a essa mulher que deve entregar-se?
Afigura-se-me que nisso pode haver uma verdade de sentimento,
não de demonstração; e que, para a fazer reconhecer, é preciso
agir pelo enternecimento e não pelo raciocínio; mas de que
lhe servirá enternecer por meio de cartas, visto que o Visconde
não estaria lá para se aproveitar do momento? Mesmo que as
suas belas frases produzam a embriaguez do amor, pode o Visconde
ter a pretensão de que essa embriaguez seja bastante durável
para que a reflexão não venha a impedir-lhe a confissão?
Depois, pense em tudo o que é necessário para escrever uma carta,
em tudo o que se passa antes de a remeter; e veja-se, sobretudo
uma mulher de princípios, como a sua devota, pode querer
por tanto tempo o que ela procura não querer nunca. Esse procedimento
pode dar resultado com crianças, que, quando escrevem
"eu amo", não sabem que dizem "eu entrego-me". Mas a
virtude raciocinadora de Madame de Tourvel conhece muito
bem, segundo creio, o valor das palavras. Por isso, apesar da
vantagem que o Visconde tomara sobre ela na conversação que
tiveram, ela venceu-o na carta que lhe escreveu. E depois, sabe o
que acontece? Só pelo motivo de se discutir, não se deseja ceder.
força de procurar boas razões, acaba-se por encontrá-las; dizem-se
essas razões, e depois sente-se apego a elas, não tanto
porque são boas, como para não se desmentir.
Além do mais, uma observação que me admiro que o Visconde
não tenha feito, é que não há nada tão difícil em amor
como escrever o que se não sente. Quero dizer, escrever de maneira
verosímil: não é que as palavras usadas não sejam as
mesmas; mas não são arranjadas do mesmo modo, ou antes,
são arranjadas, e isso basta. Releia a sua carta: reina nela uma
ordem que a cada frase o denuncia. Quero acreditar que a sua
Presidente não tem instrução bastante para disso se aperceber:
mas que importa? Nem por isso o efeito deixa de frustrar-se. É
este o defeito dos romances; o autor esforça-se em vão para elevar
a temperatura, e o leitor fica frio. Heloísa é o único que
pode fazer excepção; e apesar do talento do autor, esta observação
levou-me sempre a crer que o fundo era verdadeiro. Não é o
mesmo quando se fala. O hábito de trabalhar o seu órgão dá-lhe
sensibilidade; a facilidade das lágrimas aumenta o efeito: a expressão
do desejo confunde-se nos olhos com a ternura; enfim,
o discurso menos seguido conduz mais facilmente àquele ar de
perturbação e de desordem que é a verdadeira eloquência do
amor; e principalmente a presença do objecto amado impede a
reflexão e faz-nos desejar sermos vencidos.
Creia-me, Visconde: ser-lhe-á favorável não escreVer mais:
aproveite essa pausa para reparar a sua falta e espere a ocasião
de falar. Sabe que essa mulher tem mais força do que supunha?
A sua defesa é boa; sem a extensão da sua carta e o pretexto que
ela lhe dá para voltar ao assunto na sua frase de reconhecimento,
de nenhum modo se teria traído.
O que me parece ainda que deve convencê-lo do triunfo, é
que ela emprega demasiadas forças ao mesmo tempo; prevejo
que ela acabará por as esgotar pela defesa da palavra e que nenhuma
lhe ficará para a do acto.
Devolvo-lhe as duas cartas, e, se for prudente, serão essas as
últimas até ao feliz momento. Se não fosse tão tarde" falar-lhe-ia
da pequena Volanges, que avança bastante depressa, o que muito
me satisfaz. Creio que terminarei a minha tarefa
antes do
Visconde, e deve sentir-se feliz por isso. Adeus por hoje:

24 de Agosto de 17.

CARTA XXXIV

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Fala maravilhosamente, minha boa amiga: mas para: que se


fatiga tanto a provar aquilo que ninguém ignora? Para avançar
depressa no amor, vale mais falar do que escrever; a isto, creia,
se resume, a sua carta. Pois sim ! Mas são os elementos.mais
simples da arte de seduzir. Observarei somente que a Marquesa
abre apenas uma excepção a este princípio; e que na verdade há
duas. as crianças que seguem esse caminho por timidez e se entregam
por ignorância, devemos acrescentar as mulheres espirituosas,
que se deixam comprometer por amor-próprio, e que se
deixam cair na ratoeira por vaidade. Por exemplo; estou bem
certo de que a Condessa de B..., que respondeu sem dificuldade
à minha primeira carta, não tinha então mais amor por mim do
que eu por ela, e que viu apenas a ocasião de tratar um assunto
que lhe faria honra.
De qualquer modo, um advogado diria à minha boa amiga
que o princípio não se aplica à questão. De facto, a Marquesa
supõe que eu posso escolher entre escrever e falar, o que não é o
caso. Desde a história do dia 19, a minha desumana, que se
mantém na defensiva, tem evitado os encontros com uma habilidade
que desarmou a minha. A coisa chegou a tal ponto que,
se isto continua, ela acabará por me obrigar a ocupar-me seriamente
dos meios de recuperar a vantagem perdida; pois seguramente
não quero ser vencido por ela em qualquer campo. Mesmo
as minhas cartas estão sendo motivo de uma pequena guerra:
não contente de lhes não responder, recusa recebê-las. Para
cada uma é necessário pôr em prática uma nova astúcia, que
nem sempre resulta.
Deve recordar-se do meio simples de que usei para lhe entregar
a primeira; a segunda não ofereceu maior dificuldade. Ela
pedira-me que lhe devolvesse a sua carta: dei-lhe a minha no

lugar daquela, sem que ela tivesse a menor suspeita. Mas, fosse
pelo despeito de ter sido apanhada, fosse por capricho, ou, enfim,
por virtude, pois ela forçar-me-á a crer nessa virtude, recusou-se
teimosamente a receber a terceira. Espero todavia que o
embaraço em que acabará por a lançar a obstinação nessa recusa
lhe servirá de correctivo para o futuro.
Não me admirei muito por ela não querer receber a carta
que eu lhe oferecia com toda a simplicidade; seria já conceder
qualquer coisa, e eu estou na expectativa de uma defesa mais
prolongada. Após esta tentativa, que não passou de uma experiência
passageira, pus um sobrescrito na minha carta; e, aproveitando
o momento da toilette, quando Madame de Rosemonde
e a criada de quarto estavam presentes, enviei-lha pelo meu
criado, com ordem de lhe dizer que era o papel que ela me tinha
pedido. Eu adivinhara que ela teria receio da explicação escandalosa
a que uma recusa obrigaria: com efeito aceitou a carta; e
o meu embaixador, que tinha ordem de observar o seu rosto, e
que tem boa vista, enxergou apenas uma leve vermelhidão e
mais embaraço do que cólera.
Felicitei-me pois por ela ter guardado a carta, a menos que
quisesse entregar-ma, o que só poderia fazer estando só comigo,
dando-me ocasião de lhe falar. Cerca de uma hora depois, um
dos seus criados entra-me no quarto e entrega-me, da parte da
sua senhora, um embrulho de forma diferente do meu, e em
cujo sobrescrito reconheci a letra tão desejada. Abro-o precipitadamente...
Era a minha própria carta, por abrir, e apenas
dobrada ao meio. Suspeito que só o receio de que eu fosse
menos escrupuloso do que ela sobre o escândalo a levou a empregar
esta astúcia diabólica.
A Marquesa conhece-me; não tenho necessidade de lhe descrever
a minha cólera. Foi-me preciso no entanto recuperar o
sangue-frio e procurar novos meios. Eis o único que encontrei.
Todos os dias alguém vai daqui buscar as cartas ao correio,
que fica a cerca de três quartos de légua; para este fim, servem-se
de uma caixa coberta pouco mais ou menos como um tronco,
de que o chefe do correio tem uma chave e Madame de Rosemonde
outra. Durante o dias as cartas são aí depositadas, a
qualquer hora; à noite levam-nas para o correio, e de manhã
vão buscar as que chegaram. Todos, mesmo os estranhos ao
castelo, fazem esse serviço igualmente. Não era a vez do meu
criado; mas ele encarregou-se de lá ir, com o pretexto de que
tinha afazeres para aquele lado.
Entretanto escrevi a minha carta. Disfarcei a letra para o
endereço, e imitei muito bem, no sobrescrito, o carimbo de Dijon.
Escolhi esta cidade porque achei mais engraçado; visto que
eu me candidatava aos mesmos direitos que o marido, escrever
do lugar onde ele se encontra, e também porque a minha bela
falava durante todo o dia do desejo que tinha de receber cartas
de Dijon. Pareceu-me justo conceder-lhe esse prazer.
Tomadas estas precauções, era fácil fazer que esta carta se
juntasse às outras. Com este expediente tive ainda a vantagem
de ser testemunha da recepção, pois há aqui o uso de nos juntarmos
para almoçar e esperar a chegada das cartas antes de nos
separarmos. Chegaram enfim as cartas.
Madame de Rosemonde abriu a caixa. "De Dijon", disse
ela, dando a carta de Madame de Tourvel. "Não é a letra de
meu marido", replicou ela com voz inquieta, rompendo o lacre
com vivacidade. O primeiro olhar deu-lhe a saber de que se tratava;
e houve tamanha alteração no seu rosto, que Madame de
Rosemonde, dando conta disso, perguntou: "Que tem?" Aproximei-me
também, dizendo: "É assim tão terrível essa carta?" A
tímida devota não ousava levantar os olhos, não dizia palavra,
e, para disfarçar o seu embaraço, fingia percorrer a epístola, que
ela não estava em estado de ler. Eu gozava da sua perturbação, e
não fiz cerimónia em a aumentar: "O seu aspecto mais tranquilo",
acrescentei, "faz esperar que essa carta lhe tenha causado
mais surpresa do que mágoa. A cólera então inspirou-a melhor
do que não o havia feito a prudência. "Esta carta contém coisas
que me ofendem", respondeu ela, "e surpreendeu-me que alguém
ousasse escrevê-las. " " Quem foi então ? ", interrompeu
Madame de Rosemonde. "Não está assinada", respondeu a
bela encolerizada, "mas a carta e o seu autor inspiram-me igual
desprezo. Obsequeiam-me não me falando mais nisto". Dizendo
estas palavras, rasgou a audaciosa missiva, meteu os pedaços
no bolso, levantou-se e saiu.
Apesar da sua cólera, não deixou de receber a minha carta;
e eu confio bastante na sua curiosidade, que a obrigará a lê-la
por inteiro.
Os pormenores do dia levar-me-iam muito longe. Junto a
esta narrativa os rascunhos das minhas duas cartas: assim a
Marquesa ficará tão instruída como eu. Se quiser estar ao corrente
da minha correspondÊncia, é preciso acostumar-se a decifrar
as minhas minutas, pois por nada no mundo eu devoraria o
aborrecimento de ter de as copiar. Adeus, minha bela amiga.

25 de Agosto de 17* *.

CARTA XXXV

O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL

É preciso obedecer-vos, senhora, é preciso provar-vos que,


no meio dos agravos que vos comprazeis em atribuir-me, me
resta ao menos bastante delicadeza para não me permitir uma
censura e bastante coragem para me impor os mais dolorosos
sacrifícios. Ordenais-me o silêncio e o esquecimento! Pois bem!
Forçarei o meu amor a calar-se; e esquecerei, se for possível, a
maneira cruel como o acolhestes. Sem dúvida o desejo de vos
agradar não dava tal direito, e confesso ainda que a necessidade
que tenho da vossa indulgência não era um título para a obter.
Mas achais que o meu amor é um ultraje; esqueceis que se ele
pudesse ser um agravo, seríeis ao mesmo tempo a causa e a justificação.
Esqueceis também que, acostumado a abrir-vos a
minha alma, mesmo quando essa confiança podia ser-me desvantajosa,
já me não era possível esconder-vos os sentimentos
de que estou penetrado; e o que foi a obra da minha boa fé, é
por vós avaliado como o fruto da audácia. Como preço por
amor mais terno, mais respeitoso, mais verdadeiro, expulsais-me
para longe de vós. E, por fim, falais-me do vosso ódio...
Que outro se não queixaria de ser tratado assim? Eu, contudo,
submeto-me: sofro tudo e não me lamento de nada; feris-me e
eu adoro-vos. O inconcebível domínio que tendes sobre mim
torna-vos senhora absoluta dos meus sentimentos; e se só o meu
amor vos resiste, se não o podeis destruir, é porque ele é a vossa
obra e não a minha.
Não peço um regresso a um tratamento de que nunca pude
gozar. Não espero mesmo aquela piedade que o interesse que
algumas vezes me testemunhastes podia fazer-me esperar. Mas
creio, confesso-o, poder reclamar a vossa justiça.
Fizestes-me compreender, senhora, que alguém procurou
diminuir-me no vosso espírito. Se tivésseis seguido o conselho
dos vossos amigos, não teríeis deixado sequer que me aproximasse:
são os vossos próprios termos. Quais são pois esses amigos
oficiosos? Sem dúvida pessoas tão severas, e duma virtude
tão rígida, consentem em ser nomeadas; sem dúvida não quererão
cobrir-se de uma obscuridade que as confundiria com vis
caluniadores; e não ignorarei nem os seus nomes, nem as suas
censuras. Pensai, senhora, que tenho o direito de conhecer uns e
outros, pois que me julgareis segundo eles. Não se condena um
criminoso sem se lhe dizer qual o seu crime, sem lhe nomear os
seus acusadores. Não peço outra graça, e comprometo-me de
antemão a justificar-me, a forçá-los a desdizerem-se.
Se desprezei demasiado, talvez, os vãos clamores de um público
que tive em pequena conta, não acontece assim com a vossa
estima: e quando consagro a minha vida a merecê-la, não
deixarei impunemente que ma roubem. Ela tornar-se-me-á tanto
mais preciosa, quanto lhe deverei sem dúvida esta pergunta
que temeis fazer-me, e que me daria, como dizeis, direitos ao
vosso reconhecimento. Ah! Longe de o exigir, julgarei ficar-vos
em dívida, se me concederdes a ocasião de vos ser agradável.
Começai pois por me fazer mais justiça, não me deixando ignorar
o que desejais de mim. Se eu pudesse adivinhá-lo, evitar-vos-ia
a pena de o dizer. Ao prazer de vos ver, acrescentai felicidade
de vos servir, e louvar-me-ei da vossa indulgência. Que
pode deter-vos? Não é, espero-o, o receio de uma recusa. Sinto
que não poderia perdoar-vos tal receio. Desejo, mais do que
vós, senhora, que ela deixe de me ser necessária: mas acostumado
a julgar-vos uma alma tão doce, é nessa carta que eu posso
encontrar-vos tal como quereis parecer. Quando formulo o
voto de vos tornar sensível, vejo nessa carta que, em vez de consentirdes
em tal, mais depressa fugiríeis para cem léguas de distância
de mim; quando tudo aumenta e justifica o meu amor, é
ainda ela que me repete que o meu amor é recebido como um
ultraje; e quando, ao ver-vos, esse amor me parece o bem supremo,
tenho necessidade de ler essa carta, para sentir que ele é
apenas um horrível tormento. Concebei agora que a minha
maior felicidade estaria em poder entregar-vos essa carta fatal;
pedir-ma ainda seria autorizar-me a não acreditar no que ela
contém; não duvidareis, espero, da minha prontidão em devolvê-la.

21 de Agosto de 17 * *

CARTA XXXVI

O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL

(carimbo de Dijon)

A vossa severidade aumenta dia a dia, senhora; e se me é


permitido dizê-lo, parece-me que receais menos ser injusta do
que ser indulgente. Depois de me haverdes condenado sem me
ouvir, deveis ter sentido, de facto, que vos seria mais fácil não
ler as minhas razões que responder-lhes. Recusais as minhas
cartas com obstinação; devolveis-mas com desprezo. Obrigais-me
por fim a recorrer à astúcia, no próprio momento em que o
meu único fim é convencer-vos da minha boa fé. A necessidade
em que me pusestes de me defender bastará sem dúvida para
desculpar os meios que uso para tal fim. Convencido, aliás, pela
sinceridade dos meus sentimentos, que para os justificar a vossos
olhos me basta dá-los bem a conhecer, julguei poder permitir-me
este ligeiro desvio. Ouso crer também que mo perdoareis;
e que pouco vos deverá surpreender que o amor seja mais engenhoso
a produzir-se do que a indiferença a afastá-lo.
Permiti, pois, senhora, que o meu coração se vos descubra
inteiramente. Pertence-vos, é justo que o conheçais.
Ao chegar a casa de Madame de Rosemonde, eu estava muito
longe de prever a sorte que aí me esperava. Ignorava que estivésseis
aqui; e acrescentarei, com a sinceridade que me caracteriza,
que, ainda que o soubesse, a minha tranquilidade não se
perturbaria. Não que a vossa beleza não me merecesse a justiça
que é impossível recusar-lhe; mas, acostumado a sentir apenas
desejos, e a entregar-me apenas àqueles que eram animados pela
esperança, eu não conhecia os tormentos do amor.
Fostes testemunha das instâncias de Madame de Rosemonde
para que eu me demorasse algum tempo. Tinha já passado
um dia a vosso lado; entretanto não me rendi, ou pelo menos
julguei render-me apenas ao prazer, tão natural e tão legítimo,
de dedicar algumas atenções a uma parenta respeitável. O género
de vida que se levava aqui era sem dúvida muito diferente
daquele a que estava acostumado. Nada me custou conformar-me
a ele; e, sem procurar penetrar a causa da mudança que se
operava em mim, atribuí-a ainda unicamente àquela felicidade
de carácter de que julgo ter-vos falado.
Infelizmente (e por que é necessário que isto seja uma infelicidade?
), conhecendo-vos melhor, depressa reconheci que essa
figura encantadora, que simplesmente me havia impressionado,
era o menor dos vossos dotes; a vossa alma celestial surpreendeu,
seduziu a minha. Admirava a beleza; fiquei adorando a virtude.
Sem pretender obter-vos, preocupava-me em vos merecer.
Reclamando a vossa indulgência para o passado, ambicionava a
vossa aprovação para o futuro. Procurava-a nas vossas palavras,
espiava-a nos vossos olhares; nesses olhares donde partia
um veneno tanto mais perigoso quanto era derramado sem intenção
e recebido sem desconfiança.
Então conheci o amor. Mas como eu estava longe de me
lamentar! Decidido a sepultá-lo num eterno silêncio, entregava-me
sem receio e sem reserva a esse sentimento delicioso.
Cada dia aumentava o seu império. Depressa o prazer de vos
ver se transformou em necessidade. Se vos ausentáveis por um
momento, o meu coração sentia-se apertado de tristeza; e palpitava
de alegria, ao ruído que me anunciava o vosso regresso. Eu
já não existia senão por vós, e para vós. Entretanto, é a vós
mesmo que suplico uma resposta: porventura na alegria dos
jogos despreocupados, ou no interesse duma conversação séria,
me escapou uma palavra que pudesse trair o segredo do meu
coração?
Chegou enfim um dia em que devia começar o meu infortúnio;
e por uma inconcebível fatalidade, uma acção honesta devia
marcar esse começo. Sim, foi no meio dos infelizes que eu
tinha socorrido, que vós, senhora, entregando-vos a essa sensibilidade
preciosa que embeleza a própria beleza e aumenta o
preço da virtude, acabastes de desvairar um coração inebriado
já por excesso de amor. Lembrais-vos, talvez, da preocupação
que se apoderou de mim no regresso! Ai de mim! Procurava
combater uma inclinação que eu sentia tornar-se mais forte do
que eu.
Foi depois de ter esgotado as minhas forças nesse combate
desigual, que um acaso, que eu não pudera prever, me fez encontrar
a sós convosco. Sucumbi nesse momento, confesso-o. O
meu coração demasiado cheio não pôde reter as suas palavras e
as suas lágrimas. Mas é isso um crime? E se o é, não sofreu já
castigo bastante pelos tormentos horrorosos a que estou entregue?
Devorado por um amor sem esperança, imploro a vossa
piedade e encontro apenas o vosso ódio. Sem outra felicidade
além de ver-vos, os meus olhos procuram-vos para além da
minha vontade, e tremo de encontrar os vossos olhares. No estado
cruel a que me reduzistes, passo os dias a disfarçar as minhas
penas e as noites a entregar-me a elas; enquanto que vós,
tranquila e calma, não conheceis esses tormentos senão para os
causardes e aplaudir-vos deles. Entretanto, sois vós que vos
lamentais, e sou eu quem pede perdão.
Aqui está, todavia, senhora, a narração fiel do que chamais
os meus agravos, e que talvez fosse mais justo chamar os meus
infortúnios. Um amor puro e sincero, um respeito que jamais se
desmentiu, uma submissão perfeita: tais são os sentimentos que
me inspirastes. Não recearia apresentar semelhante homenagem
à própria divindade. Ó vós, que sois a sua mais bela obra, imitai-a
na sua indulgência! Pensai nas minhas penas cruéis; pensai
sobretudo que, colocado por vós entre o desespero e a felicidade
suprema, a primeira palavra que pronunciardes decidirá para
sempre da minha sorte.

23 de Agosto de 17**.

CARTA XXXVII

A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE VOLANGES

Submeto-me, senhora, aos conselhos que a vossa amizade


me dá. Acostumada a tudo confiar nas vossas opiniões, creio
firmemente que elas se fundam sempre na razão. Confessarei
mesmo que o senhor de Valmont deve ser, na verdade, infinitamente
perigoso, se pode ao mesmo tempo fingir ser aquilo que
parece aqui, e ficar tal como o descreveis. De qualquer modo
visto que o exigis, afastá-lo-ei de mim; pelo menos farei para
isso o que estiver ao meu alcance: pois, muitas vezes, as coisas
que no fundo deveriam ser as mais simples tornam-se embaraçosas
na prática.
Continua a parecer-me impraticável fazer esse pedido a sua
tia; seria igualmente descortês, para ela e para ele. Também não
tomarei sem alguma repugnância o partido de me afastar eu
própria: pois além das razões que vos comuniquei, relativas ao
senhor de Tourvel, se a minha partida viesse a contrariar o senhor
de Valmont, como é possível, não teria ele facilidade de me
seguir a Paris? E o seu regresso, do qual eu seria, ou de que ao
menos pareceria ser o objecto, não se afiguraria mais estranho
do que um encontro no campo, em casa de uma pessoa que se
sabe ser sua parenta e minha amiga?
Não me resta pois outro recurso senão obter dele próprio
que se afaste. Sinto que esta proposta é difícil de fazer; entretanto,
como me parece que ele toma a peito provar-me que é na
verdade mais honesto do que o supõem, não desespero de o vir
a conseguir. Não sentirei mesmo qualquer embaraço em tentá-lo;
e isso me dará ocasião de ajuizar se, como ele diz muitas
vezes, as mulheres honestas nunca tiveram e não terão nunca
motivo de queixa do seu procedimento. Se ele se afastar como
eu desejo, será de facto por respeito à minha pessoa: pois não
posso duvidar de que ele tivesse o projecto de passar aqui uma
grande parte do Outono. Se ele recusar aceder ao meu pedido e
se se obstinar em ficar, estarei a tempo de me afastar eu própria,
e prometo-vos que o farei.
Segundo creio, senhora, é tudo o que a vossa amizade exigia
de mim: apresso-me a dar-lhe satisfação, e a provar-vos que,
apesar do calor que porventura pus na defesa do senhor de
Valmont, nem por isso estou menos disposta, não somente a
escutar, mas até a seguir os conselhos dos meus amigos.
Tenho a honra de ser, etc.

25 de Agosto de 17 * *.

CARTA XXXVIII
A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

O seu enorme pacote chega-me neste instante às mãos, meu


caro Visconde. Se a data está exacta, deveria tê-lo recebido vinte
e quatro horas mais cedo; de qualquer modo, se tivesse tempo
de o ler, não teria já o de lhe responder. Prefiro pois acusar-lhe
somente a recepção, e conversaremos sobre outro assunto. Não
é que eu tenha alguma coisa a dizer-lhe a meu respeito; o Outono
não deixa em Paris quase nenhum homem que tenha figura
humana. Por isso, há um mês que me mantenho numa moderação
desesperadora; e qualquer outro que não fosse o meu Cavaleiro
estaria fatigado das provas da minha constância. Não tendo
qualquer ocupação, distraio-me com a pequena Volanges; e
é dela que lhe quero falar.
Sabe, Visconde, que perdeu mais do que supõe não querendo
encarregar-se dessa criança? É verdadeiramente deliciosa!
Não tem nem carácter nem princípios; imagine como a sua convivência
será doce e fácil. Não creio que ela venha a brilhar pelo
sentimento; mas tudo anuncia nela as sensações mais vivas. Sem
espírito e sem finura, ela tem todavia certa falsidade natural, se
se pode dizer assim, que algumas vezes a mim própria me espanta
e de que ela virá a aproveitar tanto mais quanto o seu rosto
oferece a imagem da candura e da ingenuidade. Ela é naturalmente
muito meiga, e isso diverte-me algumas vezes. Aquela
cabecita perturba-se com uma facilidade incrível; e é nesses
momentos tanto mais graciosa quanto é certo que nada sabe,
absolutamente nada, daquilo que tanto deseja saber. Tem às
vezes impaciências muito engraçadas; ri, atordoa-se, chora, e
depois pede-me que a ensine, com uma boa fé realmente sedutora.
Na verdade, quase me sinto ciumenta daquele a quem esse
prazer está reservado.
Não sei se lhe mandei dizer que há quatro ou cinco dias tenho
a honra de ser a sua confidente. Imagina decerto que ao
princípio afectei severidade; mas logo percebi que ela julgava
ter-me convencido com as suas más razões, comecei a fingir que
as aceitava por boas; e ela está intimamente presuadida de que
deve o êxito à sua eloquência: esta precaução era necessária
para não me comprometer. Permiti-lhe que escrevesse e que dissesse
eu amo ; e nesse mesmo dia, sem que ela o suspeitasse,
proporcionei-lhe um encontro a sós com o seu Danceny. Mas
imagine que ele é tão tolo que ainda não conseguiu nem ao
menos um beijo. No entanto esse rapaz faz versos bem bonitos!
Meu Deus! Como são estúpidas as pessoas de talento! Esse é-o a
tal ponto que me embaraça; pois, enfim, a ele não posso eu
conduzi-lo !
É neste momento que o Visconde me seria muito útil. Está
ligado com Danceny o bastante para obter as suas confidências,
e se ele lhas fizesse uma vez que fosse, iríamos a galope. Apresse-se
por conseguinte com a sua Presidente, pois, enfim, não
quero que Gercourt se salve: aliás, falei ontem dele à rapariguinha,
e descrevi-o tão bem, que, ainda que ela fosse sua mulher
há dez anos, não o odiaria mais do que o ficou odiando. No
entanto, preguei-lhe muito acerca da fidelidade conjugal; nada
iguala a minha severidade sobre este ponto. Por esse meio, restabeleço
junto dela, por um lado, a minha reputação de virtude,
que demasiada condescendência poderia destruir; por outro,
aumento nela o ódio com que pretendo gratificar o marido. E,
enfim, espero que, fazendo-lhe crer que não lhe é permitido entregar-se
ao amor senão durante o pouco tempo que lhe resta de
solteira, ela se decidirá mais depressa a não perder nada.
Adeus, Visconde; vou para o meu quarto de vestir onde lerei
o seu volume.

27 de Agosto de 17 * *

CARTA XXXIX

CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY

Estou triste e inquieta, minha querida Sofia. Chorei quase


toda a noite. Não é que neste momento eu não seja muito feliz;
mas prevejo que isso não durará.
Estive ontem na Ópera com Madame de Merteuil; falámos
lá do meu casamento, e o que soube a esse respeito não foi bom.
É com o senhor Conde de Gercourt que eu devo casar, e deve ser
no mês de Outubro. É rico, é homem de qualidade, é coronel
do regimento de... Até aí tudo vai muito bem. Mas, primeiro, é
velho: imagina que tem pelo menos trinta e seis anos! E depois,
Madame de Merteuil diz que é triste e severo, e receia que eu
não seja feliz com ele. Vi mesmo que ela está certa disso e que
não queria dizer-mo para não me afligir. Durante toda a noite
quase não falou de outra coisa senão dos deveres das mulheres
para com seus maridos: concorda que o senhor de Gercourt não
é nada amável e no entanto diz que é preciso que eu o ame. Pois
não me disse também que, uma vez casada, eu devia deixar de
amar o Cavaleiro Danceny? Como se isso fosse possível! Oh,
podes ter a certeza de que o amarei sempre. Bem vês, gostava
mais de não me casar. Esse senhor de Gercourt que se arranje,
eu não o fui procurar. Ele está agora na Córsega, muito longe
daqui; desejaria que lá ficasse dez anos. Se eu não tivesse medo
de voltar para o convento, diria à Mamã que não quero aquele
marido; mas seria pior ainda. Estou muito aborrecida. Sinto
que nunca amei tanto o senhor Danceny como agora; e quando
penso que não me resta mais do que um mês para ser como sou,
vêem-me as lágrimas aos olhos imediatamente. Não encontro
consolação a não ser na amizade de Madame de Merteuil. Tem
tão bom coração! Partilha as minhas tristezas como eu própria.
E é tão amável que, quando estou com ela, quase nem penso em
tais tristezas. Além disso é-me muito útil: pois o pouco que sei,
foi ela quem mo ensinou. E é tão boa, que eu digo-lhe tudo
quanto penso, sem me sentir nada envergonhada. Quando acha
que não está bem, ralha-me algumas vezes; mas é muito brandamente,
e depois eu abraço-a de todo o coração, até ver que ela
não está zangada. Ao menos essa, posso-a amar quanto me apetece,
sem que nisso haja mal algum, o que me dá muito prazer.
Entretanto combinámos que eu não daria a perceber diante das
outras pessoas que gosto dela como gosto, principalmente diante
da Mamã, para que não desconfie nada a respeito do Cavaleiro
Danceny. Posso garantir-te que se eu pudesse viver sempre
como vivo agora, creio que seria muito feliz. A minha única
pena é aquele feio senhor de Gercourt!... Mas não quero falar-te
mais dele, pois acabaria por ficar triste. Em vez disso, vou
escrever ao Cavaleiro Danceny; só lhe falarei do meu amor e
não das minhas tristezas, pois não quero que se aflija.
Adeus, minha boa amiga. Bem vês que não tens razão de te
queixar, e que o meu prazer é estar ocupada, como tu dizes, pois
nem por isso me falta o tempo para ser tua amiga e te escrever.

27 de Agosto de 17 * *

CARTA XL

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

É pouco para a minha desumana não responder às minhas


cartas e recusar-se a recebê-las; quer-me privar de a ver e exige
que eu me afaste. O que surpreenderá mais ainda a minha boa
amiga, é que eu me submeta a tamanho rigor. Bem sei que vai
censurar-me. Entretanto, julguei não dever perder a ocasião de
deixar que me dessem uma ordem: persuadido, por um lado, de
que quem manda se compromete; e, por outro, de que a autoridade
ilusória que nós simulamos deixar tomarem as mulheres é
uma das ciladas que elas evitam mais dificilmente. Além disto, a
habilidade que esta soube pôr em evitar encontrar-se comigo a
sós colocava-me numa situação perigosa, da qual julguei dever
sair custasse o que custasse: pois estando continuamente junto
dela, sem poder ocupá-la do meu amor, havia lugar para o receio
de que ela viesse a acostumar-se de me ver, por fim, sem se
perturbar; e é esta uma disposição da qual a Marquesa sabe
bem como é difícil sair.
Adivinha, aliás, que eu não me submeti sem condições. Tive
mesmo o cuidado de pôr uma impossível de conceder; tanto
para ficar sempre senhor de manter a minha palavra, ou de faltar
a ela, como para poder iniciar uma discussão, ou verbal ou
por escrito, num momento em que a minha bela está satisfeita
comigo, ou tem necessidade de que eu o esteja dela: sem contar
que eu seria bem desastrado se não encontrasse meio de me
compensar da minha desistência a esta pretensão, por insustentável
que ela seja.
Depois de lhe ter exposto as minhas razões neste longo
preâmbulo, começo a história destes dois últimos dias. Juntarei
como peças justificativas a carta da minha bela e a minha resposta.
A Marquesa há-de convir que poucos historiadores haverá
tão exactos como eu.
Recorda-se do efeito que fez anteontem de manhã a minha
carta de Dijon; o resto do dia foi muito tempestuoso. A linda
hipócrita chegou só à hora de jantar e anunciou uma forte enxaqueca;
pretexto com que quis encobrir um dos violentos acessos
de mau humor que uma mulher pode ter. O seu rosto estava
verdadeiramente alterado; a expressão de doçura que lhe conheço
transformara-se num ar de rebeldia que lhe dava uma
nova beleza. Prometo a mim próprio fazer uso mais tarde desta
descoberta: substituir algumas vezes a amante terna pela amante
rebelde.
Previ que o resto da tarde seria triste; e para me poupar o
aborrecimento, pretextei cartas a escrever e retirei-me para o
meu quarto. Voltei ao salão pelas seis horas; Madame de Rosemonde
propôs que passeássemos, o que foi aceite. Mas no
momento de subir para a carruagem, a pretendida doente, por
malícia infernal, pretextou por sua vez, e talvez para se vingar
da minha ausência, um redobramento de dores, e obrigou-me a
suportar sem piedade a companhia da minha velha parenta.
Não sei se as imprecações que dirigi contra esse demónio feminino
foram exalçadas, mas encontrámo-la deitada no regresso.
No dia seguinte ao almoço, não era a mesma mulher. Voltara
a doçura natural, e tive razão para me julgar perdoado. Acabáramos
apenas de almoçar, quando a doce criatura se levantou
com ar dolente e se dirigiu ao parque; segui-a, como pode crer.
"Donde pode nascer esse desejo de passear?", perguntei-lhe ao
abordá-la. "Escrevi muito esta manhã", respondeu-me ela, "e
tenho a cabeça um pouco cansada". "Não serei eu bastante feliz",
tornei, "para ter de me censurar desse cansaço?". "Escrevi-vos",
respondeu ela ainda, "mas hesito em dar-vos a minha
carta. Essa carta contém um pedido, e não me acostumastes a
esperar resposta favorável". "Ah! Juro que se me for possível...
" "Nada há mais fácil", interrompeu ela, "e embora pudésseis
talvez conceder-mo como justiça, consinto em obtê-lo
como graça". Dizendo estas palavras, apresentou-me a sua carta;
ao recebê-la, tomei-lhe também a mão, que ela retirou, mas
sem cólera, e com mais embaraço do que vivacidade. "Está mais
calor do que eu supunha", disse ela; "tenho de voltar para casa.
E retomou o caminho do castelo. Foram vãos os meus esforços
para persuadi-la a continuar o seu passeio, e foi-me preciso
recordar-me de que podíamos ser vistos, para que nesse
sentido empregasse apenas a minha eloquência. Ela voltou sem
proferir uma palavra e vi claramente que esse fingido passeio
não tivera outro fim além do de me entregar a carta. Ao regressar,
ela subiu para o seu quarto e eu retirei-me para o meu, a fim
de ler a epístola, que a Marquesa fará bem em ler também, assim
como a minha resposta, antes de ir mais longe...

CARTA XLI

A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT

A vossa conduta para comigo, senhor, faz crer que procuráveis


apenas aumentar, dia a dia, as razões de queixa que eu tinha
contra vós. Essa obstinação em querer continuar a falar-me,
incessantemente, de um sentimento que eu não quero nem
devo escutar; o abuso que não temestes fazer da minha boa fé,
ou da minha timidez, para me enviardes as vossas cartas; o
meio, sobretudo, ouso dizer pouco delicado, de que vos servistes
de uma surpresa que podia comprometer-me; tudo deveria
dar lugar da minha parte a censuras tão vivas como justamente
merecidas. Entretanto, em vez de voltar a falar desses agravos,
limito-me a fazer-vos um pedido simples como justo; e se o obtiver
de vós, consinto em que tudo seja esquecido.
Vós mesmo me dissestes, senhor, que eu não devia recear
uma recusa; e ainda que, por uma inconsequência que vos é
peculiar, essa mesma frase fosse seguida da única recusa que
podíeis fazer-me, desejo crer que por isso não deixareis de
manter essa palavra formalmente dada há poucos dias.
Desejo pois que tenhais a bondade de vos afastardes de
mim; de deixar este castelo, onde uma permanência mais longa
por vossa parte não poderia deixar de me expor ainda mais ao
julgamento de um público sempre pronto a pensar mal dos outros,
e que vós não tendes senão acostumado demais a fixar os
olhos sobre as mulheres que vos admitem na sua sociedade.
Informada já, há muito tempo, desse perigo pelos meus
amigos, negligenciei, combati mesmo a opinião deles enquanto
a vossa conduta a meu respeito me levou a crer que não nìe
tínheis querido confundir com a multidão de mulheres que,
todas elas, têm motivo de queixa de vós. Hoje que me tratais
como a elas, e que eu não posso ignorá-lo, devo ao público, aos
meus amigos, a mim própria, a necessidade de seguir esta resolução.
Poderia acrescentar aqui que nada ganharíeis se recusásseis
aceder ao meu pedido, pois estou decidida a partir eu própria,
se vos obstinardes em ficar: mas não procuro diminuir o
obséquio que vos ficarei devendo por essa bondade, e é meu
desejo que saibais que, tornando necessária a minha partida,
contrariaríeis as minhas combinações. Provai-me pois, senhor,
que, como me dissestes tantas vezes, as mulheres honestas não
terão nunca de queixar-se de vós; provai-me, pelo menos, que
quando lhes dais motivos de agravo, sabeis repará-los.
Se eu julgasse ter necessidade de justificar o meu pedido a
vossos olhos, bastar-me-ia dizer-vos que tendes passado a vossa
vida a torná-lo necessário, e que, todavia, não foi nunca minha
intenção vir a formulá-lo. Mas não recordemos acontecimentos
que quero esquecer, e que me obrigariam a julgar-vos com rigor,
num momento em que vos ofereço a ocasião de merecerdes
todo o meu reconhecimento. Adeus, senhor; a vossa conduta
me dirá quais os sentimentos com que devo ser, toda a minha
vida, a vossa humilde, etc.

25 de Agosto de 17 * *

1 Ver Carta XXXV

85

CARTa XLII

O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL

Por muito duras que sejam, senhora, as condições que me


impusestes, não recuso cumpri-las. Sinto que me seria impossível
contrariar qualquer dos vossos desejos. Uma vez de acordo
sobre este ponto, ouso supor que me permitireis, por meu lado,
que vos faça alguns pedidos, bem mais fáceis de conceder que os
vossos, e que todavia não desejo obter senão pela minha perfeita
submissão à vossa vontade.
Um, que espero será feito pela vossa justiça, é o de me nomeardes
os meus acusadores junto de vós; fizeram-me, ao que
julgo, bastante mal para que eu tenha o direito de os conhecer.
O outro, que espero da vossa indulgência, é o de permitirdes
que renove algumas vezes a homenagem de um amor que mais
do que nunca vai merecer a vossa piedade.
Pensai, senhora, que me apresso á obedecer-vos, ainda
mesmo quando não posso fazê-lo senão à custa da minha felicidade;
direi mais, apesar de estar persuadido de que não desejais
a minha partida senão para vos furtardes ao espectáculo, sempre
penoso, do objecto da vossa injustiça.
Deveis convir, senhora: é menor o vosso temor de um público
demasiado acostumado a respeitar-vos para ousar formular
sobre vós um juízo desfavorável, do que o vosso aborrecimento
pela presença de um homem que vos é mais fácil punir que censurar.
Afastais-me de vós como quem desvia os seus olhares de
um desgraçado que não se quer socorrer.
Mas, enquanto que a ausência vai redobrar os meus tormentos,
a que outra pessoa além de vós posso eu dirigir as minhas
queixas? De quem poderei esperar consolações que me vão
ser tão necessárias? Recusar-mas-eis, quando sois a causa única
das minhas penas?
Não vos admirareis, sem dúvida, que antes de partir eu me
tenha imposto justificar-me junto de vós dos sentimentos que
me inspirastes; como também que eu não encontre a coragem
para me afastar senão recebendo a ordem da vossa boca.
Esta dupla razão faz que vos peça um encontro de um
momento. Inutilmente quereríamos substituí-lo por cartas: escrevem-se
volumes e ficam mal explicadas as coisas que um
quarto de hora de conversação basta para esclarecer. Encontrareis
facilmente o tempo de mo concederdes: pois por muito
empenho que eu tenha em obedecer-vos, sabeis que Madame de
Rosemonde é conhecedora do meu projecto de passar junto dela
uma parte do Outono, e será pelo menos necessário que eu espere
uma carta para poder pretextar um assunto que me força a
partir.
Adeus, senhora; jamais esta palavra me custou a escrever
como neste momento, que me traz à ideia a nossa separação. Se
pudésseis imaginar o que tal palavra me faz sofrer, ouso crer
que vos sentiríeis um pouco grata pela minha docilidade. Recebei,
ao menos, com mais indulgência a certeza e a homenagem
do amor mais terno e mais respeitoso.

26 de Agosto de 17 * *

CONTINUAÇÃO DA CARTA XL

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Raciocinemos agora, minha bela amiga. Sentis como eu que


ao primeiro dos meus pedidos, e trair a confiança das suas amigas,
nomeando os meus acusadores; assim, prometendo tudo
sob esta condição, não chego a comprometer-me. Mas, como a
minha amiga compreenderá também, essa recusa tornar-se-á
um título para obter tudo o que resta; e nesse caso, afastando-me,
fica-me a vantagem de iniciar com ela, e com o seu consentimento,
uma correspondência em regra: pois a entrevista que
lhe peço pouco conta, e quase não tem outro objectivo que o de

a acostumar de antemão a não recusar outras, quando me forem


verdadeiramente necessárias.
A única coisa que me resta fazer antes da minha partida é
saber quais são as pessoas que se ocupam em me prejudicar junto
dela. Presumo que seja o pedante do marido; gostaria que
assim fosse: além de uma ofensa conjugal ser um aguilhão ao
, desejo, eu estaria certo que, desde o momento em que a minha
bela consentisse em escrever-me, nada mais teria a temer do
marido, visto ela encontrar-se já na necessidade de o enganar.
Mas, se ela tem uma amiga com a intimidade bastante para
lhe fazer as suas confidências, e se essa amiga é contra mim,
parece-me necessário fazer com que se zanguem, e conto ser
bem sucedido na tentativa. Mas antes de tudo preciso ser informado.
Cheguei ontem a pensar que o ia ser; mas essa mulher não
faz nada como qualquer outra. Encontrávamo-nos nos seus
aposentos, quando vieram dizer-nos que o jantar estava servido.
Ela acabava de se arranjar, e ao mesmo tempo que se apressava
e nos pedia desculpa, notei que deixava ficar a chave na secretária;
e eu sei que ela não costuma tirar a do quarto. Pensava nisso
enquanto jantávamos, quando ouvi descer a criada: tomei imediatamente
o meu partido; fingi que sangrava do nariz e saí.
Dirigi-me em seguida à secretária, mas encontrei todas as gavetas
abertas, e nem um papel escrito. Contudo, não há ocasião
para os queimar nesta estação. Que faz ela das cartas que recebe?
E o certo é que recebe muitas. Não tive o mínimo descuido
tudo estava aberto, e procurei por toda a parte: mas nada ganhei
com isso, salvo o convencer-me de que esse depósito precioso
está nos seus bolsos.
Como conseguir tirar-lhe as cartas? Desde ontem que me
ocupo inutilmente a encontrar um meio: entretanto não posso
vencer o desejo de o fazer. Lamento não possuir o talento dos
larápios. Não é certo que tal talento devia entrar na educação
de um homem que não desdenha as intrigas? Não seria agradável
furtar a carta ou o retrato dum rival, ou tirar dos bolsos de
uma hipócrita o que bastasse para a desmascarar? Mas os nossos
pais não pensam em nada; e eu, por muito que pense em
tudo, não posso deixar de me convencer de que sou um desajeitado
sem remédio.
De qualquer forma, acabei por voltar à mesa, muito descontente.
A minha bela acalmou, contudo, um pouco o meu mau
humor com o interesse que tomou pela minha fingida indisposição,
e eu não deixei de lhe afirmar que, já há algum tempo, sentia
perturbações violentas que alteravam a minha saúde. Persuadida
como está de ser ela a causa dessas perturbações, não é
verdade que devia, de acordo com a sua consciência, fazer por
acalmá-las? Mas, com toda a sua devoção, é pouco caridosa:
recusa toda a esmola de amor, e essa recusa chega bem, ao que
parece, para autorizar que lha roubem. Mas adeus; pois embora
conversando com a minha amiga, não penso senão nessas malditas
cartas.

27 de Agosto de 17 * *

CARTA XLIII

A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT

Por que procurais, senhor, diminuir o meu reconhecimento?


Por que desejais obedecer-me pela metade e de algum modo
regateais um procedimento honesto? Não somente pedis muito,
como pedis coisas impossíveis. É certo que amigos meus me falaram
de vós e se o fizeram foi apenas por interesse por mim; e
ainda que se tivessem enganado, nem por isso deixariam de o
fazer com boa intenção. E, segundo a vossa proposta, eu reconheceria
essa prova de dedicação da sua parte, denunciando-vos
o seu segredo! Eu não devia ter-vos falado em tal, fazeis-me sentir
neste momento! O que com qualquer outra pessoa seria uma
ingenuidade, torna-se perante vós leviandade, que me levaria a
cometer uma feia acção se acedesse ao vosso pedido. Apelo para
vós mesmo, para a vossa honestidade: julgais-me capaz de semelhante
procedimento? Achais em verdade que me deveríeis
ter feito tal proposta? Não, sem dúvida; e estou certa de que, se
reflectirdes melhor, não voltareis a fazer esse pedido.
O outro pedido que me fazeis (o de escrever) não é mais fácil
de conceder; e se quiserdes ser justo, não é de mim que podereis
queixar-vos. Não desejo ofender-vos; mas com a reputação
que adquiristes, e que, segundo a vossa própria confissão, merecereis
pelo menos em parte, que mulher poderia confessar que
mantinha correspondência convosco? E que mulher honesta
pode determinar-se a fazer aquilo que seria obrigada a esconder?

Ainda se as vossas cartas fossem de tal modo que nunca eu


tivesse de lamentar-me delas, que pudesse sempre justificar-me
a meus olhos de as ter recebido! Talvez então o desejo de vos
provar que é a razão e não o ódio que me guia os passos me levasse
a esquecer esses poderosos motivos, e a fazer mais do que
devia permitindo-vos que me escrevêsseis algumas vezes. Se na
verdade o desejais tanto como o dizeis, de bom grado vos sujeitareis
à única condição que me poderia levar a consentir-vos tal;
e se sentis algum reconhecimento pelo que neste momento faço
por vós, não adiareis mais a vossa partida.
Permiti-me que a este respeito vos observe que recebestes
esta manhã uma carta e que não a aproveitastes para anunciar a
vossa partida a Madame de Rosemonde, como me havíeis prometido.
Espero que presentemente nada poderá impedir-vos de
cumprir a vossa palavra. Conto principalmente que não esperareis,
para isso, o encontro que me pedis, ao qual não quero absolutamente
prestar-me; e que, em vez da ordem que pretendeis
ser-vos necessária, vos contentareis com a súplica que vos renovo.
Adeus, senhor.

27 de Agosto de 17 * *

CARTA XLIV

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Podeis partilhar a minha alegria, minha boa amiga: sou


amado: triunfei daquele coração rebelde. É em vão que ele dissimula
ainda; a minha bem sucedida astúcia surpreendeu o seu
segredo. Graças à actividade que empreguei, sei tudo o que me
interessa: desde a noite, a feliz noite de ontem, encontro-me no
meu elemento. Retomei o fio de toda a minha existência; descobri
um duplo mistério de amor e de iniquidade: gozarei dum e
vingar-me-ei do outro; voarei de prazer em prazer. Só de o pensar
sinto-me entusiasmado a tal ponto que é com algum custo
que me lembro de quanta prudência me é necessária; a custo
também conseguirei talvez pôr alguma ordem na narração que
passo a fazer. Entretanto, experimentemos.
Ontem mesmo, depois de lhe ter escrito a minha carta, recebi
uma da celestial devota. Aqui a junto: a minha amiga verá
que ela me dá, o menos desajeitadamente que pode, a permissão
de lhe escrever. No entanto apressa a minha partida e eu senti
que não podia adiá-la por mais tempo sem desvantagem para
mim.
Entretanto, atormentado pelo desejo de saber quem poderia
ter-lhe escrito coisas desagradáveis a meu respeito, estava ainda
incerto quanto ao partido que tomaria. Tentei subornar a criada de quarto
e pretendi obter dela que me facultasse os bolsos
da sua ama, de que ela poderia apoderar-se facilmente de noite,
e que lhe seria fácil tornar a colocar no mesmo lugar de manhã,
i sem despertar a menor suspeita. Ofereci dez luízes por esse
trabalho ligeiro. Mas vi-me diante de uma hipócrita, escrupulosa
i ou tímida, que nem a minha eloquência nem o meu dinheiro
conseguiram vencer. Continuava a pregar-lhe, quando chegou a
hora da ceia. Tive de a deixar, dando-me ainda por feliz por ela
me prometer guardar segredo, com o qual, como decerto imagina,
eu não podia contar.
Nunca tive tamanho aborrecimento. Sentia-me comprometido;
e a mim próprio censurei, durante toda a noite, a minha
imprudente tentativa.
. Retirei-me para o meu quarto, não sem inquietação, e falei
com o meu criado, que, na sua qualidade de amante feliz, devia
, ter algum crédito. Pretendia eu, ou que ele obtivesse dessa
rapariga aquilo que eu lhe tinha pedido, ou pelo menos que se assegurasse
da sua reserva: mas ele, que de ordinário não duvida de
nada, pareceu duvidar do êxito dessa negociação, e a tal respeito
teve uma reflexão que me espantou pela sua profundeza. Disse-me ele:
' "O senhor sabe com certeza melhor do que eu que dormir
com uma rapariga é só a gente conseguir que ela faça aquilo que
' lhe agrada; de aí a conseguirmos que ela faça aquilo que nós
queremos vai uma grande distância."

Le bon sens du Maraud quelquefois m'épouvante.


, "Eu não me responsabilizo por esta", acrescentou
ele, "tanto mais que tenho razões para supor que ela tem um amante, e o
que consegui junto dela foi por não haver mais nada que fazer
, aqui no campo. Se não fosse o meu apego ao serviço do senhor,
só o teria conseguido uma vez". (É um verdadeiro tesouro este
rapaz!) "Quanto ao segredo", acrescentou ele ainda, "de que
serve fazer que ela o prometa, se não arrisca nada em nos enganar?
Tornar a falar-lhe nisso é o mesmo que dar-lhe conta da
importância da coisa, e daí dar-lhe mais vontade de meter tudo
no bico à senhora".
Quanto mais eram justas estas reflexões, mais o meu embaraço
aumentava; felizmente o maroto estava disposto para a
conversa; e como eu tinha precisão dele, deixei-o tagarelar. Ao
mesmo tempo que me contava a sua história com a rapariga, lá
fui sabendo que o quarto que ela ocupa é separado do da senhora
só por um tabique, que podia deixar ouvir qualquer ruído
suspeito e que era no dele que se encontravam todas as noites.
Desde logo formei o meu plano, comuniquei-lho, e executámo-lo
com êxito.
Esperei as duas da manhã; e então dirigi-me, como tínhamos
combinado, ao quarto do encontro, levando luz comigo e
com o pretexto de ter tocado várias vezes inutilmente. O meu
confidente, que desempenha os seus papéis à maravilha, simulou
uma pequena cena de surpresa, de desespero e de desculpa,
a que pus termo mandando-o aquecer água, de que fingi ter precisão;
isto enquanto a escrupulosa camareira estava tanto mais
envergonhada, quanto é certo que o patife, indo muito além dos
meus projectos, a obrigara a uma toilette que a estação comportava,
mas que de modo algum desculpava.
Sentindo que quanto mais a rapariga fosse humilhada mais
facilmente eu disporia dela, não lhe permiti mudar de situação
nem de vestimenta; e depois de ter ordenado ao meu criado que
me esperasse no meu quarto, sentei-me ao lado dela sobre a
cama, que estava muito em desordem, e comecei a minha conversa.
Eu tinha necessidade de manter o domínio que as circunstâncias
me davam sobre ela: por isso conservei um sangue-frio
que teria feito honra à castidade de Cipião: e sem tomar a menor
liberdade com ela, o que, todavia, a sua frescura e a ocasião
pareciam dar-lhe o direito de esperar, falei-lhe de negócios tão
tranquilamente como o poderia fazer com um procurador.
As minhas condições foram que eu guardaria fielmente segredo,
contanto que no dia seguinte, à mesma hora pouco mais
ou menos, ela me confiasse os bolsos da sua senhora. "Além
disso", acrescentei, "eu ontem tinha-lhe oferecido dez luíses;
hoje mantenho a oferta. Não quero abusar da sua situação".
Tudo ficou combinado, como pode imaginar; retirei-me então e
permiti ao par feliz que recuperasse o tempo perdido.
O meu tempo, empreguei-o a dormir; e ao despertar, querendo
ter um pretexto para não responder à carta da minha bela
antes de ter revistado os seus papéis, o que só podia fazer na
noite seguinte, decidi-me a ir à caça, no que ocupei quase todo o
dia.
Na volta, fui recebido com bastante frieza. Tive razão para
supor que houvesse um pouco de melindre por eu mostrar tão
pouco empenho em aproveitar o escasso tempo que me restava;
principalmente depois da carta mais branda que me tinha sido
escrita. Supu-lo assim, porque, tendo-me Madame de Rosemonde
feito algumas censuras pela longa ausência, a minha, bela retrucou
com um pouco de azedume: "Ah! Não censuremos ao
senhor de Valmont que se entregue ao único prazer que pode
encontrar." Lamentei-me da injustiça e aproveitei para assegurar
às duas senhoras que me agradava tanto a sua companhia
que por ela ia sacrificar uma carta de muito interesse que tinha a
escrever. Acrescentei que, não podendo conciliar o sono desde
algumas noites, quisera experimentar se a fadiga faria que eu o
recuperasse; e os meus olhares explicavam com suficiente clareza
o assunto da minha carta e a causa da minha insónia. Tive o
cuidado de aparentar durante o serão uma doçura melancólica
que me pareceu cair bem, e sob a qual eu mascarava a impaciência
de ver chegar a hora que deveria revelar-me o segredo que se
obstinavam em esconder-me. Separamo-nos por fim, e algum
tempo depois a fiel criada de quarto veio trazer-me o preço
combinado do meu segredo.
Uma vez de posse deste tesouro, procedi ao inventário com
a prudência que a minha amiga me conhece: pois era importante
que tudo voltasse aos seus lugares. Primeiro deparei com duas
cartas do marido, mistura indigesta de pormenores de processos
e de tiradas de amor conjugal, que tive a paciência de ler até ao
fim e não encontrei uma palavra que me dissesse respeito. Pu-las
no seu lugar, de mau humor; mas este abrandou quando me vieram
às mãos os pedaços da minha famosa carta de Dijon, cuidadosamente
reunidos. Felizmente tive a fantasia de a reler. Imagine
a minha alegria, distinguindo nela os sinais, bem visíveis, das
lágrimas da minha adorável devota. Confesso, cedi a um movimento
de rapaz e beijei essa carta com um transporte de que já
não me julgava susceptível. Continuei o feliz exame; encontrei
todas as minhas cartas seguidas e por ordem de datas. E o que
me surpreendeu mais agradavelmente ainda foi ter encontrado a
primeira de todas, aquela que eu supunha ter-me sido devolvida
por uma ingrata, fielmente copiada pela sua mão, e com uma
ortografia alterada e trémula, que testemunhava com suficiente
clareza os doces debates do seu coração enquanto disso se ocupara.
Até ali todo eu estava entregue ao amor; depressa este deu
lugar à cólera. Quem imagina a minha amiga que queira perder-me
aos olhos dessa mulher que eu adoro? Qual é a Fúria
que supõe com maldade bastante para maquinar semelhante
perfídia? A Marquesa conhece-a: é a sua amiga, a sua parenta; é
Madame de Volanges. Não imagina que tecido de horrores a
infernal megera lhe escreveu a meu respeito. Foi ela, ela unicamente
quem perturbou a tranquilidade dessa mulher angélica, é
pelos seus conselhos, pelas suas opiniões perniciosas, que eu me
vejo forçado a afastar-me; é a ela enfim, que eu sou sacrificado.
Ah! Não duvide que é preciso seduzir-lhe a filha. Mas isso não é
o bastante, é preciso perdê-la; e já que a idade dessa maldita
mulher a põe ao abrigo dos meus golpes, é preciso feri-la no
objecto das suas afeições.
Quer ela então que eu regresse a Paris! É ela quem me obriga
a isso! Seja, voltarei, mas há-de gemer pelo meu regresso.
Aborrece-me que seja Danceny o herói desta aventura. Tem um
fundo de honestidade que será para nós um obstáculo. É certo
que está apaixonado, e eu vejo-o muitas vezes; talvez se possa
tirar partido dessas circunstâncias. A minha cólera fez-me esquecer
que lhe devo ainda a narração do que se passou hoje.
Reatemos.
Esta manhã voltei a ver a minha sensível devota. Nunca a
tinha achado tão bela. Tinha de ser assim: o mais belo momento
duma mulher, o único em que ela pode produzir embriaguez de
alma de que se fala sempre e que tão raras vezes se experimenta,
é aquele em que, seguros do seu amor, não o estamos dos seus
favores; e era precisamente o caso em que me encontrava. Talvez
também a ideia de que ia ser privado do prazer de a ver servisse
para a embelezar. Enfim, à chegada do correio entregaram-me
a sua carta de 27; e, enquanto a lia, hesitava ainda em
saber se manteria a minha palavra; mas encontrei os olhos da
minha bela, e ter-me-ia sido impossível recusar-lhe fosse o que
fosse.
Anunciei pois a minha partida. Um momento depois, Madame
de Rosemonde deixou-nos sós; mas, estava eu ainda a
quatro passos da feroz criatura, já ela se levantava com um aspecto
horrorizado, dizendo-me: "Deixe-me, deixe-me, senhor;
em nome de Deus, deixe-me." Esta súplica fervorosa, que denunciava
a sua emoção, teve apenas o efeito de mais me encorajar.
Já eu estava perto dela e lhe segurava as mãos, que ela juntara
com uma expressão absolutamente comovente; já eu balbuciava
ternas queixas, quando um demónio inimigo fez regressar
Madame de Rosemonde. A tímida devota, que na verdade
tem alguns motivos para receio, aproveitou o momento para se
retirar.
Ofereci-lhe todavia a mão, que ela aceitou; e, augurando
bem esta benevolência, de que ela não usava havia muito tempo,
ao mesmo tempo que recomeçava as minhas queixas procurava
apertar-lhe a sua. Primeiro ela quis retirá-la; mas, após
uma instância mais viva, entregou-se sem grande resistência,
ainda que sem responder nem a este gesto nem às minhas palavras.
Chegado à porta dos seus aposentos, quis beijar-lhe a mão
antes de a deixar. A defesa começou por ser franca; mas um
pense que vou partir, pronunciado com muita ternura, tornou-a
indecisa e frouxa. Mal eu tinha dado o beijo, a mão encontrou
força para se escapar, e a bela entrou nos seus aposentos onde a
esperava a criada de quarto. Aqui finda a minha história.
Como presumo que a minha amiga esteja amanhã em casa
da Marechala de..., onde com certeza não poderei encontrá-la;
como suponho também que no nosso primeiro encontro teremos
mais de um assunto a tratar, e principalmente o da pequena
Volanges, que não perco de vista, tomei o partido de me fazer
preceder por esta carta; e por muito longa que seja, não a fecharei
senão no momento de a enviar ao correio, pois nas circunstâncias
em que me encontro tudo pode depender de uma ocasião;
e deixo-a agora para espiar o momento.
P. S. - Às oito horas da noite.
Nada de novo; nem o mais pequeno momento de liberdade:
houve até a preocupação de o evitar. No entanto, tanta tristeza
como a cedência permitia, pelo menos. Outro acontecimento
que não pode ser indiferente é que estou encarregado dum convite
de Madame de Rosemonde a Madame de Volanges para vir
passar algum tempo ao castelo.
Adeus, minha bela amiga; até amanhã ou depois de amanhã
o mais tardar.

28 de Agosto de 17 * *

CARTA XLV

A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE VOLANGES

O senhor de Valmont partiu esta manhã, senhora; pareceu-me


que desejáveis tanto esse afastamento, que julguei do meu
dever dar-vos conhecimento dele. Madame de Rosemonde lamenta
muito seu sobrinho, cuja convivência, devemos convir, é
agradável: passou toda a manhã a falar-me dele com a sensibilidade
que lhe conheceis; não se cansava de o elogiar. Julguei
dever-lhe a complacência de a ouvir sem a contradizer, tanto
mais que é preciso confessar que ela tinha razão sobre muitos
pontos. Demais, eu sentia que tinha a censurar-me ser a causa
desta separação, e não espero poder compensá-la do prazer de
que a privei. Sabeis que de meu natural tenho pouca alegria, e o
género de vida que vamos levar aqui não é de molde a aumentá-la.
Se eu não me tivesse conduzido em concordância com as
vossas advertências, recearia ter procedido com um pouco de
ligeireza, pois me sinto verdadeiramente penalizada com a dor
da minha respeitável amiga; comoveu-me a um ponto que de
bom grado teria juntado as minhas lágrimas às suas.
No presente momento vivemos na esperança de que aceiteis
o convite que o senhor de Valmont deve fazer-vos, da parte da
Madame de Rosemonde, de virdes passar algum tempo em casa
dela. Espero que não duvidareis do prazer que teria em ver-vos
aqui; deveis-me na verdade essa recompensa. Ficaria muito contente
de aproveitar essa ocasião para tomar conhecimento mais
amplo com Mademoiselle de Volanges, e para de mais perto vos
poder convencer dos sentimentos respeitosos, etc.

29 de Agosto de 17 * *

CARTA XLVI

O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES

Que foi que lhe aconteceu, minha adorável Cecília? Que


circunstância pôde causar em si uma mudança tão rápida e tão
cruel? Que fez dos seus juramentos de nunca mudar? Ontem
ainda, repetia-os com tanto prazer! Quem teria podido hoje fazê-los
esquecer? Debalde faço exame de consciência; não posso
achar em mim a causa, e tenho horror em a procurar em si. Ah!
não suspeito que a Cecília seja leviana ou goste de enganar; e
mesmo neste momento de desespero, nenhuma suspeita ultrajante
conspurcará a minha alma. No entanto, por que fatalidade
não é já a mesma? Não, cruel, já não é a mesma! A terna Cecília,
a Cecília que eu adoro, e de quem recebi as juras, não teria
evitado os meus olhares, não teria contrariado o acaso feliz que
me colocou junto dela; ou, se qualquer razão que eu não posso
conceber a tivesse obrigado a tratar-me com tamanho rigor, não
teria ao menos desdenhado dizer-me o motivo.
Ah ! minha Cecília, não sabe, não saberá nunca o que me fez
sofrer hoje, o que sofro ainda neste momento. Julga pois que eu
possa viver e não ser amado por si? No entanto, quando lhe
pedi uma palavra, uma única palavra, para dissipar os meus
receios, em lugar de me responder, fingiu que tinha receio de ser
ouvida; e esse obstáculo que então não existia, fê-lo a Cecília
aparecer nesse momento, pelo lugar que escolheu entre os convidados.
Quando, forçado a deixá-la, lhe perguntei a hora a que
poderia voltar a vê-la amanhã, fingiu ignorá-la, e foi preciso que
Madame de Volanges ma indicasse. Assim esse momento sempre
tão desejado que deve aproximar-nos, amanhã só fará nascer
em mim inquietação; e o prazer de a ver, até agora tão caro
ao meu coração, será substituído pelo receio de lhe ser importuno.
Sinto que já esse receio me detém, e não ouso falar-lhe do
meu amor. Aquele amo-o, que eu gostava tanto de repetir quando
o ouvia, essa palavra tão doce, que bastava para a minha felicidade,
não oferece para mim agora, se a Cecília está mudada,
mais do que a imagem do desespero eterno. Não posso crer todavia
que esse talismã do amor tenha perdido todo o seu poderio,
e experimento servir-me dele ainda,. Sim, minha Cecília
amo-a. Repita pois comigo esta expressão da minha felicidade.
Pense que me habituou a ouvi-la, e que privar-me dela é condenar-me
a um tormento que, tal como o meu amor, só acabará
com a minha vida.

29 de Agosto de 17 * *

CARTA XLVII

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Não a verei ainda hoje, minha bela amiga, e aqui estão as


minhas razões, que lhe peço receba com indulgência. Ontem
em vez de fazer directamente a viagem de regresso, parei em
casa da Condessa de..., cujo castelo se encontrava quase no
meu caminho, e a quem pedi de jantar. Só cheguei a Paris por
volta das sete horas, e desci na Ópera, onde pensei que a Marquesa
poderia estar.
Finda a ópera, fui ao salão para voltar a ver as minhas amigas;
lá encontrei a minha velha Emília, rodeada de uma corte
numerosa, tanto de mulheres como de homens, a quem ela dava
de cear nessa mesma noite em P... Mal eu me tinha reunido à
sociedade, fui rogado para assistir à ceia, por aclamação. Aos
rogos de todos juntaram-se os de uma figurinha gorda e baixa
que me algaraviou um convite em francês da Holanda, e que
reconheci como verdadeiro herói da festa. Aceitei.
Pelo caminho, soube que a casa a que nos dirigíamos era o
preço convencionado das bondades de Emília para aquela figura
grotesca, e que a ceia era um verdadeiro banquete de núpcias.
O homenzinho não cabia em si de contente, na expectativa da
felicidade que ia gozar. Pareceu-me tão satisfeito, que me deu
vontade de perturbar a sua alegria; o que de facto fiz.
A única dificuldade que tive foi decidir Emília, a quem a
riqueza do burgomestre tornava um pouco escrupulosa. Acabou
por se prestar, contudo, depois de algumas combinações,
ao projecto, que lhe comuniquei, de encher de vinho aquele
pequeno tonel de cerveja, e de o pôr assim fora de combate por
toda a noite.
A ideia sublime que tínhamos formado de um bebedor holandês
fez que empregássemos todos os meios conhecidos. O
êxito foi tão grande, que à sobremesa já ele não tinha força
para segurar o copo; mas a caridosa Emília e eu engorgitávamo-lo
o mais que podíamos. Por fim caiu para debaixo da mesa,
numa bebedeira tal que deve pelo menos durar oito dias. Decidimo-nos
então a recambiá-lo para Paris; e como ele não tinha
levado a sua carruagem, mandei-o pôr na minha, e fiquei em seu
lugar. Recebi em seguida os cumprimentos da assembleia, que
se retirou pouco depois, e me deixou senhor do campo de batalha.
Toda aquela alegria, e talvez o meu longo retiro, fizeram-me
achar Emília tão desejável que lhe prometi ficar com ela até
à ressurreição do holandês.
Esta complacência da minha parte é o preço da que ela acaba
de ter, servindo-me de secretária para escrever à minha bela
devota, a quem achei divertido enviar uma carta escrita na cama
e quase entre os braços de uma prostituta, interrompida mesmo
por uma infidelidade completa, e na qual lhe fiz uma narração
exacta da minha situação e do meu procedimento. Emília, que
leu a epístola, riu como uma louca, e espero que a Marquesa rirá
também.
Como é necessário que a minha carta leve o carimbo de Paris,
envio-lha; deixo-a aberta. A minha amiga fará o favor de a
ler, lacrar e mandar pôr no correio. Sobretudo não esqueça que
não deve servir-se do seu sinete, nem mesmo de qualquer emblema
amoroso; um cunho qualquer serve. Adeus, minha bela
amiga.

P. S. - Torno a abrir a minha carta; convenci Emília a ir ao


Teatro dos Italianos... Aproveitarei esse intervalo para ir ver a
minha amiga. Estarei em sua casa às seis horas o mais tardar; e,
se isso lhe convier, iremos juntos por volta das sete horas a casa
de Madame de Volanges. Será decente que eu não demore o
convite que tenho a fazer-lhe da parte de Madame de Rosemonde;
além disso, serei feliz de voltar a ver a pequena Volanges.

Adeus, ó belíssima dama. Desejo ter tanto prazer em abraçá-la,


que o Cavaleiro possa sentir ciúmes.

De P..., 30 de Agosto de 17 * *.

CARTA XLVIII

O VISCONDE DE VALMONT À PRESIDENTE DE TOURVEL

(Correio de Paris)

É depois de uma noite tempestuosa, e durante a qual não


pude conciliar o sono; é depois de ter estado sem cessar ou na
agitação de um ardor febricitante, ou no total aniquilamento de
todas as faculdades da minha alma, que venho procurar junto
de vós senhora, uma calma de que tenho necessidade, e da qual
todavia não espero poder gozar ainda. Na verdade, a situação
em que me encontro ao escrever-vos dá-me a conhecer mais do
que nunca o poder irresistível do amor. A custo consigo manter
domínio suficiente sobre mim para pôr alguma ordem nas minhas
ideias; e desde já prevejo que não terminarei esta carta sem
ser obrigado a interrompê-la. Pois quê! Não poderei esperar que
partilheis algum dia a perturbação que experimento neste instante?
Ouso crer entretanto que, se pudésseis fazer uma ideia do
que sinto, não ficaríeis inteiramente insensível. Podeis crer, senhora:
a fria tranquilidade, o sono da alma, imagem da morte,
não levam à felicidade; só as paixões vivas podem conduzir lá.
E apesar dos tormentos que me fazeis suportar, posso assegurar-vos
sem receio que, neste momento, sou mais feliz do que
vós. Em vão sobre mim pesam os vossos rigores implacáveis:
não impedirão que eu me abandone inteiramente ao amor e que
esqueça, no delírio que em mim causa, o desespero a que me
entregais. É assim que eu me quero vingar do exílio a que me
condenastes. Nunca tive tanto prazer em escrever-vos. Nunca
senti, nesta ocupação, uma emoção tão doce e todavia tão viva.
Tudo parece aumentar a minha exaltação: o ar que respiro é
pleno de volúpia; até a mesa sobre que vos escrevo, consagrada
pela primeira vez a este uso, se torna para mim o altar sagrado
do amor. Como vai embelezar-se a meus olhos, por ter traçado
sobre ela o juramento de vos amar sempre! Perdoai, suplico-vos,
a desordem dos meus sentidos! Eu deveria talvez abandonar-me
menos a transportes que não partilhais. Preciso deixar-vos
por um momento para dissipar uma embriaguez que aumenta
a cada instante, e que se torna mais forte do que eu.
Volto a vós, senhora, e volto sem dúvida com o mesmo fervor.
Entretanto o sentimento da felicidade fugiu para longe de
mim, dando lugar ao das privações cruéis. De que me serve falar-vos
dos meus sentimentos, se procuro em vão os meios de
vos convencer? Após tantos e tão repetidos esforços, a confiança
e a força abandonam-me ao mesmo tempo. Se imaginn ainda
os prazeres do amor, é para sentir mais vivamente o pesar de ser
deles privado. Não vejo outro recurso que o da vossa indulgência,
e sinto demasiado, neste momento, quanto dela tenho necessidade
para esperar obtê-la. Entretanto, nunca o meu amor
foi mais respeitoso, nunca ele deveu ofender-vos menos. É de tal
maneira, ouso dizê-lo, que a virtude mais severa não poderia ter
qualquer receio dele; mas eu próprio temo falar-vos por mais
tempo do sofrimento que sinto. Certo de que o ente que o causa
não o partilha, não devo ao menos abusar das suas bondades; e
seria fazê-lo se empregasse mais tempo a descrever esta dolorosa
imagem. Não tomo mais do que o de suplicar-vos uma resposta,
e que não duvideis nunca da verdade dos meus sentimentos.

Escrita de P..., datada de Paris, 30 de Agosto de 17 **

CARTA XLIX

CECíLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY


Sem ser leviana nem gostar de enganar, basta-me, senhor,
ser esclarecida sobre o meu procedimento para sentir a necessidade
de o mudar; prometi esse sacrifício a Deus, até poder oferecer-lhe
também o dos meus sentimentos por vós, que o estado
religioso em que vos encontrais torna mais criminosos ainda.
Sinto bem que isso me fará sofrer, e não vos esconderei mesmo
que desde anteontem tenho chorado todas as vezes que penso
em vós. Mas espero que Deus me fará a graça de me dar a força
necessária para vos esquecer, como lhe peço de manhã à noite.
Espero mesmo da vossa amizade, e da vossa honestidade, que
não tentareis perturbar-me na boa resolução que me inspirou, e
na qual procuro manter-me. Peço, por consequência, que tenhais
a bondade de não voltar a escrever-me, tanto mais que vos
previno de que não responderei, e que me forçaríeis a avisar a
Mamã de tudo o que se passa: o que me privaria absolutamente
do prazer de vos ver.
Não deixarei de conservar por vós toda a dedicação que se
possa ter sem que nisso haja algum mal; e é de toda a minha
alma que vos desejo toda a espécie de felicidade. Sinto bem que
deixareis de amar-me tanto, e que em breve amareis talvez outra
melhor do que eu. Mas isso será mais uma penitência da falta
que eu cometi ao dar-vos o meu coração, que eu devia dar só a
Deus, e a meu marido quando o tiver. Espero que a misericórdia
divina tenha piedade da minha fraqueza, e que não me dê sofrimentos
que eu não possa suportar.
Adeus, senhor; posso assegurar-vos que, se me fosse permitido
amar alguém, não amaria outro além de vós. Mas eis tudo
o que eu posso dizer, e talvez seja mais do que deveria.

31 de Agosto de 17 * *

CARTA L

A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT

É então desta maneira, senhor, que correspondeis às condições


que vos pus para receber algumas vezes cartas vossas? E
posso eu não ter de que me queixar, quando nelas não me falais
senão de um sentimento ao qual eu recearia ainda entregar-me,
mesmo que o pudesse fazer sem ferir todos os meus deveres ?
Aliás, se eu necessitasse de novas razões para conservar esse
receio salutar, parece-me que as poderia encontrar na vossa última
carta. De facto, no próprio momento em que julgais fazer a
apologia do amor, que fazeis, pelo contrário, senão mostrar-me
as temíveis tempestades a que ele dá lugar? Quem poderá desejar
uma felicidade adquirida à custa da razão, e cujos prazeres
pouco duráveis são pelo menos seguidos pelos pesares, quando
o não são pelos remorsos?
Vós próprio, em quem o hábito desse delírio perigoso deve
diminuir-lhe o efeito, não sois obrigado a confessar que ele se
torna mais forte que vós, e não sois o primeiro a queixar-vos da
perturbação involuntária que ele em vós causa? Que horrível
devastação não produziria ele num coração jovem e sensível,
que aumentaria o seu poder pela grandeza dos sacrifícios que
seria obrigado a fazer-lhe?
Julgais, senhor, ou fingis julgar, que o amor conduz à felicidade;
e eu persuado-me a tal ponto de que ele me tornaria desgraçada,
que desejaria não ouvir nunca pronunciar o seu nome.
Afigura-se-me que só o falar dele altera a tranquilidade; e é tanto
por gosto como por dever que vos peço que
guardeis silêncio a tal respeito.
No fim de contas, deve ser-vos fácil presentemente conceder-me
o que vos peço. De regresso a Paris, encontrareis aí bastas
ocasiões de esquecer um sentimento que deve o seu nascimento
talvez apenas ao hábito de vos ocupardes de tais assuntos,
e a sua força à ociosidade do campo. Nesse mesmo lugar
onde estais, não me vistes tantas vezes com indiferença? Podereis
dar aí um passo sem encontrardes um exemplo da vossa facilidade
em mudar, e não estais aí rodeado de mulheres, que,
todas mais amáveis do que eu, têm talvez mais direito às vossas
homenagens? Não tenho a vaidade que é censurada ao meu
sexo; tenho ainda menos essa falsa modéstia que é apenas um
refinamento do orgulho; e é de muito boa fé que vos digo aqui
que reconheço em mim muito poucos meios de agradar: mas
ainda que dispusesse de todos, não os julgaria suficientes para
vos chamar a atenção. Pedir-vos que não vos ocupeis de mim é
apenas rogar-vos que façais hoje o que já fizestes
o que com toda a certeza faríeis dentro de pouco tempo, ainda que eu vos
pedisse o contrário.
Esta verdade, que eu não perco de vista, seria, por si só, uma
razão bastante forte para não querer ouvir-vos. Tenho mil outras
razões ainda: mas sem entrar nessa longa discussão, limito-me
a suplicar-vos, como já fiz, que não volteis a falar-me
num sentimento que eu não devo atender, e ao qual devo ainda
menos responder.

1 de Setembro de 17* *.

SEGUNDA PARTE

CARTA LI

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Na verdade, Visconde, é insuportável. Trata-me com tanta


ligeireza como se eu fosse sua amante. Sabe que acabei por me
zangar, e que estou neste momento com um humor horrível?
Como! O Visconde precisa ver Danceny amanhã de manhã;
sabe como é importante que eu lhe fale antes dessa entrevista; e
sem se inquietar muito, deixa que eu o espere todo o dia, para
correr atrás sei lá de quê! É o senhor o causador de que eu tenha
chegado indecentemente tarde a casa de Madame de Volanges e
de que todas as senhoras de certa idade me tenham achado
maravilhosa. Foi-me necessário estragá-las com mimos toda a
noite para as apaziguar: pois ninguém se deve zangar com as
mulheres de certa idade; são elas que fazem a reputação das
novas.
Deu já uma hora da manhã, e em lugar de me deitar, e morro
de vontade de o fazer, é preciso que lhe escreva uma longa
carta, que vai redobrar o meu sono pelo aborrecimento que ela
me vai causar. Pode dar-se por feliz de eu não ter tempo para lhe
ralhar mais. Não vá julgar por isso que lhe perdoo; é só porque
estou com muita pressa. Escute, pois, que vou despachar-me.
Por pouco que o Visconde seja hábil, tem de ouvir amanhã
as confidências de Danceny. O momento é favorável para a confiança:
é o momento da desgraça. A pequena foi à confissão;
disse tudo, como uma criança; e depois ficou atormentada a tal
ponto com medo do diabo, que quer romper absolutamente.
Contou-me todos os seus pequenos escrúpulos, com uma vivacidade
que me deu a perceber quanto o medo lhe tinha subido à
cabeça. Mostrou-me a carta de rompimento, que é um verdadeiro
sermão. Tagarelou uma hora comigo, sem me dizer uma palavra
que tivesse senso comum. Mas nem por isso me deixou
menos confusa; pois o Visconde imagina que eu não podia falar
abertamente a uma cabecinha a tal ponto transtornada.
Pude entretanto entender, no meio de toda aquela tagarelice,
que ela não gosta menos do seu Danceny; notei mesmo que
ela lança mão de um daqueles recursos que ao amor nunca faltam,
e a que a rapariguinha se presta de boa vontade, enganando-se
a si mesma. Atormentada pelo desejo de se ocupar do seu
namorado, e pelo receio de ser condenada ocupando-se dele,
imaginou rogar a Deus que lho faça esquecer e, como renova
esse rogo a cada instante do dia, encontra o meio de pensar nele
constantemente.
Com qualquer que estivesse mais usado que Danceny, este
pequeno acontecimento seria talvez mais favorável que contrário,
mas o rapaz é tão lamecha que, se não o ajudarmos, ser-lhe-á
necessário tanto tempo para vencer os mais ligeiros obstáculos
que não nos deixará o de efectuarmos o nosso projecto.
O Visconde tem razão; é pena, e estou tão aborrecida com
isso como o senhor, que seja ele o herói desta aventura. Mas que
quer? O que está feito está feito; e a culpa é sua. Pedi que me
mostrasse a resposta dele; fez-me pena. Danceny apresenta-lhe
razões até perder o fôlego, para lhe provar que um sentimento
involuntário não pode ser um crime: como se não deixasse de
ser involuntário, no momento em que se deixa de o combater!
Esta ideia é tão simples, que até à pequena ocorreu. Ele queixa-se
da sua infelicidade de uma forma bastante comovente, mas a
sua dor é tão doce e parece tão forte e tão sincera, que julgo
possível que uma mulher que encontra ocasião de desesperar
um homem a tal ponto, e com tão pouco perigo, não seja tentada
a divertir-se com semelhante fantasia. Por fim explica-lhe
que não é monge, como a pequena supõe; e não há dúvida que é
o que ele faz de melhor: pois, se chegassem tão longe na perfeição
que se dessem inteiros ao amor monástico, seguramente
os senhores Cavaleiros de Malta nos mereceriam a preferência.
De qualquer forma, em vez de perder o meu tempo em raciocínios
que poderiam comprometer-me, e talvez sem conseguir
persuadi-la, aprovei o projecto de rompimento: mas disse-lhe
que era mais honesto, em semelhante caso, dizer as suas razões
do que escrevê-las; que era também de uso entregar as cartas
e as outras bagatelas que possam ter-se recebido. E simulando
assim partilhar os pareceres da pequena, decidi-a a marcar
um encontro com Danceny. Combinámos imediatamente a
maneira, e encarreguei-a de resolver a mãe a sair sem a filha; é
para amanhã à tarde o instante decisivo. Danceny já está
instruído; mas, por Deus, se o Visconde achar ocasião, decida
esse belo pastor a ser menos lânguido; e ensine-lhe tudo, que a
verdadeira maneira de vencer os escrúpulos é não deixar nada a
perder a quem os tem.
Depois, para que essa ridícula cena não se renovasse, não
deixei de levantar algumas dúvidas no espírito da pequena sobre
o segredo de confissão; e garanto-lhe que neste momento ela
paga o medo que me meteu com o que ela tem de que o confessor
vá dizer tudo à mãe. Espero que depois de eu ter podido falar
com ela mais uma vez ou duas, já não irá contar assim as
suas tolices ao primeiro que aparecer.
; Adeus Visconde; tome posse de Danceny, e seja o seu guia.
Seria vergonhoso que não fizéssemos o que nos apetece de duas
crianças. Se isso nos for mais difícil do que ao princípio supusemos,
lembremo-nos, para animar o nosso zelo, o Visconde, que
se trata da filha de Madame de Volanges, e eu, que ela virá a ser
a mulher de Gercourt. Adeus.

2 de Setembro de 17* *

CARTA LII

O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL

Proibis-me, senhora, que vos fale do meu amor; mas onde


encontrar a coragem necessária para vos obedecer? Ocupado
unicamente por um sentimento que deveria ser tão,doce, e que
tornais tão cruel; entristecendo no exílio a que me condenastes;

* O leitor deve ter adivinhado há muito tempo, pelos costumes de Madame


de Merteuil, como ela respeitava pouco a religião. Poderia ter-se suprimido
todo este parágrafo, mas julgou-se que, mostrando os efeitos, não se devia
deixar de dar a conhecer as causas.

vivendo apenas de privações e de saudades; entregue a sofrimentos


tanto mais dolorosos quanto me recordam sem cessar a
vossa indiferença; ser-me-á necessário ainda perder a consolação
única que me resta? E posso eu ter outra que não seja a de
vos abrir algumas vezes uma alma que encheis de perturbação e
de amargura? Desviareis os vossos olhos para não ver as lágrimas
que me obrigais a derramar? Recusareis até a homenagem
dos sacrifícios que exigis? Não seria, no entanto, mais digno de
vós, da vossa alma honesta e meiga, lamentar um infeliz, que o é
apenas por vossa causa, em vez de pretenderes agravar as suas
penas, por uma defesa ao mesmo tempo injusta e rigorosa?
Fingis recear o amor, e não quereis ver que sois vós unicamente
a causadora dos males que lhe censurais. Ah! este sentimento
é penoso, por certo, quanto o objecto que o inspira não
lhe corresponde; mas onde encontrar a felicidade, se um amor
recíproco não for bastante para a conseguir? A amizade terna, a
confiança tranquila e sem reserva, as penas suavizadas, os prazeres
aumentados, a esperança exaltante, as recordações deliciosas,
onde encontrar tudo isso senão no amor? Caluniais esse
sentimento, vós que, para gozar de todos os bens que ele vos
oferece, não tendes mais que cessar de vos furtardes a ele; quanto
a mim, esqueço as penas que sofro, para me ocupar em defendê-lo.
Obrigais-me também a defender-me a mim próprio; pois ao
passo que eu consagro a minha vida a adorar-vos, vós passais a
vossa a procurar em mim motivos de agravo; supúnheis-me já
leviano e falso; e abusando, contra mim, de alguns erros que eu
próprio vos confessei, deleitais-vos a confundir o que eu era então
como o que eu sou agora. Não contente de me haverdes entregue
ao tormento de viver longe de vós, acrescentais a isso
uma zombaria cruel sobre prazeres aos quais sabereis bem a que
ponto me tornastes insensível. Não acreditais nem nas minhas
promessas, nem nos meus juramentos. Pois bem! Resta-me uma
garantia a oferecer-vos, que ao menos não se vos tornará suspeita:
sois vós mesma. Não vos peço senão que vos interrogueis de
boa fé; se não acreditais no meu amor, se duvidais por um
momento de ser a única a reinar na minha alma, se não estais
segura de terdes conquistado este coração, até aqui demasiado
volúvel, consinto em expiar a pena que cabe a este erro; soltarei
gemidos, mas não farei qualquer súplica. Mas se, ao contrário,
fazendo justiça a nós dois, fordes obrigada a convir no vosso
foro íntimo que não tendes, que não tereis nunca uma rival, não
volteis a obrigar-me, suplico-vos, a combater quimeras, e deixai-me
a consolação de saber que não duvidais dum sentimento
que, na verdade, não acabará, não pode acabar senão com a
minha vida. Permiti-me, senhora, que vos rogue uma resposta
positiva a este ponto da minha carta.
Se eu abandono entretanto aquela época da minha vida que
parece prejudicar-me tão cruelmente a vossos olhos, não é porque,
em caso de necessidade, me faltassem razões para a defender.
Que fiz eu, no fim de contas, além de não oferecer resistência
ao turbilhão que me envolvia? Entrei no mundo, jovem e
sem experiência; passei, por assim dizer, de mão em mão, por
uma multidão de mulheres, que se apressaram todas a antecipar
pela sua facilidade uma opinião que elas sentiam dever ser-lhes
desfavorável. Deveria ser eu pois a dar o exemplo de uma resistência
que me não era oposta? Ou deveria castigar-me a mim
próprio por um momento de irreflexão, e que em muitos casos
fora provocado, por uma constância deveras inútil, e na qual
todos veriam um motivo de ridículo? Pois qual é o meio para
justificar a vergonha de uma escolha senão um pronto rompimento ?
Mas, posso dizê-lo, essa embriaguez dos sentidos, talvez
mesmo esse delírio da vaidade, não penetrou o meu coração.
Nascido para o amor, a intriga poderia distraí-lo: não bastava
para tomar inteira posse dele; rodeado de seres sedutores, mas
desprezíveis, nenhum deles ia até à minha alma. Ofereciam-me
prazeres, eu buscava virtudes. E, porque era delicado e sensível,
eu próprio por fim me julguei inconstante.
Foi ao ver-vos que me senti iluminado: depressa compreendi
que o encanto do amor se enraizava nas qualidades da alma;
que só elas podiam causar-lhe o excesso e justificá-lo. Senti enfim
que me era igualmente impossível deixar de vos amar e
amar outra que não fôsseis vós.
Eis, senhora, como é este coração ao qual temeis entregar-vos
e sobre a sorte do qual tendes de pronunciar-vos. Mas
qualquer que seja o destino que lhe reserveis, não mudareis
nada aos sentimentos que o prendem a vós: são inalteráveis
como as virtudes que os fizeram nascer.

3 de Setembro de 17* *.

CARTA LIII

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Estive com Danceny, mas apenas obtive dele meia confidência;


teimou, sobretudo, em calar-me o nome da pequena Volanges,
de quem me falou como de uma mulher muito atilada, e até
um pouco devota; a propósito, contou-me com bastante verdade
a sua aventura, e sobretudo o último acontecimento. Excitei-o
o mais que pude e gracejei bastante acerca da sua delicadeza e
dos seus escrúpulos; mas ele pareceu manter-se firme, não posso
responder por ele. A este respeito poderei dizer alguma coisa
mais depois de amanhã. Levo-o amanhã a Versailles e durante o
caminho ocupar-me-ei em o sondar.
O encontro marcado para hoje dá-me também alguma esperança:
pode dar-se o caso de tudo se passar como desejamos; e
talvez no presente momento nos reste apenas arrancar-lhe a
confissão e recolher as respectivas provas. Esta tarefa será mais
fácil à Marquesa do que a mim, pois a pequena é mais confiante,
ou, o que vem a dar no mesmo, mais tagarela do que o seu
discreto apaixonado. Entretanto farei o que me for possível.
Adeus, minha bela amiga, estou com muita pressa; não a
verei nem esta noite, nem amanhã. Se por seu lado souber alguma
coisa, escreva-me uma palavra no meu regresso. Virei com
certeza dormir a Paris.

3 de Setembro de 17* *, à noite.

CARTA LIV

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Oh! sim! é de facto junto de Danceny que há alguma coisa a


saber! Se ele lha disser, gabou-se. Não conheço ninguém tão
tolo em coisas de amor e cada vez me censuro mais pelas bondades
que temos para ele. Saiba o Visconde que cheguei a julgar-me
comprometida por culpa dele. E pensar que tudo resultou
em pura perda! Oh! Hei-de vingar-me, prometo-lho.
Quando cheguei ontem a casa de Madame de Volanges para
a levar comigo, ela não queria sair; sentia-se incomodada. Foi-me
necessária toda a minha eloquência para a persuadir, e via
chegar o momento de Danceny aparecer sem que tivéssemos saído,
o que seria tanto mais aborrecido quanto Madame de Volanges
lhe dissera na véspera que não estaria em casa. Eu e a filha
estávamos sobre brasas. Saímos por fim; e a pequena apertou-me
a mão tão afectuosamente ao despedirmo-nos que apesar
do seu projecto de rompimento, de que ela julgava de boa fé
ocupar-se ainda, augurei maravilhas para essa noite.
Não tinha chegado ao fim das minhas inquietações. Havia
apenas meia hora que estávamos em casa de Madame de...,
quando Madame de Volanges se sentiu de facto mal, mas seriamente
mal; e, como era razoável, quis voltar para casa. Eu desejava-o
tanto menos quanto receava, se surpreendêssemos os
dois jovens, como tudo indicava, que as minhas instâncias junto
da mãe para que saísse se lhe tornassem suspeitas. Tomei o partido
de a assustar sobre o seu estado de saúde, o que felizmente
não é difícil; e consegui retê-la durante hora e meia, sem consentir
em levá-la a casa, fingindo ter medo do movimento perigoso
da carruagem. Regressámos por fim à hora combinada. Pelo ar
envergonhado que notei ao chegar, confesso que esperei que ao
menos as minhas canseiras não tivessem sido baldadas.
O desejo que eu tinha de ser informada fez que ficasse ao pé
de Madame de Volanges, que se deitou logo, e depois de termos
ceado junto do seu leito, deixámo-la muito cedo, com o pretexto
de que ela necessitava repousar; e passámos aos aposentos da
filha. Esta fez tudo o que eu esperava dela; escrúpulos desvanecidos,
novas juras de amor eterno, etc., de boa vontade executou
o programa; mas o parvo do Danceny não avançou de uma
linha o ponto em que antes se encontrava. Oh! com aquele pode
haver amuos; as reconciliações não são perigosas.
A pequena assegura todavia que ele queria mais, mas que
ela soube defender-se. Ia jurar que ela se gaba, ou que o desculpa;
tenho mesmo quase a certeza. De facto, tive a fantasia de
querer saber por experiência própria de que defesa é ela capaz;
e, simples mulher, de conversa em conversa, dei-lhe volta à cabeça
a um ponto... Enfim, o Visconde pode crer, não conheço
ninguém mais susceptível de uma surpresa dos sentidos. É na
verdade digna de ser amada, esta querida pequena! Merecia
outro amante; terá pelo menos uma boa amiga, pois estou-lhe
sinceramente dedicada. Prometi-lhe instruí-la e creio que cumprirei
a minha palavra. Muitas vezes sinto a necessidade de ter
uma mulher por confidente, e gostaria mais que fosse esta que
qualquer outra; mas nada posso fazer, enquanto ela não for...
aquilo que é preciso que seja; e esta é mais uma razão para estar
aborrecida com Danceny.
Adeus, Visconde; não venha a minha casa amanhã, a menos
que seja de manhã. Cedi às instâncias do Cavaleiro para uma
noitada no nosso ninho.

4 de Setembro de 17 * *

CARTA LV

CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY

Tinhas razão, minha querida Sofia; as tuas profecias são


mais certas do que os teus conselhos. Danceny, como tinhas
previsto, foi mais forte que o confessor, que tu e do que eu própria;
e eis-nos voltados exactamente ao ponto em que estávamos.
Ora! Não me arrependo disso; e se tu me censurares, será
por não saberes o prazer que se sente em amar Danceny. A ti é
muito fácil dizeres o que se deve fazer, nada to impede; mas se
tivesses experimentado como nos faz mal a tristeza de alguém
que se ama, como a sua alegria se torna nossa e como é difícil
dizer não quando é sim que se deseja dizer, não te admiravas de
nada; eu mesma, que o senti, e que o senti vivamente, não compreendo
ainda. Julgas tu, por exemplo, que eu possa ver chorar
Danceny sem chorar eu também? Afirmo-te que isso me é impossível;
e quando ele está contente, sou feliz com ele. Podes
dizer o que entenderes; o que se diz não altera o que é, e eu estou
certa de que é assim.
Queria ver-te no meu lugar... Não, não é isso que eu quero
dizer, pois com certeza não desejaria ceder o meu lugar a ninguém;
mas queria que tu amasses assim alguém; não seria só
para que me entendesses melhor, e me ralhasses menos; mas
porque assim tu serias mais feliz, ou, para melhor dizer, só então
começarias a ser feliz.
Os nossos divertimentos, os nossos risos, tudo isso, bem
vês, são brincadeiras de crianças; delas nada fica depois de passarem.
Mas o amor, ah! o amor!. . uma palavra, um olhar,
somente o sabermos que ele está ali, crê: isso é a felicidade.
Quando vejo Danceny, não desejo mais nada; quando não o
vejo, só o desejo a ele. Não sei porque isto é assim: mas dir-se-ia
que tudo de que eu gosto se lhe assemelha. Quando ele não está
comigo, penso nele; e quando estou sozinha, por exemplo, sou
ainda feliz; fecho os olhos, e logo julgo que o estou vendo; lembro-me
das suas palavras, e creio ouvi-lo; isto faz-me suspirar; e
depois sinto um fogo, uma agitação... Não posso estar no mesmo
sítio. É como um tormento, e esse tormento dá um prazer
inexprimível.
Julgo até que quando uma vez se sente amor, esse sentimento
se espalha até sobre a amizade. No entanto, a que eu tenho
por ti não mudou; é sempre como no convento: mas isto que eu
digo, sinto-o com Madame de Merteuil. Parece-me que a minha
amizade por ela se parece mais com o amor que sinto por Danceny
do que com a minha amizade por ti, e algumas vezes desejaria
que ela fosse ele. Isto vem talvez de não ser uma amizade
de infância como a nossa; ou talvez de os ver tantas vezes juntos,
o que faz com que me engane. Enfim, o que é certo é que os
dois me tornam muito feliz; e no fim de contas, não creio que
haja grande mal no que eu faço. Por isso só peço que me deixem
ficar como estou; e só a ideia do meu casamento me faz sofrer:
pois se o senhor de Gercourt é como me disseram, e não duvido
de que o seja, não sei o que será de mim. Adeus, minha Sofia;
sou sempre a tua amiga muito terna.

4 de Setembro de 17 * *

CARTA LVI

A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT

De que vos serviria, senhor, a resposta que me pedistes?


Crer nos vossos sentimentos não será uma razão mais para os
temer? E sem atacar nem defender a sinceridade deles, não me
basta, não deve bastar-vos a vós mesmo, saber que não devo
nem quero corresponder-lhes?
Suponho que me tendes amor verdadeiro (e é apenas para
não voltar a falar neste assunto que eu consinto nesta suposição);
seriam por isso menos insuperáveis os obstáculos que nos
separam? E teria eu outra coisa a fazer que desejar-vos uma rápida
vitória sobre esse amor, e principalmente ajudar-vos com
todo o meu poder, apressando-me a tirar-vos toda a esperança?
Vós mesmo concordais que esse sentimento é penoso quando o
objecto que o inspira não lhe corresponde. Ora, sabeis suficientemente
que me é impossível corresponder-lhe e, ainda que essa
infelicidade me acontecesse, eu seria mais digna de lástima, sem
que fôsseis por isso mais feliz. Espero que me estimareis o bastante
para que não duvideis disso por um momento. Deixai
pois, rogo-vos, deixai de pretender perturbar um coração ao
qual a tranquilidade é tão necessária; não me obrigueis a lamentar
ter-vos conhecido.
Querida e estimada por um marido que amo e respeito, os
meus deveres e os meus prazeres reúnem-se numa só pessoa.
Sou feliz e tenho obrigação de o ser. Se existem prazeres mais
vivos, não os desejo; não quero conhecê-los. Haverá alguma
coisa mais doce que estar em paz consigo mesma, ver decorrer
dias serenos, adormecer tranquila e despertar sem remorsos?
Aquilo a que chamais felicidade é apenas um tumulto dos sentidos,
uma tempestade das paixões, cujo espectáculo horroriza,
mesmo quando o contemplamos da margem. Pois bem! Como
afrontar tais tempestades? Como haverá quem possa aventurar-se
a um mar coberto dos despojos de mil e mil naufrágios? E
com quem? Não, senhor Visconde, eu fico na terra firme; são-me
caros os laços que a ela me prendem. Poderia cortá-los, e
não o faria; se eles não existissem, apressar-me-ia a forjá-los
para que me prendessem.
Por que seguis os meus passos? Por que vos obstinais nesse
caminho? As vossas cartas, que deviam ser raras, sucedem-se
com rapidez. Deviam ser prudentes, e nelas só falais do vosso
louco amor. Envolveis-me na vossa ideia, mais do que o fazeis
da vossa pessoa. Afastado sob uma forma, reproduzis-vos sob
outra. As coisas que se vos pede que não digais, voltais a dizê-las
de outra maneira. Tendes prazer em me confundir com raciocínios
capciosos; mas furtais-vos às minhas razões. Não quero
voltar a responder-vos, não vos responderei... De que maneira
tratais as mulheres que seduzistes! Com que desprezo falais
delas! Desejo acreditar que algumas o merecem: mas serão todas
elas a tal ponto desprezíveis? Ah! sem dúvida, pois traíram
os seus deveres para se entregarem a um amor criminoso. Desde
esse momento, perderam tudo, até a estima daquele a quem
tudo sacrificaram. É justo esse suplício, mas só a sua ideia faz
tremer. Que me importa, afinal? Por que me ocuparei delas ou
de vós? Com que direito perturbais a minha tranquilidade?
Deixai-me, não volteis a ver-me; deixai de me escrever, peço-vos;
exijo-o. Esta carta é a última que recebereis de mim.

5 de Setembro de 17 * *

CARTA LVII

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Encontrei a sua carta ontem à minha chegada. A sua cólera


deu-me um prazer absoluto. A minha amiga não sentiria mais
vivamente os desastres de Danceny, se estivesse directamente
interessada neles. É sem dúvida por vingança que habituais a
enamorada Cecília a fazer-lhe pequenas infidelidades. A Marquesa
é uma terrível pessoa! Sim, encanta-me esse modo de ver,
e não me admira que se lhe resista menos que a Danceny.
Enfim, sei tudo o que diz respeito a esse belo herói de romance!
Deixou de ter segredos para mim. Tantas vezes lhe disse
que o amor honesto era o bem supremo, que um sentimento valia
mais que dez intrigas, que eu próprio, nesse momento, era
um apaixonado tímido; mostrei-lhe, enfim, uma forma de pensar
tão conforme à dele, que, encantado com a minha candura,
disse-me tudo, e jurou-me uma amizade sem reservas. No entanto,
não estamos mais avançados por isso com o nosso projecto.
Primeiro, pareceu-me que, segundo o seu sistema, uma menina
merece mais que a poupem do que uma mulher, porque
tem mais a perder. Acha, sobretudo, que nada pode justificar
um homem de pôr uma rapariga na necessidade de casar com
ele ou de viver desonrada, quando a rapariga é infinitamente
mais rica do que o homem, como no caso em que ele se encontra.
A severidade da mãe, a candura da filha, tudo o intimida e o
detém. A dificuldade não está em combater os seus raciocínios,
por muito verdadeiros que sejam. Com um pouco de habilidade
e ajudado pela paixão, depressa se conseguirá destruí-los; tanto
mais que se prestam ao ridículo, e que se tem a seu favor a autoridade
da experiência. Mas o que impede que se consiga com ele
alguma coisa, é que ele se considera feliz como está. De facto, se
os primeiros amores parecem, em geral, mais honestos, e, como
é costume dizer-se, mais puros; se pelo menos são mais lentos
na sua marcha, não é, como se pensa, por delicadeza ou timidez,
é porque o coração, surpreso ante um sentimento desconhecido,
se suspende por assim dizer a cada passo, para gozar do encanto
que experimenta, e porque esse encanto tem tanto poder sobre
um coração jovem, que o preenche a ponto de lhe fazer esquecer
todo o prazer diferente. Isto é tão verdadeiro, que um libertino
apaixonado, se um libertino o pode ser, desde o momento em
que se apaixona, torna-se menos ávido de gozar; e que, enfim,
entre o comportamento de Danceny com a pequena Volanges, e
o meu com a severa Madame de Tourvel, há apenas a diferença
do mais ou menos.
Seria necessário, para excitar o nosso jovem, maior número
de obstáculos do que os que ele tem encontrado; sobretudo que
lhe tivesse sido preciso rodear-se de mais mistério, pois o mistério
conduz à audácia. Não ando muito longe de crer que a Marquesa
nos prejudicou ao servi-lo tão bem; a sua manobra teria
sido excelente com um homem usado, que tivesse apenas desejos:
mas a minha amiga deveria ter previsto que para um homem
novo, honesto e apaixonado o maior favor que lhe concedem
é fazer dele a prova do amor; e que, por consequência,
quanto mais ele está certo de ser amado, menos activo será. Que
fazer agora? Não sei; mas não creio que a pequena seja conquistada
antes do casamento, e trabalhámos em pura perda. Isto
aborrece-me, mas não lhe vejo remédio.
Enquanto eu uso aqui a minha eloquência, a Marquesa
emprega melhor o seu tempo com o Cavaleiro. Isso faz-me pensar
que me prometeu uma infidelidade em meu favor, tendo a
sua promessa por escrito, e não quero servir-me dela como de
um bilhete de La Châtrel. Concordo que o vencimento ainda
não tenha chegado: mas seria generoso da sua parte não esperar
por ele e por meu lado, pedir-lhe-ei juros. Que diz a isto, minha
bela amiga? Não está fatigada da sua constância? Esse
Cavaleiro é assim tão maravilhoso? Oh! deixe-me entrar em
funções; desejo forçá-la a concordar que, se lhe encontra algum
mérito, é porque me esqueceu.
Adeus, mmha bela amiga; beijo-a tal como a desejo; desafio
todos os desejos do Cavaleiro a terem tamanho ardor.

5 de Setembro de 17 * *

CARTA LVIII

O VISCONDE DE VALMONT À PRESIDENTE DE TOURVEL

Que fiz eu para merecer, senhora, as censuras que me dirigis


e a cólera que me testemunhais? A dedicação mais viva e todavia
mais respeitosa, a submissão mais completa às vossas menores
vontades; eis em duas palavras a história dos meus sentimentos
e da minha conduta. Acabrunhado pelos sofrimentos
dum amor infeliz, não tinha eu outro consolo além de poder
ver-vos; haveis-me ordenado que me privasse dele: obedeci sem
me permitir um murmúrio. Como preço desse sacrifício, haveis-me
permitido que vos escrevesse, e hoje pretendeis tirar-me
esse único prazer. Deverei deixá-lo arrebatar-me, sem tentar
defendê-lo? Não, sem dúvida: pois não será caro ao meu coração
sendo o único que me resta, e tendo-o recebido de vós?
As minhas cartas, dizeis, são demasiado frequentes! Pensai,
peço-vos, que há dez dias que dura o meu exílio, que durante
esse tempo não passei um momento sem me ocupar de vós, e
que entretanto recebestes apenas duas cartas minhas. Nelas só
vos falo do meu amor! Pois que posso eu dizer, senão o que penso?
Tudo o que pude fazer foi moderar-lhe a expressão; e, podeis
crer, não vos deixei ver senão o que me foi impossível esconder-vos.
Ameaçais-me por fim de não voltar a responder-me.
Deste modo, ao homem que vos prefere a tudo, e que vos
respeita mais ainda do que vos ama, não satisfeita de o tratardes
com rigor, quereis ainda juntar a isso o desprezo! Porquê tais
ameaças e tal cólera? Por que necessitais de tais sentimentos?
Não estais segura de ser obedecida, mesmo nas vossas ordens
injustas? Porventura me é possível contrariar qualquer dos vossos
desejos, e não o provei já? Abusareis do domínio que tendes
sobre mim? Depois de me terdes feito desgraçado, e de vos terdes
tornado injusta, ser-vos-á assim tão fácil gozar dessa tranquilidade
que declarais ser-vos tão necessária? Não vireis a dizer
um dia: "deixou-me senhora do seu destino, e fiz a sua desgraça;
implorava os meus socorros, e olhei-o sem piedade"?
Sabeis até onde pode chegar o meu desespero? Não.
Para calcular a extensão dos meus males, seria preciso saber
a que ponto vos amo, e não conheceis o meu coração.
Sacrificais-me a quê? A quiméricos receios. E quem vo-los
inspira? Um homem que vos adora; um homem sobre quem não
deixareis nunca de exercer domínio absoluto. Que receais, que
podeis recear dum sentimento que sereis sempre senhora de dirigir
como vos aprouver? Mas a vossa imaginação cria monstros,
e atribuís ao amor o horror que eles vos causam. Um pouco de
confiança, e esses fantasmas desaparecerão.
Um sábio disse que quem queira dissipar os seus receios não
tem mais que aprofundar-lhes a causa. É principalmente no
amor que esta verdade encontra a sua aplicação. Amai, e os vossos
receios desvanecer-se-ão. No lugar dos objectos que vos
horrorizam, encontrareis um sentimento delicioso, um amante
terno e submisso; e todos os vossos dias, marcados pela felicidade,
não vos deixarão outro pesar além de terdes perdido alguns
na indiferença. Eu próprio, depois que, distanciado dos meus
erros, existo apenas para o amor, lamento um tempo que supunha
ter passado no meio de prazeres; e sinto que só a vós pertence
tornar-me feliz. Mas, suplico-vos, que o prazer que encontro
em escrever-vos não seja perturbado pelo receio e vos desagradar.
Não quero desobedecer-vos: mas ajoelho-me perante
vós, e reclamo a felicidade que quereis tirar-me, a única que me
haveis deixado; e grito-vos: escutai as minhas súplicas, concedei
um olhar às minhas lágrimas. Ah! senhora, recusar-me-eis tão
pouco?

7 de Setembro de 17 * *

CARTA LIX

O VISCONDE DE VALMONT À MARQUESA DE MERTEUIL

Diga-me, se sabe, o que significa este desatino de Danceny.


Que foi que aconteceu, e que perdeu ele? A sua bela aborreceu-se
talvez do seu eterno respeito? É preciso ser justo, por menos
qualquer pessoa acabaria por se aborrecer. Que vou eu dizer-lhe
esta noite, no encontro que ele me pediu, e que eu lhe concedi
para ver o que daí resultaria? Seguramente não perderei o meu
tempo a ouvir os seus lamentos, se isso não nos conduzir a nada.
As queixas de amor não são boas de ouvir senão em recitativos
obrigatórios, ou em árias de grande estilo. Diga-me pois de
que se trata e que devo fazer; ou acabo por desertar, a fim de
evitar o aborrecimento que prevejo. Poderei falar com a minha
amiga esta manhã? Se estiver ocupada, pelo menos escreva-me
uma palavra, e forneça-me as deixas do meu papel.
Onde esteve a Marquesa ontem? Não consigo voltar a vê-la.
Na verdade, não me valia a pena ter ficado em Paris no mês de
Setembro. Decida-se, contudo, pois acabo de receber um convite
muito insistente da Condessa de B... para a visitar no campo;
e, como ela me manda dizer de modo bastante agradável, "seu
marido possui o mais belo bosque do mundo, que conserva cuidadosamente
para os prazeres dos seus amigos". Ora, a minha
amiga sabe que eu tenho alguns direitos adquiridos sobre esse
bosque; e irei vê-lo de novo se não lhe posso ser útil. Adeus;
pense que Danceny estará em minha casa pelas quatro horas.

8 de Setembro de 17* *

CARTA LX

O CAVALEIRO DANCENY AO VISCONDE VALMONT

(Inclusa na precedente)

Ah! senhor, estou desesperado, perdi tudo. Não ouso confiar


ao papel o segredo das minhas mágoas: mas tenho necessidade
de as expandir no seio de um amigo fiel e seguro. A que
horas poderei vê-lo, e procurar junto do Visconde consolações e
conselhos? Eu era tão feliz no dia em que lhe abri a minha alma!
Agora, que diferença! Tudo mudou para mim. O que eu sofro
por mim próprio é ainda a menor parte dos meus tormentos; a
minha inquietação sobre um objecto bem mais querido, eis o
que não posso suportar. Mais feliz do que eu, o Visconde pode
vê-la, e espero da sua amizade que não me recusará este favor:
mas é preciso que eu lhe fale, que lhe diga de que se trata. Há-de
lamentar-me, socorrer-me; só tenho esperança no meu amigo.
Sei que é sensível, que conhece o amor; e é o único a quem eu
posso confiar-me; não me recuse o seu auxílio.
Adeus, senhor; o único alívio que experimento na minha
dor é o de pensar que me resta um amigo como o Visconde.
Mande-me dizer, peço-lhe, a que horas poderei encontrá-lo. Se
não for esta manhã, desejaria que fosse às primeiras horas da
tarde.

8 de Setembro de 17**.

CARTA LXI

CECíLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY


Minha querida Sofia, lamenta a tua Cecília, a tua pobre Cecília,
que é muito infeliz. A Mamã sabe tudo. Não percebo
como pôde ela desconfiar de alguma coisa, mas a verdade é que
descobriu tudo. Ontem à noite, a Mamã pareceu-me estar de
mau humor; mas não dei ao caso grande atenção; e até, enquanto
esperava que ela acabasse a sua paciência, conversei muito
alegremente com Madame de Merteuil, que tinha ceado connosco,
e falámos muito de Danceny. Mas parece-me que ninguém
nos ouviu. Logo que ela se foi embora, retirei-me para o
meu quarto.
Estava a despir-me, quando a Mamã entrou e mandou sair a
minha criada de quarto, pedindo-me em seguida a chave da
minha secretária. O tom com que ela me fez esse pedido causou-me
um tremor tão forte que apenas me podia ter em pé.
Fingi que não a encontrava, mas por fim tive de obedecer. A
primeira gaveta que ela abriu foi precisamente aquela onde estavam
as cartas do Cavaleiro Danceny. Eu estava tão perturbada,
que quando ela me perguntou o que aquilo era, não soube responder-lhe
outra coisa senão que não era nada; mas quando a
vi começar a ler a que estava ao de cima, só tive tempo para ir
até uma poltrona, e senti-me tão mal que perdi o conhecimento.
Logo que voltei a mim, minha mãe, que tinha chamado a criada
de quarto, retirou-se, dizendo-me que me deitasse. Tinha levado
todas as cartas de Danceny. Tremo todas as vezes que penso que
é preciso aparecer diante dela. Toda a noite não fiz outra coisa
senão chorar.
Escrevo-te ao romper do dia, na esperança de que Josefina
venha. Se eu puder falar-lhe sozinha, pedir-lhe-ei que leve a casa
de Madame de Merteuil um bilhetinho que lhe vou escrever; se
o não conseguir, metê-lo-ei na tua carta e tu farás o favor de lho
enviar como sendo teu. É só dela que eu posso receber alguma
consolação. Ao menos, falaremos dele, pois não espero voltar a
vê-lo. Sou muito infeliz! Ela terá talvez a bondade de se encarregar
de uma carta para Danceny. Não ouso confiar-me a Josefina
para esse fim, e ainda menos à minha criada de quarto; pois
talvez tenha sido ela quem disse a minha mãe que eu tinha cartas
na minha secretária.
Hei-de escrever-te mais longamente, pois quero ter tempo
para escrever a Madame de Merteuil, e também a Danceny,
para ter a minha carta pronta, se ela quiser encarregar-se de a

Nota. - Suprimiu-se a carta de Cecília Volanges à Marquesa, porque


continha apenas os mesmos factos da carta precedente, e com menos pormenores.
A carta para o Cavaleiro Danceny não foi encontrada; ver-se-á qual a razão
na Carta LXIII, de Madame de Merteuil ao Visconde.

fazer seguir. Depois disso, voltarei a deitar-me, para que me


encontrem na cama quando entrarem no meu quarto. Direi que
estou doente, para me dispensar de ir ao pé da Mamã. Não será
grande a mentira; com certeza sofro mais do que se tivesse febre.
Os olhos ardem-me por ter chorado tanto; e tenho um peso
no estômago que me impede de respirar. Quando penso que não
voltarei a ver Danceny, desejaria estar morta. Adeus, minha
querida Sofia. Não posso dizer-te mais nada; as lágrimas sufocam-me.

7 de Setembro de 17* *
CARTA LXII

MADAME DE VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY

Depois de terdes abusado, senhor, da confiança de uma mãe


e da inocência de uma criança, não ficareis surpreendido, por
certo, de não voltar a ser recebido numa casa onde não correspondestes
às provas da amizade mais sincera, senão esquecendo
todos os preceitos. Prefiro pedir-vos que não volteis a minha
casa, a dar ordens que nos comprometeriam a todos igualmente,
pelos reparos que os criados não deixariam de fazer. Tenho o
direito de esperar que não me obrigareis a recorrer a esse meio.
Previno-vos também de que, se no futuro fizerdes a menor tentativa
para manter a minha filha no desvairamento em que a lançastes,
um recolhimento austero e eterno a subtrairá às vossas
perseguições. A vós compete, senhor, saber se receais tão pouco
causar o seu infortúnio como receastes pouco tentar a sua desonra.
Quanto a mim, a minha escolha está feita, e disso lhe dei
participação.
Encontrareis junto o maço das vossas cartas. Conto que me
devolvereis em troca todas as de minha filha; e que vos prestareis
a apagar qualquer vestígio de um acontecimento de que não
poderemos lembrar-nos, eu sem indignação, ela sem vergonha,
e vós sem remorso. Tenho a honra de ser, etc.

7 de Setembro de 17**.

CARTA LXIII

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Claro que sim, que lhe explicarei o bilhete de Danceny. O


acontecimento que o levou a escrevê-lo é obra minha, e é, creio,
a minha obra-prima. Não perdi o meu tempo depois da sua última
carta, e disse como o arquitecto ateniense: "O que ele disse,
eu o farei."
São pois necessários obstáculos a esse belo herói de romance;
que se deixa dormir na felicidade! Oh! que venha ter comigo,
eu lhe darei que fazer; e, ou eu me engano, ou o seu sono
tempo, e gabo-me de que no presente ele lamente o que perdeu.
Era preciso, dizia o Visconde, que ele sentisse a necessidade de
- mais mistério; pois bem! Essa necessidade não lhe vai faltar. Eu
tenho isto de bom: é que basta apenas chamarem-me a atenção
para os meus erros; não descanso enquanto não tiver posto
tudo certo. Saiba pois o que eu fiz.
Ao entrar em casa anteontem de manhã, li a sua carta;
achei-a luminosa. Convencida de que o Visconde indicara muito
bem a causa da doença, não me ocupei senão de encontrar
maneira de a curar. Comecei todavia por me deitar; pois o infatigável
Cavaleiro não me tinha deixado dormir um momento e
eu julgava ter sono. Mas enganava-me: toda entregue a Danceny,
o desejo de o tirar da sua indolência, ou de lha castigar,
não me permitiu fechar os olhos, e só depois de ter concertado o
meu plano é que pude achar duas horas de repouso.
; Nessa mesma noite fui a casa de Madame de Volanges, e,
conforme o meu projecto, confidenciei-lhe que julgava estar certa
de existir entre a sua filha e Danceny uma ligação perigosa.
Esta mulher, tão clarividente no caso do Visconde, estava cega a
ponto de me ter respondido primeiro que com certeza eu estava
enganada; que sua filha era uma criança, etc. Eu não podia dizer-lhe
tudo quanto sabia a tal respeito; mas citei os olhares, os
ditos, que tinham alarmado a minha virtude e a minha amizade.
Enfim, falei quase tão bem como o poderia fazer uma devota, e,
para vibrar o golpe de misericórdia, cheguei a dizer que supunha
ter visto entregar e receber uma carta. "isto faz-me recordar",
acrescentei "que um dia ela abriu diante de mim uma gaveta
da secretária, na qual vi muitos papéis, que com certeza ela
conserva. Conheceis-lhe alguma correspondência frequente?".
Aqui o rosto de Madame de Volanges mudou, e vi algumas lágrimas
nos seus olhos. "Agradeço-vos, minha digna amiga",
disse ela, apertando-me a mão; " eu porei tudo isso a limpo".
Depois desta conversa, demasiado curta para se tornar suspeita,
aproximei-me da pequena. Deixei-a pouco depois, para
pedir à mãe que não me comprometesse junto da filha, o que ela
me prometeu de bom grado, tanto mais que lhe observei quanta
vantagem haveria em que essa criança tivesse bastante confiança
em mim para me abrir o seu coração e me pôr ao alcance de
lhe dar os meus prudentes conselhos. O que me dá a certeza de
que ela cumprirá a sua promessa é que não tenho dúvidas de
que ela considere um ponto de honra exercer a sua penetração
junto da filha. Encontrava-me, por esse lado, autorizada a conservar
o meu tom de amizade com a pequena, sem parecer falsa
aos olhos de Madame de Volanges, o que desejava evitar. Tive
ainda a vantagem de continuar por muito tempo e tão secretamente
como eu desejava junto da rapariguinha, sem que a mãe
tivesse qualquer suspeita.
Aproveitei aquele mesmo serão; e depois de terminar a
minha paciência, arrastei a petiza para um canto, e levei-a a falar
de Danceny, assunto em que ela é inesgotável. Diverti-me a
dar-lhe volta à cabeça sobre o prazer que ela teria em vê-lo no
dia seguinte; não houve loucura que eu não a obrigasse a dizer.
Era preciso dar-lhe em esperanças o que lhe tirava em realidade;
além disso, tudo isso a tornaria mais sensível ao golpe, e estou
convencida de que quanto mais ela sofrer, mais ansiosa ficará
de na primeira ocasião tirar a desforra. É bom, aliás, habituar
aos grandes acontecimentos as pessoas que se destinam às grandes
aventuras.
No fim de contas, não é justo que ela pague com algumas
lágrimas o prazer de possuir o seu Danceny? Está doida por ele!
Pois bem, prometo-lhe que o há-de ter, e até mais cedo do que o
conseguiria sem este contratempo. É um sonho mau cujo despertar
será delicioso; e, bem feitas as contas, parece-me que ela
me deve estar reconhecida. De facto, mesmo que eu tenha posto
no caso um pouco de malícia, é preciso divertirmo-nos:
Retirei-me por fim, muito satisfeita de mim própria. "Ou
Danceny", dizia eu comigo, "excitado pelos obstáculos, vai
redobrar de amor, e então servi-lo-ei em tudo o que possa; ou,
se não passa de um tolo, como algumas vezes sou tentada a crer,
ficará desesperado e considerar-se-á vencido: ora, neste caso,
pelo menos ter-me-ei vingado dele, na medida em que o posso
fazer; ao mesmo tempo terei aumentado para mim a estima da
mãe, a amizade da filha e a confiança de ambas: Quanto a Gercourt,
primeiro objecto dos meus cuidados, muito infeliz seria
eu, ou muito inábil, se, dominando o espírito de sua mulher, o
que acontece já, e nesse sentido mais conseguirei ainda, eu não
encontrar mil maneiras de fazer dela o que eu quiser que ela seja".
Deitei-me acalentando estas doces ideias; o que me permitiu
dormir, e despertar muito tarde.
Ao acordar, encontrei dois bilhetes, um da mãe, outro da
filha; e não pude impedir-me de rir, encontrando em ambos literalmente
a mesma frase: É apenas de vós que espero alguma
consolação. Não é engraçado, de facto, consolar contra e a favor,
e ser o único agente de dois interesses directamente contrários?
Eis-me como a divindade: recebendo os votos opostos dos
cegos mortais e não mudando nada aos meus decretos imutáveis.
Abandonei todavia esse augusto papel, para tomar o de
anjo consolador; e, segundo os preceitos, fui visitar os meus
amigos na sua aflição.
Comecei pela mãe; encontrei-a numa tristeza que já em parte
vinga o Visconde das contrariedades que ela lhe fez sofrer por
parte da sua bela hipócrita. Tudo correu à maravilha. A minha
única inquietação era que Madame de Volanges não aproveitasse
esse momento para conseguir a confiança de sua filha; o que
teria sido muito fácil, desde que empregasse junto dela a linguagem
da doçura e da amizade, e dando conselhos cheios de razão,
com o ar e o tom da ternura indulgente. Por felicidade,
armou-se de severidade; enfim, portou-se tão mal, que só tive
ocasião de aplaudir. É certo que esteve para deitar por terra
todos os nossos projectos, pensando em fazer voltar a filha para
o convento; mas eu aparei o golpe; e consegui que apenas fizesse
a ameaça, no caso em que Danceny continuasse a importuná-las,
a fim de obrigar as duas a uma moderação que julgo
necessária para o êxito.
Em seguida estive com a filha. O Visconde não pode imaginar
como a dor a embeleza! Mesmo que venha a usar pouco de
coqueteria, garanto-lhe que há-de chorar muitas vezes; por esta
vez, chorava sem malícia... Surpreendida por aquele motivo de
agrado que eu não lhe conhecia, e que me sentia feliz de observar,
só lhe dei a princípio consolações ineptas, que aumentam
mais as mágoas do que as aliviam; e, por este meio, levei-a a
ponto de estar verdadeiramente sufocada. Deixou de chorar, e
por um momento temi as convulsões. Aconselhei-a a deitar-se, o
que ela fez; servi-lhe de criada de quarto. Não se tinha vestido, e
em breve os cabelos esparsos lhe caíam sobre os ombros e o pescoço
inteiramente descobertos. Abracei-a; ela deixou-se embalar
nos meus braços, e as lágrimas recomeçaram a cair-lhe sem
esforço. Deus! como ela estava bela! Ah! se Madalena era assim,
deve ter sido bem mais perigosa penitente que pecadora.
Quando a bela desolada se deitou, pus-me a consolá-la de
boa fé. Tranquilizei-a primeiro sobre os receios do convento.
Fiz nascer nela a esperança de ver Danceny secretamente. "Se
ele estivesse aqui...", disse-lhe eu, sentando-me na cama; depois,
fantasiando sobre esse tema, levei-a, de distracção em distracção,
a esquecer-se de que estava aflita. Ter-nos-íamos separado
perfeitamente satisfeitas uma com a outra se ela não tivesse
querido encarregar-me de uma carta para Danceny, o que eu
recusei firmemente. Aprovará com certeza os motivos, que passo
a expor.
Primeiro, seria comprometer-me junto de Danceny; e, se foi
esta a única razão de que pude servir-me junto da pequena, havia
muitas outras que nos dizem respeito. Não seria arriscar o
fruto do meu trabalho dar tão depressa aos nossos jovens um
meio tão fácil de suavizar as suas mágoas? E depois, não me
descontenta obrigá-los a meterem alguns criados nesta aventura;
porque, enfim, se ela for levada a bom fim, como espero, é
preciso que seja conhecida imediatamente depois do casamento;
e poucos meios mais seguros do que esses existem para que todos
o venham a saber. Mas se, por milagre, os criados não falassem,
falaríamos nós, e sempre é mais cómodo que as inconfidências
fiquem a cargo deles.
É necessário pois que o Visconde dê hoje essa ideia a Danceny;
e como não estou segura da criada de quarto da pequena
Volanges, de quem ela própria parece desconfiar, indique-lhe a
minha fiel Vitória. Tomarei precauções para que esta diligência
seja coroada de bom êxito. Esta ideia agrada-me tanto mais,
quanto a confidência só nos será útil a nós, e nunca a eles: não
cheguei ainda ao fim da minha narração.
Enquanto eu me furtava a encarregar-me da carta da pequena,
temia a todo o momento que ela me propusesse pô-la no
correio, o que eu não poderia recusar. Felizmente, ou por estar
muito perturbada, ou por ignorância da sua parte, ou ainda
porque desse menos importância à carta que à resposta, a qual
ela não poderia ter por esse meio, o certo é que não me falou em
tal: mas para evitar que lhe viesse semelhante ideia, ou pelo
menos que pudesse servir-se dela, tomei imediatamente o meu
partido; e voltando a falar à mãe, decidi-a a afastar a filha por
algum tempo, a mandá-la para o campo... E para onde? Não
lhe bate de alegria o coração, Visconde?... Para casa de sua tia,
a velha Rosemonde. Hoje mesmo Madame de Volanges escreverá
nesse sentido: assim, eis o Visconde autorizado a voltar a ver
a sua devota, que já não terá a objectar o escândalo do convívio
a sós, e, graças aos meus cuidados, Madame de Volanges terá
ocasião de reparar o agravo que lhe fez.
Mas ouça-me, e não se ocupe tão vivamente dos seus assuntos
que acabe por perder este de vista; pense que ele me interessa.
Desejo que o Visconde se torne o correspondente e o conselheiro
dos dois jovens. Comunique pois a Danceny esta viagem,
e ofereça-lhe os seus serviços. Que a sua única dificuldade seja a
de fazer chegar às mãos da bela a sua credencial; e suprima esse
obstáculo imediatamente, indicando-lhe a minha criada de
quarto como intermediária. Não tenho qualquer dúvida de que
ele aceite; e como prémio das suas canseiras, terá o Visconde as
confidências de um coração jovem, o que é sempre interessante.
Pobre pequena! Como ela há-de corar ao entregar-lhe a sua
primeira carta! Na verdade, este papel de confidente, contra o
qual se erguem preconceitos, parece-me um lindo passatempo
quando se tem outras ocupações; e será este o seu caso.
Depende agora dos seus cuidados o desfecho desta intriga.
O campo oferece mil ocasiões; e Danceny, com toda a certeza,
estará pronto a seguir logo que o Visconde lhe faça o primeiro
sinal. Uma noite, um disfarce, uma janela..., que sei eu? Mas,
enfim, se a rapariguinha continuar na mesma, ao Visconde pedirei
contas. Se achar que ela precisa que eu a encoraje, mande-mo
dizer. Creio ter-lhe dado uma boa lição sobre o perigo de
guardar cartas, para ousar escrever-lhe agora; e continuo com a
intenção de fazer dela minha discípula.
Parece-me ter esquecido dizer-lhe que as suspeitas da pequena
no que respeita à denúncia da correspondência caíram primeiro
sobre a criada de quarto, e eu desviei-as para o confessor.
Chama-se a isto matar dois coelhos de uma cajadada.
Adeus, Visconde; estou há muito tempo a escrever-lhe e
atrasei-me para o jantar; mas o amor-próprio e a amizade ditaram
esta carta, e ambos são tagarelas. O que é preciso é que a
carta esteja em sua casa às três horas.
Agora queixe-se de mim, se se atrever, e volte a ver, se lhe
apetece, o bosque do Conde de B... Diz o Visconde que ele o
guarda para prazer dos seus amigos! Esse homem é então amigo
de toda a gente? Mas adeus, tenho fome.

9 de Setembro de 17 * *.
CARTA LXIV

O CAVALEIRO DANCENY A MADAME DE VOLANGES

(minuta junta à Carta LXV1, do Visconde à Marquesa)

Sem procurar justificar a minha conduta, senhora, e sem me


queixar da vossa, só me resta afligir-me por um acontecimento
que faz a infelicidade de três pessoas, todas dignas de um destino
mais feliz. Mais sensível ainda à tristeza de lhe ter sido a causa
do que à de ter sido a vítima, tentei muitas vezes, desde ontem,
ter a honra de vos responder, sem poder encontrar forças
para tal. Tenho, no entanto, tantas coisas a dizer-vos, que me é
necessário fazer um grande esforço sobre mim próprio; e se esta
carta for um tanto desordenada, devereis sentir quanto a minha
situação é dolorosa, para me concederdes alguma indulgência.
Permiti-me primeiro que proteste contra a primeira frase da
vossa carta. Eu não abusei; ouso dizê-lo, nem da vossa confiança
nem da inocência de Mademoiselle de Volanges; respeitei
uma e outra nas minhas acções. Só elas dependem de mim; e
quando me tornásseis responsável por um sentimento involuntário,
não recearia acrescentar que o que me foi inspirado por
vossa filha pode desagradar-vos, mas nunca ofender-vos. Sobre
este assunto, que me interessa mais do que eu posso dizer-vos,
só a vós, senhora, desejo por juiz, e às minhas cartas por testemunhas.
Proibis-me de me apresentar de futuro em vossa casa, e sem
dúvida terei de sujeitar-me a tudo o que vos aprouver ordenar a
este respeito: mas esta ausência súbita e total não dará lugar aos
murmúrios que quereis evitar, tanto como a ordem que, pelo
mesmo motivo, não quiseste dar aos vossos criados? Insistirei
tanto mais sobre este ponto, quanto é certo que ele é mais importante
para Mademoiselle de Volanges do que para mim.
Suplico-vos pois que peseis atentamente todas as razões, de
modo a não permitir que a vossa severidade altere a vossa prudência.
Persuadido de que só o interesse de vossa filha ditará as
vossas resoluções, aguardarei novas ordens da vossa parte.
Entretanto, no caso em que me permitísseis frequentar a
vossa casa algumas vezes, comprometo-me (e podeis contar
com o cumprimento da minha promessa) a não abusar dessas
ocasiões para tentar falar em particular com Mademoiselle de
Volanges, ou entregar-lhe qualquer carta. O receio de pôr em
perigo a sua reputação leva-me a este sacrifício; e a felicidade de
a ver algumas vezes me compensará.
É esta a única resposta que posso dar ao que me dizeis sobre
a sorte que destinais a Mademoiselle de Volanges, e que quereis
tornar dependente da minha conduta. Prometer-vos mais seria
enganar-vos. Um vil sedutor pode adaptar os seus projectos às
circunstâncias e calcular segundo os acontecimentos; mas o
amor que me anima permite-me apenas dois sentimentos: a coragem
e a constância.
Eu, consentir em ser esquecido por Mademoiselle de Volanges,
ou esquecê-la eu mesmo? Não, nunca! Ser-lhe-ei fiel; ela
recebeu o juramento, e eu renovo-o agora. Perdão, minha senhora,
eu desvairo, tentarei reagir.
Resta-me outro assunto a tratar convosco: o das cartas que
me pedistes. Fico verdadeiramente penalizado por ter de acrescentar
uma recusa aos agravos que tendes de mim; mas suplico-vos,
atendei as minhas razões, e dignai-vos lembrar-vos, para
as apreciardes, que a única consolação para a desgraça de ter
perdido a vossa amizade é a esperança de conservar a vossa estima.
As cartas de Mademoiselle de Volanges, sempre tão preciosas
para mim, muito mais preciosas se tornaram neste momento.
São o único bem que me resta; só essas cartas me recordam
ainda um sentimento que constitui todo o encanto da minha
vida. Entretanto, podeis crer-me, não hesitaria um instante em
fazer-vos esse sacrifício; e o pesar de ser privado delas cederia
ao desejo de vos provar a minha deferência respeitosa; mas considerações
poderosas me tolhem o impulso, e estou certo de que
vós mesma não podereis censurá-las.
É certo que entrastes na posse do segredo de Mademoiselle
de Volanges; mas, permiti que vos diga, estou autorizado a crer
que foi o efeito da surpresa e não da confiança. Não pretendo
censurar-vos um acto que a solicitude materna talvez autorize.
Respeito os vossos direitos, mas não ao ponto de me dispensar
dos meus deveres. O mais sagrado de todos é o de nunca trair a
confiança que alguém nos concede. Seria faltar a ela expor aos
olhos de outrem os segredos de um coração que desejou confiá-los
só aos meus. Se vossa filha consente em vo-los confiar, a ela
compete falar; as suas cartas ser-vos-iam inúteis. Se, pelo contrário,
ela quer encerrar o seu segredo em si própria, não esperareis,
por certo, que seja eu quem vos instrua a tal respeito.
Quanto ao mistério no qual desejais que este acontecimento
fique sepulto, podeis ficar tranquila, minha senhora; sobre tudo
o que interessa Mademoiselle de Volanges, posso desafiar mesmo
o coração de uma mãe. Para vos tirar todo o motivo de inquietação,
previ tudo. O precioso depósito, que até aqui tinha
inscrito: papéis para queimar, tem agora: papéis pertencentes a
Madame de Volanges. Esta resolução que tomei deve provar-vos
assim que a minha recusa não se baseia no receio de que
encontreis nessas cartas um único sentimento de que pessoalmente
tenhais de queixar-vos.
Eis, minha senhora, uma bem longa carta. Não o seria ainda
bastante se vos deixasse a menor dúvida sobre a honestidade
dos meus sentimentos, do pesar muito sincero de vos ter desagradado,
e do profundo respeito com que tenha a honra de ser,
etc.
9 de Setembro de 17 * *.

CARTA LXV

O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES

(Enviada aberta à Marquesa de Merteuil na Carta LXVI do Visconde)

Ó minha Cecília, que vai ser de nós? Que Deus nos salvará
das desgraças que nos ameaçam? Ao menos, que o amor nos dê
coragem para as suportar! Como descrever-lhe o meu espanto,
o meu desespero à vista das minhas cartas, ante a leitura do bilhete
de Madame de Volanges? Quem nos terá traído? Sobre
quem recaem as suas suspeitas? Teria a Cecília cometido alguma
imprudência? Que faz agora? Que lhe têm dito? Tanto eu
desejava saber tudo, e tudo ignoro. Talvez mesmo a Cecília não
saiba mais do que eu.
Envio-lhe o bilhete da sua Mamã, e a cópia da minha resposta.
Espero que aprovará o que eu lhe disse. Preciso muito
que aprove também as diligências que fiz desde aquele fatal
acontecimento, pois que todas têm por fim conseguir notícias
suas e dar-lhe as minhas; e, quem sabe?, talvez voltar a vê-la, e
com maior liberdade do que nunca. Põe na sua ideia, minha Cecília,
que prazer seria voltarmos a encontrar-nos, podermos jurar-nos
de novo um amor eterno, e ver nos nossos olhos, sentir
nas nossas almas que esse juramento não será desmentido? Um
momento tão doce, que mágoas não fará esquecer? Pois bem!
Tenho esperança de que tal momento surja, e devo-a a essas
mesmas diligências para que suplico a sua aprovação. Que digo
; eu? Devo essa esperança aos consoladores cuidados do mais
; terno dos amigos; e o único pedido que lhe faço é que permita
; que esse amigo seja também o seu.
Talvez eu não devesse confiar tanto sem o seu consentimento;
mas tenho por desculpa a má sorte e a necessidade. Foi o
amor que me conduziu; é ele que reclama a sua indulgência, que
lhe pede que perdoe uma confidência necessária, e sem a qual
ficaríamos talvez separados para sempre. Conhece o amigo de

* O Cavaleiro Danceny não fala verdade. Tinha já feito essa confidência


ao senhor de Valmont antes desse acontecimento. Ver Carta LVII.

que lhe falo; é-o também da mulher de quem a Cecília tanto


gosta. É o Visconde de Valmont.
O meu projecto, ao dirigir-me a ele, era primeiro o de lhe
pedir que conseguisse de Madame de Merteuil encarregar-se de
uma carta para a Cecília. Não julgou ele que esse meio fosse
bem sucedido mas, na falta da Marquesa, responde pela sua
criada de quarto, que lhe deve obrigações. Será ela quem lhe
entregará esta carta e a Cecília poderá dar-lhe a resposta.
Este auxílio não nos será de qualquer utilidade, se, como
supõe o Visconde, a Cecília partir em breve para o campo. Mas
nesse caso ele próprio deseja servir-nos. A dona da casa é parente
dele, que aproveitará esse pretexto para a visitar ao mesmo
tempo. E será por seu intermédio que poderemos trocar a nossa
correspondência. Deu-me mesmo a certeza de que, se a Cecília o
consentir, ele conseguirá arranjar maneira de nos vermos sem o
perigo de se comprometer.
Agora, minha Cecília; se tem amor por mim, se lamenta a
minha má sorte, se, como espero, toma parte nas minhas mágoas,
recusará a sua confiança a um homem que será o nosso
anjo tutelar? Sem ele, ficarei reduzido ao desespero de nem mesmo
poder suavizar as tristezas que lhe causei. Elas terão fim, espero-o;
mas, minha terna amiga, prometa-me que não se entregará
demasiado a tais tristezas, que não se deixará vencer por elas.
A ideia da sua dor é para mim um tormento insuportável. Daria
a minha vida para a fazer feliz! Bem o sabe. Possa a certeza de
ser adorada levar alguma consolação à sua alma! A minha tem
necessidade da certeza de que perdoa ao meu amor os males que
a obriga a sofrer.
Adeus, minha Cecília, adeus minha terna amiga.

9 de Setembro de 17 * *

CARTA LXVI

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL


Lendo as duas cartas que junto, a minha bela amiga verá se
á: me desempenhei bem ou mal da missão de que me encarregou.

Embora ambas sejam datadas de hoje, foram escritas ontem, em


minha casa, e debaixo dos meus olhos. A carta para a pequena
diz tudo o que nós desejávamos. Perante a profundeza dos planos
da minha boa amiga, e a julgar pelo êxito dos seus empreendimentos,
não posso senão humilhar-me. Danceny está em brasa;
e, seguramente, na primeira ocasião deixará de ser digno das
censuras que lhe tem dirigido. Se a bela ingénua quiser ser dócil;
tudo estará terminado pouco tempo depois da sua chegada;
tenho cem maneiras preparadas. Graças aos cuidados da Marquesa,
eis-me decididamente o amigo de Danceny; a ele, não lhe
falta mais senão ser Príncipe.
É ainda muito novo, esse Danceny! Acredite, minha amiga,
que não consegui obter dele que prometesse à mãe a renúncia ao
amor pela filha; como se fosse muito difícil prometer, quando se
está decidido a não cumprir! Seria enganar - repetia-me ele continuamente.
Não é verdade que é um escrúpulo edificante, principalmente
quando se trata de seduzir a pequena? E são assim
os homens! Todos igualmente celerados nos seus projectos,
quando fraquejam na execução, chamam a isso probidade.
Pertence à minha amiga impedir que Madame de Volanges
se enfureça pelas pequenas liberdades que o nosso jovem se
permite na sua carta; livre-nos do convento; e consiga também
que a senhora desista do pedido das cartas da pequena. Em
primeiro lugar, ele não as entregará, e nisso sou da mesma opinião;
neste ponto o amor e a razão estão de acordo. Li todas
essas cartas, devorei o tédio que elas destilam. Podem vir a ser
úteis. Eu me explico.
Apesar da prudência de que usaremos, pode acontecer o
imprevisto; isso faria que o casamento falhasse, e todos os nossos
projectos concernentes a Gercourt cairiam por terra, não é
assim? Mas como, por meu lado, tenho de me vingar da mãe,
reservo-me o direito de desonrar a filha. Fazendo uma escolha
habilidosa nessa correspondência e dando a público apenas
uma parte, a pequena Volanges ficaria suspeita de ter dado os
primeiros passos e ter-se absolutamente atirado de cabeça. Algumas
dessas cartas poderiam mesmo comprometer a mãe e deixá-la-iam
maculada pelo menos de uma imperdoável negligência.
Sei bem que o escrupuloso Danceny se sentiria revoltado às
primeiras impressões; mas como seria atacado pessoalmente,
creio que acabaria por se recuperar. Existem mil probabilidades
contra uma de que as coisas não sigam este caminho; mas é preciso
prever tudo.

Adeus, minha bela amiga; seria muito amável se aceitasse o


convite da Marechala de... para cear amanhã em sua casa; por
mim, não pude recusar.
Julgo não ser necessário recomendar-lhe segredo, em relação
a Madame de Volanges, no que respeita ao meu projecto de
férias no campo; ela teria o cuidado de ficar na cidade. Assim,
uma vez que nos encontraremos, com certeza não partirá no dia
seguinte. E se ela nos der somente oito dias, respondo por tudo.

9 de Setembro de 17 * *

CARTA LXVII
A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT

Não desejaria responder-vos, senhor, e talvez o embaraço


que sinto neste momento seja uma prova de que não o deveria
fazer. Entretanto, não quero deixar-vos um único motivo de
queixa contra mim. Desejo convencer-vos de que fiz por vós
tudo quanto poderia fazer.
Dizeis que vos permiti que me escrevêsseis? Convenho; mas
quando me lembrais essa permissão, julgais que me esqueci das
condições em que ela foi dada? Se eu tivesse sido tão fiel a tal
concessão quando vos afastastes dela, teríeis recebido uma única
resposta minha? No entanto, esta já é a terceira; e enquanto
fazeis tudo o que é preciso para me obrigardes a terminar esta
correspondência, sou eu que me ocupo dos meios de a continuar.
Existe um, mas é o único; e se recusais aceitá-lo, seja o que
for que digais, será provar-me o pouco apreço que lhe dais.
Deixai pois uma linguagem que não posso nem quero ouvir;
renunciai a um sentimento que me ofende e me horroriza, e ao
qual talvez vos sentísseis menos ligado se pensásseis no obstáculo
que nos separa. Será esse o único sentimento que possais
conhecer, e o amor terá a meus olhos mais esse defeito de excluir
a amizade? Tereis, vós próprio, a maldade de não querer
por amiga aquela em quem desejais sentimentos mais ternos?
Não quero acreditá-lo; essa ideia humilhante revoltar-me-ia, e
afastar-me-ia de vós sem remédio.
Oferecendo-vos a minha amizade, senhor, dou-vos tudo o
que me pertence, tudo aquilo de que posso dispor. Que podereis
querer mais? Para me entregar a esse sentimento tão doce, tão à
medida do meu coração, espero apenas o vosso acordo, e a palavra
que de vós exijo, de que essa amizade bastará para vos
fazer feliz. Esquecerei tudo o que pudestes dizer-me; deixar-vos-ei
o cuidado de justificar a minha escolha.
Vedes a minha fraqueza; ela deve provar-vos a minha confiança.
Depende de vós aumentá-la; mas previno-vos de que a
primeira palavra de amor a destruirá para sempre, ressuscitando
todos os meus receios; que marcará para mim o início de um
silêncio eterno para convosco.
Se, como dizeis, estais distanciado dos vossos erros, não
achais preferível ser objecto da amizade de uma mulher honesta,
que causador dos remorsos de uma mulher culpada? Adeus,
senhor; deveis sentir que, depois de ter falado assim, nada posso
dizer-vos a que não me tenhais já respondido.

9 de Setembro de 17 * *

CARTA LXVIII

O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL

Como responder, senhora, à vossa última carta? Como ousarei


ser verdadeiro, quando a minha sinceridade pode perder-me
a vossos olhos? Não importa, é necessário; terei essa coragem.
A mim próprio digo e repito que vale mais merecer-vos do
que obter-vos; e, embora me recuseis uma felicidade que desejarei
incessantemente, é preciso ao menos provar-vos que o meu
coração é digno dela.
Que pena que, como dizeis, eu esteja distanciado dos meus
erros! Com que transportes de alegria eu teria lido essa mesma
carta à qual tremo hoje de responder! Falais-me nela com franqueza,
testemunhais-me confiança, ofereceis-me por fim a vossa
amizade: tantas ofertas, senhora, e que pesar eu tenho de não
poder aproveitar delas ! Por que não continuo eu a ser o mesmo?
Se de facto o fosse, se sentisse por vós apenas uma afeição
vulgar, aquela afeição ligeira, filha da sedução e do prazer, à
qual, no entanto, se dá hoje o nome de amor, apressar-me-ia a
tirar vantagem de tudo o que pudesse obter. Pouco delicado
sobre os meios, contanto que eles me garantissem o êxito, daria
ânimo à vossa franqueza pela necessidade de vos adivinhar;
desejaria a vossa confiança com o fim de a trair; aceitaria a vossa
amizade, na esperança de a desencaminhar... Pois quê, senhora!
horroriza-vos este quadro?... No entanto, seria essa a
minha obra se vos dissesse que consinto em ser apenas vosso
amigo...
Pois consentiria eu partilhar com alguém um sentimento
emanado da vossa alma? Se alguma vez eu o disser, não o acrediteis.
Desde esse momento procuraria enganar-vos; poderia
desejar-vos ainda, mas seguramente já não vos amaria.
Não é o caso que a amável franqueza, a doce confiança, a
sensível amizade não tenham a meus olhos certo valor... Mas o
amor! o amor verdadeiro, e tal como vós o inspirais, reunindo
todos esses sentimentos, dando-lhes maior energia, não poderia
prestar-se, como eles, a essa tranquilidade, a essa frieza da alma,
que permite comparações, que suporta mesmo preferências.
Não, minha senhora, não serei vosso amigo; amar-vos-ei com o
amor mais terno, e mesmo o mais ardente, embora o mais respeitoso.
Podereis tirar-lhe toda a esperança, mas não aniquilá-lo.
Com que direito pretendeis dispor de um coração de que
recusais as homenagens? Por que requinte de crueldade me disputais
até a felicidade de vos amar? Essa felicidade pertence-me,
é independente de vós; saberei defendê-la. Se é ela a fonte dos
meus males, é-lhes também o remédio.
Não, ainda uma vez, não. Podeis persistir nas vossas cruéis
recusas; mas deixai-me o meu amor. Comprazeis-vos em tornar-me
infeliz! Está bem; seja! Experimentai cansar a minha
coragem; saberei forçar-vos ao menos a decidir a minha sorte. E
talvez um dia me façais maior justiça. Não é que eu espere tornar-vos
alguma vez sensível; mas sem serdes persuadida, ficareis
convencida, e direis a vós mesma: "Tinha-o julgado mal."
Dizendo melhor, a vossa injustiça recai sobre vós. Conhecer-vos
sem vos amar, amar-vos sem ser constante, eis duas coisas
igualmente impossíveis; e apesar da modéstia que é vosso
timbre, deve ser-vos mais fácil queixar-vos do que admirar-vos
dos sentimentos que fazeis nascer. Por mim, cujo único mérito é
o ter sabido apreciar-vos, esse não quero perdê-lo; e longe de
consentir nas vossas traiçoeiras ofertas renovo a vossos pés o
juramento de vos amar sempre.

10 de Setembro de 17 * *.

CARTA LXIX

CECÍLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY

(Bilhete escrito a lápis e copiado por Danceny)


Pergunta-me o que faço; amo-o e choro. Minha mãe não me
fala; tirou-me papel, penas e tinta; sirvo-me dum lápis, que por
felicidade me ficou, e escrevo-lhe num bocado de papel da sua
carta. É-me forçoso aprovar tudo o que fez; amo-o demasiado
para não aproveitar todos os meios de receber as suas notícias e
dar-lhe as minhas. Eu não gostava do senhor Valmont, e não
supunha que ele fosse tão seu amigo; tentarei habituar-me a ele,
e a gostar dele por sua causa. Não sei quem foi que nos traiu.
Não pode ter sido senão a minha criada de quarto ou o meu
confessor. Sou muito infeliz. Partimos amanhã para o campo;
não sei por quanto tempo. Meu Deus! Não mais o ver! Não
haverá meio de o conseguir. Adeus; tente ler este bilhete. Estas
palavras escritas a lápis virão talvez a apagar-se, mas nunca os
sentimentos agravados no meu coração:

10 de Setembro de 17* *

CARTA LXX

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Tenho uma revelação importante a fazer-lhe, minha querida


amiga.

Ontem, ceava eu, como sabe, em casa da Marechala de...,


quando se falou da minha amiga, e aproveitei para dizer a seu
respeito não todo o bem que penso, mas todo aquele que não
penso. Toda a gente parecia ser da minha opinião, e a conversa
ia afrouxando, como acontece sempre que se diz apenas bem do
próximo, quando se ergueu a voz de um contraditor: era Prévan.

"Deus me defenda", disse ele levantando-se, "de duvidar da


seriedade de Madame de Merteuil! Mas ousaria crer que ela
a deve mais à sua ligeireza do que aos seus princípios. É talvez
mais difícil segui-la que agradar-lhe; e como, quando se corre
atrás de uma mulher, acontece sempre aparecerem outras no
caminho, como, em suma, as outras podem valer tanto ou mais
do que ela; uns são distraídos por um gesto novo, outros desistem
por cansaço; por isso ela é talvez a mulher de Paris que
menos tenha tido de se defender. Por mim", acrescentou ele (encorajado
pelo sorriso de algumas mulheres), "não acreditarei na
virtude de Madame de Merteuil senão depois de ter rebentado
seis cavalos a fazer-lhe a minha corte".
Este mau gracejo caiu bem, como todos os que se baseiam
na maledicência; e, enquanto duravam os risos que ele excitou,
Prévan retomou o seu lugar e a conversação geral mudou de
rumo. Mas as duas Condessas de B..., junto das quais estava o
nosso incrédulo, tiveram com ele uma conversa particular, que
felizmente estava ao alcance do meu ouvido.
Prévan garantiu que despertaria a sua sensibilidade, minha
boa amiga, e o desafio foi aceito, com a sua palavra de contar
tudo; e de todas as palavras que viriam a dar-se nessa aventura,
essa seria seguramente a mais religiosamente guardada. Mas
agora está prevenida, e conhece o provérbio.
Resta-me dizer-lhe que esse Prévan, que a Marquesa não
conhece, é infinitamente amável, e ainda mais habilidoso. Se
alguma vez me ouvir dizer o contrário, foi simplesmente porque
não gosto dele, porque me apraz diminuir os seus êxitos e por
que não ignoro o peso da minha opinião junto de trinta, pelo
menos, das mulheres da moda.
De facto, manifestando-me de tal modo, impedi-o por muito
tempo de fazer figura no que chamamos os grandes meios;
podia fazer prodígios: nem por isso aumentava a sua reputação.
Mas o ruído da sua tríplice aventura, chamando as atenções
sobre ele, deu-lhe aquela confiança que até então lhe faltava e
tornou-o verdadeiramente temível. Enfim, é hoje, talvez, o único
homem que eu recearia encontrar no meu caminho; à parte o
interesse que a minha amiga nisso possa ter, prestar-me-ia um
verdadeiro serviço se o expusesse, de passagem, a qualquer ridículo.
Deixo-o em boas mãos; e tenho a esperança de que no meu
regresso será um homem liquidado.
Prometo-lhe, em troca, levar a bom fim a aventura da sua
pupila e ocupar-me dela tanto como da minha bela e virtuosa
Presidente.
Esta acaba de me enviar um projecto de capitulação. Toda a
sua carta anuncia o desejo de ser enganada. É impossível oferecer
um meio mais cómodo e também mais usado. Quer que eu
seja seu amigo. Mas eu, que gosto dos processos novos e difíceis,
não quero possuí-la por tão baixo preço; e seguramente
não me obrigaria a tanto trabalho com ela para terminar por
uma vulgar sedução.
O meu projecto, pelo contrário, é que ela sinta bem profundamente
o valor e a extensão de cada um dos sacrifícios que virá
a fazer por mim; não a conduzirei tão rapidamente que não
possa ser seguida pelo remorso; fazer expirar a sua virtude
numa lenta agonia; obrigá-la a ter sempre presente esse desolador
espectáculo; e não lhe conceder a felicidade de me apertar
nos seus braços senão depois de a ter forçado a não dissimular o
desejo. Na verdade, valho muito pouco se não valho o esforço
de ser solicitado. E poderei desejar menor vingança de uma
mulher altiva, que parece envergonhar-se de confessar a sua
adoração?
Recusei pois a preciosa amizade e fixei-me firmemente no
meu título de amante. Como não me iludo sobre esse título que,
parecendo à primeira vista uma disputa de palavras, é todavia
de uma importância real a obter, pus todos os cuidados na minha
carta, e tratei de introduzir nela aquela desordem que constitui
o único meio de descrever os sentimentos. Fui, enfim, tão
pouco razoável quanto me foi possível; pois sem ausência de
raciocínio não há ternura; e creio que é por esta razão que as
mulheres nos são a tal ponto superiores nas cartas de amor.
Terminei a minha carta por um galanteio, e fi-lo ainda em
resultado das minhas profundas observações. Quando o coração
de uma mulher é posto à prova durante algum tempo, tem
necessidade de repouso; e tenho observado que um galanteio
constitui, para todas, o travesseiro mais macio que lhes podemos
oferecer.
Adeus, minha bela amiga. Parto amanhã. Se tiver ordens a
dar-me pela Condessa de..., farei paragem em casa dela, pelo
menos para jantar. Aborrece-me ter de partir sem a ver. Dê-me
parte das suas sublimes instruções e ajude-me com os seus sábios
conselhos, neste momento decisivo.
Sobretudo, defenda-se de Prévan; e possa eu um dia recompensá-la
por esse sacrifício! Adeus.

11 de Setembro de 17* *
CARTA LXXI

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

O pateta do meu criado deixou a minha pasta em Paris! As


cartas da minha bela, as de Danceny para a pequena Volanges,
tudo lá ficou, e tenho precisão de tudo. Tive de o mandar regressar,
para reparar a sua tolice; e enquanto ele sela o cavalo,
vou contar-lhe a minha história desta noite: pois decerto não
vai supor que perco o meu tempo.
A aventura, em si mesma, é pouca coisa; trata-se apenas de
um caldo requentado com a Viscondessa de M... Mas interessa
pelos pormenores. Por outro lado sinto-me feliz por lhe mostrar
que, se possuo o talento de perder as mulheres, não possuo
menos, quando quero, o de as salvar. O partido mais difícil, ou
o mais alegre, é sempre o que eu tomo; e nunca tenho de me
censurar por uma boa acção, contanto que ela me ponha à prova
ou me divirta.

, Deu-se pois o caso de encontrar aqui a Viscondessa, e como


ela juntava as. suas instâncias às que me faziam para passar a
noite no castelo, disse-lhe: "Está bem! Consinto, com a condição
de a passar a seu lado." - "Isso é impossível", respondeu-me
ela. "Vressac está aqui." Até ali eu pensava que lhe fazia
uma proposta honesta; mas aquela palavra "impossível" revoltou-me,
como de costume. Senti-me humilhado por ser sacrificado
a Vressac e resolvi não o suportar. Tive pois de insistir.
As circunstâncias não me eram favoráveis. Esse Vressac
cometeu a tolice de despertar suspeitas no Visconde, de modo
que a Viscondessa não pode recebê-lo em sua casa; e a visita de
ambos à boa Condessa tinha sido combinada entre eles, de
maneira a aproveitarem algumas noites. O Visconde chegou até
a mostrar-se aborrecido por ali encontrar Vressac; mas como é
ainda mais caçador do que ciumento, nem por isso deixou de
ficar. E a Condessa, sempre igual a si mesma (a minha amiga
conhece-a!), depois de ter instalado a mulher num quarto do
corredor principal, pôs o marido de um lado e o amante do outro,
e deixou-os arranjarem as coisas entre si. A má sorte dos
dois homens quis que eu ficasse instalado em frente.
Nesse mesmo dia, quer dizer, ontem, Vressac, que, como
pode imaginar, estraga o Visconde com mimos, foi à caça com
ele, apesar de pouco gostar de caçar, e esperava consolar-se à
noite, entre os braços da mulher, do aborrecimento que o marido
lhe causara todo o dia. Eu, porém, achei que ele teria necessidade
de repouso, e procurei maneira de decidir a amante a deixar-lhe
tempo para tal. Obtive o que pretendia e consegui que
ela arranjasse uma zanga com motivo naquela mesma caçada, à
qual ele, evidentemente, se sujeitara por ela. Não poderia haver
pior pretexto; mas nenhuma mulher tem, como a Viscondessa,
o talento, comum a todas, de pôr no lugar da razão o mau
humor, e de ser tanto mais difícil de apaziguar quanto menos
motivos tem de agravo. O momento aliás não era cómodo para
explicações; e como eu só pretendia uma noite, consenti que
eles fizessem as pazes no dia seguinte.
Vressac teve pois de aturar à volta os arrufos da Viscondessa.
Quis saber o motivo, obteve ralhos. Tentou justificar-se; o
marido, que estava presente, serviu de pretexto para acabar a
conversa. Procurou ainda aproveitar um momento em que o
Visconde se ausentara para pedir audiência nocturna: foi então
que a Viscondessa atingiu o sublime. Indignou-se contra a audácia
dos homens, que, só porque põem à prova a bondade de
uma mulher, julgam ter o direito de continuarem a abusar,
mesmo quando ela tem motivos de queixa; e tendo mudado de
tese com esta habilidade, falou tão bem de delicadeza e de sentimentos,
que Vressac ficou confuso e mudo. Eu próprio estive
tentado a crer que ela tinha razão; pois deve supor que, como
amigo de ambos, eu era testemunha do diálogo.
Por fim, a Viscondessa declarou que não acrescentaria as
fadigas do amor às da caça, para não ter de se censurar por perturbar
tão doces prazeres. O marido voltou. O desolado Vressac,
que já não tinha liberdade de responder, dirigiu-se a mim; e
depois de por muito tempo me ter contado as suas razões, que
eu conhecia tão bem como ele, pediu-me que falasse à Viscondessa,
e eu prometi-lho. De facto, falei-lhe; mas foi para lhe agradecer,
e combinar com ela a hora e a maneira de nos encontrarmos.
Disse-me ela que, instalada entre o marido e o amante,
achara mais prudente ir ao encontro de Vressac do que recebê-lo
no seu quarto; e, já que eu estava instalado em frente dela,
julgava mais seguro também vir ao meu encontro. Viria assim
que a criada de quarto a deixasse só; eu só tinha de deixar a
porta entreaberta e esperá-la.
Tudo se executou como tínhamos combinado; pela uma
hora da madrugada chegou ela ao meu quarto

D'une beauté qu'on vient d'arracher au sommeil.1

Como não sou vaidoso, não lhe descreverei os pormenores


da noite: mas a Marquesa conhece-me, e eu fiquei satisfeito
comigo.
Ao raiar do dia, foi necessário separarmo-nos. Aqui começa
a coisa a ser interessante. A estouvada julgou que tinha deixado
entreaberta a porta do seu quarto; encontrámo-la fechada, e a
chave tinha ficado do lado de dentro. Não faz ideia da expressão
de desespero com que a Viscondessa me disse então: "Ah!
Estou perdida!" É preciso convir que teria sido divertido deixá-la
naquela situação; mas podia eu suportar que uma mulher
ficasse perdida para mim, sem o ser por mim? E devia eu, como
o comum dos homens, deixar-me dominar pelas circunstâncias?
Era preciso pois encontrar um meio. Que teria feito a minha
bela amiga? Eis o partido que tomei, e que resultou com êxito.
Depressa verifiquei que a porta em questão podia ser arrombada,
desde que se pudesse fazer muito barulho. Consegui pois da
Viscondessa, não sem custo, que ela soltasse gritos agudos de
terror, como Acudam! um ladrão! um assassino! etc. E combinámos
que, ao primeiro grito, eu arrombaria a porta, e ela correria
a meter-se na cama. Não pode imaginar o tempo que foi
preciso para a decidir, mesmo depois de ela ter consentido. No
entanto, acabou-se por cumprir o combinado, e ao primeiro
pontapé a porta cedeu.
A Viscondessa fez bem em não perder tempo, pois no mesmo
instante o Visconde e Vressac apareceram no corredor, e a
criada de quarto acorreu também ao quarto da senhora. Só eu
mantinha o sangue-frio, e aproveitei a circunstância para ir
apagar uma lamparina que estava ainda acesa e derrubá-la por
terra; pois faz bem ideia quanto seria ridículo fingir aquele terror
pânico, tendo luz no quarto. Em seguida repreendi o marido
e o amante pelo seu sono letárgico e dei-lhes a certeza de que os
gritos a que eu tinha acudido e os meus esforços para arrombar
a porta tinham durado pelo menos cinco minutos.
A Viscondessa, que recuperara a coragem logo que se meteu
na cama, jurava com a máxima sinceridade que nunca tivera tanto
medo na sua vida. Procurávamos por toda a parte sem
nada encontrar, quando fiz notar a lamparina derrubada, e
concluí que, sem dúvida, um rato tinha causado o dano e o terror;
a minha opinião foi aprovada por unanimidade e, depois de
alguns gracejos à custa dos ratos, o Visconde foi o primeiro a
ir-se deitar, pedindo à esposa que de futuro tivesse ratos mais
sossegados.
Vressac, ficando só connosco, aproximou-se da Viscondessa
para lhe dizer ternamente que era uma vingança do amor, ao
que ela respondeu olhando-me: "Nesse caso o amor devia estar
muito zangado, pois se vingou cruelmente; mas", acrescentou
ela, "estou cheia de fadiga e quero dormir."
Eu estava num momento de bondade; em consequência,
antes de nos separarmos, advoguei a causa de Vressac e preparei
a reconciliação. Os dois amantes beijaram-se e, por minha vez,
fui beijado por ambos. Os beijos da Viscondessa deixaram-me
indiferente; mas confesso que o de Vressac me deu prazer. Saímos
juntos; e depois de ter recebido os seus prolongados agradecimentos,
cada um de nós foi-se meter na cama.
Se achar que esta história é engraçada, não lhe peço que
guarde segredo. Agora que já me diverti, é justo que o público
tenha a sua vez. Neste momento falo-lhe só da história; talvez
dentro em pouco tenhamos de. falar da sua heroína.
Adeus; há uma hora que o meu criado está à minha espera.
Tomo apenas o tempo para lhe mandar um abraço, e lhe recomendar
sobretudo que tenha cuidado com Prévan.

Do Castelo de...,13 de Setembro de 17 * .

CARTA LXXII

O CAVALEIRO DANCENY A CeCÍLIA VOLANGES

(Entregue somente em 14)

Ó minha Cecília! como invejo a sorte de Valmont! Amanhã


ele vê-la-á. É ele quem lhe entregará esta carta; e eu, longe de si,
entregue às minhas mágoas, arrastarei a minha penosa existência
entre as saudades e a dor. Minha amiga, minha terna amiga,
lastime-me pelos meus males; lastimo-me sobretudo pelos seus;
é contra estes que a coragem me abandona.
Quanto me é penoso causar a sua infelicidade! Sem mim
seria feliz e tranquila. Perdoa-me? Diga! Ah! Diga que me perdoa;
diga-me também que me tem amor, que há-de amar-me
sempre. Sinto necessidade que mo repita. Não é que eu duvide;
mas parece-me que quanto mais se tem essa certeza mais doce é
ouvi-lo dizer. Ama-me, não é verdade? Sim, ama-me com toda a
sua alma. Não esqueço que foi a última palavra que lhe ouvi
pronunciar. Como a recolhi no meu coração! Como ela se gravou
ali profundamente! E com que transportes o meu lhe corresponde!

Ai! Nesse momento de felicidade, estava eu longe de prever


a sorte horrorosa que nos esperava. Ocupemo-nos, minha Cecília,
dos meios para a suavizar. A crer no meu amigo, bastará,
para que o consigamos, que a Cecília deposite nele a confiança
que merece.
Fiquei contristado, confesso-o, com a ideia pouco vantajosa
que parece ter a seu respeito. Reconheço aí as prevenções da sua
Mamã: foi para me submeter a elas que descuidei, durante algum
tempo, a sociedade desse homem verdadeiramente amável,
que hoje tudo fará por mim; que, enfim, trabalha para nos reunir,
quando a sua Mamã nos separou. Peço-lhe, querida amiga,
veja-o com olhos mais favoráveis. Pense que ele é meu amigo,
que o quer ser seu, que pode proporcionar-me a felicidade de
voltar a vê-la. Se estas razões a não convencem, minha Cecília, é
porque me não ama tanto como eu a amo, é porque me não ama
tanto quanto amou já. Ah! Se alguma vez vier a ter-me menos
amor... Mas não, o coração da minha Cecília pertence-me; é
meu por toda a vida; e se eu tenho a temer as penas dum amor
infeliz, a sua constância pelo menos me salvará dos tormentos
dum amor traído.
Adeus, minha encantadora amiga; não esqueça que eu sofro,
e que só a si cabe tornar-me feliz, perfeitamente feliz. Escute
os votos do meu coração, e receba os mais ternos beijos de amor.

Paris, 11 de Setembro de 17 * *

CARTA LXXIII

O VISCONDE DE VALMONT A CECÍLIA VOLANGES

(Junta à precedente)

O amigo que a serve soube que lhe faltava tudo que é necessário
para escrever e remediou essa falta. Encontrará na antecâmara
do aposento que ocupa, debaixo do grande armário à
esquerda, uma provisão de papel, de penas e de tinta, que ele
renovará quando quiser e que lhe parece poder ficar no mesmo
sítio se não encontrar outro mais seguro.
Esse amigo pede-lhe que não se ofenda, se simular que não
lhe dá nenhuma atenção nas reuniões e que a olha como uma
criança. Tal procedimento parece-lhe necessário para inspirar a
segurança de que ele precisa e poder trabalhar mais eficazmente
na felicidade do seu amigo e na sua. Procurará suscitar as ocasiões
de lhe falar, quando tiver alguma coisa a comunicar-lhe ou
a entregar-lhe; e espera consegui-lo, se a menina tiver o cuidado
de o secundar.
Aconselha-a também a entregar-lhe as cartas à medida que
as for recebendo, a fim de a arriscar menos a comprometer-se.
Termina por lhe dar a certeza de que, se quiser depositar
nele confiança, porá os seus cuidados em suavizar a perseguição
que uma mãe demasiado cruel faz sofrer a duas pessoas, das
quais uma é já o seu melhor amigo, e a outra lhe parece merecer
o mais terno interesse.

Do Castelo de..., 14 de Setembro de 17 * *

CARTA LXXIV

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT


Desde quando, meu amigo, se assusta tão facilmente? Esse
Prévan é assim tão temível? Veja como eu sou simples e modesta!
Tenho-o encontrado muitas vezes, a esse soberbo vencedor; e
mal o tenho olhado! Faltava só a sua carta para que eu lhe desse
atenção. Reparei ontem a minha injustiça. Ele estava na Ópera,
quase na minha frente, e entretive-me com ele. É bonito ao menos,
mesmo muito bonito; que traços finos e delicados! Deve ganhar
em ser visto de perto. E diz o Visconde que ele me quer possuir!
Seguramente far-me-á honra e prazer. Falando sério, tenho essa
fantasia, e confio-lhe aqui que dei para isso os primeiros passos.
Não sei se terão êxito. Passo a narrar-lhe o caso.
Ele estava a dois passos de mim, à saída da Ópera, e eu
marquei encontro, em voz alta, à Marquesa de... para cear sexta-feira
em casa da Marechala. É, segundo creio, o único sítio
onde posso encontrá-lo. Não duvido de que ele me tenha ouvido...
E se esse ingrato lá não fosse? Diga-me: acha que ele irá?
Saiba que, se não for, ficarei aborrecida toda a noite. Bem vê
que ele não terá assim tanta dificuldade em seguir-me; e o Visconde
vai admirar-se mais quando souber que terá ainda menos
dificuldade em agradar-me. Ele quer, segundo diz, rebentar seis
cavalos a fazer-me a sua corte! Oh! eu salvarei a vida a esses
cavalos. Nunca eu teria a paciência de esperar tanto tempo. O
Visconde sabe que não está nos meus princípios fazer sofrer
quando me decido por alguém, e a verdade é que me decidi por
ele. Oh! convenha, Visconde, que sentiu prazer em me pregar
um sermão! A sua revelação importante não teve um grande
êxito? Que quer o Visconde! Há tanto tempo que eu vegeto! Há
mais de seis semanas que não me permito uma aventura. Apresenta-se-me
esta; posso recusá-la? A pessoa não vale a pena?
Haverá alguém mais agradável, em qualquer sentido que tome a
palavra.
O próprio Visconde é obrigado a fazer-lhe justiça; faz mais
que elogiá-lo, tem ciúmes dele. Pois bem! serei eu o juiz entre
ambos. Mas primeiro é preciso tomar conhecimento da causa, e
é o que desejo fazer. Serei juiz íntegro, e ambos serão pesados na
mesma balança. Quanto ao Visconde, tenho já as suas memórias,
e a sua causa está perfeitamente instruída. Não será justo
que me ocupe agora do seu adversário? Vamos, preste-se de
bom grado à justiça; e, para começar, conte-me, peço-lhe, essa
tríplice aventura de que ele foi herói. Fala-me disso como se eu
não conhecesse outra coisa, e não sei uma palavra a tal respeito.
O caso deve ter-se passado durante a minha viagem a Genebra,
e o seu ciúme tê-lo-á impedido de mo contar. Repare esta falta o
o mais cedo possível; pense que nada do que lhe diz respeito
me é indiferente. Creio bem que se falava ainda no assunto
quando regressei; mas eu tinha outros motivos de preocupação,
e raramente dou ouvidos a coisas desse género quando não são
do próprio dia ou da véspera.
Mesmo que o contrarie um pouco o que lhe peço, não será
esse o menor preço que o Visconde deve aos cuidados que por
sua causa tenho tido? Não foram esses cuidados que o aproximaram
da sua Presidente, quando as suas tolices o tinham afastado
dela? Não fui ainda eu que pus nas suas mãos o meio de se
vingar do amargo zelo de Madame de Volanges? Tantas vezes o
Visconde lamentou o tempo que perdia a procurar aventuras!
Presentemente, tem-nas à mão. O amor, o ódio, só tem o trabalho
de escolher, tudo está debaixo do mesmo tecto. E pode até,
fazendo existência dupla, afagar com uma das mãos e ferir com
a outra.
A sua aventura com a Viscondessa é ainda a mim que a deve.
Deu-me muita satisfação; mas, como o Visconde diz, é preciso
que se fale no caso; pois se a ocasião foi de molde a que preferisse
o mistério ao ruído, e compreendo que assim fosse, devemos
no entanto convir que essa mulher não merecia um procedimento
tão honesto.
Além do mais, tenho motivos de queixa de tal criatura. O
-Cavaleiro de Belleroche acha-a mais bonita do que eu desejaria;
e, por muitas razões, ficaria bem contente se tivesse um pretexto
para romper com ela. Ora não há nada mais cómodo do que
poder dizer: "Já ninguém recebe essa mulher."
Adeus Visconde; pense que, no lugar onde está, o tempo é
precioso; vou empregar o meu a ocupar-me da felicidade de Prévan.

Paris, 15 de Setembro de 17 * *.

CARTA LXXV

CECÍLIA VOLANGES A SOFIA CARNAY

Está aqui uma boa amiga da Mamã, que eu não conhecia,


que parece também não gostar muito do senhor de Valmont,
embora ele tenha muitas atenções para ela. Tenho receio que ele
se aborreça depressa da vida que levamos aqui e que regresse a
Paris; isso seria lamentável. Deve ter muito bom coração para
ter vindo expressamente a fim de prestar um serviço ao seu amigo
e a mim! Bem desejaria testemunhar-lhe o meu reconhecimento,
mas não sei como fazer para falar; e mesmo que achasse
ocasião para isso, ficaria tão envergonhada que não saberia que
dizer-lhe.
É só com Madame de Merteuil que eu falo livremente,
quando falo do meu amor. Talvez mesmo contigo, a quem digo
tudo, eu ficasse envergonhada, se fosse a conversarmos. Com o
próprio Danceny tenho muitas vezes sentido, contra minha vontade,
certo receio que me impedia de dizer tudo o que pensava.
Estou bem arrependida agora, e daria tudo para encontrar o
momento de lhe dizer uma vez, uma única vez, quanto o amo...
O senhor de Valmont prometeu-lhe que, se eu me deixasse conduzir,
arranjaria maneira de nos tornarmos a ver. Eu farei tudo
o que ele quiser; mas não posso conceber que tal seja possível.
Adeus, minha boa amiga, não posso escrever mais.

Do castelo de...,14 de Setembro de 17* *

Nota. - Nesta carta, Cecília Volanges narra com muitos pormenores tudo
o que lhe diz respeito nos acontecimentos que o leitor conhece do fim da
Primeira Parte, Carta LXI e seguintes. Julgou-se oportuno suprimir essa
repetição. Por fim, fala do Visconde de Valmont, e exprime-se do seguinte modo:

Afirmo-te que é um homem extraordinário. A Mamã diz


muito mal dele; mas o Cavaleiro Danceny diz muito bem, e
creio que é ele quem tem razão. Nunca vi homem mais expedito.
Quando me entre ou a carta de Danceny, estava muita gente
e ninguém viu nada. certo que tive bastante medo porque não
tinha sido prevenida; mas agora estou sempre à espera. Já compreendi
muito bem o que ele quer que eu faça para lhe entregar
a resposta. É muito fácil entendermo-nos com ele, pois tem um
olhar que diz tudo o que ele quer. Não sei o que ele faz para isso:
dizia-me no bilhete de que te falei que diante da Mamã fingira
sempre não me ligar importância. Na verdade, dir-se-ia que
não pensa nisso; mas todas as vezes que procuro os seus olhos,
estou certa de encontrá-los imediatamente.

CARTA LXXVI

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Ou a sua carta é um gracejo, que não cheguei a compreender,


ou estava, quando ma escreveu, num delírio muito perigoso.
Se eu a conhecesse menos, minha bela amiga, ficaria verdadeiramente
horrorizado; e seja o que for que possa dizer, não
me horrorizo facilmente.

* Tendo Mademoiselle de Volanges, pouco tempo depois, mudado de


cônfidente, como se verá pela continuação destas cartas, não virá a encontrar-se
nesta colecção nenhuma das que continuou a escrever à sua amiga do convento,
pois nada revelariam ao leitor.

Debalde li e reli a sua carta, não fiquei mais adiantado; pois


não há maneira de a tomar no sentido natural que ela apresenta.
Que quis a minha amiga dizer? Apenas que era inútil ter tantos
cuidados contra um inimigo tão pouco temível? Mas, nesse caso,
pode não ter razão. Prévan é realmente amável; é-o mais
ainda do que supõe. Tem sobretudo o talento deveras útil de
interessar muita gente nas suas relações amorosas, pela habilidade
que desenvolve ao falar sobre tal assunto em sociedade,
diante de toda a gente, servindo-se da primeira conversação que
topa a jeito. Poucas mulheres há que se salvem da armadilha de
lhe dar réplica, visto que, tendo todas pretensões de inteligência,
nenhuma quer perder ocasião de a mostrar. Ora, sabe muito
bem a minha amiga que toda a mulher que consente em falar
de amor, cedo acaba por tomar parte nele, ou pelo menos por se
conduzir como se o sentisse. Prévan tira ainda vantagens do
processo, que ele realmente aperfeiçoou, de chamar frequentemente
as próprias mulheres em testemunho das derrotas que
lhes inflige. E falo-lhe disto porque o presenciei.
O segredo veio até mim em segunda mão, pois nunca estive
ligado a Prévan; éramos por fim seis a escutá-lo: a Condessa de
P..., julgando-se muito inteligente, tomou os ares de quem sustenta
uma conversação geral e foi contando aos que nada sabiam,
até aos mínimos pormenores, de como se tinha entregado
a Prévan e tudo o que se passara entre ambos. Fazia a narração
com tal segurança, que nem se sentiu perturbada por um riso
louco que nos tomou os seis ao mesmo tempo; e hei-de recordar-me
sempre de que, a um de nós que, para se desculpar, quis
fingir que não acreditava no que ela dizia, ou antes, no que ela
parecia querer dizer, respondeu ela gravemente que com certeza
nenhum de nós estava tão bem informado como ela; e não receou
mesmo dirigir-se a Prévan, para lhe perguntar se se tinha
enganado numa só palavra.
Pude então considerar aquele homem perigoso para toda a
gente; mas para si, Marquesa, não bastava que ele fosse bonito,
muito bonito, conforme as suas próprias palavras? Ou que ele
lhe fizesse um desses ataques que lhe agrada algumas vezes recompensar,
sem outro motivo do que achá-los bem feitos? Ou
que achasse agradável entregar-se por uma razão qualquer?
Ou... que sei eu? Posso porventura adivinhar os mil e um caprichos
que governam a cabeça de uma mulher, que só por si a ligam
ao seu sexo? Agora que está prevenida do perigo, não duvido
que se livrará dele facilmente: todavia era necessário preveni-la.
Volto ao meu assunto: que quis dizer na sua carta?
Se é apenas um gracejo sobre Prévan, além de ser demasiado
longo, não era a mim que devia dirigi-lo, por inútil; é à sociedade
que se deve oferecer um bom motivo de ridículo para esse
homem, e renovo-lhe o meu pedido a tal respeito.
Ah! Julgo ter encontrado a chave do enigma! A sua carta é
uma profecia, não do que virá a fazer, mas do que ele a julgará
pronta a fazer no momento da queda que lhe prepara. Aprovo
esse projecto; no entanto, ele exige grandes preparativos. A
minha amiga sabe tão bem como eu que, para a opinião pública,
ceder a um homem ou aceitar-lhe a corte é absolutamente a
mesma coisa, a menos que esse homem seja um tolo; e Prévan
está muito longe de o ser. Se ele tiver as aparências a seu favor,
irá gabar-se, e está tudo dito. Os tolos acreditarão nele, os maus
fingirão que acreditam; quais serão então, Marquesa, os seus
recursos? Creia, tenho medo. Não é que eu duvide da sua habilidade;
mas são os bons nadadores que se afogam.
Eu não me julgo mais estúpido que qualquer outro! Quanto
a meios de desonrar uma mulher, tenho encontrado cem, tenho
encontrado mil: mas quando procuro a maneira de ela se salvar,
nunca vejo tal possibilidade. Mesmo na minha bela amiga, cuja
conduta é uma obra-prima, cem vezes tenho eu julgado ver mais
sorte do que simulação perfeita.
Mas no fim de tudo, estou talvez a procurar uma razão ao
que não existe. Admiro como, há uma boa hora, eu trato com
seriedade o que não passa, com certeza, de uma brincadeira da
sua parte. Vai troçar de mim! Pois seja! Seja; mas apresse-se, e
falemos de outra coisa. De outra coisa! Engano-me, é sempre a
mesma; sempre mulheres a possuir ou a perder, e muitas vezes
ambas as coisas.
Como a minha amiga muito bem notou, tenho aqui com
que me entreter nos dois géneros, mas não com a mesma facilidade.
Prevejo que a vingança irá mais depressa do que o amor.
A pequena Volanges está rendida, respondo por ela; depende
apenas da ocasião, e encarrego-me de fazer que ela apareça.
Mas com Madame de Tourvel não é a mesma coisa: esta mulher
é desoladora, não chego a compreendê-la. Tenho cem provas do
seu amor, mas tenho mil da sua resistência; e, na verdade, receio
que ela me escape.
O primeiro efeito produzido pelo meu regresso animou-me
a esperar maiores vantagens. Imagina decerto que era meu intuito
julgar por mim próprio; e para ter a certeza de apreciar os
primeiros movimentos, não mandei ninguém à minha frente e
calculei o tempo de viagem de modo a chegar quando estivessem
à mesa. De facto, caí do céu, como uma divindade de ópera
que prepara o desenlace. Fazendo ao entrar bastante ruído, para
fixar os olhares sobre mim, pude ver num só golpe de vista a
alegria da minha velha tia, o despeito de Madame de Volanges e
o prazer desmedido de sua filha. A minha bela, pelo lugar que
tinha à mesa, estava de costas para a porta. Ocupada nesse
momento a servir-se de qualquer coisa, nem sequer voltou a
cabeça. Mas eu dirigi a palavra a Madame de Rosemonde; e,
tendo reconhecido a minha voz às primeiras palavras, um grito
escapou à sensível devota, no qual julguei reconhecer mais amor
do que surpresa ou susto. Eu avançara já o bastante para poder
ver o seu rosto: nele se espelharam, de vinte maneiras diferentes,
o tumulto da sua alma, a luta das suas ideias e dos seus sentimentos.
Sentei-me à mesa ao lado dela; ficou sem saber positivamente
o que havia de fazer ou de dizer. Tentou continuar a
comer; não houve maneira. Por fim, não tinha ainda passado
um quarto de hora, tornando-se mais fortes do que ela o seu
embaraço e o seu prazer, não imaginou nada melhor do que
pedir licença para se levantar, e saiu para o parque, sob o pretexto
de ter necessidade de tomar ar. Madame de Volanges quis
acompanhá-la; a terna hipócrita não lho permitiu; demasiado
feliz, sem dúvida, por encontrar um pretexto para estar só e se
entregar livremente às doces emoções que experimentara.
Abreviei o jantar o melhor que me foi possível. Mal tinham
servido a sobremesa, a infernal Volanges, apressando-se sem
dúvida a tirar-me qualquer vantagem, levantou-se do seu lugar
para ir ao encontro da encantadora doente: mas eu tinha previsto
esse projecto e prejudiquei-o. Fingi pois tomar esse movimento
isolado pelo movimento geral, e, tendo-me levantado ao
mesmo tempo, a pequena Volanges e o cura deixaram-se levar
por esse duplo exemplo; de maneira que Madame de Rosemonde
se encontrou só à mesa com o velho comentador de T..., e
ambos tomaram também o partido de se levantar. Fomos pois
todos juntar-nos à minha bela, que encontrámos no pequeno
bosque perto do castelo; e como ela necessitava de solidão e não
de passeio, tanto valeu para ela regressar connosco como fazer-nos
ficar junto dela.
Quando tive a certeza de que Madame de Volanges não teria
ocasião de lhe falar a sós, pensei em executar as suas ordens
e ocupei-me dos interesses da sua pupila. Logo após o café, subi
ao meu quarto, e entrei também nos dos outros, para reconhecer
o terreno; tomei as minhas disposições para assegurar a correspondência
da pequena; depois desse primeiro acto de benemerência,
escrevi uma palavra para lhe dar instruções e lhe pedir
a sua confiança e juntei o meu bilhete à carta de Danceny.
Voltei ao salão. Aí encontrei a minha bela instalada numa cadeira
de encosto num abandono delicioso.
Este espectáculo, à medida que despertava os meus desejos,
animava os meus olhares; senti que estes deviam ser ternos e insistentes,
e coloquei-me de maneira a fazer uso deles. O primeiro
efeito conseguido foi o de obrigar os grandes olhos modestos
da celeste criatura a baixarem-se. Contemplei por algum tempo
essa figura angélica; depois, percorrendo toda a sua pessoa, diverti-me
a adivinhar os contornos e as formas através de um
vestuário ligeiro, mas sempre importuno. Depois de ter descido
da cabeça aos pés, tornei a subir dos pés à cabeça... Minha bela
amiga, o doce olhar estava fixo em mim; de repente baixou de
novo, e eu desviei os olhos, a fim de favorecer o regresso dos
seus. Então estabeleceu-se entre nós aquela conversação tácita,
primeiro tratado do amor tímido, que, para satisfazer o desejo
mútuo da vista, permite aos olhares sucederem-se esperando
que se confundam.
Persuadido de que a minha bela se entregara inteiramente a
esse novo prazer, encarreguei-me de velar pela nossa comum
segurança; mas, convencendo-me de que um diálogo vivo nos
salvaria de sermos notados pelos que nos rodeavam, tratei de
obter dos seus olhos que falassem uma linguagem franca. Para
esse efeito tomei primeiro alguns olhares de surpresa, mas com
tanta reserva que a modéstia não poderia ficar alarmada; e para
pôr mais à vontade a tímida pessoa, eu próprio afectei tácita
confusão como ela. Pouco a pouco os nossos olhos, acostumados
a encontrarem-se, fixaram-se mais longamente; por fim não
se deixaram mais; e surpreendi nos seus olhos aquela doce languidez,
sinal feliz do amor e do desejo. Mas foi apenas por um
momento; depressa voltando a si, mudou, não sem alguma vergonha,
a posição e o olhar.
Não querendo que ela tivesse alguma dúvida de que eu houvesse
notado os seus diversos movimentos, levantei-me com
vivacidade e perguntei-lhe, fingindo-me assustado, se se sentia
mal. Nesse momento toda a gente veio rodeá-la. Deixei que
todos passassem à minha frente; e como a pequena Volanges,
que tecia um tapete perto da janela, levasse algum tempo a desembaraçar-se
do trabalho, aproveitei a ocasião para lhe entregar
a carta de Danceny. Eu estava um pouco afastado dela, lancei-lhe
a epístola sobre os joelhos. Ela ficou sem saber que fazer.
A minha amiga teria rido do seu ar de surpresa e embaraço;
todavia eu não ri, temendo que tanta falta de jeito acabasse por
nos trair. Mas um olhar e um gesto imperiosos fizeram-lhe enfim
compreender que era preciso guardar a carta no bolso.
O resto do dia não teve nada de interessante. O que depois
se passou dará talvez lugar a acontecimentos de que a minha
amiga ficará satisfeita, pelo menos no que diz respeito à sua
pupila; mas vale mais empregar o tempo a executar projectos
do que a contá-los. Além disso, é esta a oitava página que escrevo,
e sinto-me fatigado. Por isso lhe digo adeus.
Adivinha decerto, sem que eu lho diga, que a pequena respondeu
a Danceny. Eu tive também resposta da minha bela, a
quem escrevera no dia seguinte ao da minha chegada. Envio-lhe
as duas cartas. Leia-as ou não as leia; pois essa perpétua maçada,
que já não me diverte muito, deve ser muito insípida para
qualquer pessoa desinteressada.
Ainda uma vez, adeus. Continuo a amá-la sempre; mas,
peço-lhe, se voltar a falar-me de Prévan, faça-o de maneira que
eu entenda.

Do Castelo de...,17 de Setembro de 17 *

CARTA LXXVII

O VISCONDE DE VALMONT À PRESIDENTE DE TOURVEL

De onde poderá vir, senhora, o empenho cruel que mostrais


em fugir-me? Como pode dar-se que a mais terna dedicação da
minha parte obtenha da vossa um procedimento que apenas seria
permitido para o homem de quem tivésseis os maiores motivos
de queixa? Pois quê? O amor conduz-me a vossos pés; e,
quando um feliz acaso me coloca a vosso lado, apraz-vos fingir
uma indisposição, alarmar os vossos amigos, em vez de consentirdes
em ficar ao pé de mim ! Quantas vezes desviastes ontem os
olhos para me privar do favor de um olhar? E se pude ver neles
menos severidade por um único instante, esse momento foi tão
curto que parece ter sido menos vosso intuito dar-me algum
prazer do que fazer-me sentir o que eu perdia em ser dele privado.
Não é esse, ouso dizê-lo, nem o tratamento que merece o
amor, nem o que pode permitir-se a amizade; e todavia, desses
dois sentimentos, bem sabeis se um deles me anima, e eu estava,
parece-me, autorizado a supor que não vos recusaríeis ao outro.
Essa amizade preciosa, da qual sem dúvida me julgastes digno,
visto que ma quisestes oferecer, que fiz eu para a ter perdido
depois? Ter-me-ei prejudicado pela minha confiança, e ter-me-eis
punido pela minha franqueza? Não receais ao menos abusar
de uma e de outra? Não foi, verdadeiramente, no seio da minha
amiga que eu depus o segredo do meu coração? Não foi perante
ela só que eu pude julgar-me obrigado a recusar condições que
me bastaria aceitar, para me dar a facilidade de não as manter, e
talvez para delas abusar com vantagem? Querereis, enfim, por
um rigor tão pouco merecido, obrigar-me a supor que teria sido
suficiente enganar-vos para obter mais indulgência?
Não me arrependo de um procedimento que vos devia, que
devia a mim próprio; mas por que fatalidade cada acção louvável
se torna para mim o sinal de uma nova infelicidade?
Foi depois de ter dado lugar ao único elogio que vos dignastes
ainda fazer ao meu procedimento que tive, pela primeira vez,
de gemer pela desgraça de vos ter desagradado. Foi depois de
vos ter provado a minha submissão perfeita, privando-me da
felicidade de vos ver, unicamente para tranquilizar a vossa delicadeza,
que quisestes romper toda a correspondência comigo,
tirar-me essa frágil compensação de um sacrifício que havíeis
exigido, e arrebatar-me até o amor que unicamente vos poderia
dar tal direito. É enfim por vos ter falado com uma sinceridade
que o próprio interesse desse amor não pôde enfraquecer, que
hoje me fugis como a um sedutor perigoso, de que tivésseis reconhecido
a perfídia.
Não vos cansareis nunca de ser injusta? Dizei-me ao menos
que novos motivos de agravo puderam levar-vos a tanta severidade
e não recuseis ditar-me as ordens que quereis que eu siga;
pois que me comprometo a executá-las, não é pretender demasiado
procurar conhecê-las.

15 de Setembro de 17 * *.

CARTA LXXVIII

A PRESIDENTe DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT

Pareceis, senhor, surpreendido pela minha conduta, e pouco


falta mesmo para me pedirdes contas, como se tivésseis o direito
de censurá-la. Confesso que me julgaria mais autorizada do que
vós a admirar-me e a queixar-me; mas, depois da recusa contida
na vossa última carta, tomei o partido de me fechar numa indiferença
que não deixa lugar às observações nem às censuras.
Entretanto, como me pedis esclarecimentos, e como, graças ao
Céu, não sinto nada em mim que possa impedir-me de os dar,
desejo entrar ainda uma vez em explicações convosco.
Quem lesse as vossas cartas julgar-me-ia injusta ou caprichosa.
Julgo merecer que ninguém forme essa ideia de mim;
parece-me sobretudo que, menos do que ninguém, estejais no
caso de a formar. Sentistes, sem dúvida, que necessitando justificar-me
me forçaríeis a recordar tudo o que se passou entre
nós. Aparentemente supusestes que teríeis tudo a ganhar com
esse exame; como, pelo meu lado, julgo não ter nada a perder,
pelo menos aos vossos olhos, não receio sujeitar-me a ele. Talvez
seja esse, na verdade, o único meio de conhecer qual de nós
dois tem o direito de se queixar do outro.
A contar do dia da vossa chegada a este castelo, devereis
confessar, senhor, segundo creio, que pelo menos a vossa reputação
me autoriza a usar de alguma reserva convosco, e que eu
teria podido, sem recear ser acusada de um excesso de pudor,
manter-me nas expressões da mais fria delicadeza. Vós próprio
me teríeis tratado com indulgência, e teríeis achado natural que
, uma mulher tão pouco formada não tivesse mesmo o mérito
necessário para apreciar o vosso. Era esse precisamente o partido
da prudência; e ter-me-ia custado tanto menos segui-lo, que
não vos esconderei que, quando Madame de Rosemonde me
veio dar parte da vossa chegada, tive necessidade de recordar a
minha amizade por ela, e a que ela tem por vós, para não lhe
deixar ver quanto essa notícia me contrariava.
Convenho de vontade que vos mostrastes primeiramente
sob um aspecto mais favorável do que eu tinha imaginado; mas
convireis por vosso lado que esse aspecto durou bem pouco e
que depressa vos cansastes de uma obrigação, de que aparentemente
vos não julgastes compensado pela ideia vantajosa que
por ela formei a vosso respeito.
Foi então que, abusando da minha boa fé, da minha tranquilidade,
não receastes comunicar-me um sentimento do qual
não poderíeis duvidar que eu me sentisse ofendida; e, enquanto
não vos ocupáveis senão de aumentar os vossos agravos, eu
procurava um motivo para os esquecer, oferecendo-vos a ocasião
para os reparardes, pelo menos em parte. O meu pedido era
arvorando a minha indulgência como um direito, aproveitastes
dela para um pedido ao qual, sem dúvida, eu não deveria aceder,
e cuja permissão todavia obtivestes. Das condições que foram
impostas, não cumpristes nenhuma; e a vossa correspondência
era tal que cada uma das vossas cartas me punha no dever
de não lhe responder. Foi no próprio momento em que a
vossa obstinação me forçava a afastar-vos de mim que, por uma
condescendência talvez censurável, tentei o único meio que podia
permitir-me a vossa aproximação; mas que valor tem aos
vossos olhos um sentimento honesto? Desprezais a amizade; e,
na vossa louca embriaguez, desdenhando por completo a desgraça
e a vergonha, procurais apenas prazeres e vítimas.
Tão ligeiro no vosso procedimento como inconsequente nas
vossas censuras, esqueceis as promessas, ou antes, comprazeis-vos
em violá-las, e, depois de terdes consentido em afastar-vos
de mim, voltais aqui sem que fôsseis chamado; sem respeito
pelas minhas súplicas, pelas minhas razões, sem terdes mesmo a
atenção de me prevenir, não tivestes receio de me expor a uma
surpresa cujo efeito, embora decerto bem natural, teria podido
ser interpretado desfavoravelmente para mim, pelas pessoas que
me rodeiam. Esse momento de confusão que fizestes nascer,
longe de procurar distraí-lo ou dissimulá-lo, parecestes pôr todos
os vossos cuidados em aumentá-lo. À mesa, escolhestes precisamente
o vosso lugar ao lado do meu; uma ligeira indisposição
obrigou-me a sair antes dos outros: em lugar de respeitardes
a minha solidão, arrastastes toda a gente a vir perturbá-la. Voltando
ao salão, se dou um passo; encontro-vos a meu lado; se
digo uma palavra, sois sempre vós quem me responde. O dito
mais indiferente serve-vos de pretexto para conduzir uma conversação
que eu não desejaria ouvir, que pode mesmo comprometer-me:
pois, enfim, senhor, por muita inteligência que haja
nos vossos a-propósitos, creio que os outros podem também
compreender aquilo que eu compreendo.
Forçada assim por vós à imobilidade e ao silêncio, nem por
isso deixais de perseguir-me; não posso levantar os olhos nem
encontrar os vossos. Sou constantemente obrigada a desviar os
meus olhares; e, por uma inconsequência bem incompreensível,
fazeis que todos os olhos se fixem em mim, num momento em
que até aos meus próprios olhos eu desejaria furtar-me.
E queixais-vos do meu procedimento! E admirais-vos do
meu empenho em vos fugir! Censurai-me antes a minha indulgência,
admirai-vos de que eu não tenha partido no momento
da vossa chegada. Talvez eu devesse tê-lo feito, e obrigar-me-eis
a essa solução violenta mas necessária se não cessardes a vossa
ofensiva perseguição. Não, não esqueço, não esquecerei nunca
o que devo a mim própria, aos laços que formei, que respeito e
amo; e peço-vos que acrediteis: se alguma vez me encontrar
reduzida à escolha infeliz de os sacrificar ou me sacrificar a mim
mesma, não hesitarei por um instante. Adeus, senhor.

16 de Setembro de 17 * *

CARTA LXXIX

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Contava ir à caça esta manhã, mas está um tempo detestável.


Como leitura, tenho apenas um romance novo que aborreceria
até um colegial. O almoço será daqui a duas horas, nunca
menos. Assim, apesar da minha longa carta de ontem, vou de
novo conversar com a minha amiga. Estou certo de não a aborrecer,
pois vou falar-lhe do lindo Prévan. Como é possível que
não conheça a sua famosa aventura, a que separou as inseparáveis?
Aposto que se recordará dela às primeiras palavras. Sempre
vou contá-la, visto que o deseja.
Há-de lembrar-se de que todo Paris se admirava que três
mulheres, todas três bonitas, tendo todas três os mesmos talentos,
e podendo ter as mesmas pretensões, continuassem intimamente
ligadas entre si após o momento da sua entrada na sociedade.
Julgou-se primeiro encontrar a razão na sua extrema timidez;
mas logo, rodeadas por uma corte numerosa de que elas
partilhavam as homenagens, e conhecendo o seu próprio valor
pelo calor e pelas atenções de que eram objecto, a sua união
tornou-se ainda mais forte. Dir-se-ia que o triunfo para uma era
sempre o das duas outras. Esperava-se pelo menos que o momento
do amor trouxesse também o de alguma rivalidade. Os
nossos jovens namoradores disputavam-se a honra de ser o
ponto de discórdia; e eu próprio me teria posto nas suas fileiras
se os grandes favores que a Condessa de... me concedia por esse
tempo me tivessem permitido ser-lhe infiel antes de obter a liberdade
que solicitava.
Entretanto as nossas três belezas, no mesmo Carnaval, fizeram
a sua escolha como por combinação prévia; e essa escolha,
longe de proporcionar a tempestade que se esperava, teve apenas
como resultado tornar a amizade delas mais interessante
pelo encanto das confidências.
A multidão dos pretendentes infelizes juntou-se então à das
mulheres ciumentas e a escandalosa constância foi submetida à
censura pública. Uns pretendiam que, na sociedade das inseparáveis
(assim lhe chamavam então), a lei fundamental era a
comunidade de bens e que até o amor lhe estava submetido;
outros asseguravam que os três amantes, livres de rivais masculinos,
não o eram de rivais femininos; chegou mesmo a dizer-se
que só por decência eles tinham sido admitidos, e haviam obtido
apenas um título sem funções.
Estes rumores, verdadeiros ou falsos, não tiveram o efeito
que se esperava. Os três pares, pelo contrário, sentiram-se que
estavam perdidos se se separassem naquele momento, e tomaram
o partido de enfrentarem a tempestade. O público, que se
cansa de tudo, depressa se cansou de uma sátira infrutuosa.
Levado pela sua ligeireza natural, ocupou-se de outros assuntos;
depois, voltando a este com a sua inconsequência habitual,
transformou a notícia em elogio. Como tudo se passa consoante
as modas, o entusiasmo venceu; tornou-se um verdadeiro delírio,
quando Prévan tomou a peito verificar aqueles prodígios e
fixar sobre eles a opinião pública e a sua.
Procurou pois tais modelos de perfeição. Admitido facilmente
na sua sociedade, daí tirou um augúrio favorável. Ele
sabia bem que as pessoas felizes não são de fácil acesso. Depressa
viu, de facto, que uma tão louvada felicidade era, como a dos
reis, mais invejada que desejada. Notou que, entre os pretendidos
inseparáveis, se começava a procurar os prazeres do exterior,
que já se ocupavam de distracções; e concluiu que os laços
de amor e de amizade começavam a afrouxar ou a romper-se e
que só os do amor-próprio e do hábito conservavam a sua força.
Entretanto as mulheres, que a necessidade reunia, conservavam
entre elas a aparência da mesma intimidade; mas os homens,
mais livres no seu comportamento, reencontravam deveres
a cumprir ou negócios a seguir. Soltavam ainda alguns queixumes,
mas já não se dispensavam deles, e raramente os serões
eram completos.
Este procedimento foi proveitoso ao assíduo Prévan, que,
colocado naturalmente junto da abandonada do dia, ia oferecendo
alternadamente, e segundo as circunstâncias, a mesma
homenagem às três amigas. Facilmente compreendeu que fazer
uma escolha entre elas seria perder-se; que a falsa vergonha de
se considerar a primeira infiel encheria de susto a preferida; que
a vaidade ferida das duas outras as tornaria inimigas do novo
amante e que não deixariam de brandir contra ele a severidade
dos grandes princípios; enfim, que o ciúme por certo chamaria
as atenções dum rival que podia ser ainda para temer. Tudo se
tornaria obstáculo; tudo ficava fácil no seu tríplice projecto:
cada mulher seria indulgente porque estava interessada, cada
homem, porque julgava não o estar.
Préven, que então tinha apenas uma mulher a sacrificar,
teve a felicidade de ver a sua amante célebre de um momento
para o outro. A sua qualidade de estrangeira e a homenagem de
um grande príncipe recusada com bastante desenvoltura tinham
fixado sobre ela as atenções da corte e da cidade; o seu amante
partilhava essas honras, e delas aproveitou junto das suas novas
amantes. A única dificuldade estava em levar avante as três
intrigas, cujo desenvolvimento tinha forçosamente de regular-se
pela mais tardia; de facto, vim a saber por um dos seus confidentes
que a sua maior pena foi a de ter de suspender uma, que
esteve prestes a atingir o êxito cerca de quinze dias antes das
outras.
Enfim, o grande dia chegou. Prévan, que tinha obtido as três
confições, achava-se já senhor dos acontecimentos, e ordenou-os
como vai ver. Dos três maridos, um estava ausente, o outro
partia no dia seguinte muito cedo, o terceiro estava na cidade.
As inseparáveis amigas deviam cear em casa da futura viúva;
mas o novo senhor não tinha permitido que os antigos servidores
fossem convidados. Na manhã desse mesmo dia, fez três colecções
das cartas da sua bela, juntou a uma delas um retrato
que dela tinha recebido, à segunda juntou uma cifra amorosa
que ela própria pintara, à terceira um anel dos seus cabelos;
cada uma recebeu por completo esta terça parte de sacrifício, e
consentiu, em troca, em enviar ao amante caído em desgraça
uma retumbante carta de rompimento.
Era muito; não o era bastante. Aquela cujo marido estava
na cidade só podia dispor daquele dia; combinaram que uma
fingida indisposição a dispensaria de ir cear a casa da amiga e
que o serão seria reservado a Prévan; a noite foi destinada para
aquela cujo marido estava ausente; e o romper do dia, momento
da partida do terceiro esposo, foi marcado para a última, para
os gozos do amor.
Prévan, que não descuida nada, corre em seguida a casa da
bela estrangeira, inventa um estado de espírito que suscita o
mau humor de que ele necessitava, e sai depois de conseguir
uma discussão que lhe assegura vinte e quatro horas de liberdade.
Assim tomadas as suas disposições, entra em casa, contando
repousar um pouco; outros assuntos o esperavam.
As cartas de rompimento tinham sido um súbito clarão para
cada um dos amantes caídos em desgraça; nenhum deles podia
duvidar de que o seu sacrifício aproveitava a Prévan. E o despeito
de ter sido joguete, junto à imitação que traz quase sempre a
pequena humilhação de se ser abandonado, deu aos três, sem se
comunicarem, mas como se estivessem combinados, a resolução
de pedirem uma satisfação ao seu afortunado rival.

Este encontrou em casa os três desafios; aceitou-os lealmente:


mas, não querendo perder nem os prazos nem o brilho desta
aventura, fixou os encontros para o dia seguinte de manhã, e
indicou aos três o mesmo lugar e a mesma hora. Foi a uma das
portas do Bosque de Bolonha.
Chegada a noite correu a sua tríplice aventura com um êxito
igual; pelo menos gabou-se depois de que cada uma das suas
novas amantes recebera três vezes o penhor e o juramento do
seu amor. Aqui, como está vendo, faltam provas à história;
tudo o que o historiador imparcial pode fazer é observar ao leitor
incrédulo que a vaidade e a imaginação exaltadas podem
obrar prodígios, tanto mais que a manhã que devia seguir-se a
uma brilhante noite parecia dever dispensar reservas para o
futuro. De qualquer modo, os factos que se seguem inspiram
maior certeza.
Prévan dirigiu-se à hora exacta ao encontro que marcara;
no local viu-se em presença dos seus três rivais, um tanto surpreendidos
do mútuo encontro, e cada um less talvez já consolado
em parte, vendo-se no meio de companheiros de infortúnio.
Abordou-os com ar afável e cavalheiresco, e dirigiu-lhes esta
fala, que me foi reproduzida fielmente:
" Senhores", disse-lhes ele, " uma vez que vos encontro reunidos
aqui, advinhastes sem dúvida que tendes os três o mesmo
motivo de queixa contra mim. Estou pronto a dar-vos razão.
Que a sorte decida, entre vós, qual dos três tentará primeiro
uma vingança à qual tendes um direito igual. Não trouxe padrinho
nem testemunhas. Não os instituí para a ofensa; não os exijo
para a reparação". Depois, cedendo ao seu carácter de jogador,
acrescentou: "Eu sei que raramente se ganha em jogos de
azar; mas, seja qual for a sorte que me espera, já se viveu sempre
bastante quando se teve tempo de adquirir o amor das mulheres
e a estima dos homens."
Enquanto os seus adversários estupefactos se olhavam em
silêncio, e na sua delicadeza calculavam talvez que o triplo
amante impedia que a partida fosse igual, Prévan retomou a
palavra: "Não vos escondo", continuou ele, "que a noite que
acabo de passar me fatigou cruelmente. Seria generoso da vossa
parte que me permitísseis reparar as minhas forças. Dei as
minhas ordens para que tivessem aqui pronto um almoço; dai-me
a honra de o aceitar. Almocemos juntos e, sobretudo, almocemos
alegremente. Podemos bater-nos por semelhantes bagatelas;
no entanto elas não devem, creio eu, alterar o nosso humor".

O almoço foi aceito. Segundo se disse, nunca Prévan foi


mais amável. Teve a habilidade de não humilhar nenhum dos
seus rivais, de os persuadir de que todos teriam conseguido facilmente
os mesmos êxitos, e sobretudo de os pôr de acordo em
que nenhum deles deixaria escapar as ocasiões, tal como ele,
Prévan. Uma vez confessados estes factos, tudo se arranjou por
si mesmo. Ainda o almoço não tinha terminado, já haviam repetido
dez vezes que semelhantes mulheres não mereciam que
homens honestos se batessem por elas. Esta ideia trouxe a cordialidade;
o vinho fortificou-a; tão bem que, poucos momentos
depois, já não era bastante não haver entre eles rancor, juraram-se
amizade sem reserva.
Prévan, que sem dúvida gostava tanto deste desenlace como
do outro, não desejava todavia perder ali a sua celebridade. Em
consequência, submetendo habilmente os seus projectos às circunstâncias,
disse aos três ofendidos: "De facto, não é de mim,
mas das vossas infiéis amantes que deveis vingar-vos. Ofereço-vos
a ocasião. Como vós próprios, sinto já uma injúria que
dentro em breve partilharei: pois se cada um de vós não conseguiu
conservar a fidelidade de uma só, posso porventura esperar
á fidelidade das três? A vossa ofensa tornou-se minha. Aceitai
para esta noite uma ceia em minha casa, e espero que a vossa
vingança não ficará adiada por muito tempo. Quiseram que
ele se explicasse; porém ele, com o tom de superioridade que as
circunstâncias o autorizavam a tomar: "Senhores" respondeu,
"creio ter-vos provado que sei como conduzir-me; tende confiança
em mim". Todos consentiram; e, depois de terem abraçado
o seu novo amigo, separaram-se até à noite, esperando o
efeito das promessas.
Sem perda de tempo, Prévan regressa a Paris, e vai, consoante
o uso, visitar as suas novas conquistas. Obtém das três
que viriam naquela mesma noite cear a sós com ele em sua casa.
Duas delas opuseram algumas dificuldades; mas que fica para
recusar no dia seguinte? Marcou os encontros com uma hora de
distância, tempo necessário aos seus projectos. Depois desses
preparativos, retirou-se, mandou avisar os outros três conjurados,
e todos quatro foram alegremente esperar as suas vítimas.
Ouviu-se chegar a primeira. Prévan apresenta-se só, recebe-a
com ar de solicitude, condu-la até ao santuário de que ela se
julgava a divindade; depois, desaparecendo sob um ligeiro pretexto,
faz-se substituir imediatamente pelo amante ultrajado.
Como decerto imagina, a confusão de uma mulher que não
tem ainda a experiência das aventuras tornava, em tal momento,
o triunfo muito fácil. Toda a censura que não foi feita foi
contada por uma graça; e a escrava fugitiva, entregue de novo
ao seu antigo senhor, sentiu-se muito feliz por poder esperar o
seu perdão, retomando as suas primeiras algemas. O tratado de
paz ratificou-se num lugar mais solitário, e a cena, ficando vazia,
foi alternadamente ocupada pelos outros actores, mais ou
menos da mesma maneira, e sobretudo com o mesmo desfecho.
Todavia, cada uma das mulheres julgava-se ainda só em
campo. O seu espanto e o seu embaraço aumentaram quando,
no momento da ceia, os três pares se reuniram; mas a confusão
chegou ao cúmulo quando Prévan, que reapareceu no meio de
todos, teve a crueldade de apresentar às três infiéis umas desculpas
que, divulgando o seu segredo, lhes revelaram inteiramente
até que ponto elas tinham sido burladas.
Entretanto puseram-se à mesa e pouco depois a moderação
voltou: os homens entregaram-se, as mulheres submeteram-se.
Todos tinham o ódio no coração; mas as palavras trocadas não
eram por isso menos ternas. A alegria despertou o desejo, que,
por seu turno, lhe emprestou novos encantos. Esta espantosa
orgia durou até de manhã; e, quando se separaram, as mulheres
julgaram-se perdoadas. Mas os homens, que tinham conservado
o seu ressentimento, procederam no dia seguinte a um rompimento
que não teve apelo; e, não contentes de deixar as suas
levianas amantes, terminaram a sua vingança dando a público a
aventura. Desde então, uma delas está num convento, e as outras
duas definham exiladas nas suas terras.
Aqui está a história de Prévan; cumpre-lhe, Marquesa, julgar
se deseja aumentar a sua glória e atrelar-se ao seu carro de
triunfo. A sua carta causou-me verdadeira inquietação e espero
com impaciência uma resposta mais ajuizada e mais clara à última
que lhe escrevi.
Adeus, minha bela amiga; desconfie das ideias divertidas ou
excêntricas que tão facilmente a têm seduzido sempre. Pense
que, na trajectória que a minha amiga segue, a inteligência não
basta, e que uma única imprudência pode tornar-se um mal sem
remédio. Suporte enfim que a prudente amizade seja algumas
vezes o guia dos seus prazeres.
Adeus. Apesar de tudo, continuo a gostar de si como se fosse
razoável.

18 de Setembro de 17* *

CARTA LXXX

O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES

Cecília, minha querida Cecília, quando virá o tempo de voltarmos


a ver-nos? Quem me ensinará a viver longe de si? Quem
me dará para isso força e coragem? Nunca, sinto que nunca
poderei suportar esta fatal ausência. Cada dia aumenta o meu
sofrimento, e não posso ver-lhe um termo! Valmont, que me
tinha prometido socorros, consolações, Valmont descuida-se, e
esquece-me talvez. Está junto daquela que ele ama; não sabe
quanto sofre aquele que está afastado. Ao enviar-me a sua última
carta, não me escreveu. No entanto é ele quem deve dizer-me
quando poderei vê-la e por que meio. Nada terá pois a dizer-me?
A Cecília mesmo não me fala em tal; será por não partilhar
esse desejo? Ah! Cecília, sou muito infeliz. Amo-a mais do
que nunca: mas esse amor, que faz o encanto da minha vida,
torna-se o tormento dela.
Não, não posso mais viver assim, é preciso que eu a veja, é
preciso, nem que seja por um momento. Quando me levanto,
digo a mim mesmo: "Não a verei." Deito-me dizendo: "Não a
vi." Os dias tão longos não têm um momento para a felicidade.
Tudo é privação, tudo é saudade, tudo é desespero; e todos estes
males me vêm de onde eu esperava todos os meus prazeres!
Acrescente a estas penas mortais a minha inquietação sobre as
suas, e fará uma ideia da minha situação. Penso em si a todo o
momento, e nunca penso sem perturbação. Se a vejo aflita, infeliz,
sofro por todas as suas tristezas; e se a vejo tranquila e consolada,
são as minhas que redobram. Por toda a parte encontro
o sofrimento.
Ah! não era assim, quando habitava os mesmos lugares do
que eu! Tudo então era prazer. A certeza de a ver embelezava
mesmo os momentos da ausência; o tempo que era preciso passar
longe de si aproximava-me da Cecília enquanto ia passando.
O emprego que eu fazia dele nunca era estranho à Cecília. Se
cumpria deveres, estes tornavam-me mais digno de si; se cultivava
algum talento, esperava agradar-lhe cada vez mais. Mesmo
quando as distracções da sociedade me levavam para longe
de si, nunca estávamos separados. Nos espectáculos, procurava
adivinhar o que lhe teria agradado; um concerto recordava-me
os seus talentos e as nossas tão doces ocupações. Na sociedade,
como nos passeios, aprendia a mais ligeira semelhança.
Comparava-a a tudo; por toda a parte era a Cecília quem
levava a palma. Cada momento do dia era marcado por uma
homenagem nova, e cada noite eu lhe levava o tributo a seus
pés.
Agora, que me resta? Dolorosas saudades, privações eternas,
e uma ligeira esperança de que o silêncio de Valmont diminua,
que o seu se mude em inquietação. Dez léguas somente nos
separam, e este espaço, tão fácil de transpor, só para mim se
torna num obstáculo invencível! E quando, para me ajudar a
vencê-lo, imploro o meu amigo, a minha amada, ambos ficam
frios e tranquilos! Longe de me socorrerem, nem mesmo me
respondem.
Que é feito da amizade activa de Valmont? Que é feito, sobretudo,
minha Cecília, dos seus sentimentos tão ternos, que a
tornavam tão engenhosa para encontrar maneira de nos vermos
todos os dias? Algumas vezes, recordo-me, sem deixar de o desejar,
via-me obrigado a sacrificar esse desejo a considerações, a
deveres. O que não me dizia então a Cecília? Por quantos pretextos
não combatia as minhas razões? E lembre-se de que as
minhas razões cediam sempre aos seus desejos. Não pretendo
extrair daí um mérito! Nem mesmo tinha o do sacrifício! O que
a Cecília desejava obter, ardia eu em desejos de concedê-lo!
Mas, enfim, cabe-me agora a vez de pedir; e que peço eu? Vê-la
por um momento, renovar e receber o juramento dum amor
eterno. Pois já não está aí a sua felicidade, como está a minha?
Repito essa ideia desesperadora, que poria o cúmulo aos meus
males. A Cecília ama-me, amar-me-á sempre; creio-o, estou certa
disso, não quero duvidar jamais. Mas a minha situação é horrorosa
e não posso suportá-la por mais tempo. Adeus, Cecília.

Paris, 18 de Setembro de 17* *.

CARTA LXXXI

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Como os seus temores me causam piedade! Como me provam


a minha superioridade sobre o Visconde! E quer ensinar-me,
conduzir-me! Ah! meu pobre Valmont, que distância vai
ainda de si a mim! Não, todo o orgulho do seu sexo não seria
suficiente para preencher o intervalo que nos separa. Porque
não poderia executar os meus projectos, julga-os impossíveis!
Ente orgulhoso e fraco, fica-te bem quereres calcular os meus
meios e julgar dos meus recursos! Na verdade, Visconde, os seus
conselhos conseguiram irritar-me, e não posso esconder-lho.
Que para mascarar a sua inacreditável falta de jeito em relação
à sua Presidente o Visconde ostente como um triunfo o facto
de ter confundido por um momento essa mulher tímida e que
o ama, consinto; ter obtido dela um olhar, um único olhar, sorrio
e passo adiante. Que sentindo, a seu pesar, o pouco valor
das suas diligências, espere furtá-las à minha atenção, lisonjeando-me
pelo esforço sublime de aproximar duas crianças que
ardem no desejo de se ver, e que, diga-se de passagem, devem a
mim somente o ardor desse desejo; admito-o ainda. Que, enfim,
a si mesmo autorize essas acções brilhantes, para me dizer num
tom doutoral que vale mais empregar o tempo a executar projectos
do que a contá-los; essa vaidade não me prejudica, e perdoo-lha.
Mas que possa supor que eu tenho necessidade da sua
prudência, que eu poderia perder-me se não escutasse as suas
opiniões, que devo sacrificar-lhes um prazer, uma fantasia: na
verdade, Visconde, é exorbitar da confiança que desejo ter em
si!
Que tem o Visconde feito que eu não tenha ultrapassado mil
vezes? Seduziu, perdeu mesmo muitas mulheres: mas que dificuldade
teve a vencer? que obstáculos a ultrapassar? Onde está
o mérito que verdadeiramente lhe caiba? Uma bela figura, puro
efeito do acaso; maneiras graciosas, que o hábito dá quase sempre;
espírito, na verdade, mas o qual uma certa gíria de salão
substitui em caso de necessidade; um impudor muito louvável,
mas talvez devido unicamente à facilidade dos seus primeiros
êxitos. Se me não engano, eis todos os seus dotes; pois, para a
celebridade que pôde adquirir, não exigirá, creio, que conte por
muito a arte de suscitar ou aproveitar a ocasião dum escândalo.
Quanto à prudência, à finura, não falo de mim: mas que
; mulher não as possui de melhor qualidade que o Visconde? Oh!
a sua Presidente leva-o como uma criança.
Creia-me, Visconde, raramente se adquirem as qualidades
? sem as quais se pode passar. Combatendo sem risco, deve-se
; agir sem precaução. Para vós, os homens, as derrotas são apenas
êxitos a menos. Neste combate tão desigual, a nossa sorte
está em não perder e a vossa infelicidade em não ganhar. Ainda
que eu concedesse aos homens tantos talentos como a nós, mulheres,
em quantos teríamos nós ainda de ultrapassá-los, pela
necessidade em que estamos de fazer deles um uso contínuo !
Suponhamos, admito, que vocês põem tanta habilidade em
vencer-nos como nós a defender-nos ou a ceder: convirá ao
menos que ela se lhes torne útil após a vitória. Unicamente ocupados
do sabor que achais na nova ligação, entregais-vos a ela
sem receio, sem reserva: o tempo que ela poderá durar não vos
interessa.
De facto, esses laços reciprocamente dados e recebidos, para
falar na gíria do amor, só vós podeis, à vossa escolha, estreitá-los
ou rompê-los; felizes ainda se na vossa ligeireza, preferindo
o mistério ao ruído, vos contentais com um abandono humilhante
e não fazeis do ídolo da véspera a vítima de manhã.
Mas que uma mulher infortunada sinta primeiro o peso da
sua cadeia - que riscos não terá a correr se tentar subtrair-se a
ela, se ousar somente soerguê-la? Se experimenta afastar de si o
! homem que o seu coração repele com esforço, é tremendo que o
faz. Se ele se obstina em ficar, é forçoso entregar ao medo o que
antes era concedido ao amor:
A sua prudência deve desatar com destreza aqueles mesmos
laços que vós teríeis desfeito. À mercê do seu inimigo, ela
fica sem recursos, se ele não tiver generosidade; e como esperar
tal sentimento, quando, se algumas vezes o louvam quando o
tem, nunca todavia o censuram por ele lhe faltar?
Os seus braços abrem-se ainda, quando o seu coração está fechado. a
O Visconde não negará, sem dúvida, estas verdades, cuja
evidência as tornou triviais. Se, entretanto, alguma vez me viu,
dispondo dos acontecimentos e das opiniões, fazer desses homens
tão temíveis o joguete dos meus caprichos ou das minhas
fantasias; tirar a uns a vontade, a outros o poder de me serem
nocivos; se eu soube, pouco a pouco, e consoante a variedade
dos meus gostos, juntar ao meu séquito ou expulsar da minha
beira:
se, em meio dessas revoluções frequentes, a minha reputação
apesar de tudo se conservou pura; não deverá o Visconde
concluir que, nascida para vingar o meu sexo e dominar o seu,
eu soube inventar para o meu uso meios desconhecidos até de
mim própria?
Ora! guarde os seus conselhos e os seus receios para certas
mulheres delirantes, das quais se diz serem sentimentais; cuja
imaginação exagerada levaria a supor que a Natureza lhes pôs os
sentidos na cabeça; que, não tendo nunca reflectido, confundem
sem cessar o amor e o amante; que, na sua louca ilusão, acreditam
que só o homem com quem procuraram o prazer é o seu
único depositário; e que, verdadeiramente supersticiosas, têm
pelo sacerdote o respeito e a fé que se deve apenas à divindade.
Pode ainda ter receio por aquelas que, mais superficiais do
que prudentes, não sabem consentir, se for necessário, em serem
abandonadas.
Deverá tremer principalmente pelas mulheres activas na sua
ociosidade, a quem o Visconde chama sensíveis, e das quais o
amor se apodera tão facilmente e com tamanha força; que sentem
a necessidade de se ocuparem ainda do amor, mesmo quando
dele não podem já extrair prazer algum; e que, abandonando-se
à fermentação das suas ideias, inventam para si próprias
cartas tão doces, mas tão perigosas de escrever, e que não receiam
confiar essas provas da sua fraqueza ao próprio objecto
que lhes deu causa. Imprudentes que, no seu actual amante, não
sabem ver o seu futuro inimigo!
Mas que tenho eu de comum com essas mulheres irreflectidas?
Quando me viu o Visconde afastar-me das regras que a
mim própria determinei, e faltar aos meus princípios? Os meus
princípios, repito-o, e digo-o deliberadamente, pois eles não
são, como os das outras mulheres, colhidos ao acaso, aceites
sem análise e seguidos por hábito; são o fruto das minhas profundas
reflexões. Criei-os, e posso dizer que são a minha obra.
Entrando na sociedade num tempo em que, criança ainda,
as circunstâncias me condenavam ao silêncio e à inacção, delas
soube tirar proveito para observar e reflectir. Enquanto me julgavam
estouvada ou distraída, não dando ouvidos à verdade
dos ensinamentos que me dispensavam, eu recolhia cuidadosamente
tudo o que procuravam esconder-me.
Essa curiosidade útil, ao mesmo tempo que servia para me
instruir, ensinava-me a dissimular. Obrigada muitas vezes a
esconder dos olhos dos que me rodeavam os motivos que me
chamavam a atenção, experimentei pousar os meus no que me
agradasse; o resultado desde logo foi ter adoptado aquele olhar
sem constrangimento que o Visconde tantas vezes me gabou.
Animada por este primeiro êxito, tratei de regular, pelo mesmo
processo, os diversos movimentos do meu rosto. Se sentia qualquer
apreensão, estudava-me até assumir um ar de serenidade
ou mesmo de alegria; levei o meu zelo ao ponto de a mim própria
causar dores voluntárias, para durante esse tempo procurar
a expressão do prazer. Com o mesmo cuidado e maior custo,
exercitei-me a reprimir os sintomas de uma alegria inesperada.
Foi assim que consegui tomar sobre a minha fisionomia aquele
domínio que algumas vezes admirou em mim.
Eu era ainda muito nova e quase sem interesse; mas só tinha
de meu os próprios pensamentos, e indignava-me à ideia de que
mos pudessem roubar ou surpreender contra minha vontade.
Munida dessas primeiras armas, experimentei servir-me delas.
Não me satisfazia o não me deixar penetrar: divertia-me mostrar-me
sob formas diferentes. Dominando os meus gestos, observava
as minhas falas. Uns e outras eram regulados segundo
as circunstâncias, ou mesmo segundo as minhas fantasias: Desde
então, a minha maneira de pensar pertenceu-me a mim só, e
não mostrei nunca senão o que me era útil deixar ver.
Este trabalho sobre mim própria fixou a minha atenção
sobre a expressão dos rostos e o carácter das fisionomias; e
adquiri esta mirada penetrante, na qual a experiência todavia me
ensinou a não me fiar inteiramente, mas que, em todos os casos,
raramente me enganou.
Ainda não tinha quinze anos, possuía já os talentos a que a
maior parte dos nossos políticos devem a sua reputação, e encontrava-me
ainda nos rudimentos da ciência que pretendia
adquirir.
Como pode calcular, procurava, como todas as raparigas,
adivinhar o amor e os seus prazeres; mas, não tendo passado
pelo convento, não possuindo uma amiga segura, e guardada
por uma mãe vigilante, tinha apenas ideias vagas e que não podia
fixar. A própria natureza, da qual mais tarde,seguramente,
só tive de me louvar, não me dava ainda qualquer indício. Dir-se-ia
que trabalhava em silêncio para aperfeiçoar ã sua obra. Só
a minha cabeça fermentava; o meu desejo não era gozar, era
saber. O desejo de me instruir sugeriu-me os meios.
Senti que o único homem com quem podia falar sobre esse
assunto, sem me comprometer, era o meu professor. E logo
tomei o meu partido. Passei por cima dessa pequena vergonha;
e, gabando-me duma falta que não tinha cometido, acusei-me
de ter feito tudo o que fazem as mulheres. Tal foi a expressão de
que usei; mas, falando assim, eu não sabia na verdade que ideia
exprimia. A minha esperança não foi de todo iludida, nem inteiramente
realizada; o receio de me trair impedia-me de me esclarecer.
Mas o bom do padre pintou-me o mal tão grande que eu
concluí que o prazer devia ser extremo; e ao desejo de o conhecer
sucedeu o de o saborear.
Não sei onde esse desejo me teria conduzido; e, faltando-me
por completo a experiência, uma única oportunidade ter-me-ia
talvez perdido. Felizmente para mim, minha mãe anunciou-me
alguns dias depois que eu ia casar-me. A certeza de que ia saber
extinguiu imediatamente a minha curiosidade, e cheguei virgem
aos braços do senhor de Merteuil.
Era com tranquilidade que esperava o momento que tudo
devia ensinar-me e foi-me preciso reflectir para mostrar confusão
e receio. A primeira noite, de que geralmente se tem uma
ideia tão cruel ou tão doce, apresentava-me apenas uma ocasião
de experiência: dor e prazer, tudo eu observava com exactidão,
e nessas diversas sensações via apenas factos para recolher e
meditar.
Este género de estudo depressa começou a agradar-me; mas,
fiel aos meus princípios, e sentindo, talvez por instinto, que ninguém
devia estar mais longe da minha confiança do que o meu
marido, resolvi, pelo simples facto de que era sensível, mostrar-me
impassível a seus olhos. Esta frieza aparente foi, ao longo
do tempo, o fundamento inabalável da sua cega confiança. Juntei-lhe,
após uma segunda reflexão, o aspecto estouvado que a
minha idade autorizava; e nunca ele me julgou mais criança do
que nos momentos em que com mais audácia eu o iludia.
Entretanto, devo confessá-lo, deixei-me primeiro arrastar
pelo turbilhão do mundo, e entreguei-me inteiramente às suas
distracções fúteis. Mas ao fim de alguns meses, tendo-me o senhor
de Merteuil levado a partilhar as suas tristes férias no
campo, o medo do aborrecimento fez com que me voltasse o
gosto do estudo; e encontrando-me rodeada apenas de pessoas
cuja distância de mim me punha ao abrigo de toda a suspeita,
aproveitei a ocasião para dar um campo mais vasto às minhas
experiências. Foi ali, principalmente, que obtive a certeza de
que o amor que nos louvam como a causa dos nossos prazeres é
apenas, quando muito, o seu pretexto.
A doença do senhor de Merteuil veio interromper tão doces
ocupações; foi necessário segui-lo à cidade, onde ele ia procurar
socorros. Morreu, como sabe, pouco tempo depois; e embora,
no fim de contas, eu não tivesse de me queixar dele, nem por
isso senti menos vivamente o preço da liberdade que a minha
viuvez ia proporcionar-me, e a mim própria prometi aproveitar
bem essa liberdade.
Minha mãe contava que eu entrasse num convento, ou voltasse
a viver com ela. Recusei uma e outra solução; e tudo o que
concedi à decência foi voltar ao mesmo lugar no campo, onde
me restavam ainda algumas observações a fazer.
Essas observações ganharam força com o auxílio da leitura;
mas não julgue que foram todas do género que supõe. Estudei
os nossos costumes nos romances; as nossas opiniões nos filósofos;
procurei mesmo nos mais severos moralistas o que eles exigiam
de nós, e soube assim o que se podia fazer, o que se devia
pensar e o que era preciso parecer. uma vez fixada sobre esses
três pontos, só último apresentava algumas dificuldades na sua
execução; esperei vencê-las e medirei nos meios.
Começava a aborrecer-me dos meus prazeres rústicos, demasiado
monótonos para a minha imaginação; sentia uma necessidade
de coquetismo que me reconciliasse com o amor; não
para verdadeiramente u sentir, mas para o inspirar e o fingir.
Em vão me haviam dito e eu tinha lido que não se podia fingir
esse sentimento; eu via, no entanto, que para o conseguir bastava
juntar à inteligência de um autor o talento de um comediante.
Experimentei os dois géneros, e talvez com algum êxito; mas
em lugar de procurar os vãos aplausos do teatro, resolvi empregar
na minha felicidade o que tantos outros sacrificavam à vaidade.
Um ano se passou nessas diversas ocupações. Como o meu
luto já me permitia voltar a aparecer, regressei à cidade com os
meus grandes projectos; não esperava o primeiro obstáculo que
aí encontrei.
Aquela longa solidão, aquele retiro austero tinham lançado
sobre mim uma aparência de virtude que amedrontava os nossos
galãs; mantinham-se afastados e deixavam-me entregue a
uma multidão de aborrecidos senhores, que pretendiam todos a
minha mão. O embaraço não estava em recusá-los; mas várias
dessas recusas desagradavam à minha família, e eu perdia nessas
questões internas o tempo que prometera a mim mesma gastar
tão agradavelmente. Fui pois obrigada, para atrair uns e
afastar os outros, a pôr em relevo algumas inconsequências e a
empregar em prejudicar a minha reputação, o cuidado que pensava
aplicar em conservá-la. Consegui-o facilmente, como pode
imaginar. Mas não me sentindo arrebatada por nenhuma paixão,
fiz só o que julguei necessário, e medi com prudência as
doses da minha leviandade.
Logo que atingi o fim que me propusera voltei ao ponto de
partida e fiz promessas de emenda a algumas daquelas mulheres
que, não podendo ter pretensões a agradar, se pavoneiam com
as do mérito e da virtude. Foi um lance de dados que me valeu
mais do que eu esperava. Aquelas reconhecidas donas arvoraram-se
em minhas apologistas; e o zelo cego que empregaram
para louvar o que elas chamavam a sua obra chegou ao ponto
de, à menor frase que alguém se permitisse a meu respeito, todo
o partido da virtude gritar contra o escândalo e a injúria. Pelo
mesmo processo consegui ainda a aprovação das mulheres que
pretendiam agradar, as quais, persuadidas de que eu renunciava
a seguir carreira idêntica à sua, me escolheram para alvo dos
seus elogios, todas as vezes que queriam provar que não diziam
mal de toda a gente.
Entretanto, a minha anterior conduta tinha atraído os apaixonados;
e, para me equilibrar entre eles e as minhas infiéis protectoras,
mostrei-me como uma mulher sensível, mas difícil, a
quem o excesso de delicadeza fornece armas contra o amor.
Então comecei a desenvolver no grande teatro os talentos
que dera a mim própria. O meu primeiro cuidado foi o de adquirir
o renome de invencível. Para chegar a isso, os homens que
não me agradavam foram sempre os únicos de quem simulei
aceitar as homenagens. Empreguei-os utilmente em alcançar
por meio deles as honras da resistência, enquanto me entregava
sem receio ao amante preferido. Mas a esse a minha fingida
timidez não permitiu nunca que me seguisse na sociedade; e os
olhares do mundo fixaram-se, desse modo, no amante recusado.
Sabe, meu amigo, que levo pouco tempo a decidir-me; é por
ter observado que são quase sempre os cuidados anteriores que
revelam o segredo das mulheres. Por muito que se faça, o tom
nunca é o mesmo, antes e depois do acontecimento. Esta diferença
não escapa ao observador atento, e achei menos perigoso
enganar-me na escolha do que deixar-me penetrar. Ganho ainda
com esse procedimento afastar as evidências, que fornecem
os únicos elementos para nos julgarem.
Estas precauções, e ainda a de nunca escrever, não entregar
nunca uma prova da minha derrota, poderiam parecer excessivas;
a mim nunca me pareceram suficientes. Desci ao fundo do
meu coração, e nele estudei o dos outros. Soube assim que não
há ninguém que não conserve aí um segredo que não deve ser
revelado; eis uma verdade que a Antiguidade parece ter conhecido
melhor do que nós, e da qual a história de Sansão poderia
ser apenas uma engenhosa alegoria. Nova Dalila, empreguei
sempre, como ela, o meu poder em surpreender esse importante
segredo. Quantos Sansões modernos não tive eu já com a cabeleira
sob a minha tesoura! E a esses, deixei eu de temer; são os
únicos que me tenho permitido humilhar algumas vezes. Mais
subtil com os outros, a arte de os tornar infiéis para evitar parecer-lhes
volúvel, uma fingida amizade, uma aparente confiança,
alguns rasgos generosos, a ideia lisonjeira que cada um conserva

de ter sido o meu único amante, tudo serviu para obter o seu silêncio.
Por fim, quando esses meios me faltaram, soube, antes
de romper, abafar de antemão, sob o ridículo ou a calúnia, a
confiança que esses homens perigosos pudessem obter.
O que lhe estou dizendo, tem-me o Visconde visto praticar
constantemente; e duvida da minha prudência! Pois bem: evoque
o tempo em que me dispensou as suas primeiras atenções.
Nunca uma homenagem me lisonjeou tanto; desejava-o antes
de o ter visto. Seduzida pela sua reputação, parecia-me que fazia
falta à minha glória. Ardia no desejo de o combater corpo a
corpo. Foi o único dos meus prazeres que teve algum império
sobre mim. Entretanto, se o Visconde tivesse querido perder-me,
que meios teria encontrado? Palavras vãs que não deixam
sulco atrás de si, que a sua própria reputação teria ajudado a
tornar suspeitas, e uma sucessão de factos sem verosimilhança,
cuja narração sincera teria o ar de um romance mal urdido.
É certo que, mais tarde, vim a entregar-lhe todos os meus
segredos; mas o Visconde sabe os interesses que nos unem, e se,
de nós dois, sou eu quem deve culpar-se de imprudência.
Já que estou em maré de lhe prestar contas, desejo fazê-lo
com exactidão. Daqui ouço-o dizer-me que estou, pelo menos, à
mercê da minha criada de quarto; de facto, se ela não possui o
segredo dos meus sentimentos, possui o dos meus actos. Quando
o Visconde em tempos me falou a esse respeito, respondi-lhe
apenas que estava segura dela; e a prova de que esta resposta
bastou então para a sua tranquilidade é que depois disso lhe
confiou, por sua conta, segredos bastante perigosos. Mas agora
que Prévan lhe faz sombra, e que a cabeça lhe anda à roda, tenho
dúvidas de que me acredite sob palavra. Vou pois edificá-lo.
Em primeiro lugar, essa rapariga é minha irmã de leite, e
esse laço que aparentemente nada vale não deixa de ter importância
para pessoas dessa categoria. Além disso, conheço o segredo
dela, e mais ainda: vítima duma loucura de amor, estaria
perdida se eu não a tivesse salvo. Os pais dela, todos eriçados de

* Virá a saber-se na continuação, Carta CLII, não o segredo do senhor de


Valmont, mas aproximadamente de que género ele era; e o leitor sentirá que
não foi possível esclarecê-lo melhor sobre este assunto.

honra, queriam nada menos do que interná-la. Dirigiram-se a


mim. Vi, num relance, quanto a sua cólera me poderia ser útil.
Secundei essa cólera, e solicitei a ordem de internamento, que
obtive. Depois, passando subitamente ao partido da clemência,
para o qual atraí os pais, e aproveitando do meu crédito junto
do velho ministro, levei-os a consentir que me deixassem depositária
dessa ordem, e senhora de pedir ou deter a sua execução,
consoante o mérito do procedimento dessa rapariga. Ela sabe
que tenho a sua sorte nas minhas mãos e ainda que, por absurdo,
esse poderoso meio não a detivesse, não é evidente que a sua
conduta desregrada e a sua punição autêntica tirariam todo o
crédito às suas palavras?
A essas precauções que chamo fundamentais, juntam-se
muitas outras, locais ou ocasionais, que a reflexão e o hábito farão
encontrar, caso seja necessário, e que seria fastidioso pormenorizar,
mas cuja prática é importante. Se quer chegar a conhecê-las,
Visconde, dê-se ao trabalho de considerar o meu
comportamento no seu conjunto.
Mas pretender que eu me tenha entregue a tantos cuidados
para não retirar deles o fruto; que depois de tanto me ter elevado
sobre outras mulheres pelos meus penosos trabalhos eu consinta
em rastejar como elas, entre a imprudência e a timidez;
que sobretudo eu possa temer um homem a ponto de não ver
salvação a não ser na fuga? Não, Visconde; nunca. É preciso
vencer ou morrer. Quanto a Prévan, quero tê-lo e hei-de tê-lo;
ele quererá divulgá-lo, e não o divulgará. Em duas palavras, eis
o nosso romance. Adeus.

20 de Setembro de 17* *

CARTA LXXXII
CECÍLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY

Meu Deus, como a sua carta me fez pena! E tinha eu tanta


impaciência de a receber! Esperava encontrar nela consolação e
afinal fiquei muito mais aflita do que antes de a ter recebido.
Chorei muito enquanto a lia. Mas não é isso que eu lhe censuro;
já tenho corado muitas vezes por sua causa, sem que isso me
faça pena. Mas, desta vez, não é a mesma coisa.
Que é que quer dizer quando escreve que o seu amor se torna
um tormento, que não pode viver assim; nem suportar por
mais tempo a sua situação? Será o caso que vai deixar de amar-me,
só porque isso não é tão agradável como noutro tempo?
Parece-me que eu não sou mais feliz, bem pelo contrário; e no
entanto,amo-o cada vez mais. Se o senhor de Valmont não lhe
escreveu, a culpa não é minha; não lhe pude pedir, porque nunca
estive só com ele, e combinámos que não nos falaríamos
diante das outras pessoas; e isso é ainda por si, para que ele possa
fazer o mais cedo possível aquilo que deseja. Não digo que o
não deseje também, e disso pode estar certo; mas que quer que
eu faça? Se julga que é fácil, encontre o meio, que eu não peço
melhor.
Julga que me é agradável ser repreendida pela Mamã, que
antes não me ralhava nunca, bem pelo contrário? Agora é pior
do que se eu estivesse no convento. Ainda me consolava pensando
que era por si; havia até ocasiões em que eu me dava por feliz.
Mas quando vejo que também está zangado sem que haja da
minha parte culpa nenhuma, fico mais triste do que estava por
tudo quanto aconteceu até aqui.
Só para receber as suas cartas são uns trabalhos, que se o
senhor de Valmont não fosse tão bom e tão expedito como é, eu
não sabia o que havia de fazer. E para lhe escrever é ainda mais difícil.
De manhã não me atrevo, porque a Mamã está muito perto
de mim, e a cada momento entra no meu quarto. Algumas vezes
posso fazê-lo de tarde, com o pretexto de cantar ou tocar harpa;
e mesmo assim é preciso interromper-me a cada linha para que
ouçam que estou a estudar. Felizmente a minha criada de quarto
adormece algumas vezes ao serão, e eu digo-lhe que me deito
muito bem sozinha, para que ela se vá embora e me deixe luz.
Depois, tenho de me pôr debaixo dos cortinados, para que não
se possa ver a claridade, e para que ao menor ruído eu possa
esconder tudo na cama, se vier alguém. Sempre queria que estivesse
no meu lugar, para ver o que fazia! Bem vê que é preciso
amar muito para fazer isto. Enfim, o certo é que faço tudo o que
posso; e eu desejava poder fazer ainda mais.
É claro que não recuso dizer-lhe que o amo e que o amarei
sempre; nunca lho disse tão do fundo do coração; e ainda está
zangado! No entanto, tinha-me dado a certeza, antes que eu lho
dissesse, que isso bastava para o tornar feliz. Não pode negar o
que disse: está nas suas cartas. Embora eu já as não tenha, lembro-me
disso como quando as lia todos os dias. E só porque estamos
longe um do outro já pensa de maneira diferente! Mas
esta ausência não há-de durar sempre. Meu Deus, como eu sou
infeliz! E por sua causa, só por sua causa!
A propósito das suas cartas, espero que tenha guardado as
que a Mamã me tirou, para lhas entregar; há-de vir um tempo
em que não esteja tão vigiada como agora, e então tornar-me-á
a dar todas. Como serei feliz, quando puder guardá-las sempre,
sem que ninguém tenha nada a ver com isso! Agora é ao senhor
de Valmont que as entrego, porque seria muito arriscado proceder
de outra maneira; apesar disso nunca lhe dou nenhuma que
não me faça pena.
Adeus, meu querido amigo. Amo-o de todo o meu coração.
Amá-lo-ei toda a minha vida. Espero que já não esteja zangado;
e se estivesse certa disso, também já o não estaria. Escreva-me o
mais depressa que puder, pois sinto que até lá estarei sempre triste.

Castelo de. . ., 21 de Setembro de 17 * *

CARTA LXXXIII

O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL

Suplico-vos, senhora, reatemos o nosso diálogo tão desgraçadamente


interrompido! Que eu possa acabar de vos provar
quanto sou diferente do odioso retrato que vos tinham feito a
meu respeito; que eu possa, principalmente, gozar ainda dessa
amável confiança que começáveis a testemunhar-me! Que de
encantos sabeis dar à virtude! De que maneira embelezais e tornais
queridos todos os sentimentos honestos! É essa a vossa
sedução; é a mais forte, a única, ao mesmo tempo poderosa e
respeitável.
Sem dúvida basta ver-vos para que se deseja agradar-vos;
ouvir-vos em meio dos indiferentes, para que esse desejo aumente.
Mas aquele que teve a felicidade de vos conhecer melhor,
que pôde algumas vezes ler na vossa alma, depressa cede a
um entusiasmo mais nobre, e, penetrado de admiração e de
amor, adora em vós a imagem de todas as virtudes. Talvez mais
predestinado que outros para as amar e as seguir, mas alheado
delas por alguns erros que me haviam arrastado, fostes vós que
me aproximastes, que de novo me fizestes sentir todo o seu encanto.
Achais que é um crime esse novo amor? Condenareis a
vossa obra? Censurareis a vós própria o interesse que por ela
podereis sentir? Que mal se pode recear dum sentimento tão
puro, e que delícias não poderá ele proporcionar?
Assusta-vos o meu amor porque o achais violento, arrebatado?
Podereis temperá-lo por um amor mais doce; não recuseis o
domínio que vos ofereço, ao qual, juro, jamais deixarei de submeter-me,
e que, ouso crê-lo, não será inteiramente perdido
para a virtude. Que sacrifício poderia parecer-me penoso, com a
certeza de que o vosso coração saberia dar-lhe o preço? Onde
está o homem tão desgraçado que não saiba extrair prazer das
privações que se impõe; que não prefira uma palavra, um olhar
concedidos, a todos os gozos que poderia roubar ou surpreender!
E pudestes supor que era eu esse homem! E tivestes receio
de mim! Ah! Por que não depende de mim a vossa felicidade?
Como eu me vingaria de vós, tornando-vos feliz! Mas esse suave
jugo não é a estéril amizade que o impõe; para produzi-lo, só o
amor.
Esta palavra intimida-vos! E porquê? Uma dedicação mais
terna, uma união mais forte, um único pensamento, a própria
felicidade, os próprios sofrimentos, que há em tudo isso de estranho
à vossa alma? Todavia, é isso o amor! Pelo menos esse
que inspirais e que eu sinto! É ele principalmente que, calculando
sem interesse, sabe apreciar as acções pelo seu mérito e não
pelos seus resultados; tesouro inesgotável das almas sensíveis,
tudo que é feito por ele ou através dele se torna precioso.
Estas verdades tão fáceis de compreender, tão doces de praticar,
que têm de assustador? Que apreensões pode causar-vos
um homem sensível, a quem o amor já não permite outra felicidade
que não seja a vossa? É esse hoje o meu único desejo: sacrificarei
tudo para o realizar, excepto o sentimento que o inspira;
e se consentirdes em partilhar esse sentimento, dirigi-lo-eis
como vos aprouver. Mas não suportemos que ele nos divida,
quando nos deveria reunir. Se a amizade que me oferecestes não
é uma palavra vã, se, como ontem me dissestes, é o sentimento
mais doce que a vossa alma pôde conhecer, seja ela que regule
as condições entre nós, não me furtarei aos seus mandatos.
Mas, chamada a julgar o amor, que ela consinta em ouvi-lo;
uma recusa tornar-se-ia uma injustiça, e amizade não é injusta.
Um segundo encontro não terá mais inconvenientes do que
o primeiro: o acaso pode ainda fornecer-nos a ocasião. Podereis
mesmo ainda indicar o momento próprio.-Admito que eu não
tenha razão; não gostaríeis mais de convencer-me do que de
combater-me? E duvidais da minha docilidade? Se um importuno
não tivesse vindo interromper-nos, talvez eu já me tivesse
rendido inteiramente à vossa opinião; quem sabe até onde pode
chegar o vosso poder?
Deverei dizê-lo? Esse poder invencível, ao qual me entrego
sem ousar calcular a sua extensão, esse encanto irresistível, que
vos torna soberana dos meus pensamentos como das minhas
acções, acontece-me algumas vezes receá-los. Pobre de mim!
Talvez eu deva antes temer esse encontro que vos peço! Talvez
depois, cativo das minhas promessas, eu me veja reduzido a
abrasar-me num amor que eu sinto bem que não poderá extinguir-se,
sem ousar mesmo implorar o vosso socorro! Ah! senhora,
suplico-vos, não abuseis do vosso domínio! Mas quê! Se assim
vos sentirdes mais feliz, se por isso eu vos dever parecer
mais digno de vós, que mágoas não serão suavizadas por essas
consoladoras ideias? Sim, bem o sinto; falar-vos ainda é dar-vos
armas mais fortes contra mim; é submeter-me mais inteiramente
à vossa vontade. É mais fácil a defesa contra as vossas cartas;
as palavras são as mesmas, mas falta a vossa presença para lhes
dar força. Entretanto, o prazer de vos ouvir faz que eu arroste o
perigo: terei ao menos a felicidade de tudo tentar por vós, mesmo
contra mim; e os meus sacrifícios tornar-se-ão uma homenagem.
Considero-me feliz por vos provar de mil maneiras,
como de mil modos o sinto, que sois vós e sereis sempre o objecto
mais caro ao meu coração.

Castelo de..., 23 de Setembro de 17* *

CARTA LXXXIV

O VISCONDE DE VALMONT A CECÍLIA VOLANGES

Viu bem como ontem fomos contrariados. Durante todo o


dia não pude entregar-lhe a carta que tinha para si; não sei se
hoje será mais fácil. Receio comprometê-la, pondo nisso mais
zelo do que habilidade; e não perdoaria a mim próprio uma imprudência
que lhe seria fatal e causaria o desespero do meu
amigo, tornando-a a si eternamente infeliz. No entanto, conheço
as impaciências do amor; sei quanto deve ser penoso, na sua
situação, suportar qualquer demora na única consolação que
possa experimentar neste momento. À força de me ocupar do
processo de afastar os obstáculos, encontrei uma cuja execução
será fácil, se nisso puser algum empenho.
Julgo ter reparado que a chave da porta de seu quarto, que
dá para o corredor, está sempre sobre a chaminé da sua Mamã.
Tudo se tornaria fácil com essa chave, como está vendo; mas, à
falta dela, procurarei arranjar-lhe uma parecida e que a substitua.
Bastar-me-á, para isso, ter a outra uma hora ou duas à
minha disposição. Devo achar facilmente ocasião de a tirar, e
para que ninguém dê pela falta, junto aqui uma, muito parecida,
e ninguém notará a diferença, a menos que a experimentem,
o que é pouco provável. Será preciso apenas que tenha o cuidado
de lhe pôr uma fita azul igual à que tem a outra.
Deve ter essa chave em seu poder amanhã ou depois de
amanhã, à hora do almoço, porque lhe será mais fácil dar-ma
nessa altura, e poderá voltar a pô-la no seu lugar à noite, que é
quando sua Mamã poderá dar-lhe mais atenção. Posso entregar-lha
na altura do jantar, se concordar com isto.
Como sabe, quando vamos do salão para a casa de jantar, é
sempre Madame de Rosemonde que vem em último lugar. Eu
dar-lhe-ei a mão. Terá apenas de deixar o seu tear vagarosamente,
ou então deixar cair qualquer coisa, de maneira a ficar
atrás de todos; nesse momento agarrará a chave, que eu lhe estenderei.
Não se esquecerá, logo que tenha a chave, de vir junto
da minha velha tia, fazendo-lhe algumas carícias. Se por acaso
deixar cair a chave, não lhe cause isso embaraço; eu fingirei que
é minha e respondo pelo resto.
A falta de confiança da sua Mamã e a maneira dura como a
trata autorizam-na a esta pequena fraude. Além do mais, é a
única maneira de continuar a receber as cartas de Danceny, e de
fazer que ele receba as suas; qualquer outro meio é realmente
demasiado perigoso, poderia perder-vos aos dois sem recurso; e
a minha prudente amizade não se consolaria de o ter empregado.
Uma vez de posse da chave, restar-nos-ão algumas precauções
a tomar para evitar o ruído da porta e da fechadura: mas
será coisa fácil. Por baixo do mesmo armário onde pus o papel,
encontrará óleo e uma pena. Como vai ao seu quarto algumas
vezes a horas em que está sozinha, aproveite para olear a fechadura
e os gonzos. Só deve ter cuidado em não deixar nódoas,
que fariam desconfiar. Por isso será melhor fazer esse trabalho à
noite, porque, se o fizer com a atenção de que a julgo capaz, no
dia seguinte de manhã não se notará nada.
Se apesar de tudo alguém notar alguma coisa, não hesite em
dizer que foi o serralheiro do castelo. Nesse caso, será preciso
especificar o tempo e até as conversas que ele teve consigo:
como, por exemplo, que ele toma esse cuidado, para evitar a ferrugem,
com todas as fechaduras de que se não faz uso; pois
está vendo que não seria verosímil ouvir esse barulho todo sem
perguntar a causa. São estes pequenos pormenores que dão verosimilhança,
e a verosimilhança faz que as mentiras não tenham
consequências, tirando o desejo de as verificar.
Depois de ter lido esta carta, peço-lhe que volte a lê-la, e,
mesmo, que a estude em pormenor: primeiro, porque é preciso
saber bem o que se quer fazer bem; em seguida, para ter a certeza
de que não omiti nada. Pouco habituado a usar por minha
conta destas habilidades, não tenho feito delas grande uso. Foi
preciso até a minha viva amizade por Danceny, e o interesse que
me inspira, para me resolver a servir-me destes processos, aliás
bem inocentes. Tenho ódio a tudo que se pareça com enganar o
próximo; é este o meu carácter. Mas as vossas infelicidades tocaram-me
a tal ponto, que tentarei tudo para suavizá-las.
Como deve imaginar, depois desta combinação entre nós
ser-me-á mais fácil conseguir, com Danceny, o encontro que ele
deseja. Mas por agora não lhe fale nisto; não faria senão aumentar
a sua impaciência, e não chegou ainda o momento de a
satisfazer. Deve antes, segundo creio, empregar os seus cuidados
em acalmá-la, de preferência a agravá-la. A este respeito,
confio na sua delicadeza. Adeus, minha bela pupila. Ame um
pouco o seu tutor, e sobretudo empregue com ele docilidade; será
bem recompensada por isso. Ocupo-me da sua felicidade e
pode crer que nela encontrei também a minha.

24 de Setembro de 17 * *.

CARTA LXXXV

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Vai enfim tranquilizar-se, e, sobretudo, fazer-me justiça.


Escute, e não me confunda com as outras mulheres. Cheguei ao
fim da minha ventura com Prévan; ao fim! Compreende bem o
que isto quer dizer? Agora o Visconde vai julgar qual de nós, eu
ou ele, se poderá gabar. A narração não é tão agradável como a
acção; por outro lado, não seria justo que, enquanto o Visconde
nada mais fez que raciocinar bem ou mal sobre este assunto,
extraísse dele tanto prazer como eu, que empreguei tempo e
trabalho.
Entretanto, se tem algum grande golpe de audácia a executar,
se pretende tentar qualquer empreendimento em que esse
rival perigoso lhe faça sombra, pode vir. Ele deixou-lhe o campo
livre, pelo menos por algum tempo; talvez mesmo não torne
a erguer-se da prostação em que o lancei.
Como o Visconde é feliz em ter-me por amiga! Sou para si
uma fada benfazeja! Enquanto vai definhando longe da beleza
que o atrai, eu digo uma palavra, e de novo se encontra junto
dela. Deseja vingar-se de uma mulher que lhe furta; eu marco o
sítio onde deve feri-la, e entrego-a à sua mercê. Por fim, para
afastar do combate um concorrente temível, sou ainda eu que o
inspiro e o ponho no mais alto lugar. Na verdade, se não passa a
vida a agradecer-me, é porque é um ingrato. Mas volto à minha
aventura, desde o início.
O encontro, marcado em voz alta, à saída da Ópera, foi
ouvido, como eu tinha esperado. Prévan compareceu; e quando

* Ver Carta LXXIV

a Marechala lhe disse delicadamente que se sentia feliz por o ver


duas vezes seguidas nas suas recepções, ele teve o cuidado de
responder que desde a tarde de terça-feira tinha desfeito mil
compromissos para poder assim dispor daquela noite. A bom
entendedor... No entanto, como eu desejava ter a certeza se era
ou não o verdadeiro objectivo daquela lisonjeira solicitude, quis
obrigar o novo apaixonado a escolher entre mim e o seu gosto
dominante. Declarei que não jogava; de facto, ele encontrou,
por seu lado, mil pretextos para não jogar. E o meu primeiro
triunfo foi sobre o lansquené.
Tomei a meu cargo o bispo de... para ter com quem conversar;
escolhi-o em virtude da sua ligação com o herói do dia, a
quem eu queria dar toda a facilidade de me abordar. Ao mesmo
tempo, sentia-me à vontade por ter uma testemunha respeitável
que, em caso de necessidade, poderia depor sobre o meu comportamento
e os meus a-propósitos. Esta combinação deu resultado.

Depois das conversas vagas do costume, Prévan, tendo-se


tornado o guia da conversação, foi tomando diversos tons, para
experimentar o que me poderia agradar. Recusei o do sentimento,
como não acreditando nele; com o meu aspecto sério, fiz
deter a sua jovialidade, que me pareceu demasiado ligeira para
um início; baixou de tom, tomando o da amizade discreta; e foi
sob esta bandeira vulgar que começámos o nosso recíproco ataque.
Na altura da ceia, o bispo não descia; Prévan ofereceu-me o
braço e à mesa tomou naturalmente o lugar a meu lado. É preciso
ser justo: soube sustentar com habilidade a nossa conversa
particular, parecendo no entanto ocupar-se da conversa geral,
da qual aparentemente ocupava o posto central. À sobremesa,
falou-se de uma peça nova que na segunda-feira seguinte devia
ir à cena no Teatro Francês. Afectei algum pesar por não ter
marcado o meu camarote; ele ofereceu-me o seu, que recusei,
como é da praxe; ao que ele respondeu muito agradavelmente
que eu não tinha ouvido bem; que com certeza não faria o sacrifício
do seu camarote a alguém que ele não conhecia, mas que
somente me avisava de que a senhora Marechala disporia dele.
Ela prestou-se a este gracejo e eu aceitei.
Quando subimos ao salão, ele pediu, como pode imaginar,
um lugar nesse camarote; e como a Marechala, que o trata com
muita bondade, lho prometeu se ele tivesse juízo, aproveitou a
ocasião para uma daquelas conversações de duplo sentido, para
as quais tem um talento que o Visconde já me gabou. De facto,
tendo-se posto de joelhos diante da Marechala, como uma
criança submissa, dizia ele, sob o pretexto de lhe pedir a opinião
e de implorar o seu auxílio, disse ainda muitas coisas lisonjeiras
e ternas, as quais me era fácil supor que se dirigiam a mim.
Como havia ainda várias pessoas que não tomavam parte no
jogo depois da ceia, a conversa foi mais geral e menos interessante;
mas os nossos olhos falaram muito. Os nossos olhos, disse
eu; mas deveria dizer os dele, pois os meus tiveram só uma linguagem,
que foi a da surpresa. Ele teve ocasião para pensar que
eu o admirava e me ocupava excessivamente do efeito prodigioso
que causava sobre mim. Julgo que o deixei muito satisfeito;
pelo meu lado, eu não estava menos contente.
Na segunda-feira seguinte, fui ao Teatro Francês, como tínhamos
combinado. Apesar da sua curiosidade literária, caro
Visconde, nada posso dizer-lhe do espectáculo, a não ser que
Prévan tem um talento maravilhoso para o galanteio, e que a
peça caiu; eis tudo o que lhe posso dizer. Era com pena que eu
via findar o serão, que realmente me agradava muito. E para o
prolongar, convidei a Marechala a vir cear comigo; o que me
forneceu pretexto para propor o mesmo ao amável galanteador,
que pediu apenas o tempo para ir, correndo, a,casa das Condessas
de B..., a fim de se libertar de um compromisso. Este nome
reavivou toda a minha cólera; vi claramente que ele ia começar
as confidências. Recordei-me dos seus prudentes conselhos e
prometi a mim própria... continuar a aventura. Estava certa de
que o emendaria de tão perigosa tendência.
Estranho ao meu grupo, que naquela noite era pouco numeroso,
ele devia-me as atenções que são de uso neste caso. Por
isso, quando fomos cear, ofereceu-me a mão. Eu tive a malícia,
ao aceitá-la, de pôr na minha um ligeiro frémito, e de conservar,
enquanto andávamos, os olhos baixos e a respiração alta.
Tinha o aspecto de pressentir a minha derrota e de temer o meu
vencedor. Ele notou-o à maravilha; e logo o traidor mudou de
tom e de maneira. De galanteador, tornou-se meigo. Os propósitos
que me dirigia eram mais ou menos os mesmos: as circunstâncias
forçavam-no a isso. Mas o seu olhar, que se tornara
menos vivo, era mais acariciador; as inflexões da sua voz, mais
doces; o seu sorriso já não era o da finura, mas o da satisfação.
Enfim, nas palavras, em que pouco a pouco se extinguia o fogo
de início, o espírito deu lugar à delicadeza. E agora quero perguntar-lhe:
faria melhor do que isto?
Pelo meu lado, dei-me ares de pensativa, a tal ponto que,
sendo forçado a notá-lo, mo censurou. Tive então a habilidade
de me defender desastradamente e de lançar sobre Prévan um
olhar rápido, mas tímido e confundido, de propósito para o levar
a crer que todo o meu receio era que ele adivinhasse a causa
da minha preocupação.
Depois da ceia, aproveitei a ocasião em que a boa Marechala
contava uma das histórias que conta sempre, para me recostar
na otomana, naquela atitude de abandono que se presta aos
sonhos ternos. Não me desagradava que Prévan me visse assim;
de facto, ele honrou-me com uma atenção particular. O Visconde
imagina decerto que os meus tímidos olhares não ousavam
buscar os do meu vencedor; mas, dirigidos para ele da maneira
mais humilde, logo me deram a certeza de que eu obtinha o efeito
que pretendia produzir. Faltava ainda persuadi-lo de que o
mesmo encantamento me penetrava; por isso, quando a Marechala
anunciou que ia retirar-se, exclamei numa voz terna e
indolente: "Oh! Meu Deus! E eu estava aqui tão bem!" Todavia
levantei-me; mas, antes de me separar dela, perguntei-lhe quais
os seus projectos para ter um pretexto de lhe dizer os meus e de
dar a saber que estaria em minha casa no dia posterior ao seguinte.
Separámo-nos por fim.
Então, pus-me a reflectir. Não duvidava que Prévan aproveitasse
a espécie de entrevista que eu acabava de lhe marcar;
que viesse bastante cedo para me encontrar só, e que me atacasse
com vivacidade. Mas estava certa também de que, dada a
minha reputação, ele me não trataria com aquela ligeireza que,
por pouco hábito que se tenha, se emprega apenas com as mulheres
dadas à aventura ou com as que não têm experiência; e
tinha a vitória certa se ele pronunciasse a palavra amor, ou sobretudo
se tivesse a pretensão de a obter de mim.
É tão cómodo ter de lidar com as pessoas de princípios!
Algumas vezes é um pobre diabo apaixonado que nos desconcerta
pela sua timidez, ou nos atordoa com os seus fogosos
transportes; é uma febre que, como a outra, dá ardor e calafrios,
e algumas vezes varia nos sintomas. Mas adivinha-se tão

facilmente quando o plano é traçado de antemão! A chegada, a


atitude, o tom, as palavras, tudo isso eu conhecia desde a véspera.
Não lhe descreverei por isso a nossa conversação, que o Visconde
adivinha facilmente. Note apenas que, na minha fingida
defesa, eu ajudava-o tanto quanto podia: embaraço, para lhe
dar tempo a que falasse; razões más, para que pudessem ser
combatidas: receio e desconfiança, para provocar os protestos;
e da sua parte o perpétuo estribilho: peço-lhe apenas uma palavra;
e da minha um silêncio, comunicando-lhe uma expectativa
que fazia crescer o seu desejo; e, através de tudo isso, a mão que
se toma cem vezes, que se retira sempre e nunca se recusa. Poderia
passar-se assim um dia: passámos uma hora mortal. Estaríamos
talvez ainda nisso se não ouvíssemos o ruído de uma carruagem
entrando no pátio. Esse feliz contratempo tornou, como
é natural, as suas instâncias mais vivas; e eu, vendo chegado o
momento em que já nada me podia surpreender, depois de me
ter preparado para um longo suspiro, concedi a preciosa palavra.
Começaram a ser anunciadas as visitas e pouco depois rodeava-nos
numerosa sociedade.
Prévan pediu-me para vir no dia seguinte de manhã e eu
consenti; mas, cuidando da minha defesa, ordenei à criada de
quarto que durante a visita ficasse no meu quarto de dormir,
donde, como sabe, se vê tudo o que se passa no quarto de vestir,
e foi neste que o recebi. O diálogo correu livremente, e como
ambos tínhamos o mesmo desejo, breve nos pusemos de acordo:
mas era preciso desfazer-nos daquele espectador importuno;
era aí que eu queria chegar.
Então, pintando-lhe a meu belo prazer o quadro da minha
vida interior, persuadi-o facilmente de que não chegaríamos a
encontrar um momento de liberdade, que devíamos olhar como
uma espécie de milagre aquele de que tínhamos gozado na véspera,
e que ainda assim tivera perigos excessivos para que eu me
expusesse a eles, pois a todo o instante alguém poderia entrar
no salão. Não me esqueci de acrescentar que os hábitos da minha
casa estavam assim estabelecidos porque, até ao presente,
nunca me tinham contrariado; e insisti ao mesmo tempo na
impossibilidade de os mudar, porque seria comprometer-me aos
olhos dos meus servidores. Ele simulou entristecer, ficar amuado,
dizer-me que era bem frágil o meu amor; e o Visconde adivinha
quanto tudo aquilo me comovia! Mas, querendo vibrar o
golpe decisivo, chamei as lágrimas em meu socorro. Foi exacta
mente o Zaire, vous pleurezl. Julgando dominar-se, e na esperança,
afectuou estar possuído de todo o amor de Orosmane.
Passado o lance teatral, voltámos às combinações. Não
podendo ser durante o dia, pensámos escolher uma noite. Mas o
meu porteiro tornava-se um obstáculo intransponível e eu fui de
opinião que não se podia pensar em suborná-lo. Ele propôs-me
a pequena porta do jardim: mas eu tinha-o previsto e inventei
um cão que, manso e silencioso de dia, era um verdadeiro demónio
durante a noite. A facilidade com que eu entrava em
todos aqueles pormenores era de molde a excitá-lo, o que deu
em resultado propor-me o expediente mais ridículo, e foi esse
que eu aceitei.
Primeiro falou-me dum criado dele, que era tão discreto
como ele próprio: nisto não me enganava Prévan, pois, em tal
matéria, patrão e criado valiam o mesmo. Eu daria uma grande
ceia em minha casa, à qual ele seria convidado. Chegado o
momento, despedir-se-ia, simulando sair só. O hábil confidente
chamaria a carruagem, abriria a porta; e ele, Prévan, em vez de
subir, esquivar-se-ia com destreza. O cocheiro não chegaria a
dar por nada; deste modo todos julgariam que ele tinha saído, e
entretanto, reentrando em minha casa, tratar-se-ia apenas de
conhecer o caminho mais curto para o meu quarto. Confesso
que a minha primeira dificuldade foi de encontrar, contra tal
projecto, razões suficientemente más para que ele tivesse a pretensão
de as destruir. Ele respondeu dando-me exemplos; segundo
ele, não havia processo mais vulgar. Já várias vezes se
servira dele. Era mesmo o de que fazia mais uso, como o menos
perigoso.
Subjugada por estas razões irrespondíveis, revelei-lhe, cheia
de candura, que havia uma escada secreta que conduzia perto
do meu quarto de vestir; eu deixaria ficar a chave na porta e
ser-lhe-ia possível entrar e esperar, sem grandes riscos, que as
criadas se recolhessem; e, para dar maior verosimilhança ao
meu consentimento, exigia que o momento do encontro fosse,
sem discussão, de uma submissão perfeita. Era preciso ter juízo,
oh! muito juízo! Enfim, eu queria apenas provar-lhe o meu
amor, mas não satisfazer o seu.

A saída, esquecia-me dizer-lhe, seria pela pequena porta do


jardim: bastava esperar o romper do dia, o cão não daria sinal.
Àquela hora não passava vivalma, os criados estariam no sono
mais profundo. Não se admire de tanto raciocínio disparatado;
pense na nossa situação recíproca. Que necessidade tínhamos
de uma melhor combinação? Ele queria apenas que tudo viesse
a saber-se, eu estava certa de que ninguém o saberia. Combinámos
para o dia posterior ao seguinte.
Repare o Visconde que era um assunto combinado, e que
ninguém tinha ainda visto Prévan na minha companhia. Encontro-o
a cear em casa de uma das minhas amigas, ele oferece-me
o seu camarote para uma peça nova, eu aceito nele um lugar.
Convido a minha amiga a cear, durante o espectáculo e diante
de Prévan; quase não posso dispensar-me de o convidar. Ele
aceita e, dois dias depois, faz-me a visita exigida pelas boas
normas. É certo que volta a visitar-me no dia seguinte de manhã;
mas, além de que as visitas de manhã não contam, só eu
podia julgar esta demasiado apressada. De facto, coloco-o no
número das pessoas que me estão menos ligadas, com um convite
escrito para uma ceia de cerimónia. Posso bem dizer como
Annette: e, todavia, eis tudo!
Chegado o dia fatal, o dia em que eu devia perder a minha
virtude e a minha reputação, dei as minhas instruções à fiel Vitória
e ela pô-las em execução como vai ver.
Entretanto, chegou a noite. Tinham já entrado muitos convidados,
quando anunciaram Prévan. Recebi-o fazendo notar a
polidez que havia entre nós. Coloquei-o ao lado da Marechala,
como acentuando que era por intermédio dela que nos tínhamos
conhecido. A ceia não produziu mais do que um bilhetinho,
que o discreto apaixonado encontrou meio de me entregar,
e que queimei conforme o meu costume. Anunciava-me que
podia contar com ele; e esta palavra essencial era rodeada de
todas as palavras parasitas, como amor, felicidade, etc., que
nunca faltam a festas desta natureza.
À meia-noite, terminados os jogos, propus uma curta macedónia.
O meu duplo projecto era favorecer a evasão de Prévan

* Algumas pessoas ignoram talvez que uma macedónia é um conjunto de


vários jogos de azar, entre os quais cada jogador tem o direito de escolher
quando lhe pertence dar cartas. É uma das invenções do século.

e ao mesmo tempo torná-la notada, o que não podia deixar de


acontecer, dada a sua reputação de jogador. Por outro lado,
todos viriam a lembrar-se de que eu não tivera pressa de ficar
só.
O jogo durou mais do que eu pensara. O diabo tentava-me e
eu sucumbia ao desejo de ir consolar o impaciente prisioneiro.
Encaminhava-me para a minha perda, quando reflecti que, logo
que inteiramente me rendesse, deixaria de ter sobre ele o domínio
bastante para o manter vestido com a decência necessária
aos meus projectos. Tive a força de resistir. Retrocedi e voltei,
bastante aborrecida; a retomar o meu lugar naquele jogo que
não findava mais. Por fim lá acabou, e todos se foram embora.
Ficando só, chamei as criadas, despi-me muito depressa, e despedi-as.
Está a ver-me, Visconde, vestida ligeiramente, caminhando
com passo tímido e circunspecto, e com a mão mal segura abrir
a porta ao meu vencedor? Mal que me viu, o relâmpago não seria
mais rápido. Que digo eu? Fui vencida, absolutamente vencida,
antes de ter podido dizer uma palavra para o deter ou me
defender. Ele quis em seguida tomar uma situação mais cómoda
e mais adequada às circunstâncias. Amaldiçoava o vestuário
que, dizia ele, o afastava de mim, e queria combater-me com
armas iguais. Mas a minha extrema timidez opôs-se ao projecto,
e as minhas ternas carícias não lhe deram tempo. Ocupou-se
de outra coisa.
Os seus direitos eram a dobrar e as suas pretensões voltaram.
Então eu disse-lhe: "Escute: até aqui teve assunto para
uma agradável narrativa a fazer às duas Condessas de B... , e a
muitas outras; mas eu gostaria de saber como lhes vai contar o
fim desta aventura." Ao falar assim, puxei o cordão da campainha
com toda a força. Chegara a minha vez e o gesto foi mais
rápido do que a sua resposta. Mal tinha ainda balbuciado,
quando ouvi Vitória acudir, e chamar os criados que escondera
no seu quarto, como eu lhe ordenara. Então, tomando o meu
tom de rainha, continuei, elevando a voz: "Saia, senhor, e não
torne a aparecer diante de mim." Neste momento, o grupo dos
criados entrou.
O pobre Prévan perdeu a cabeça e, julgando ver uma cilada
no que era no fundo apenas um gracejo, levou a mão à espada.
Foi o mal que fez, pois um dos meus criados, vigoroso e valente,
agarrou-o pelo meio do corpo e derrubou-o. Confesso que senti
um terror mortal. Gritei-lhes que parassem e ordenei que lhe
deixassem livre a retirada, certificando-se apenas se ele saía da
minha casa. Os criados obedeceram, mas entre eles era grande o
rumor. Indignavam-se que alguém tivesse faltado ao respeito à
sua virtuosa senhora. Todos acompanharam o infeliz cavaleiro,
com algazarra e escândalo, como eu desejava. Só Vitória ficou e
ocupámo-nos durante esse tempo a reparar a desordem do meu
leito.
Os criados tornaram a subir sempre em tumulto; e eu, ainda
muito emocionada, perguntei-lhes por que felicidade estavam
ainda todos levantados; respondeu-me Vitória, contando que
tinha dado de cear a suas das suas amigas, que tinham feito festa
no quarto delas, enfim, tudo o que tínhamos combinado.
Agradeci a todos e mandei-os retirar, ordenando a um deles que
fosse imediatamente chamar o meu médico. Pareceu-me que
estava autorizada a temer o efeito do meu susto mortal; além
disso, era um meio seguro de dar curso e celebridade à aventura.
O médico veio de facto, lamentou-me, e ordenou-me repouso.
Depois, ordenei a Vitória que logo de manhã fosse tagarelar
com a vizinhança.
Tudo decorreu tão bem que, antes do meio-dia e assim que
consenti que abrissem as janelas do meu quarto, já tinha à cabeceira
uma das minhas vizinhas, muito devota, para saber a verdade
e os pormenores daquela horrível aventura. Fui obrigada a
desolar-me com ela, durante uma hora, sobre a corrupção destes
tempos. Um momento depois recebi da Marechala o bilhete
que junto aqui. Por fim, antes das cinco horas, vi chegar, com
grande espanto meu, o senhor... 1. Vinha, segundo me disse,
apresentar-me as suas desculpas, por um oficial do seu regimento
ter podido faltar-me ao respeito a tal ponto. Soubera-o quando
estava jantando em casa da Marechala e tinha imediatamente
mandado ordem a Prévan para que se entregasse à prisão.
Pedi que lhe perdoasse e ele recusou. Pensei então que, para lhe
dar a minha cumplicidade, era preciso resignar-me pelo meu
lado e afectar uma atitude rígida. Mandei fechar a minha porta
e dizer que estava incomodada.
É à minha solidão que o Visconde deve esta longa carta.
Escreverei uma a Madame de Volanges, que com certeza há-de

* O comandante do regimento no qual servia o senhor Prévan.

fazer leitura pública, e onde verá esta história tal como deve ser
contada.
Esquecia-me de dizer que Belleroche está indignado, e quer
absolutamente bater-se com Prévan. Pobre rapaz! Felizmente
terei tempo de lhe acalmar os nervos. Enquanto espero, vou
repousar os meus, que estão fatigados de escrever. Adeus, Visconde.

25 de Setembro de 17* *, à noite.

CARTA LXXXVI

A MARECHALA DE... À MARQUESA DE MERTEUIL

(Bilhete junto à precedente)

Meu Deus! Que me contais, minha querida amiga? É possível


que Prévan seja capaz de semelhantes abominações! E logo
com a minha amiga! Ao que uma pessoa se expõe! Mas então
nem em sua casa uma pessoa está em segurança? Na verdade,
tais acontecimentos consolam-me de ser velha. Mas do que
nunca me poderei consolar, é de ter sido em parte causadora de
terdes recebido semelhante monstro em vossa casa. Prometo-vos
que, se o que me disseram é verdade, ele não tornará a pôr
os pés em minha casa. Todas as pessoas honestas procederão
assim com ele, se fizerem o que é devido.
Disseram-me que estáveis muito doente, e estou inquieta
pela vossa saúde. Peço-vos que me deis as vossas desejadas notícias;
ou que mas mandeis dar por uma das vossas criadas, se vós
mesma o não puderdes fazer. Não vos peço mais do que uma
palavra para minha tranquilidade. Se não fossem os meus banhos,
que o médico não me permite interromper, teria ido esta
manhã a vossa casa; e esta tarde tenho de ir a Versailles, sempre
por causa do assunto do meu sobrinho.
Adeus, minha querida amiga; conte com a minha sincera
amizade por toda a vida.

Paris, 25 de Setembro de 17* *

CARTA LXXXVII

A MARQUESA DE MERTEUIL A MADAME DE VOLANGES

Escrevo-vos do meu leito, querida e boa amiga. O mais desagradável


dos acontecimentos, e o mais impossível de prever,
pôs-me doente de susto e de tristeza. Não é que eu tenha de me
censurar por algum motivo; mas é sempre tão penoso para uma
mulher honesta, e que conserva a modéstia que convém ao seu
sexo, fixar sobre si as atenções públicas, que eu daria tudo no
mundo para ter podido evitar esta infeliz aventura, e não sei
ainda se decidirei ir para o campo, esperar que tudo tenha esquecido.
Vou contar-vos de que se trata.
Encontrei em casa da Marechala de... um tal senhor de Prévan,
que decerto conheceis de nome, e que eu não conhecia de
outro modo. Mas, encontrando-o nessa casa, estava bem autorizada,
parece-me, a julgá-lo boa companhia. Tem certa elegância
de figura e pareceu-me inteligente. O acaso e o aborrecimento
do jogo deixaram-me só entre ele e o bispo de..., enquanto
todos os outros convidados jogavam o lansquené. Conversámos
os três até à hora da ceia. À mesa falou-se de uma novidade teatral,
o que lhe deu ensejo a oferecer o seu camarote à Marechala,
que aceitou; e ficou combinado que eu teria lá um lugar. Era
para segunda-feira passada, no Teatro Francês. Como a Marechala
vinha cear comigo à saída do espectáculo, propus àquele
senhor que a acompanhasse, o que ele fez. Dois dias passados
fez-me uma visita que se passou nas conversas do costume, sem
que houvesse absolutamente nada a notar. No dia seguinte veio
ver-me de manhã, o que me pareceu um pouco apressado; mas
julguei que, em vez de lho fazer sentir pela minha maneira de o
receber, valia mais adverti-lo pela minha delicadeza de que não
estávamos ainda tão intimamente ligados como ele parecia supor.
Para isso enviei-lhe, nesse mesmo dia, um convite muito
seco e muito cerimonioso para uma ceia que dei anteontem.
Não lhe dirigi a palavra quatro vezes em toda a noite; e ele pelo
seu lado retirou-se logo que acabou de jogar. Haveis de convir
que até ali nada havia que parecesse conduzir a uma aventura.
Depois do jogo, houve ainda uma macedónia que durou até perto
das duas horas; e finalmente fui para a cama.
Havia pelo menos uma mortal meia hora que as minhas
criadas estavam recolhidas, quando ouvi ruído no meu quarto.
Abri o cortinado cheia de susto e vi um homem entrar pela porta
que conduz ao quarto de vestir. Soltei um grito agudo; e reconheci,
à luz da minha lamparina, esse senhor de Prévan, que,
com uma ousadia inconcebível, me disse que não me alarmasse;
que ia esclarecer-me o mistério da sua conduta e me suplicava
que não fizesse ruído algum. Ao falar assim, acendia uma vela.
Eu estava a tal ponto assustada que nem podia falar. O seu desembaraço
e tranquilidade petrificavam-me ainda mais, se é
possível. Mas não tinha ainda dito duas palavras, já eu vira qual
era o pretendido mistério; e a minha única resposta foi; como
podeis crer, puxar o cordão da campainha.
Por uma incrível felicidade, todos os criados se tinham reunido
no quarto de uma das minhas criadas, e não estavam ainda
deitados. A minha criada de quarto, que, dirigindo-se aos meus
aposentos, me ouviu falar com exaltação, ficou horrorizada, e
chamou toda aquela gente. Podeis imaginar o escândalo! Os
criados estavam furiosos; houve um momento em que um deles
queria matar Prévan. Confesso que, nesse momento, me senti
feliz por ter quem me auxiliasse. Reflectindo agora, gostaria
mais que só a minha criada de quarto tivesse acudido; teria sido
suficiente, e talvez se pudesse ter evitado o ruído, que me aflige.
Em vez disso, o tumulto despertou os vizinhos, os criados
falaram, e desde ontem a novidade corre todo Paris. O senhor
de Prévan está preso por ordem do comandante do seu regimento,
que teve a honestidade de passar por minha casa para me
apresentar desculpas. Esta prisão vai ainda aumentar o ruído;
mas não pude conseguir que fosse de outra maneira. A cidade e
a corte inscreveram-se à minha porta, que está fechada para
toda a gente. As poucas pessoas que vi disseram-me que me faziam
justiça e que a indignação contra o senhor de Prévan tinha
chegado ao cúmulo. É certo que ele o merece, mas nem por isso
a aventura deixa de ser muito desagradável.
Além do mais, esse homem tem com certeza alguns amigos,
e esses amigos devem ser maus; quem sabe, quem poderá saber
o que irão inventar para meu prejuízo? Meu Deus, como uma
mulher jovem é infeliz ! Sem ter feito nada, tem de se pôr ao
abrigo da maledicência; e é preciso ainda sobrepor-se à calúnia.
Dizei-me, peço-vos, o que teríeis feito se estivésseis no meu
lugar; enfim, tudo o que pensais. É sempre de vós que recebo as
mais doces consolações e os mais prudentes conselhos; por isso
é de vós que mais gosto de os receber.
Adeus, minha querida e boa amiga; conheceis os sentimentos
que para sempre me prendem a vós. Beijo a vossa adorável
filha.

Paris, 26 de Setembro de 17* *.

TERCEIRA PARTE

CARTA LXXXVIII

CECÍLIA VOLANGES AO VISCONDE DE VALMONT

Apesar de todo o prazer que tenho, senhor, em receber as


cartas do Cavaleiro Danceny, e se bem que não deseje menos do
que ele que nos possamos voltar a ver, sem que nos perturbem,
não ousei no entanto fazer que me haveis prometido.
Em primeiro lugar, é demasiado perigoso: a chave que quereis
que ponha no lugar da outra assemelha-se-lhe bastante na
verdade: contudo, não deixa de haver certa diferença, e a Mamã
repara em tudo, dá por tudo. Para mais, se bem que ainda não
tenha sido utilizada desde que aqui estamos, bastava uma falta
de sorte; e se dessem por isso, estaria perdida para sempre.
Depois, isso parece-me muito mal; mandar fazer uma chave
dupla é demasiada ousadia! É certo que teríeis a bondade de vos
encarregardes disso; mas, mesmo assim, se o viessem a saber, a
censura e a falta recairiam sobre mim, visto que seria por mim
que o teríeis feito. Enfim, tentei duas vezes apoderar-me dela, e
certamente teria sido bastante fácil se se tratasse de outra coisa:
mas não sei porquê de ambas as vezes me pus a tremer e nunca
tive coragem. Por isso creio que é melhor ficar como estamos.
Se tiverdes a bondade de continuar tão prestável como até
aqui, sempre encontrareis processo de me entregar uma carta.
Mesmo quando da última, sem o azar que num certo momento
vos obrigou a afastar-vos de repente, ter-nos-ia sido muito fácil.
Sinto bem que não podeis, como eu, ocupar-vos disso apenas;
mas prefiro ter paciência e não arriscar tanto. Estou certa
de que o senhor Danceny pensaria como eu: porque sempre que
ele desejava qualquer coisa que me custasse demasiado, acabava
por ceder.
Entregar-vos-ei, ao mesmo tempo que esta carta, a vossa, a
do senhor Danceny e a vossa chave. Não vos estou menos reconhecida
por todas as atenções para comigo e suplico-vos que
continueis a dispensá-las. É bem verdade que sou muito infeliz,
e sem vós sê-lo-ia ainda muito mais: mas, apesar de tudo, trata-se
de minha mãe; é preciso ter paciência. E desde que o senhor
Danceny continue a amar-me, e vós não me abandoneis, talvez
venham tempos mais felizes.
Entretanto, tenho a honra de ser, senhor, cheia de reconhecimento,
a vossa muito humilde e obediente serva.

26 de Setembro de 17 * *.

CARTA LXXXIX

O VISCONDE DE VALMONT AO CAVALEIRO DANCENY

Se o seu caso não progride tão depressa como deseja, meu


amigo, não é comigo que se deve zangar. Tenho mais de um
obstáculo a vencer. A vigilância e a severidade de Madame de
Volanges não são os únicos; a sua jovem amiga também me cria
alguns. Seja frieza ou timidez, nem sempre faz o que lhe aconselho;
e creio no entanto saber melhor do que ela o que se deve
fazer.
Tinha encontrado um meio simples, cómodo e seguro, de
lhe entregar as cartas e até de facilitar, mais tarde, as entrevistas
que o meu amigo deseja: mas não pude decidi-la a utilizá-lo.
Estou tanto mais aflito, quanto é certo que não vejo outro para
o aproximar dela; e que, até por causa da vossa correspondência,
receio incessantemente que nos comprometamos os três.
Ora, deve imaginar que não quero correr esse risco, nem que
ambos a ele se exponham.
Contudo ficaria verdadeiramente penalizado se a falta de
confiança da sua amiguinha me impedisse de vos ser útil: talvez
o meu amigo fizesse bem em lhe escrever nesse sentido. Vejo o
que deseja fazer, é a si que cabe decidir; porque não basta ser
prestável aos amigos, é também preciso sê-lo da maneira que
lhes agrada. Poderia ser também um processo de se assegurar dos
sentimentos que ela lhe dedica: porque a mulher que teima
numa opinião não ama tanto como diz.
Não que suspeite da inconstância a sua eleita; mas é muito
nova; tem muito medo da Mamã que, como sabe, procura apenas
prejudicá-lo; e seria talvez perigoso deixar passar muito
tempo sem a ocupar a seu respeito.
No entanto, não se inquiete muito com o que lhe digo. No
fundo, não tenho nenhum motivo de desconfiança; é apenas a
solicitude da amizade.
Não me alongo mais porque tenho alguns assuntos meus a
cuidar. Não estou tão adiantado como o meu amigo; mas amo
com a mesma força, e isso consola; e mesmo que não tenha êxito
pela minha parte, se conseguir ser-lhe útil, darei sempre por
bem empregado o meu tempo. Adeus, meu amigo.

Castelo de..., 26 de Setembro de 17 * *

CARTA XC

A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT

Desejo muito, senhor, que esta carta não vos faça sofrer;
mas, se assim não for, que ao menos a vossa dor seja suavizada
pela que experimento ao escrevê-la. Deveis conhecer-me o bastante,
presentemente, para estardes bem certo de que o meu
desejo é não vos magoar; mas vós, sem dúvida, não quereríeis
também mergulhar-me num desespero eterno. Suplico-vos pois,
em nome da terna amizade que vos prometi; em nome até dos
sentimentos porventura mais vivos, mas certamente não mais
sinceros, que tendes por mim, que não voltemos a ver-nos; deveis
partir. E até lá, evitemos sobretudo essas conversas particulares
e demasiado perigosas, durante as quais, por qualquer força
inconcebível, sem nunca conseguir dizer-vos o que quero,
passo o tempo a escutar o que não deveria ouvir.
Ainda ontem, quando viestes juntar-vos a mim no parque,
eu tinha como único projecto dizer o que hoje vos escrevo; e que
fiz, afinal, senão ocupar-me do vosso amor?... do vosso amor,
ao qual nunca poderei corresponder! Ah! por piedade, afastai-vos
de mim!
Não receeis que a ausência altere os meus sentimentos por
vós: como conseguiria vencê-los, quando já nem tenho coragem
para os combater? Como vedes, digo-vos tudo; temo menos
confessar a minha fraqueza do que sucumbir a ela. Perdi o domínio
dos sentimentos, mas conservarei o das acções; sim, conservá-lo-ei,
estou resolvida a isso; mesmo à custa da vida.
Ai! Não vai longe o tempo em que julgava que nunca teria
tais combates a sustentar! Felicitava-me talvez demasiado. O
céu puniu cruelmente este orgulho: mas, cheio de misericórdia,
no próprio momento em que fere, adverte-me ainda antes da
queda; e eu seria duplamente culpada se continuasse a ser imprudente,
prevenida já da minha pouca força.
Haveis-me dito cem vezes que não queríeis uma felicidade
comprada com as minhas lágrimas. Ah! não falemos já de felicidade;
deixai-me recuperar um pouco de sossego.
Se atenderdes ao meu pedido, que novos direitos não tereis
sobre o meu coração? Mas desses, assentes na virtude, não precisarei
defender-me. Como serei feliz no meu reconhecimento!
Ficarei a dever-vos a doçura de gozar sem remorsos um sentimento
delicioso. Neste momento, assustada com os meus sentimentos
e pensamentos, receio igualmente ocupar-me de vós e de
mim; só de pensar em vós me assusto: quando não posso fugir à
vossa imagem, combato-a; não a afasto, expulso-a.
Não será melhor para ambos cessar este estado de perturbação
e de ansiedade? Vós, cuja alma sempre sensível, mesmo no
meio dos erros, se conservou amiga da virtude,tereis certamente
piedade da minha dolorosa situação; sei que não rejeitareis a
minha súplica! Um interesse mais doce, e não menos terno, sucederá
a estas agitações violentas; então, devendo-vos a vida, a
existência ser-me-á cara,e na alegria do meu coração direi: esta
tranquilidade, devo-a ao meu amigo.
Parece-vos que este pequeno sacrifício, que vos não imponho,
mas peço, é um preço demasiado caro para dar termo aos
meus tormentos? Ah! se para vos tornar feliz bastasse aceitar a
infelicidade, podeis crer, não hesitaria um momento... Mas
cometer uma falta!... Não, meu amigo, não, antes morrer mil
vezes.
Assaltada pela vergonha, à beira dos remorsos, temo os outros
e a mim própria; coro quando estou acompanhada, e tremo
na solidão; a minha vida é apenas dor; só por vossa vontade
terei paz. As minhas resoluções mais louváveis não bastam para
me tranquilizar; formulei esta ordem e no entanto passei a noite
banhada em lágrimas.
Eis a vossa amiga, aquela que amais, a pedir-vos confusa e
suplicante o repouso e a inocência. Ah! meu Deus! sem vós,
nunca ela teria sido obrigada a pedido tão humilhante. Nada
vos censuro; sinto demasiado por mim própria como é difícil
resistir, a um sentimento imperioso. Uma queixa não é um
murmúrio. Fazei por generosidade o que faço por dever; e a
todos os sentimentos que me haveis inspirado acrescentarei uma
eterna gratidão. Adeus, adeus, senhor.

27 de Setembro de 17 * *

CARTA XCI

O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL

Consternado pela vossa carta, ignoro ainda, senhora, como


lhe poderei responder. Sem dúvida, se for preciso escolher entre
a vossa infelicidade e a minha, sacrifico-me e não hesito; mas
assuntos tão importantes merecem, se bem me parece, ser antes
de mais nada discutidos e esclarecidos; mas como consegui-lo,
se não nos devemos falar, nem ver?
Pois quê! Apesar de nos unirem os sentimentos mais doces,
um vão terror bastará para nos separar, talvez irremediavelmente!
Debalde a terna amizade, o ardente amor, reclamarão os
seus direitos; essas vozes não serão escutadas; e porquê? Que
perigo tão premente vos ameaça então? Ah! acreditai, tais receios,
tão ligeiramente concebidos, são, só por si, fortes motivos
de segurança.
Permiti que vo-lo diga, reencontro aqui o vestígio das impressões
desfavoráveis que a meu respeito vos deram. Não se
treme junto do homem que se estima; não afastamos, principalmente,
quem julgamos digno de alguma amizade; tememos e
evitamos apenas o homem perigoso.
No entanto, existiu jamais alguém tão respeitador e submisso
como eu? Como notais, tomo já cautelas com as palavras, já
não me permito aqueles nomes tão doces, tão caros ao- meu coração,
que em segredo não cessa de vo-los dirigir.
Já não sou o amante fiel e infeliz, recebendo consolações e
conselhos duma amiga terna e sensível; sou o réu perante o juiz;
o escravo perante o senhor. Estes novos títulos impõem sem dúvida
novos deveres; assumo o compromisso de os cumprir a
todos. Escutai-me, e, se depois me condenardes, submeto-me e
parto. Prometo ainda mais; preferis o despotismo que julga sem
ouvir? Tendes a coragem de ser injusta? Ordenai e obedecerei
sempre.
Mas, ao menos, que essa sentença ou essa ordem a ouça da
vossa boca. "E porquê?", perguntais. Ah! se fazeis tal pergunta,
conheceis pouco o amor e o meu coração! Então o ver-nos ainda
uma vez não significaria nada? E quando finalmente a vossa
boca lançar o desespero sobre a minha alma, talvez um olhar
consolador a impeça de sucumbir. E se for obrigado a renunciar
ao amor e à amizade para que vivo, ao menos podereis ver a
vossa obra, e ficar-me-á a vossa piedade: mesmo que não mereça
este pequeno favor, arrisco-me, parece-me, a pagá-lo bem
caro, na esperança de o obter. Será possível que me afasteis de
vós? Permitis então que nos tornemos dois estranhos? Que digo?
Assim o desejais; e enquanto me afirmais que a minha ausência
não alterará os vossos sentimentos, apressais-me a partida
para mais facilmente os destruir.
Pois se já dizeis que a gratidão os substituirá! Assim, o sentimento
que obteria de vós um desconhecido pelo mais leve serviço,
ou até o vosso inimigo desde que já vos não afrontasse, eis o
que me ofereceis! E quereis que o coração se me alegre. Interrogai
o vosso: se o vosso amante, se o vosso amigo, um dia vos
falassem em gratidão, não diríeis indignada: "Retirai-vos, ingrátos?
"
Aqui me detenho e suplico a vossa indulgência. Perdoai a
expressão duma dor de que sois autora; não será obstáculo à
minha submissão total. Mas peço-vos em nome desses sentimentos
tão doces, que vós própria vos atribuís, aceitai ouvir-me;
e por piedade ao menos pelo tormento mortal em que me
haveis lançado, não retardeis o momento. Adeus, senhora.

27 de Setembro de 17 * *, à noite.

CARTA XCII

O CAVALEIRO DANCENY AO VISCONDE DE VALMONT

Oh! meu amigo! a sua carta gelou-me de receio. Cecília...


Meu Deus, será possível! Cecília já me não ama. Sim, vejo esta
verdade terrível através do véu com que a sua amizade a cerca.
Quis-me preparar para receber esse golpe mortal; agradeço-lhe
as cautelas, mas podemos impô-las ao amor? Ele antecipa-se em
tudo o que o interessa, não precisa que lhe digam a sua sorte,
adivinha-a. Da minha já não duvido; fale-me sem rodeios, pode
fazê-lo, suplico-lhe. Conte-me tudo: o que fez nascer as suas
suspeitas, o que as confirmou. Os mínimos pormenores são preciosos.
Esforce-se, principalmente, por se recordar das palavras
dela. Uma palavra em vez de outra pode transformar toda uma
frase; a mesma tem às vezes dois sentidos... O meu amigo pode
ter-se enganado: ai! procuro iludir-me ainda. Que lhe disse ela?
Fez-me alguma censura? Não se defende ao menos dos seus erros?
Eu devia ter previsto esta mudança pelas dificuldades que,
de há um tempo para cá, ela encontra em tudo. Ora o amor não
conhece tantos obstáculos.
Que devo fazer? Que me aconselhais? Se eu tentasse vê-la?
Será impossível? A ausência é tão cruel, tão funesta!... E ela
recusou um meio de me ver!... O Visconde não me explica do
que se tratava; se o perigo era demasiado grande, ela bem sabe
que não quero que se arrisque muito. Mas como conheço também
a sua prudência, nem posso para minha infelicidade acreditar
em tal.
Que vou eu fazer agora? Como hei-de escrever-lhe? Deixá-la
suspeitar dos meus receios? Talvez a desgostem, e, se são injustos,
nunca me perdoaria o tê-la afligido. Escondê-los? É enganá-la,
e não sei dissimular perante ela.
Oh! se ela soubesse o que sofro, o meu mal comovê-la-ia.
Sei que é sensível, tem um coração excelente e possuo mil provas
do seu amor. É demasiado tímida, algumas vezes indecisa, e
tão jovem! A mãe trata-a com tanta severidade! Vou escrever-lhe;
saberei conter-me; pedir-lhe-ei somente que confie plenamente
no meu amigo. Mesmo que recuse mais uma vez, não
poderá zangar-se com o meu pedido; e talvez consinta.
A si, meu amigo, peço-lhe mil perdões, por ela e por mim.
Asseguro-lhe que ela aprecia o valor dos seus cuidados, pelos
quais lhe está grata. Não é por desconfiança, é por timidez. Seja
indulgente; é a mais bela face da amizade. A sua é-me preciosa e
nem sei como agradecer tudo o que tem feito por mim. Adeus,
vou escrever-lhe já...
Sinto que todos os meus receios voltam; quem me diria que
alguma vez me custaria escrever-lhe! Ai! ainda ontem era o meu
mais doce prazer.
Adeus, meu amigo; continue a proteger-nos e tenha piedade
de mim.

Paris, 27 de Setembro de 17 * *

CARTA XCIII

O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES

(Junta à precedente)

Não lhe posso esconder como fiquei aflito ao saber por


Valmont a escassa confiança que continua a ter nele. Não ignora
que é meu amigo, a única pessoa que nos pode aproximar:
julguei que estes títulos bastariam; vejo com mágoa que me
enganei. Poderei ao menos esperar que me diga as suas razões?
Não haverá ainda outras dificuldades que a impeçam de ter
confiança nele? Não posso no entanto, sem que mo diga, perceber
o mistério da sua conduta. Não ouso pôr em dúvida o seu
amor, sei também que não ousaria trair o meu. Ah ! Cecília !..
É então verdade que recusou um meio de me ver? Um meio
simples, cómodo e seguro? E é assim que me tem amor! Uma
tão curta ausência pôde alterar a tal ponto os seus sentimentos!
Mas para quê enganar-me? Para quê repetir que continua a
amar-me, e cada vez mais? A sua Mamã, ao destruir o seu amor,
destruiu-lhe também a candura? Se ela lhe deixou ao menos

* Danceny não sabe de que meio se trata; repete apenas a expressão de


Valmont.

alguma piedade, não será sem dor que a Cecília saberá os tormentos
horríveis que me causa. Ah ! sofreria menos ao morrer.
Diga-me pois: o seu coração fechou-se definitivamente para
mim? É certo que me esqueceu inteiramente? Graças à sua recusa,
não sei quando ouvirá as minhas queixas, nem quando lhes
responderá. A amizade de Valmont tinha assegurado a nossa
correspondência: mas a Cecília não quis; achava-a difícil, preferiu
que ela fosse mais rara. Não, não acreditarei mais no amor,
na boa fé. Em quem acreditar, se a Cecília me enganou?
Responda-me pois: é certo que já não me tem amor? Não,
isso não é possível; a Cecília ilude-se a si própria; calunia o seu
próprio coração. Um receio passageiro, um momento de desânimo,
que o amor depressa fez desaparecer: não é verdade, minha
Cecília? Ah! Sem dúvida, e faço mal em a acusar. Como eu seria
feliz se me tivesse enganado! Como gostaria de pedir ternas desculpas,
de compensar este momento de injustiça com uma eternidade
de amor!
Cecília, Cecília, tenha piedade de mim! Consinta em me ver;
aceite todos os meios! Veja o que produz a ausência: receios,
suspeitas, talvez frieza! Um só olhar, uma só palavra, e seremos
felizes. Mas quê! Posso eu ainda falar de felicidade? Talvez esteja
perdida para mim, perdida para sempre. Torturado pelo receio,
cruelmente apertado entre a suspeita injusta e a mais cruel
das verdades, não me posso agarrar a nenhum pensamento; o
pouco que conservo de vida é para sofrer e amar. Ah! Cecília! É
a única pessoa que tem o direito de me embelezar a existência,
de ma tornar cara; e espero das suas palavras o regresso à felicidade
ou a certeza dum desespero eterno.

Paris, 27 de Setembro de 17* *

CARTA XCIV

CECÍLiA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY

Nada percebo da sua carta, a não ser a dor que me causa. O


que lhe contou então o senhor de Valmont e o que é que lhe pôde
fazer crer que já não o amava? Talvez isso fosse bem melhor
para mim, porque certamente estaria menos atormentada; e é
muito duro, amando-o de tal maneira, ver como julga sempre
que não tenho razão, e que, em vez de me consolar, seja de si
que me vêm sempre as dores que mais magoam. Julga que o
engano e minto! Faz uma linda ideia de mim, não haja dúvida!
Mas mesmo que mentisse como me censura, que interesse teria
nisso? Certamente, se já o não amasse, bastava-me dizê-lo, e
todos me elogiariam; mas, por infelicidade, este amor é mais
forte do que eu; e ainda por cima por alguém que não tem qualquer
obrigação para comigo!
Que fiz eu para tanto se zangar? Não ousei roubar uma
chave, porque receei que a Mamã desse por tal e isso me trouxesse
mais dissabores, e a si também por minha causa; e, além
disso, parece-me uma coisa muito feia. Mas fora apenas o senhor
de Valmont quem me falara nisso; não podia adivinhar se
estava de acordo ou não, pois supus que de nada sabia. Agora
sabendo o que deseja, recuso por acaso roubá-la? Fá-lo-ei amanhã
mesmo; e veremos então se ainda tem alguma coisa a dizer.
O senhor de Valmont pode muito bem ser seu amigo; mas
julgo que o meu amor vale bem a amizade dele; e no entanto é
sempre ele quem tem razão e nunca a minha pessoa. Afirmo-lhe
que estou muito zangada. Tanto lhe faz, é claro, pois sabe que
me acalmo logo de seguida: mas desde que tenha chave, posso
vê-lo quando bem me apetecer; e garanto-lhe que não hei-de
querer quando me tratar assim. Prefiro sofrer por minha culpa
do que pela sua: veja bem o que faz.
Podíamo-nos amar tanto, se quisesse! E ao menos as únicas
penas que teríamos, seriam as provocadas pelos outros! Asseguro-lhe
que, se fosse dona do meu destino, nunca lhe daria motivo
de queixa: mas se não acredita em mim, seremos para sempre
infelizes e a culpa não será minha. Espero que nos poderemos
ver em breve e que então não teremos ocasião de nos irritarmos
como agora.
Se pudesse prever tudo isto, teria logo roubado a chave: mas
na verdade julgava proceder bem. Não se zangue pois comigo,
peço. Não esteja triste e ame-me tanto quanto eu o amo: dessa
forma ficarei muito contente. Adeus, querido amigo.

Castelo de. .., 28 de Setembro de 17 * *

CARTA XCV

CECÍLIA VOLANGES AO VISCONDE DE VALMONT


Peço-vos, senhor, a bondade de me entregardes de novo a
chave que me tínheis dado para pôr no lugar da outra; visto que
todos o querem, sou obrigada a consentir.
Não sei por que haveis contado ao senhor Danceny que eu
já o não amava; creio que nunca vos dei lugar a pensar tal coisa;
tudo isso o fez sofrer e a mim também. Sei bem que sois amigo
dele; mas isso não é razão para o fazer infeliz, nem a mim tão
pouco: Dar-me-íeis prazer se lhe mandásseis dizer o contrário,
da próxima vez que lhe escreverdes, e que tendes bem a certeza:
por que é em vós que ele tem confiança; e eu, quando digo uma
coisa e não me acreditam, não sei já o que faça.
Acerca da chave, podeis estar tranquilo; lembro-me bem do
que me recomendáveis na vossa carta. No entanto, se ainda a
tendes e ma quiserdes dar de novo, prometo relê-la com atenção.
Se pudesse ser amanhã à hora do jantar, dar-vos-ia a outra
chave depois de amanhã ao almoço, e devolver-ma-íeis da mesma
maneira que a primeira. Desejava que tudo isto não demorasse
muito, porque nos arriscaríamos menos a que a Mamã
desse por qualquer coisa.
E depois, assim que tiverdes a chave, tereis a bondade de a
utilizar para receber as minhas cartas; dessa forma, o senhor
Danceny terá mais frequentemente notícias minhas. Na verdade
será mais cómodo que no presente; mas a princípio tive muito
medo. Peço-vos que me desculpeis e espero que não deixeis de
ser tão atencioso como dantes. Ficar-vos-ei sempre muito grata.
Tenho a honra de ser, senhor, vossa muito humilde e obediente
serva.

P. S. - Assim que tiverdes a chave, peço-vos que tenhais


cuidado e que ninguém a veja, porque seria muito perigoso.

28 de Setembro de 17 * *

CARTA XCVI

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Aposto que, depois da sua aventura, espera todos os dias os


meus cumprimentos e elogios; nem sequer duvido que esteja um
pouco aborrecida com o meu longo silêncio; mas que quer?
Sempre pensei que, quando já não há senão elogios a dar a uma
mulher, podemos estar descansados a seu respeito e ocuparmo-nos
sossegadamente de outra coisa. No entanto agradeço-lhe
pela minha parte e felicito-a pela sua. Para a tornar verdadeiramente
feliz, concordo até que, desta vez, ultrapassoú a minha
expectativa. Depois disto, vejamos se pela minha parte terei ao
menos correspondido à sua.
Não é de Madame de Tourvel que lhe quero falar; o seu
passo lento desagrada-lhe. A minha amiga só gosta dos casos
arrumados. Aborrecem-na as cenas que se vão lentamente desenrolando;
e eu nunca tinha apreciado o prazer que sinto nestas
pretensas lentidões.
Sim, gosto de ver, de apreciar, esta mulher prudente, lançada,
sem disso se aperceber, num caminho que não permite regresso
e cuja ladeira rápida e perigosa a leva a seguir-me, mesmo
contra vontade e à força. Assustada com o perigo que corre,
gostaria de parar, mas não pode. As cautelas e a habilidade
podem tornar-lhe os passos mais curtos; mas eles suceder-se-ão
inevitavelmente. Às vezes, não ousando fitar o perigo, fecha os
olhos e, deixando-se guiar, entrega-se aos meus cuidados. Muitas
vezes um novo terror fá-la redobrar de esforços. Num pavor
mortal, quer ainda voltar atrás; gasta as forças para subir penosamente
um curto espaço; e em breve um mágico poder a coloca
de novo mais perto daquele mesmo perigo de que em vão pretendera
fugir. Então, tendo em mim o único guia e apoio, sem
pensar em me censurar pela queda inevitável, implora-me que a
retarde. As preces fervorosas, as humildes súplicas, tudo o que
os mortais, no seu medo, oferecem à Divindade, recebo-o eu
dela; e quer a minha amiga que, surdo aos seus pedidos e destruindo
eu próprio o culto que ela me presta, me sirva, para a
aniquilar, do poder que ela invoca para a amparar! Ah! deixe-me
ao menos o tempo de observar estes tocantes combates entre
o amor e a virtude!
Pois quê! Esse mesmo espectáculo que a faz correr ao teatro
com ardor, e que aí aplaude com entusiasmo, julga-o menos
fascinante na vida real? Os sentimentos duma alma pura e terna,
que teme a felicidade que deseja e não pára de se defender,
mesmo quando deixa de resistir, escuta-os com exaltação: não
serão eles sem preço para aquele que os fez nascer? Eis no entanto
os prazeres deliciosos que esta mulher celestial me oferece
todos os dias! E censura-me que lhes saboreie as delícias! Ah!
Cedo virá o momento em que, degradada pela queda, ela não
será para mim mais do que uma mulher vulgar.
Mas esqueço, ao falar dela, que o não queria fazer. Não sei
que força me prende e sem cessar me atrai a ela, mesmo quando
a ultrajo. Afastemos essa imagem perigosa; recuperemos a calma
para tratar dum assunto mais alegre. Trata-se da sua discípula,
presentemente minha, e espero que agora me reconheça
em acção.
Desde há alguns dias, mais bem tratado pela terna devota,
por conseguinte menos ocupado com ela, notara eu já que a
pequena Volanges é com efeito muito bonita; e que, se era parvoíce
estar apaixonado por ela como Danceny, talvez não o fosse
menos da minha parte não procurar junto dela a distracção
que a solidão me tornava necessária. De resto pareceu-me justo
pagar-me dos trabalhos que tinha tido por ela: lembrava-me
além disso que a minha amiga ma tinha oferecido, antes que
Danceny tivesse qualquer pretensão; e considerava-me autorizado
a reclamar alguns direitos sobre um bem que ele possuía
apenas devido à minha recusa e abandono. A cara gentil da rapariguinha,
a boca tão fresca, o ar infantil, o próprio embaraço,
fortificavam estas sábias reflexões; resolvi portanto agir, e a
empresa foi coroada de êxito.
Tenta já adivinhar o meio pelo qual suplantei tão depressa o
ente querido; qual a sedução conveniente para esta idade e inexperiência.
Evite tanto trabalho; não me servi de nenhuma. Enquanto
que, manejando com habilidade as armas do seu sexo, a
minha cara amiga triunfava pela subtileza; eu, devolvendo ao
homem os seus direitos imprescritíveis, subjugava pela autoridade.
Seguro da presa se pudesse estar a sós com ela, necessitava
de astúcia apenas para me aproximar, e a de que me servi quase
nem merece esse nome.
Aproveitando-me da primeira carta que Danceny enviara à
sua bela e depois de a ter prevenido por um sinal combinado
entre nós, em vez de a minha habilidade servir para lha entregar,
serviu-me apenas para não encontrar um meio de o fazer: a
impaciência que fiz nascer, fingi compartilhá-la, e depois de ter
provocado o mal, indiquei o remédio.
A donzela dorme num quarto que tem uma das portas para
o corredor; mas, como mandam as regras, a Mamã guardara a
chave. Queria apenas apoderar-me dela. Nada mais fácil; bastava-me
dispor dela por duas horas e trataria de obter outra igual.
Então, correspondência, entrevistas, encontros nocturnos, tudo
se tornava cómodo e seguro: no entanto, será capaz de acreditar?
a virgem tímida teve medo e recusou. Outro qualquer ficaria
desolado; eu vi apenas a oportunidade para um prazer mais
picante. Escrevi a Danceny queixando-me da recusa, e fiz tanto
e tão bem que o nosso tonto não descansou enquanto não conseguiu,
exigindo até, que a receosa apaixonada acedesse ao meu
pedido e se entregasse totalmente aos meus cuidados.
Agradava-me, confesso, ter assim mudado de papel e que o
jovem fizesse por mim aquilo que esperava que eu fizesse por
ele. Esta ideia duplicava, a meus olhos, o valor da aventura: assim,
logo que possuí a preciosa chave, apressei-me a utilizá-la.
Foi a noite passada.
Depois de me ter certificado de que tudo estava tranquilo no
castelo, armado de lanterna de furta-fogo e com o vestuário que
a hora permitia e a circunstância exigia, fiz a primeira visita à
sua pupila. Tinha mandado preparar tudo (e até por ela própria),
para poder entrar sem ruído. Estava no primeiro sono,
aquele que é próprio da idade dela, de forma que pude chegar
até ao leito sem a acordar. A princípio estive tentado a ir mais
longe e a fazer-me passar por um sonho; mas temendo o efeito
da surpresa e o barulho que se lhe seguiria, preferi acordar com
precaução a bela adormecida, e consegui com efeito evitar o grito
que receava.
Depois de lhe ter acalmado os primeiros receios, e como
afinal não estava ali para conversar, arrisquei algumas liberdades.
Sem dúvida não lhe ensinaram bem no convento a quantos
perigos está exposta a tímida inocência e tudo o que ela deve
resguardar para não ser surpreendida; porque, juntando toda a
atenção e todas as forças para se defender dum beijo, que era
apenas um falso ataque, todo o resto era abandonado sem defesa;
como não me aproveitar! Alterei então a táctica e num ápice
ocupei o meu posto. Aqui pensámos ambos estarmos perdidos:
a pequena, toda assustada, quis gritar de verdade; felizmente as
lágrimas tinham-lhe roubado a voz. Procurara também o cordão
da campainha, mas a minha habilidade segurou-lhe o braço
a tempo.
"Que queres fazer", disse-lhe então, "perderes-te para sempre?
Que me importa se vier alguém. A quem convencerás que
não estou aqui com o teu consentimento? Quem me teria fornecido
o meio de entrar senão tu? E como explicarás a existência
desta chave que só pude arranjar por teu intermédio, que não
arranjaria sem a tua ajuda?" Este curto discurso não acalmou
nem a dor, nem a cólera; mas trouxe a submissão. Não sei se o
tom lhe dava eloquência; na verdade, não seria com certeza
embelezado pela postura em que me encontrava. Uma das mãos
empregada na força, a outra no amor, que orador em semelhante
posição pretenderia ser gracioso? Se está a ver bem, concordará
que em troca era propícia ao ataque; mas sou um pateta,
como diz, e a mulher mais simples, uma colegial, me leva como
a uma criança.
Esta, se bem que desolada, percebia que era preciso tomar
uma decisão, e negociar. Encontrando-me inexorável aos pedidos,
foi preciso passar às ofertas. Julga se calhar que vendi bem
caro um posto avançado tão importante: não, prometi ceder
tudo por um beijo. É verdade que depois dele, não cumpri a
promessa: mas tinha boas razões. Porventura tínhamos combinado
se o beijo seria passivo ou activo? À força de negociar,
acabámos por concordar num segundo; e este, assim foi combinado,
seria passivo. Então, tendo-lhe guiado os tímidos braços
em torno do meu corpo, e apertando-a amorosamente com um
dos meus, o doce beijo foi com efeito dado; mas perfeita e belamente
dado: de tal forma enfim que o próprio amor não poderia
ter feito melhor.
Tanta boa fé merecia recompensa, por isso acedi imediatamente
ao pedido. A mão retirou-se; mas não sei por que acaso,
encontrei-me eu próprio no lugar dela. Supõe-me já apressado e
activo, não é verdade? De forma nenhuma. Tomei o gosto da
lentidão, digo-lhe. Certo de chegar, para quê apressar a viagem?
A sério, tinha todo o vagar para observar por uma vez o
poder da ocasião, e encontrava-a aqui despida de toda a ajuda
alheia. Ela tinha no entanto de combater o amor; e o amor
apoiado pelo pudor ou pela vergonha; e fortificado sobretudo
pela ira que eu provocara. Tudo o que havia entre nós era a ocasião;
mas estava ali, oferecida, presente, e o amor estava longe.
Para certificar as minhas observações, tive a malícia de
empregar apenas a dose de força que a donzela podia combater.
Somente, se a encantadora inimiga, abusando da minha bondade,
se encontrava pronta a escapar-se-me, continha-a pelo
mesmo temor, que já antes tão felizes resultados dera. Pois bem!
Sem mais trabalho, a terna amorosa, esquecendo os juramentos,
começou por ceder e acabou consentindo: não sem que após o
primeiro momento as censuras e as lágrimas não tivessem voltado
simultaneamente; ignoro se eram verdadeiras ou fingidas:
mas, como sucede sempre, cessaram logo que me conduzi de
maneira a justificá-las de novo. Finalmente, de concessão em
censura, e de censura em concessão, só nos separámos depois de
satisfeitos e de acordo quanto ao encontro desta noite.
Só me retirei para os meus aposentos ao raiar do dia, e estava
exausto de fadiga e sono: no entanto sacrifiquei ambos ao
desejo de assistir de manhã ao pequeno almoço; adoro loucamente
o aspecto delas no dia seguinte. Não faz ideia do ar desta.
Era um embaraço na maneira de estar! Uma dificuldade no
andar! Olhos sempre baixos, tão inchados e batidos! O rosto
redondo tão comprido! Nada de mais agradável. E, pela primeira
vez, a mãe, alarmada com tão grande transformação, lhe testemunhava
um interesse assaz terno! E a Presidente também se
desvelava em volta dela! Oh! Estes cuidados são por agora dispensáveis;
um dia virá em que ela os merecerá de verdade, e esse
dia não está longe. Adeus, minha bela amiga.

Castelo de..., 2 de Outubro de 17**.

CARTA XCVII

CECÍLIA DE VOLANGES A MARQUESA DE MERTEUIL

Ah! Meu Deus, senhora, como estou aflita! Como sou infeliz!
Quem me consolará na minha dor? Quem me aconselhará
na dificuldade em que me encontro? Este senhor de Valmont!...
E Danceny! Não, a lembrança de Danceny lança-me no desespero...
Como contar? Como ousar dizer-vos?... Não sei como o
fazer. No entanto o meu coração transborda... Preciso de desabafar
com alguém e vós sois a única a quem posso escrever.
Tem sido tão boa para mim! Mas não espero que o sejais agora;
não sou digna disso; como dizer-vos? Já não o desejo. Hoje
foram todos aqui muito carinhosos para comigo, mas só contribuíram
para aumentar o meu sofrimento. Senti profundamente
que não merecia tanta atenção! Vós, pelo contrário,
ralhai-me; severamente, porque tenho imensa culpa: mas
depois salvai-me; se não tiverdes a bondade de me aconselhar,
morrerei de desgosto.
vergonha. Pois bem! Suportá-la-ei; será o primeiro castigo da
minha falta. Sim, dir-vos-ei tudo.
Sabei pois que o senhor de Valmont, que me entregara até
agora as cartas de Danceny, descobriu de repente que era demasiado
difícil; quis ter uma chave do meu quarto. Garanto-vos
que não queria: mas ele escreveu a Danceny e este concordou; e
a mim custa-me tanto recusar-lhe qualquer coisa, sobretudo
desde que a minha ausência o torna tão infeliz, que acabei por
consentir. Não previa a desgraça que daí resultaria.
Ontem, o senhor de Valmont serviu-se dessa chave para
entrar no meu quarto, enquanto eu dormia; estava tão longe de
esperar semelhante coisa que me assustei ao acordar; mas como
falou imediatamente, reconheci-o e não gritei; e além disso
veio-me logo a ideia de que talvez trouxesse uma carta de Danceny.
Nada disso. Passado um momento quis beijar-me; e enquanto
eu me defendia, como era natural, insinuou-se de tal
forma junto de mim, que não quereria por coisa alguma deste
mundo que ele continuasse naquela posição. Mas exigiu um beijo
primeiro. Forçoso foi; que fazer?, tanto mais que tentara tocar,
mas além de não ter podido, ameaçou-me que, se viesse
alguém, lançaria toda a culpa sobre mim; e com efeito seria
muito fácil, por causa da chave. Mas depois nem por isso se retirou.
Quis um segundo; e desta vez, não sei porquê, perturbou-me
de tal forma... e em seguida foi ainda pior. Oh! Não se faz uma
coisa destas. Enfim, depois..., dispensar-me-eis de dizer o resto;
sou tão infeliz quanto é possível sê-lo.
Aquilo de que mais me acuso, forçoso é que vo-lo diga, é o
receio de não me ter defendido quanto podia. Não sei como foi:
não amo o senhor de Valmont, bem pelo contrário; mas houve
no entanto momentos em que foi como se o amasse. Bem sabeis
que isso não me impedia de ir repetindo que não; mas senti que
não estava agindo como dizia; e tudo isto independentemente
da minha vontade; e depois também, ora, estava tão perturbada!
Se é assim tão difícil a gente defender-se, grande prática é
preciso! Também é verdade que este senhor de Valmont tem
umas maneiras de falar que não se sabe como responder-lhe,
enfim, quer acreditar que quando partiu eu estava de certo
modo zangada, e que apesar disso tive a fraqueza de consentir
que voltasse esta noite: o que me desola ainda mais que tudo o
resto.
Oh! Apesar disso, prometo-vos que o impedirei de entrar.
Mal ele saíra, já sentia como tinha errado ao consentir. O resto
do tempo não fiz senão chorar. Sobretudo a recordação de
Danceny fazia-me sofrer! Cada vez que pensava nele, as lágrimas
aumentavam ao ponto de sufocar, e não podia deixar de
pensar nele... E ainda agora, vede o efeito; eis o papel todo
molhado. Não, nunca mais me consolarei, quanto mais não seja
por causa dele... Estava exausta, e no entanto não dormi um
minuto. Esta manhã ao levantar-me, perante o espelho, metia
medo, de transtornada que estava.
A Mamã reparou assim que me viu, e perguntou-me o que
tinha. Desatei logo a chorar. Julguei que me ia ralhar, o que talvez
me tivesse custado menos: mas não. Falou-me com doçura!
Não o merecia, de forma nenhuma. Disse que não me afligisse!
Ignorava o motivo do meu desespero. Como me sentia mal! Há
momentos em que desejo a morte. Não resisti. Lancei-me nos
braços dela aos soluços, e dizendo: "Ah! Mamã, a vossa filha é
tão infeliz!" A Mamã não pôde deixar de chorar um pouco; o
que só teve como consequência aumentar a minha dor: felizmente
não perguntou por que razão eu era tão infeliz, pois não
saberia que responder.
Suplico-vos, senhora, escrevei o mais cedo que puderdes, e
dizei-me o que devo fazer: porque não tenho coragem de pensar
em nada, não faço outra coisa senão afligir-me. Enviai a carta
pelo senhor de Valmont; mas, peço-vos, se lhe escreverdes ao
mesmo tempo, não lhe faleis no que vos contei.
Tenho a honra de ser, minha senhora, com imensa amizade,
a vossa muito humilde e obediente escrava...
Não ouso assinar esta carta.

Castelo de..., 1 de Outubro de 17 * *, à noite.

CARTA XCVIII

MADAME DE VOLANGES A MARQUESA DE MERTEUIL

Ainda há bem poucos dias, minha encantadora amiga, fostes


vós a pedir-me consolações e conselhos: hoje, é a minha vez;
faço-vos o mesmo pedido que então me fizestes. Estou muito
preocupada e receio não ter sabido evitar o desgosto que me
aflige.
Cecília é a causa da minha inquietação. Desde a nossa vinda
que a vejo sempre triste e desgostosa; mas já o esperava e tinha
escudado o coração com a severidade que julgara necessária.
Esperava que a ausência e as distracções destruiriam depressa
um amor que me parecia mais uma fantasia infantil do que uma
verdadeira paixão. No entanto, em vez de se ter restabelecido
com a estada aqui, apercebo-me de que a minha filha se entrega
cada vez mais a uma perigosa melancolia; e temo, até, que a sua
saúde se ressinta. Particularmente nos últimos dias ela muda a
olhos vistos. Ontem, sobretudo, comoveu-me, e todos aqui ficaram
sinceramente alarmados.
O que me revela até que ponto ela está profundamente ferida
é o vê-la pronta a deixar a timidez que sempre mostrou para
comigo. Ontem de manhã, ao perguntar-lhe apenas se estava
doente, precipitou-se nos meus braços dizendo-me que era muito
infeliz; e chorou abundantemente. Não posso exprimir quanto
isto me tocou; vieram-me logo as lágrimas aos olhos; e só tive
tempo para me voltar, para impedir que ela o visse. Mas felizmente
tive a prudência de não lhe fazer nenhuma pergunta,e ela
não ousou dizer mais nada: mas vejo claramente que é a sua
paixão infeliz que a atormenta.
Que fazer se isto continua? Serei a causadora da infelicidade
da minha filha? Estarei a voltar contra ela as qualidades mais
preciosas da alma, a sensibilidade e a constância? É assim que
cumpro o meu papel de mãe? E se abafar em mim este sentimento
tão natural de desejar a felicidade da minha filha; se considerar
como uma fraqueza o que creio, pelo contrário, o primeiro e
mais sagrado dos nossos deveres; se forço a sua escolha, não
serei a responsável pelas consequências funestas que possam
seguir-se? Que mau emprego de autoridade materna, colocar a
própria filha entre o crime e a infelicidade!
Não, minha amiga, não imitarei o que tantas vezes tenho
censurado. Ao tentar escolher em vez da minha filha, pretendia
ajudá-la com a minha experiência; não exercia um direito
cumpria um dever. Mas faltarei a um se, pelo contrário, dispuser
dela desprezando uma afeição que eu não soube impedir de
nascer e de que nem eu nem ela podemos conhecer a duração e a
força. Não, não posso admitir que case com este para amar
aquele, prefiro comprometer a minha autoridade a pôr em perigo
a sua virtude.
Acho que vou tomar a decisão mais ajuizada, retomar a
palavra que dei ao senhor de Gercourt. Expus-vos as razões
parecem-me mais importantes do que a minha promessa. Digo
mais: no estado em que as coisas estão, cumpri-la seria, na verdade,
violá-la. Porque enfim, se devo à minha filha o não revelar
o seu segredo ao senhor de Gercourt, devo também não abusar
da ignorância em que o deixo e fazer em vez dele o que creio que
ele faria se soubesse. Irei, pelo contrário, traí-lo indignamente,
e, enquanto ele confia em mim e me honra escolhendo-me para
segunda mãe, enganá-lo na escolha da mãe dos seus filhos? Estas
reflexões, tão verdadeiras e às quais me não posso furtar,
alarmam-me mais do que deixo transparecer.
Às desgraças que receio,comparo a minha filha, feliz com o
esposo que o seu coração escolheu, presa aos deveres só pela
doçura que encontra em cumpri-los; o meu genro também satisfeito
e felicitando-se sempre pela sua escolha; cada um deles
encontrando a felicidade na felicidade do outro, e a de ambos
conjugando-se para aumentar a minha. A esperança dum futuro
tão doce deve ser sacrificada a vãs considerações? E quais são
elas? Unicamente as ditadas pelo interesse. Para que terá servido
à minha filha ter nascido rica, se tem de ser do mesmo modo
escrava do dinheiro?
Concordo que o senhor de Gercourt é um partido melhor
do que eu poderia esperar para a minha filha; confesso até que
fiquei extremamente lisonjeada com a escolha dele. Mas enfim
Danceny é dum nome igualmente ilustre; não lhe é em nada inferior
em qualidades pessoais; tem sobre o senhor de Gercourt a
vantagem de amar e ser amado: não é rico, na verdade; mas não
o é minha filha o suficiente para ambos? Ah! Porquê tirar-lhe a
satisfação tão doce de enriquecer aquele que ela ama!
Estes casamentos arranjados, em vez de entregues ao livre
arbítrio do coração, e a que chamamos de conveniência, nos
quais tudo se ajusta de facto, menos os gostos e os caracteres,
não serão eles a nascente mais fecunda dessas rupturas escandalosas
hoje em dia tão frequentes? Prefiro adiar; pelo menos terei
tempo para estudar melhor a minha filha, que não conheço. Sinto-me
com coragem de lhe causar um desgosto passageiro, se ele
puder contribuir para uma felicidade mais sólida: mas arriscar-me
a arrastá-la para um desespero eterno, isso não me está no
coração.
Eis, querida amiga, as ideias que me atormentam e acerca
das quais vos peço a opinião. Estas preocupações sérias contrastam
muito com a vossa alegria gentil e nem são para a vossa
idade; mas vós estais muito acima dela! A amizade juntar-se-á
de resto à vossa prudência; e sei que uma e outra se não recusarão
à solicitude maternal que as implora.
Adeus, encantadora amiga; não duvideis nunca da sinceridade
dos meus sentimentos.

Castelo de..., 2 de Outubro de 17* *

CARTA XCIX
O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Apenas pequenos incidentes, minha bela amiga; mas só


cenas, nada de acções. Deste modo, arme-se de paciência; mesmo
muita: porque enquanto a minha Presidente avança com
lentidão, a sua pupila recua, o que é muito pior. Pois bem! Tenho
bom humor para me divertir com estas catástrofes. Na verdade
acostumei-me muito bem à minha estada aqui e posso afirmar
que no triste castelo da minha velha tia não experimentei
um momento de tédio. Pois não tenho aqui prazeres, privações,
esperança, incerteza? Que se tem a mais num teatro maior?
Espectadores? Ah! Esperemos, eles não faltarão. Se não me
vêem entregue ao trabalho, mostrar-lhes-ei a tarefa pronta; só
terão de admirar e aplaudir. Sim, aplaudirão; porque posso finalmente
prever, com exactidão, o momento da queda da minha
austera devota. Assisti esta tarde à agonia da virtude. A
doce fraqueza reinará agora. Prevejo esse momento para a nossa
primeira entrevista: mas já a oiço acusar-me de orgulho.
Anuncia a vitória, gaba-se antecipadamente! Bom, acalme-se!
Para lhe provar como sou modesto, vou começar pela história
da minha derrota.
A sua pupila é de facto uma criaturinha ridícula! É uma
criança que deveria ser tratada como tal e a quem não faríamos
mais que perdoar se nos limitássemos a pô-la de castigo ! Acredita
que, depois do que se passou anteontem entre ela e mim,
depois do modo amigável como nos despedimos ontem de
manhã, quando eu quis voltar à noite, como combináramos
encontrei a porta fechada por dentro? Que diz a isto? Aturam-se
às vezes infantilidades destas na véspera; mas no dia seguinte!
Não acha cómico?
Mas não ri logo, nunca sentiria de tal forma o peso do meu
mau génio. Asseguro-lhe que ia àquela entrevista sem prazer,
apenas por deliberação. O meu leito, de que muito necessitava,
parecia-me, nesse momento, preferível ao de outrem, e afastara-me
dele com pena. No entanto, logo que encontrei um obstáculo
ardi por o vencer; e acima de tudo senti-me humilhado por
uma criança me ter ludibriado. Retirei-me então de muito mau
humor e com o projecto de nunca mais me ocupar daquela
criança estúpida, nem dos seus problemas, escrevi-lhe imediatamente
um bilhete que pensava entregar hoje, em que a apreciava
no seu justo valor. Mas, como costuma dizer-se, a noite é boa
conselheira; pensei esta manhã que, não tendo aqui a possibilidade
de escolher distracções, não devia perder aquela: destruí
pois o severo bilhete. Depois reflecti, espantei-me de ter tido a
ideia de acabar uma aventura sem ter na minha mão com que
perder a heroína. Onde nos pode conduzir um primeiro movimento!
Felizes aqueles que desde sempre se acostumaram como
a minha boa amiga a nunca lhe ceder! Enfim, adiei a minha vingança;
fiz esse sacrifício às suas intenções em relação a Gercourt.
Agora que já não estou zangado, vejo só o ridículo na conduta
da sua pupila. Gostaria na verdade de descobrir o que espera
ela ganhar deste modo! Confesso-me incapaz; se é só para
se defender, concordemos que se acautela demasiado tarde. Um,
dia ela explicar-me-á este enigma! Anseio por conhecê-la. Seria
somente por se encontrar fatigada? Francamente acho possível,
porque, sem dúvida, ela ignora ainda que as flechas do amor,
como a lança de Aquiles, trazem consigo remédio para os golpes
que fazem. Mas não, pela expressão dela durante todo o dia,
iria apostar que há ali remorsos... uns resquícios de virtude...
Virtude! Bem precisa dela. Ah! Que a deixe mas é para a mulher
nascida na realidade para ela, a única que a sabe embelezar e
seria capaz de no-la fazer amar... Perdão, minha bela amiga,
mas foi esta tarde que se passou entre mim e Madame de Tourvel

a cena que quero narrar-lhe e de que ainda conservo a emoção.


Preciso fazer um esforço para sacudir a impressão que me
causou; é para me livrar disso que me pus a escrever-lhe. Deve-se
desculpar este momento de fraqueza.
Há já alguns dias que nós, Madame de Tourvel e eu, estamos
de acordo sobre os nossos sentimentos; discutíamos apenas
acerca de palavras. Era sempre a sua amizade que respondia ao
meu amor: mas essa linguagem de convenção não modificava o
fundo das coisas; e mesmo que assim nos tivéssemos mantido,
eu teria certamente avançado mais devagar, mas não menos
seguramente. Já não se tratava de me afastar, como ela queria
primeiro; e, quanto às conversas que temos tido diariamente, se
ponho os meus esforços em lhe oferecer a ocasião, ela põe os
dela em a agarrar.
Como é habitualmente nos passeios que se dão as nossas
conversas, o tempo terrível que fez hoje todo o dia não me permitia
ter esperança: estava muito contrariado; não previa quanto
lucraria com este contratempo.
Não se podendo passear, pusemo-nos a jogar quando deixámos
a mesa; como não jogo bem, e não era necessária a minha
presença, aproveitei para subir ao meu quarto, com o projecto
de esperar pouco mais ou menos o fim da partida.
Voltava para me juntar ao grupo, quando encontrei a encantadora
dama que entrava nos seus aposentos e que, por imprudência
ou fraqueza, me disse com voz doce: "Onde ides?
Não há ninguém no salão." Não foi preciso mais para eu, como
deve calcular, experimentar entrar com ela; encontrei menos
resistência do que esperava. É certo que eu tivera a precaução de
começar a conversa à porta, e de a começar com um tom indiferente,
mas assim que nos sentámos, voltei ao que me interessava
e falei do meu amor à minha amiga. A primeira resposta dela,
embora simples, pareceu-me expressiva: "Oh!, não", disse-me,
"não falemos disso aqui"; e tremia. Pobre mulher! Julga morrer.
No entanto não havia motivo para temer. Já há algum tempo
que, certo do sucesso mais cedo ou mais tarde, e vendo-a
gastar as forças em combates inúteis, tinha resolvido economizar
as minhas e esperar sem esforço que ela se entregasse por
cansaço. Vê bem como exijo um triunfo completo e nada quero
dever às circunstâncias. Foi mesmo de acordo com o plano assim
elaborado, e para poder insistir sem me empenhar muito,
que voltei à palavra amor, tão obstinadamente recusada: certo
de que ela me julgava demasiado ardoroso, tentei um tom mais
terno. A recusa já não me fazia zangar, afligia-me apenas; não
me devia a minha sensível amiga algumas consolações?
Enquanto me consolava, deixara uma das mãos na minha; o
lindo corpo apiava-se no meu braço, e estávamos estreitamente
unidos. Já reparou como nesta situação, à medida que a defesa
enfraquece, os pedidos e as recusas são feitos de mais perto; a
cabeça afasta-se, os olhares baixam-se, enquanto que as palavras
ditas em murmúrio se tornam raras e entrecortadas? Estes
sintomas preciosos anunciam de modo inequívoco o consentimento
da alma: mas raramente este chega aos sentidos; creio
mesmo que é sempre perigoso ousar demasiado: visto que este
estado de abandono é acompanhado por um doce prazer e não é
possível arrancar alguém a ele, sem causar um estado de espírito
que se torna infalivelmente favorável à defesa.
Mas, no caso presente, a prudência era-me tanto mais necessária
quanto eu tinha sobretudo a recear o susto que este
esquecimento de si própria não deixaria de causar à terna sonhadora.
Não exigia que a confissão que suplicava fosse pronunciada;
um olhar bastava; um só olhar e seria feliz.
Minha amiga, aqueles belos olhos ergueram-se de facto
para mim; aquela boca celeste pronunciou até: "Bom! Sim
eu..."
Mas de súbito extinguiu-se-lhe o olhar, faltou-lhe a voz e
esta mulher adorável caiu nos meus braços. Mal tivera tempo de
; a segurar e já ela, libertando-se com uma força convulsiva, o
olhar perdido, as mãos elevadas para o céu... "Deus, ó Deus,
salvai-me!", gritou; e, no mesmo instante, mais rápida do que
um relâmpago, caiu de joelhos a dez passos de mim. Sentia-a
prestes a sufocar. Avancei para a socorrer, mas, tomando-me as
mãos que banhava de lágrimas e abraçando-me por vezes pelos
joelhos, disse: "Sim, sereis vós que me salvareis! Se não quereis
a minha morte, deixai-me; salvai-me, deixai-me por amor de
Deus, deixai-me!" E outras palavras entrecortadas mal se ouviam
através de soluços redobrados. Entretanto prendia-se-me
com uma força que me não permitia afastar-me; então, juntando
as minhas, elevei-a nos meus braços. No mesmo momento
cessaram as lágrimas, deixou de falar, os membros inteiriçaram-se-lhe,
e violentas convulsões sucederam a esta tempestade.
Eu estava, confesso, violentamente comovido, e creio que
teria acedido aos seus rogos, mesmo que as circunstâncias não
me forçassem a tal. Depois de lhe ter dado algum amparo, deixei-a
conforme me pedia, e felicito-me por isso. Em breve receberei
o prémio.
Esperava que, tal como no dia da minha primeira declaração,
ela não aparecesse à noite. Mas, cerca das oito horas, desceu
ao salão e limitou-se a declarar que estivera muito incomodada.
Tinha o rosto abatido, a voz sumida, e os modos eram
afectados; mas o olhar era doce e muitas vezes me fixou. Como
se recusou a jogar fui obrigado a substituí-la e veio sentar-se a
meu lado. Durante a ceia ficou sozinha no salão. Quando voltámos,
reparei que chorara; para me certificar, disse-lhe que me
parecia que ela ainda se ressentia do seu mal-estar; ao que respondeu
delicadamente: "Este mal não se vai tão depressa como
vem!" Quando finalmente nos retirámos, dei-lhe a mão; e à
porta dos seus aposentos apertou a minha com força. É certo
que este movimento pareceu-me ter qualquer coisa de involuntário:
mas tanto melhor; é mais uma prova do meu poder.
Apostaria que neste momento ela está encantada com o
ponto a que chegámos: acabou-se o trabalho! Gozemos agora.
Talvez, no momento em que lhe escrevo, ela se ocupe já desta
doce ideia! E mesmo que pelo contrário ela se ocupasse dum
novo projecto de defesa, não sabemos já no que resultariam
todos esses projectos? Acha que isto pode ir além da nossa próxima
entrevista? Sei bem que se fará rogada para a conceder:
mas enfim! Saberão estas beatas austeras conter-se uma vez
franqueado o primeiro passo? O amor delas é uma verdadeira
explosão; a resistência dá-lhes mais força. A minha fanática
devota correria atrás de mim, se eu deixasse de a perseguir.
Enfim, minha bela amiga, em breve irei junto de si, para lhe
exigir o cumprimento da sua palavra. Não esqueceu sem dúvida
que prometeu, após o sucesso, uma infidelidade ao seu Cavaleiro?
Está preparada? Pelo meu lado, desejo-a como se nunca a
tivesse conhecido. Ou antes, conhecê-la é talvez uma razão para
a desejar ainda mais.
Je suis juste, et ne suis point galant.l

Será a primeira infidelidade que farei a esta severa conquista;


e prometo-lhe aproveitar o primeiro pretexto para me afastar
dela por vinte e quatro horas. Será o castigo por me ter mantido
tanto tempo longe de si. Sabe que há mais de dois meses
que esta aventura me prende? Sim, dois meses e três dias; já incluo
na verdade o dia de amanhã, pois ela só então se consumará.
Isto faz-me lembrar que Mademoiselle de B... resistiu três
meses inteiros. Estimo verificar que a coqueteria pura e simples
tem mais defesa que a austera virtude.
Adeus, minha bela amiga; tenho de a deixar porque é muito
tarde. Esta carta levou-me mais longe do que esperava; mas
como a envio amanhã de manhã a Paris, quis aproveitar, para a
fazer partilhar um dia mais cedo da alegria deste seu amigo.

Castelo de..., 2 de Outubro de 17**, à noite.

CARTA C

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

- Minha amiga, fui ludibriado, traído, abandonado; estou


desesperado; Madame de Tourvel partiu. Partiu e eu não o soube!
E não estava lá para me opor à sua partida, para lhe censurar
tão indigna traição! Ah! Não julgue que a deixaria fugir; ela
teria ficado; teria ficado nem que fosse forçado a recorrer à violência.
Mas quê! Na minha crédula tranquilidade, dormia sossegadamente:
dormia e o raio fulminou-me. Não, não compreendo
este abandono; devemos renunciar a compreender as mulheres.
Quando me lembro do dia de ontem! Que digo! Da noite

*..Sou justo, e não sou galanteador... Voltaire. Comédie de Nanrne.

até! Aquele olhar doce! Aquela voz tão terna! E a mão que apertou
a minha! E durante todo esse tempo projectava fugir de
mim! Oh! Mulheres, mulheres! Queixais-vos depois se alguém
vos engana! Sim, toda a perfídia que empregamos é um roubo
que vos fazemos.
Que prazer terei em vingar-me! Tornarei a encontrar essa
pérfida mulher e retomarei o meu domínio sobre ela. Se o amor
me bastou para descobrir o caminho, que não farei guiado pela
vingança. Ainda a hei-de ver a meus pés, tremendo e banhada
em lágrimas, pedindo-me perdão com aquela voz enganadora;
serei sem piedade.
Que faz agora, que pensa? Talvez se regozije por me ter
enganado e, fiel aos gostos do seu sexo, este prazer lhe pareça o
mais doce. O que não pôde a tão louvada virtude, conseguiu-o a
manha sem esforço. Insensato! Eu temia a sensatez dela; devia
antes temer a má fé.
E ser obrigado a engolir o meu ressentimento! Ousar apenas
mostrar uma terna dor, quando tenho o coração cheio de raiva!
Ver-me reduzido a suplicar outra vez a uma mulher rebelde, que
se furtou ao meu poder! Merecia eu ser humilhado a este ponto?
E por quem? Por uma mulher tímida, sem prática destas lutas.
De que me vale ter-lhe conquistado o coração, tê-la abrasado
pelo fogo do amor, ter elevado até ao delírio a perturbação dos
sentidos, se, tranquila no seu refúgio, ela pode hoje orgulhar-se
mais da sua fuga do que eu das minhas vitórias? Suportarei isto?
A minha amiga não pode acreditar em tal; não tem de mim ideia
tão humilhante!
Mas que fatalidade me liga a esta mulher? Não há centenas
que desejam as minhas atenções? Que se apressariam a corresponder-me?
E mesmo que não se comparem a esta, a atracção
da variedade, o encanto de novas conquistas, o prestígio do seu
número, não oferecerão também doces prazeres? Por que correr
atrás de quem nos foge e desprezar os que nos procuram? Ah!
Porquê?. .. Ignoro-o mas não posso sentir de maneira diferente.
Não existe para mim felicidade. ou repouso se não possuir
esta mulher que odeio e amo com fúria igual. Só poderei suportar
a minha vida a partir do momento em que disponha da sua.
Então, tranquilo e satisfeito, vê-la-ei, por sua vez, entregue aos
tormentos que me sacodem nesta hora; e criarei ainda mil outros.
Quero que a esperança e o temor, a desconfiança e a tranquilidade,
todos os males inventados pelo ódio, e todos os bens
concedidos pelo amor, possuam o seu coração, e aí se alternem
segundo o meu desejo. Há-de chegar esse momento... Mas
quantos trabalhos ainda! Como ontem estive perto e hoje me
sinto afastado! Como aproximar-me? Não ouso tentar qualquer
movimento; para tomar uma decisão seria preciso estar
mais calmo, e o sangue ferve-me nas veias.
O que aumenta o meu tormento é o sangue-frio com que
todos respondem às minhas perguntas sobre este acontecimento
e sobre a causa, e tudo o que me parece tão extraordinário.
Ninguém sabe nada nem procura saber: nem teriam falado nisso,
se eu consentisse que se falasse doutra coisa. Madame de
Rosemonde, que visitei no seu quarto logo de manhã quando
soube a notícia, respondeu-me, com a calma da sua idade, que
se tratava da continuação natural da indisposição que Madame
de Tourvel tivera ontem; que ela receara uma doença e preferira
ir para casa. Achava muito natural e teria feito o mesmo, afirmou-me.
Como se pudesse haver qualquer coisa de comum entre
ambas!, entre esta, a quem não resta senão a morte, e a outra,
encanto e tormento da minha vida!
Madame de Volanges, que julguei primeiro cúmplice, parece
afinal ofendida por não ter sido consultada sobre esta partida.
Estou satisfeito, confesso, por ela não ter tido o prazer de
me dar um desgosto. Isto prova que ela não possui inteiramente,
tal como eu temia, a confiança da amiga; sempre é uma inimiga
a menos. Como se felicitaria se soubesse que era de mim que
fugiam! Como estaria inchada de orgulho se isso tivesse acontecido
devido aos seus conselhos! Como se sentiria importante!
Meu Deus, como a odeio! Oh, recomeçarei com a filha; quero
moldá-la segundo a minha fantasia; e creio que ficarei aqui algum
tempo. Pelo menos, as poucas reflexões que fiz levam-me a
esta conclusão.
Não acha que; depois desta decisão tão viva, a ingrata deve
recear a minha presença? Se pensou que podia segui-la, certamente
me proibiu a entrada; e não quero nem acostumá-la a
isso, nem sofrer a humilhação. Prefiro dizer-lhe que fico aqui;
rogar-lhe-ei que volte; e quando estiver persuadida da minha
ausência, apresentar-me-ei; veremos como reage a esta entrevista.
Mas é preciso adiá-la para lhe aumentar o efeito, e não sei se
terei paciência para isso: abri umas vinte vezes a boca durante o
dia para pedir os meus cavalos. Mas conseguirei dominar-me;
comprometo-me a receber a sua resposta aqui; peço-lhe só,
minha bela amiga, que ma não faça esperar.
O que me poderia contrariar mais seria não saber o que se
passa; mas o meu criado, que está em Paris, tem possibilidade
de acesso junto da criada de quarto e portanto poder-me-á ser
útil. Vou-lhe enviar instruções e dinheiro. Não se importará que
eu junte ambos a esta carta e que lhe peça o cuidado de lhos enviar
por um dos seus, com a ordem de lhos entregar pessoalmente.
Tomo esta precaução porque o tolo tem o hábito de
nunca receber as cartas que lhe escrevo, quando elas lhe ordenam
qualquer coisa que o mace; e, neste momento, não me parece
tão apaixonado pela sua conquista como eu o desejaria.
Adeus, bela amiga; se tiver ideia feliz, qualquer meio de
apressar a marcha, diga-me. Já mais de uma vez senti quanto a
sua amizade me pode ser útil, sinto-o ainda neste momento:
porque fiquei mais calmo enquanto lhe escrevia; pelo menos,
falo a alguém que me compreende, e não aos autómatos junto
de quem vegeto desde manhã. Na verdade, quanto mais penso
mais acredito que só existimos você e eu no mundo, que tenhamos
qualquer valia.

Castelo de..., 3 de Outubro de 17 * *

CARTA CI

O VISCONDE DE VALMONT A AZOLAN, SEU CRIADO

(Junta à precedente)

Deves ser muito imbecil para, tendo partido daqui esta


manhã, não teres descoberto que Madame de Tourvel também
partia; ou, se o soubeste, para me não teres prevenido. De que
serve gastares o meu dinheiro a beber com os criados, e que em
vez de empregares o tempo a servir-me o desperdices a fazer a
corte às criadas de quarto, se apesar disso não fico mais bem
informado acerca do que se passa? Tanta negligência! Mas previno-te
de que, se te acontecer uma que seja neste caso, será a última
que terás ao meu serviço.
Informar-me-ás de tudo o que se passar em casa de Madame
de Tourvel: da saúde dela; se dorme; se está triste ou alegre; se
sai muitas vezes e onde vai; se recebe visitas, e quem; em que
passa o tempo, se se zanga com as criadas, especialmente com a
que veio com ela; o que faz quando está só; se quando lê, lê seguidamente
ou se interrompe a leitura para meditar; e o mesmo
quando escreve. Procura tornar-te amigo do criado que leva as
cartas para o correio. Oferece-te até para fazer esse recado em
vez dele; e quando aceitar não mandes senão as que te parecerem
indiferentes, e envia-me as outras, sobretudo as endereçadas
a Madame de Volanges, se alguma houver.
Procura ser ainda por algum tempo o amante feliz da tua
Júlia. Se ela tem outro, como julgaste, que consinta em se dividir;
e não te aflijas com escrúpulos ridículos: estarás no caso de
muitos outros, que valem mais do que tu. Se no entanto o teu
rival se tornar importuno, se, por exemplo, vires que ele ocupa
demasiado a Júlia durante o dia, e que por isso ela está menos
tempo junto da senhora, afasta-o de qualquer modo; ou procura
uma questão com ele; não temas as consequências, responderei
por ti. Não deixes essa casa. É pela assiduidade que se
nota e percebe tudo. Se por um acaso algum dos criados for
despedido, apresenta-te para o substituir como se já me não pertencesses.
Podes dizer nesse caso que me deixaste para procurar
uma casa mais tranquila e regrada. Faz o possível para que te
aceitem. Ficarás do mesmo modo ao meu serviço durante esse
tempo: será como em casa da Duquesa de...: e, ainda por cima,
Madame de Tourvel te virá a recompensar.
Se tivesses jeito e zelo estas instruções deviam bastar, mas
para suprir a ambos envio-te dinheiro. O bilhete junto autoriza-te
como verás a levantar vinte e cinco luíses do meu administrador;
porque tenho a certeza de que estás sem dinheiro. Empregarás
desta quantia o que for necessário para decidir Júlia a
estabelecer correspondência comigo. O resto será para beberes
com os criados. Quando o fizeres, não esqueças que não são os
teus prazeres que eu quero pagar, mas os teus serviços.
Acostuma Júlia a observar e a contar-te tudo, mesmo o que
lhe pareça demasiado minucioso. Vale mais que ela escreva dez
frases inúteis do que omita uma com interesse; e muitas vezes o
que parece indiferente não o é. Como é necessário que possa ser
informado imediatamente, se acontecer qualquer coisa que te
pareça importante, assim que tenhas recebido esta carta mandarás
Filipe fixar-se em...1 com um cavalo; aí ficará até nova ordem;
haverá uma muda em caso de necessidade. Para a correspondência
corrente, bastará o correio.
Tem cuidado em não perder esta carta. Relê-a todos os dias,
não só para te certificares de que não te esqueceste de nada, mas
também para teres a certeza de ainda a possuires. Faz enfim
tudo o que é preciso, quando se tem a honra da minha confiança.
Não terás de que te arrepender se eu ficar satisfeito contigo.

Castelo de..., 3 de Outubro de 17 * *

CARTA CII

A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE

Ficareis muito admirada, senhora, ao saberdes que parto de


vossa casa assim tão precipitadamente. Parecer-vos-á extraordinária
esta atitude: mas a vossa surpresa aumentará ainda, quando
souberdes quais os motivos! Achareis talvez que, ao confiar-vo-los,
não respeitei como devia a tranquilidade tão necessária
à vossa idade; que me afasto até dos sentimentos de veneração
que a tantos títulos vos são devidos. Ah! senhora, perdão, mas o
meu coração está oprimido, e precisa de expandir a sua dor no
seio duma amiga simultaneamente doce e prudente: quem poderia
ele escolher senão vós? Considerai-me como vossa filha.
Tende para comigo toda a bondade maternal; imploro-vos. Os
meus sentimentos por vós talvez possam justificar as minhas
súplicas.
Onde está o tempo em que, inteiramente devotada a sentimentos
louváveis, não conhecia ainda aqueles que, lançando a
alma na perturbação que sinto agora, nos roubam a força de os
combater no momento exacto em que impõem esse dever? Ah!
Esta viagem fatal perdeu-me...
Que vos posso dizer? Amo, sim, amo loucamente. Ai! Esta

* Aldeia a meio caminho de Paris ao castelo de Madame de Rosemonde.

palavra que escrevo pela primeira vez, esta palavra tanta vez
desejada sem ser obtida, pagaria com a vida a doçura de a poder
dizer uma só vez àquele que ma inspira; e contudo devo sem
cessar abster-me de tal! Ele vai ainda duvidar dos meus sentimentos;
julgar-se-á com direito a queixar-se. Sou tão infeliz!
Por que não lê ele no meu coração com a mesma facilidade com
que aí reina? Sim, seria menos infeliz, se ele soubesse como sofro;
mas mesmo vós, a quem o revelo, não fazeis senão ainda
uma leve ideia da minha dor.
Dentro de poucos momentos vou fugir e afligi-lo. Julgar-se-á
ainda perto de mim, e já eu estarei longe: à hora a que nos
costumávamos ver todos os dias, estarei num local aonde nunca
veio, aonde não devo permitir que venha. Os preparativos estão
todos feitos; tenho tudo em frente dos meus olhos; não os posso
repousar sobre nada que não me anuncie a cruel partida. Está
tudo pronto, excepto eu. E quando mais o coração se recusa,
mais me prova a necessidade de me submeter a esta decisão.
Submeter-me-ei sem dúvida; antes morrer do que viver culpada.
De resto, sinto que já o sou; salvei apenas a sensatez, a
virtude já desapareceu. Não é preciso confessar-vos; o que ainda
me resta, devo-o apenas à generosidade dele. Entontecida
com o prazer de o ver, de o ouvir, com a doçura de o sentir junto
de mim e com a felicidade de poder fazer a dele, encontrava-me
sem recursos e sem forças; mal podia ainda lutar, já não resistia;
estremecia com o perigo sem conseguir fugir-lhe. Pois
bem! Viu a minha dor e teve piedade de mim. Como não o adorar?
Devo-lhe mais do que a vida.
Ah! Se ao ficar junto dele eu tivesse apenas que temer por
ela, podeis crer que nunca me afastaria. De que me serve a vida
sem ele? Não seria para mim uma felicidade perdê-la? Condenada
a provocar eternamente a infelicidade de ambos; a não ousar
queixar-me, nem consolá-lo; a defender-me todos os dias dele e
de mim própria; a pôr todos os meus cuidados em fazer-lhe mal,
quando afinal desejaria consagrá-los à sua felicidade: viver assim,
não serão mil mortes? Eis todavia o meu destino. Suportá-lo-ei
no entanto, não me faltará a coragem. Recebei vós, a
quem escolho por mãe, este juramento.
Recebei igualmente aquele que faço de nunca vos ocultar
nenhuma das minhas acções; recebei-o, suplico-vos; peço-vo-lo
como um auxílio precioso: obrigada assim a dizer-vos tudo,
sentirei como se estivesse sempre na vossa presença. A vossa virtude
substituirá a minha. Nunca consentirei, sem dúvida, em
corar diante de vós, e retida por esse freio poderoso, ao mesmo
tempo que adorei em vós a amiga tolerante e confidente da
minha fraqueza, venerarei ainda o anjo tutelar que me há-de
salvar da vergonha.
É já sentir muita o ter de fazer este pedido. Fatal efeito
duma presunçosa confiança! Por que não temi mais cedo esta
inclinação que senti nascer? Por que me lisonjeei de a poder
dominar ou vencer à minha vontade? Insensata! Muito mal
conhecia eu o amor! Ah! Se a tivesse combatido com mais cuidado,
talvez tivesse adquirido menos poder! E então talvez esta
fuga não fosse necessária; ou, submetendo-me embora a tão
dolorosa decisão, poderia não romper inteiramente uma ligação
que bastaria tornar menos frequente! Mas perder tudo duma só
vez, e para sempre! Ó minha amiga...! Mas quê? Mesmo ao escrever-vos,
desvairo ainda em desejos criminosos? Ah! Partamos,
partamos, e que ao menos estes erros involuntários sejam
expiados pelos meus sacrifícios.
Adeus, respeitável amiga; amai-me como filha, adoptai-me
como tal; e podes estar certa de que, apesar da minha fraqueza,
preferiria morrer a tornar-me indigna da vossa escolha.

3 de Outubro de 17* *, à uma hora da manhã.


CARTA CIII

MADAME DE ROSEMONDE A PRESIDENTE DE TOURVEL

Fiquei, minha querida amiga, mais aflita com a vossa partida


do que surpreendida pela causa; uma longa experiência e o
interesse que me inspirais bastaram para me esclarecer quanto
ao estado do vosso coração; e, para dizer tudo, nada me dissestes
na carta que eu não soubesse já. Se só por ela tivesse tomado
conhecimento, ignoraria ainda quem é aquele que amais; porque,
embora me faleis dele todo o tempo, não lhe escrevestes o
nome uma só vez. Mas não era preciso, sei bem de quem se trata.
Noto-o apenas, porque me lembrei que é sempre esse o estilo
do amor. Vejo que é ainda tal como no passado.
Pensei que nunca mais voltaria a recordações tão longínquas
e tão estranhas à minha idade. No entanto, desde ontem,
tenho pensado muito nelas, pelo desejo que sentia de encontrar
algo que vos pudesse ser útil. Mas que posso fazer além de vos
admirar e lamentar? Acho louvável a sensata decisão que tomastes:
mas assusta-me, porque concluo que a julgastes necessária;
e quando se está nesse ponto é difícil mantermo-nos afastadas
daqueles que o nosso coração chama sem cessar.
No entanto não deveis perder a coragem. Nada sei impossível
à vossa bela alma; e mesmo que um dia tivésseis a infelicidade
de sucumbir (que Deus não o permita!), acreditai-me, minha
querida amiga, ficar-vos-á ao menos a consolação de ter lutado
com todas as forças. E depois, o que a sensatez humana não
consegue, opera-o a graça divina quando quer. Talvez em breve
sejais socorrida; e a vossa virtude, experimentada nestes penosos
combates, sairá mais pura e brilhante. A força que não tendes
hoje, podeis recebê-la amanhã. Não deveis ter esperança
nela para vos repousardes, mas antes para vos encorajar a usar
todas as de que já podeis dispor.
Deixando à Providência o encargo de vos socorrer dum perigo
contra o qual nada posso, reservo-me o de vos ajudar e
consolar tanto quanto me for possível. Não aliviarei as vossas
penas, mas compartilhá-las-ei. É com esse fim que receberei de
boa vontade as vossas confidências. Sinto que o vosso coração
deve ter necessidade de se expandir. Abro-vos o meu; a idade
ainda não o gelou a ponto de ser insensível à amizade. Encontrá-lo-eis
sempre pronto para vos receber. Podeis vir com confiança
repousar-vos de cruéis agitações. Será fraco alívio para as
vossas dores, mas pelo menos não chorareis sozinha; e quando
esse amor infeliz, dominando-vos demasiado, vos obrigar a falar,
mais vale que seja comigo do que com ele. Eis que falo como
vós e creio que ambas não chegaremos a nomeá-lo; de resto
compreendemo-nos.
Não sei se faço bem em dizer-vos que ele me pareceu muito
atingido pela vossa partida; talvez fosse mais sensato não vos
falar nisso: mas não gosto dessa sensatez que faz afligir os amigos.
Sou forçada a não vos falar mais longamente. A vista débil,
a mão vacilante não me consentem longas cartas, quando é preciso
que eu própria as escreva.
Adeus, então, minha querida amiga; adeus, minha filha
adorável; sim, adopto-vos de boa vontade como minha filha;
tendes tudo o que é preciso para fazer o orgulho e o prazer
duma mãe.
Castelo de..., 3 de Outubro de 17 * *

CARTA CIV

A MARQUESA DE MERTEUIL A MADAME DE VOLANGES

Em verdade, minha querida e boa amiga, custou-me a evitar


um movimento de orgulho, ao ler a vossa carta. Quê! Pois honrais-me
com a vossa inteira confiança! E ides mesmo ao ponto
de me pedir conselhos! Ah! Sentir-me-ia muito feliz, se soubesse
merecer uma opinião tão favorável da vossa parte, e não devê-la
apenas à indulgência da amizade. De resto, qualquer que seja o
motivo, esta não é menos preciosa para o meu coração; e tê-la
obtido, é em minha opinião mais uma razão para procurar merecê-la.
Vou deste modo (mas sem pretender dar-vos um conselho),
dizer-vos livremente a minha maneira de pensar. Desconfio
dela porque é diferente da vossa: mas depois de vos expor as
minhas razões vós as julgareis; e se as condenardes submeto-me
antecipadamente ao vosso juízo. Terei pelo menos a sensatez de
me não julgar mais ponderada do que vós.
Se no entanto, e por uma só vez, a minha opinião fosse preferível,
a causa disso seriam as ilusões do amor maternal. E este
sentimento, visto que é louvável, encontrar-se-á por certo no
vosso coração. Foi ele com certeza que vos ditou a decisão que
estais a tomar! Se alguma vez vos acontecer errar é apenas na
escolha das virtude.
A prudência é, ao que me parece, a que se deve preferir,
quando temos nas nossas mãos o destino dos outros; e sobretudo
quando se trata de o fixar por um laço indissolúvel e sagrado
como o casamento. É então que uma mãe, simultaneamente
sensata e terna, deve, como tão bem dizeis, ajudar a filha com a
sua experiência. Ora, pergunto-vos, que deve fazer para o conseguir,
se não distinguir, para ela, entre o que agrada e o que
convém ?
Não será rebaixar a autoridade materna, não será reduzi-la
a nada, subordiná-la a um gosto frívolo, filho do capricho e pai
do delírio, cujo poder ilusório domina só os que o temem, e desaparece
logo que o desprezam? Por mim, confesso, nunca acreditei
nessas paixões arrebatadoras e irresistíveis com que, segundo
me parece, se convencionou desculpar de modo geral os
nossos desregramentos. Não concebo como um gosto, que nasce
num momento e logo morre, pode ter mais força que os princípios
inalteráveis do pudor, da honestidade e da modéstia; e
não compreendo que uma mulher que os trai possa ser mais justificada
pela sua pseudopaixão, que um ladrão pela paixão do
dinheiro, ou um assassino pela da vingança.
Oh! Quem se pode gabar de nunca ter tido que resistir? Mas
sempre tentei persuadir-me que para resistir basta querê-lo; e
até aqui, pelo menos, a minha experiência confirmou esta opinião.
Que seria a virtude sem os deveres que impõe? O seu culto
está nos nossos sacrifícios e a recompensa nos corações. Estas
verdades só podem ser negadas pelos que têm interesse em as
desconhecer; e que, já depravados, esperam iludir-se um momento,
tentando justificar a sua má conduta com más razões.
Mas podê-lo-emos recear quando se trata duma criança
simples e tímida, duma criança que é vossa filha, e cuja educação
modesta e pura fortificou as já felizes tendências naturais? É
no entanto a este temor, ouso dizer humilhante para vossa filha,
que quereis sacrificar o vantajoso casamento que a vossa prudência
preparara para ela! Gosto muito de Danceny; e há muito
tempo, como sabe, que pouco vejo o senhor de Gercourt: mas a
amizade por um e a indiferença que sinto pelo outro não me
impedem de sentir a enorme diferença que existe entre esses dois
partidos.
O nascimento é igual, concedo; mas um não tem fortuna, e
a do outro é tal que, mesmo sem o nascimento, teria bastado
para lhe abrir todas as portas. Confesso que o dinheiro não faz
a felicidade; mas devemos confessar também que ajuda muito.
Mademoiselle de Volanges é, como dizeis, rica por dois: no entanto,
as sessenta mil libras de renda de que ela gozará não são
já tanto quando se traz o nome de Danceny e quando se tem de
pôr e manter uma casa que lhe corresponda. Já não estamos no
tempo de Madame de Sévigné. O luxo absorve tudo; censuramo-lo,
mas é preciso imitá-lo; e o supérfluo acaba por nos privar
do necessário.
Quanto às qualidades pessoais que tendes, com razão, em
tão grande conta, nada há com certeza a censurar ao senhor de
Gercourt; e, quanto a ele, as provas estão feitas. É-me agradável
crer, e creio de facto, que Danceny em nada lhe é inferior; -mas
poderemos ter absoluta certeza? É certo que até aqui me pareceu
isento dos defeitos próprios da sua idade e, apesar das tendências
da época, mostra um gosto pelas boas companhias que
parece ser de bom augúrio; mas quem sabe se não deve esta
aparente sensatez à mediocridade da fortuna? Mesmo que se
não tema ser corrupto ou devasso, é preciso dinheiro para se ser
jogador ou libenino, e até se podem amar os defeitos de que
tememos os excessos. Enfim, não seria o único que procuraria
as boas companhias unicamente por não poder ocupar-se mais
a seu gosto.
Não digo (Deus me livre!) que creia tudo isto a seu respeito:
mas sempre seria correr um risco; e que censuras não faríeis a
vós mesma, se o acontecimento não fosse feliz! Que responderíeis
à vossa filha quando ela vos dissesse: " Mãe, eu era jovem e
sem experiência, era arrastada por um erro perdoável na minha
idade; mas o céu, prevendo a minha fraqueza, dera-me uma
mãe sensata, para tudo remediar e me acautelar desse mal. Por
que foi então que, esquecendo a vossa prudência, consentistes
na minha infelicidade? Seria eu que deveria escolher marido,
quando nada sabia do estado de casada? Mesmo que eu o quisesse
não tínheis o dever de mo impedir? Mas nunca tive esse
louco desejo. Decidida a obedecer-vos, esperei a vossa escolha
com respeitosa resignação; nunca me afastei da submissão que
vos devia, e hoje suporto os males qUe só caem sobre os filhos
rebeldes. A vossa fraqueza perdeu-me." Talvez o respeito lhe
sufocasse estas queixas, mas o amor materno adivinhá-las-ia: e
as lágrimas da vossa filha; apesar de disfarçadas, correriam do
mesmo modo sobre o vosso coração. Ser-vos-ia possível então
encontrar consolações? Seria possível encontrá-las nesse amor
louco, contra o qual vos deveríeis ter armado e pelo qual ao
contrário vos deixastes afinal seduzir?
Talvez, querida amiga, eu tenha contra a paixão uma prevenção
demasiado grande: mas julgo-a temível, mesmo no casamento.
Claro que não desaprovo que um sentimento honesto e
doce venha embelezar o laço conjugal e suavizar de algum
modo os deveres que impõem; mas não é a ele que compete
criar este último; não é à ilusão dum momento que cabe fazer a
escolha de toda a nossa vida. Com efeito, para escolher, é preciso
comparar; e como é isso possível quando um só objecto nos
ocupa; quando nem esse podemos conhecer, mergulhados como
estamos na embriaguez e na cegueira?
Encontrei, como podeis supor, várias mulheres atingidas
por esse perigoso mal; ouvi as confidências de algumas. De ouvi-las,
convencer-nos-emos que não há nenhuma que não tenha
como amante um ser perfeito: mas essas perfeições quiméricas
existem só na imaginação delas. A sua cabeça exaltada só vê
atractivos e virtudes; adornam à sua vontade aqueles que
amam; é o vestuário dum Deus, envergado muitas vezes por um
modelo abjecto: mas não importa o que ele é, depois de o terem
ornado, enganadas pela sua própria obra prostram-se para o
adorar.
Ou a vossa filha não ama Danceny, ou é vítima desta ilusão;
que é comum a ambos, se o seu amor é recíproco. O vosso motivo
para os unir para sempre reduz-se afinal à certeza de que eles
se não conhecem, se não podem conhecer. Mas, responder-me-eis,
o senhor de Gercourt e minha filha conhecem-se melhor?
Não, sem dúvida; mas pelo menos não se enganam a si próprios,
ignoram-se apenas. O que acontece neste caso entre dois
esposos, que julgo honestos? Cada um estuda o outro, observa-se
em relação a ele, procura e depressa encontra em que deve
ceder nos seus gostos e vontades para a tranquilidade comum.
Esses ligeiros sacrifícios fazem-se sem esforço, porque são recíprocos
e já previstos; em breve fazem nascer uma mútua benevolência;
e o hábito que fortifica todas as tendências que não
destrói, conduz pouco a pouco a essa doce amizade, a essa terna
confiança, que, juntas à estima, formam, ao que me parece, a
verdadeira e sólida felicidade.
As ilusões do amor podem ser mais doces, mas não sabemos
bem que são também menos duráveis? E que perigos não traz
consigo o momento que as destrói! É então que os mínimos defeitos
parecem chocantes e insuportáveis, pelo contraste que
formam com a ideia de perfeição que nos seduzira. Cada um
dos esposos pensa que só o outro mudou, e que ele é ainda o
mesmo que o outro apreciara afinal num momento de desvario.
Espanta-se de já não fazer nascer o encanto que ele próprio já
não sente; isto humilha-o: a vaidade ferida azeda os espíritos,
aumenta os agravos, produz o mal-estar, faz nascer o ódio; e os
frívolos prazeres são pagos por longos infortúnios.
Eis, minha querida amiga, a minha opinião sobre o assunto
que nos ocupa; não a defendo, exponho-a apenas; é a vós que
cabe decidir. Mas se persistis no vosso parecer, peço-vos que me
comuniqueis as razões que venceram as minhas; ficarei radiante
por me esclarecer junto de vós, e sobretudo por ficar descansada
quanto à sorte da vossa adorável filha, para quem desejo ardentemente
a felicidade, não só pela amizade que tenho por ela,
mas também pela que me une para sempre a vós.

Paris, 4 de Outubro de 17 * *

CARTA CV

A MARQUESA DE MERTEUIL A CECÍLIA DE VOLANGES

Ora bem, minha pequena, eis-te muito zangada e cheia de¨


vergonha! E o senhor de Valmont é um homem mau, não é?
Pois então! Ousa tratar-te como à mulher que mais amasse!
Ensina-te aquilo que morrias de desejo por saber! De facto, essas
coisas não se fazem. E tu, pelo teu lado, querias guardar a
tua pureza para o teu amado (que não abusa dela); do amor só
apreciavas os males e não os prazeres! Nada de melhor para dar
uma bela figura de romance. Paixão, infortúnio, virtude ainda
por cima, que belas coisas! Por vezes no meio desse cortejo
aborrecemo-nos deveras, mas representa-se bem a nossa parte.
Vejam como a pobre pequena é de lamentar! Tinha os olhos
pisados no dia seguinte! E que dirás quando forem os do teu
amante? Consola-te, belo anjo, não os terás sempre assim; nem
todos os homens são Valmonts. E depois, não ousar levantar
esses olhos! Oh! Tiveste razão, toda a gente leria neles a tua
aventura. Mas crê-me, se assim fosse, as nossas mulheres e raparigas
teriam o olhar mais modesto.
Apesar dos louvores que sou forçada a fazer-te, como vês,
concordemos no entanto que falhaste a tua obra-prima; devias
contar tudo à tua Mamã! Tinhas começado tão bem! Eis-te já
lançada, soluçando, nos seus braços; ela choraria também: que
cena patética! E que pena não a teres levado até ao fim! A tua
terna Mamã, arrebatada de contentamento, para reforçar a tua
atitude, ter-te-ia enclausurado para toda a vida num convento;
e aí amarias Danceny enquanto te agradasse, sem rivais nem
pecado: poder-te-ias desolar à tua vontade, e Valmont não iria,
seguramente, perturbar a tua dor com prazeres importunos.
Seriamente, admiro-me que, já feitos os quinze anos, se possa
ser tão criança! Tens razão em dizer que não mereces a minha
atenção. Gostaria no entanto de ser para ti uma amiga: terás
necessidade talvez duma amizade com a mãe que tens, e o marido
que ela te quer dar! Mas se não progrides, que queres que
façam de ti? Que se pode esperar, se o que costuma despertar o
espírito às raparigas parece, pelo contrário, tirar-to?
Se fores capaz de raciocinar um momento, depressa verás
que te deves felicitar em vez de te queixares. Mas és uma envergonhada
e isso inibe-te! Bem! Tranquiliza-te; a vergonha que o
amor causa é como a dor que ele desperta: experimentamo-la
uma só vez. Podemos ainda fingi-la, mas nunca mais a sentimos.
No entanto fica o prazer e já é alguma coisa. Julgo ter depreendido,
através da tua tagarelice, que para ti valerá mesmo muito.
Vamos, um pouco de boa fé. Então essa perturbação que te
impedia de agir, como dizias, que te fazia achar tão dificil defender-te,
que te fez ficar de certo modo zangada quando Valmont
partiu, era a vergonha que a causava, ou era o prazer? E as suas
maneiras de falar às quais não se sabe como responder, não
provinha tudo isso da maneira de ele agir? Ah, menina, mentes e
mentes à tua amiga! Isso não está bem. Mas deixemo-lo.
O que para toda a gente seria um prazer, e poderia ser apenas
isso, torna-se na tua situação uma verdadeira felicidade.
Com efeito, colocada entre uma mãe por quem te convém fazeres-te
amada, e um apaixonado pelo qual desejas sê-lo sempre,
como não vês que o único meio de obter estes propósitos tão
contrários é ocupar-te duma terceira pessoa? Distraída por uma
nova aventura, enquanto diante de tua mãe tens o ar de sacrificar
à submissão por ela um gosto que lhe desagrada, adquires
perante o teu amado a honra duma bela defesa. Assegurando-lhe
sem cessar o teu amor, nunca lhe concederás as últimas
provas. Estas recusas, tão pouco difíceis na situação em que te
encontras, não deixará ele de as tomar à conta de virtude; talvez
se queixe, mas amar-te-á ainda mais; e para ter o duplo mérito,
aos olhos de um de sacrificar o amor, aos do outro de lhe resistir,
terás apenas de fazer o sacrifício de lhe saborear os prazeres.
Oh, quantas mulheres perderam a reputação, quando com cuidado
a poderiam ter conservado se se tivessem podido servir de
semelhantes processos !
Esta solução que porponho não te parece a mais razoável, a
mais doce? Sabes o que ganhaste com a que tomaste? A tua mãe
atribuiu a redobrada tristeza a um redobrado amor, está indignada
e espera apenas ter a certeza para te castigar. Acaba de me
escrever; tentará tudo para obter de ti mesma a confissão. Talvez
vá até, segundo me disse, propor-te Danceny como esposo, e
isso só para te fazer falar. E se te deixasses seduzir por essa enganadora
ternura, respondendo segundo o teu coração, em breve
enclausurada por muito tempo, talvez para sempre, chorarias
com vagar a tua cega credulidade.
É preciso opor um outro a este ardil que ela quer empregar
contra ti. Deves começar por mostrar menos tristeza e fazer-lhe
crer que pensas menos em Danceny. Ela persuadir-se-á tanto
mais facilmente, quanto é esse efeito habitual da ausência; e ficar-te-á
muito grata porque encontrará uma ocasião para
aplaudir a sua prudência, que lhe sugeriu este processo. Mas se,
conservando ainda dúvidas, ela persistisse no entanto em experimentar-te,
se viesse a falar-te de casamento, deverias encerrar-te,
como filha bem educada, numa inteira submissão. Afinal
que arriscas? Para aquilo de que nos serve um marido, tanto faz
um como outro; e o mais incómodo é ainda menos importuno
do que uma mãe.
Uma vez contente contigo, a tua mãe casar-te-á enfim; e então,
mais livre nas tuas acções, poderás, a teu gosto, deixar
Valmont para tomar Danceny, ou mesmo conservar os dois.
Porque, toma atenção, o teu Danceny é gentil, mas é um homem
que se tem quando se quer e enquanto se quer; podemos deste
modo estar à vontade com ele. Não acontece o mesmo com
Valmont: é difícil guardá-lo; perigoso deixá-lo. Deve-se usar
com ele de muita habilidade, ou, quando a não temos, de muita
docilidade. Mas se conseguisses prendê-lo como amigo, seria
uma sorte. Colocar-te-ia na primeira fila das mulheres da moda.
É assim que se adquire uma posição no mundo, e não a corar e a
chorar, como quando as religiosas te obrigavam a jantar de joelhos.
Procura, se és sensata, reconciliar-te com Valmont, que deve
estar muito zangado contigo; e como é preciso saber emendar
os nossos erros, não receeis tomar a iniciativa; e aprenderás logo
que, se são os homens que ousam primeiro, somos quase sempre
nós as obrigadas a atraí-los em seguida. Tens um pretexto: não
deves guardar esta carta; peço-te e exijo-te que a entregues a
Valmont assim que a tiveres lido. Não te esqueças de a tornar a
lacrar antes. Primeiro, é preciso deixar-te o mérito do gesto que
vais fazer, e que não deve parecer ter-te sido aconselhado; e
depois, porque és tu a única pessoa no mundo de quem sou suficientemente
amiga para te falar como o faço.
Adeus, meu anjo; segue os meus conselhos, e dir-me-ás se
foram úteis.

P. S. - A propósito, esquecia-me... uma palavra ainda. Cuida


mais do teu estilo. Escreves ainda como uma criança. Vejo
bem qual a causa; dizes tudo o que pensas e nada do que não
pensas. Isso não tem importância entre nós, que nada devemos
esconder uma à outra: mas com os outros, e sobretudo com o
teu amado, parecerás sempre uma tontinha. Pensa que quando
escreves a alguém, é para essa pessoa e não para ti: deves antes
procurar dizer aquilo que lhe agradará, de preferência àquilo
que pensas.
Adeus, meu coração; beijo-te em vez de te ralhar, na esperança
de que te tornarás mais razoável.

Paris, 4 de Outubro de 17* *


CARTA CVI

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Maravilhoso, Visconde, e, pelo seu êxito, adoro-o perdidamente!


De resto, após a sua primeira carta, a continuação era de
esperar; por isso, não me espantou; e enquanto que, já orgulhoso
dos futuros sucessos, solicitava a devida recompensa, e me
perguntava "se eu estava pronta", percebi bem que não havia
necessidade de me apressar. Sim, por minha honra; lendo a bela
descrição dessa terna cena, que o tinha tão "violentamente
emocionado"; vendo o seu comedimento, digno dos mais belos
tempos da nossa cavalaria, repeti vinte vezes: "Eis um caso falhado !
"
Mas é que não podia ser doutra forma! Que quer que faça
uma pobre mulher que se lhe entrega, e de quem não se apoderou?
Por minha fé, num caso desses, é preciso ao menos salvar a
honra; foi o que fez a Presidente. Proponho-me, vendo o efeito
do procedimento dela, utilizá-lo por minha conta, na primeira
ocasião que se me apresente: mas prometo que se, tal como o
meu amigo, aquele por quem eu fizer toda a cena não souber
aproveitar-se dela, pode renunciar a mim para sempre.
Ei-lo pois reduzido a nada, e isto entre duas mulheres uma
já vencida, e outra que não pedia senão a mesma sorte! Pois
bem! Vai crer que me gabo, e dizer que é fácil profetizar depois
do acontecimento: mas juro-lhe que já o esperava. É que realmente
não tem o génio próprio da condição de libertino; sabe
apenas o que aprendeu e não é capaz de inventar. Assim, desde
que as circunstâncias não se adaptam às manhas usuais e é preciso
seguir caminho novo, fica desarmado como um rapazinho.
Enfim, criancice dum lado, regresso ao pudor do outro em virtude
de não acontecerem todos os dias, bastam para o desconcertar;
e nem sequer os sabe evitar ou remediar. Ah! Visconde,
visconde, ensina-me a não julgar os homens pelos seus êxitos; e
em breve se dirá a seu respeito: outrora teve mérito." E depois
de ter feito asneira sobre asneira, recorre a mim! Parece que eu
não tenho outra coisa a fazer senão dar-lhe remédio. Seria na
verdade trabalho de sobra.
Dessas duas aventuras, uma foi iniciada contra a minha
vontade, e por isso não me intrometo nela; quanto à outra,
como a aceitou por amabilidade para comigo, encarrego-me eu
dela. A carta que envio junto, e que entregará à pequena Volanges
depois de a ter lido, é mais do que suficiente para a fazer
regressar aos seus braços; mas, peço-lhe, dê alguma atenção a
esta criança, e façamos dela, de comum acordo, o desespero da
mãe e de Gercourt. Não receemos forçar as doses. Vejo claramente
que a garota não se assustará; uma vez realizados os nossos
desígnios, que se arranje como puder.
Desinteresso-me inteiramente dela. Tive desejo de a tornar
ao menos uma intrigante inferior, que representaria os segundos
papéis sob a minha direcção: mas não tem estofo; sofre duma
ingenuidade estúpida que não cedeu sequer ao específico que o
Visconde empregou, e contudo costuma dar resultado: é na
minha opinião, a doença mais perigosa que uma mulher possa
ter. Ela indica, sobretudo uma fraqueza de carácter quase sempre
incurável e que se opõe a tudo; de maneira que, se procurássemos
formar a rapariguinha para a intriga, criaríamos apenas
mais uma mulher fácil. Ora, não conheço nada mais vulgar do
que a facilidade da estupidez, que se entrega sem saber nem
como nem porquê, unicamente porque a atacam e não sabe resistir.
Mulheres desta espécie são puras máquinas de prazer.
Dir-me-á que não há outra coisa a fazer dela e que isso basta
para os nossos projectos. Seja assim! Mas não esqueçamos que
cedo toda a gente descobre as molas e os motores dessas máquinas;
assim, para nos servirmos desta sem perigo, é preciso
apressarmo-nos, parar oportunamente e destruí-la em seguida.
Na verdade, não nos faltarão os meios para nos desfazermos
dela, e Gercourt fá-la-á enclausurar quando quisermos. De facto,
quando ele já não puder duvidar do seu infortúnio, quando
este for bem público e notório, que nos importa que se vingue,
contanto que não se console? O que digo do marido, pensa-o
sem dúvida da mãe; por isso mãos à obra.
Esta posição, que julgo a melhor, decidiu-me a conduzir a
jovem um pouco mais depressa, como verá pela minha carta;
importa nada deixar nas suas mãos que nos possa comprometer.
Atente nisto, peço-lhe. Tomada esta precaução, encarrego-me
eu do moral; o resto é consigo. Contudo, se virmos que a
ingenuidade se corrige, estaremos sempre a tempo de mudar de
projecto. De qualquer forma seria preciso, mais dia menos dia,
ocuparmo-nos do que vamos fazer: em qualquer dos casos, as
canseiras não serão inúteis.
Sabe que as minhas quase o foram, e que a boa estrela de
Gercourt ia levando a melhor sobre a minha ciência? Madame
de Volanges teve um momento de fraqueza maternal! Queria
dar a filha a Danceny! Eis o que anunciava esse interesse mais
terno que o meu amigo notara "no dia seguinte". Seria ainda o
Visconde o causador de semelhante obra-prima! Felizmente a
mãe carinhosa escreveu-me e espero tê-la dissuadido. Na minha
carta falo tanto de virtude, e sobretudo lisonjeei-a tanto, que ela
deve achar que tenho razão.
Tenho pena de não ter tempo para copiar a carta a fim de o
edificar quanto à austeridade moral. Veria como desprezo as
depravadas capazes de terem um amante! É tão cómodo ser-se
rigorista nas palavras! Só pode ser prejudicial aos outros e não
nos estorva de forma alguma... E depois, não ignoro que essa
"virtuosa" mulher. teve as suas fraquezas como qualquer outra,
nos seus tempos, e não me desagradou humilhá-la ao menos na
sua consciência; isso consolou-me um pouco dos elogios que lhe
fiz à custa da minha. Foi isso que, na mesma carta, a ideia de
fazer mal a Gercourt me deu coragem para dizer bem dele.
Adeus Visconde; aprovo a decisão de permanecer aí. Não
tenho meios para apressar a sua marcha; mas convido-o a
distrair-se com a nossa comum aluna. Quanto a mim, apesar da
delicada citação que usou, bem vê que ainda é preciso esperar; e
concorda, sem dúvida, que não é minha a culpa.

Paris, 4 de Outubro de 17 * *.

CARTA CVII

AZOLAN AO VISCONDE DE VALMONT

Senhor:

Obedecendo às vossas ordens, fui, logo que recebi a vossa


carta, a casa do senhor Bertrand, que me entregou os vinte e
cinco luíses, como vós lhe havíeis ordenado. Ainda lhe pedi
mais dois para Filipe, a quem mandara partir imediatamente,
como o senhor tinha ordenado, e que estava sem dinheiro; mas
o vosso administrador não quis, afirmando que não recebera tal
ordem da vossa parte. Fui obrigado a dar-lhos do meu bolso, e
espero que o senhor terá a bondade de levar isso em conta.
Filipe partiu ontem à tarde. Recomendei-lhe muito que não
deixasse a estalagem, para o podermos encontrar se for preciso.
Fui logo a seguir a casa da senhora Presidente para ver a Júlia:
mas ela tinha saído e só falei ao La Fleur, por quem nada
consegui saber, porque desde a chegada que não vai ali senão à
hora das refeições. E o segundo criado que faz todo o serviço, e
o senhor sabe bem que a este eu não o conhecia. Mas comecei
hoje.
Voltei esta manhã a estar com a Júlia e ela ficou muito satisfeita
por me ver. Interroguei-a sobre a causa do regresso da patroa;
mas respondeu-me que nada sabia, e julgo que falava verdade.
Censurei-a por me não ter avisado da partida e ela afirmou-me
que só soubera naquela noite, quando fora deitar a
senhora; tanto assim que passara toda a noite a arranjar as coisas
e a pobre rapariga não chegou a dormir duas horas. Saíra
nessa noite do quarto da patroa depois da uma hora, e quando a
deixou punha-se esta a escrever.
De manhã, Madame de Tourvel, ao partir, entregou uma
carta ao porteiro do castelo. Júlia não sabia para quem: disse
que talvez fosse para o senhor, mas o senhor não me fala nisso.
Durante toda a viagem a senhora tinha um grande capuz na
cabeça, o que impedia que se lhe visse o rosto: mas Júlia julga
que ela chorou muito. Não disse uma palavra durante o caminho,
e não quis parar em...1, como fizera à ida; o que desagradou
a Júlia, que não tinha almoçado. Mas, tal como eu lhe disse,
manda quem pode.
À chegada, a senhora deitou-se; mas só ficou duas horas na
cama. Quando se levantou, mandou chamar o porteiro e deu-lhe
ordem de não deixar entrar ninguém. Nem sequer se arranjou.
Sentou-se à mesa para jantar, mas só comeu um pouco de
sopa e levantou-se logo. Levaram-lhe o café ao quarto, Júlia
entrou ao mesmo tempo. Viu que a patroa arrumava os papéis
da secretária e reparou que eram cartas. Apostaria que são as do
senhor; e das três que recebeu durante a tarde, houve uma que
conservou diante dela até à noite. Tenho a certeza de que se trata
ainda de alguma vossa. Mas por que regressou ela deste
modo? Espanta-me! Mas, enfim, com certeza que o senhor o
sabe, e não tenho nada com isso.
A senhora Presidente foi à tarde à biblioteca e escolheu dois
livros para o tocador: mas Júlia afirma que ela não leu nem um
quarto de hora em todo o dia e que não fez outra coisa senão ler
a tal carta, e pensar apoiada a uma mão. Como julguei que o
senhor ficaria contente por saber de que livros se trata, e Júlia
não sabia, consegui ir hoje à biblioteca, com o pretexto de a ver.
Só estava vazio o lugar de dois livros: um é o segundo volume
dos Pensées Chrétiennes; e n outro o primeiro dum livro que

* Ainda a mesma aldeia a meio do caminho.

tem por título Clarisse. Escrevo tal como lá estava: o senhor


saberá talvez do que se trata.
Ontem à noite, a senhora não jantou: só tomou chá. Chamou
cedo esta manhã; pediu logo os cavalos e foi antes das
nove a Feuillants, onde ouviu missa. Quis confessar-se mas o
seu confessor estava ausente e só voltará dentro de oito a dez
dias. Pensei que o senhor gostaria de saber isto.
A senhora voltou logo, almoçou, e pôs-se a escrever, e assim
esteve quase até à uma hora. Aproveitei a ocasião para fazer o
que o senhor tanto desejava: fui eu que levei as cartas ao correio.
Não havia nenhuma para Madame de Volanges; mas envio-lhe
uma que era para o senhor Presidente: pensei que seria a
mais interessante. Havia também uma para Madame de Rosemonde,
mas achei que o senhor a conseguiria ler quando quisesse,
e deixei-a seguir. De resto, o senhor saberá tudo porque a
senhora Presidente também lhe escreve. Verei de futuro todas
as cartas que eu quiser; porque é a Júlia que as entrega aos criados,
e ela prometeu-lhe que por amizade por mim, e pelo senhor,
fará de boa vontade o que eu lhe pedir.
Ela nem sequer quis o dinheiro que lhe ofereci: mas acho
que o senhor deverá querer recompensá-la com algum presente;
se o desejar e se for da sua vontade que eu me encarregue disso,
saberei achar facilmente algo que lhe agradará.
Espero que o senhor não ache deste vez que mostrei negligência
em servi-lo e desejo lavar-me das censuras que me fez. Se
não soube da partida da senhora Presidente, foi por causa do
meu zelo em servir-vos, pois foi devido a ele que parti às três da
manhã; desse modo não vi Júlia na véspera à noite, como de
costume, visto que fui dormir a Tournebride, para não acordar
no castelo.
Quanto ao que o senhor me censura de estar muitas vezes
sem dinheiro, em primeiro lugar é porque gosto de me vestir
convenientemente, como o senhor pode ver: depois porque preciso
corresponder ao fato que se traz: bem sei que devia economizar
um pouco para o futuro, mas confio inteiramente na generosidade
do senhor, que é tão bom patrão.
Quando entrar para o serviço de Madame de Tourvel, ficando
na mesma no do senhor, espero que não o exigirá de
mim. Era muito diferente em casa da senhora duquesa; eu não
poderia usar uma libré, e para mais uma libré de nobreza de
toga, depois de ter tido a honra de ser vosso criado. Para tudo o
resto, o senhor pode dispor daquele que tem a honra de ser, com
muito respeito e consideração, vosso humilde servidor.
Roux Azolan, criado.

Paris, 5 de Outubro de 17* * às onze horas da noite.

CARTA CVIII

A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE

Oh, minha indulgente mãe! Como vos agradeço e como me


era necessário a vossa carta! Li-a e reli-a sem cessar; não podia
arrancar-me dela. Devo-lhe os únicos momentos menos penosos
que passei desde a minha partida. Como sois boa! A sensatez e a
virtude sabem pois condoer-se da fraqueza! Tendes piedade dos
meus males! Ah, se os conhecêsseis!... São terríveis. Julgava ter
experimentado os males do amor; mas o tormento inexprimível,
que é preciso ter sentido para o poder avaliar, é separarmo-nos
daquele que amamos, separarmo-nos para sempre!... Sim,
a dor que hoje sinto voltará amanhã, depois de amanhã, toda a
minha vida! Meu Deus, como sou jovem ainda, e que longo
tempo me resta para sofrer!
Sermos nós próprios os autores da nossa infelicidade; rasgar
o coração com as próprias mãos; e enquanto sofro dores insuportáveis,
sentir a cada instante que as posso fazer cessar com
uma palavra, e que essa palavra é um crime!Ah, minha amiga!..
Quando tomei esta decisão tão penosa de me afastar dele,
esperava que a ausência me aumentaria a coragem e as forças:
como me enganei! Parece-me que pelo contrário acabei por destruí-las.
Precisava de combater mais, é verdade: mas mesmo resistindo,
nem tudo era privação; ao menos via-o algumas vezes;
muitas vezes, mesmo sem ousar olhá-lo, sentia os olhos dele
fixos em mim; sim, minha amiga, sentia-os, parecia que me
aqueciam a alma; e mesmo sem me atravessarem os olhos, chegavam-me
ao coração. Agora, na minha triste solidão, isolada
de tudo o que me é caro, frente ao meu infortúnio, todos os
momentos da minha triste existência são regados de lágrimas, e
nada me suaviza a amargura; nenhuma consolação se junta aos
meus sacrifícios; e os que até hoje fiz só serviram para tornar
mais dolorosos os que me resta fazer.
Ontem ainda, senti-o vivamente. Nas cartas que me trouxeram,
havia uma dele; estavam ainda a dois passos de mim e já
eu a reconhecera entre as outras. Levantei-me involuntariamente:
tremia, a custo escondia a minha emoção; e este estado
não deixava de me ser agradável. Quando fiquei só no momento
seguinte, essa enganadora doçura depressa se desvaneceu, e
ficou-me apenas mais um sacrifício a fazer. Com efeito, poderia
eu abrir essa carta que tanto ansiava por ler? Pela fatalidade que
me persegue, mesmo as consolações que parecem apresentar-se-me
impõem-me pelo contrário novas privações; e estas tornam-se
mais cruéis ainda pela ideia de que o senhor de Valmont
as compartilha.
Ei-lo enfim, esse nome que me ocupa sem cessar e que tanto
me custou a escrever; a quase censura que me fazeis a este propósito,
alarmou-me deveras. Suplico-vos que acrediteis que uma
falsa vergonha não alterou a minha confiança em vós; e por que
temeria nomeá-lo? Coro dos meus sentimentos e não do objecto
que os causa. Ah! Quem é mais digno do que ele de os inspirar!
E contudo não sei por que me é tão difícil escrever esse nome; e
mesmo desta vez, foi deliberadamente que o escrevi. Volto a ele.
Contais-me que vos pareceu vivamente afectado com a
minha partida. Que fez ele? Que disse? Falou em voltar a Paris?
Peço-vos que o afasteis dessa ideia tanto quanto puderdes. Se ele
me interpretou bem, não deve ter levado a mal a minha partida:
mas deve sentir também que é uma decisão sem apelo. Um dos
meus maiores tormentos é não saber o que ele pensa. Ainda
conservo a carta...; mas sois seguramente da minha opinião,
não a devo abrir.
É a vós, minha indulgente amiga, que devo não estar inteiramente
separada dele. Não quero abusar da vossa bondade; vejo
bem que as vossas cartas não podem ser longas: mas não negareis
duas palavras à vossa filha; uma para lhe manter a coragem,
a outra para a consolar. Adeus, minha respeitável amiga.

Paris, 5 de Outubro de 17* *

CARTA CIX

CECÍLIA DE VOLANGES A MARQUESA DE MERTEUIL


Foi só hoje, senhora, que entreguei ao senhor de Valmont a
carta que me destes a honra de escrever. Guardei-a durante quatro
dias, apesar do terror de que fosse encontrada, guardei-a
com muito cuidado; e quando a tristeza me assaltava, fechava-me
para a reler.
Vejo que o que julgava uma tão grande infelicidade não o é;
e devo confessar até que me dá muito prazer; de modo que isso
já quase me não aflige. Somente a ideia de Danceny ainda me
atormenta às vezes. Mas há muitos momentos em que nem sequer
penso nisso e o senhor de Valmont é tão amável!
Fiz as pazes com ele há dois dias; foi-me muito fácil; porque
ainda mal eu pronunciara duas palavras, já ele me dizia que se
eu tinha qualquer coisa a dizer-lhe iria nessa noite ao meu quarto,
e só tive de responder-lhe que me agradaria muito. E depois,
logo que entrou, pareceu-me tão contente comigo como se eu
nada lhe tivesse feito. Só depois é que me ralhou, mas muito
docemente; e duma maneira... Tal como vós; isso provou-me
que ele também tem muita amizade por mim.
Não seria capaz de dizer-vos quantas coisas engraçadas ele
me contou, coisas que nunca teria acreditado; especialmente
sobre a Mamã. Agradecer-vos-ia muito se me dissésseis se tudo
aquilo é verdade. O que é certo, é que eu não podia impedir-me
de rir; duma vez mesmo às gargalhadas, o que nos causou grande
medo: porque a Mamã podia ter ouvido; e se tivesse vindo,
que me teria acontecido? Desta vez é que me mandaria para o
convento!
Como devemos ser prudentes e o senhor de Valmont me
disse que por nada deste mundo queria correr o risco de me
comprometer, combinámos que de ora avante ele viria só abrir
a porta e iríamos para o seu quarto. Aí nada há a recear; já lá
estive ontem, e no momento em que vos escrevo aguardo que
me venha buscar. Agora, minha senhora, espero que me não
ralheis mais.
Há no entanto uma coisa que me surpreendeu muito na vossa
carta; é o que me mandais dizer acerca de Danceny e do senhor
de Valmont quando eu estiver casada. Parece-me que um
dia, na Ópera, me dissestes, pelo contrário, que, uma vez casada,
não poderia amar senão o meu marido, e que devia mesmo
esquecer Danceny; de resto, talvez não tenha percebido bem, e
prefiro que não seja assim, porque então, já não terei tanto receio
de me casar. Desejo-o até visto que terei mais liberdade; e
espero então arranjar maneira de pensar só em Danceny. Sinto
bem que só com ele serei verdadeiramente feliz: porque a sua
lembrança agora atormenta-me sempre, e só tenho felicidade
quando consigo não pensar nele, o que é muito difícil; e logo
que penso, volto a ficar desgostosa.
O que me consola um pouco é a certeza que me dais de que
Danceny me ficará amando mais devido a isto: mas tendes bem
a certeza... Oh, sim, seríeis incapaz de me enganar. É engraçado
que seja Danceny que eu ame, e que seja o senhor de Valmont...
Mas, pelo que me dizeis, é talvez uma sorte ! Enfim, veremos.
Não compreendi bem o que me dizeis a respeito da minha
maneira de escrever. Parece-me que Danceny acha as minhas
cartas bem tal como são. No entanto, sinto que nada lhe devo
dizer acerca do que se passa com o senhor de Valmont; nada
tendes a temer.
A Mamã ainda me não falou do meu casamento: mas não
nos preocupemos; quando me falar, visto que é para me apanhar,
prometo-vos que saberei mentir.
Adeus, minha boa amiga, agradeço-vos, e prometo-vos que
nunca esquecerei todas as bondades que tendes para comigo.
Devo acabar, é quase uma hora e o senhor de Valmont não tarda.

Castelo de..., 10 de Outubro de 17 * *

CARTA CX

O VISCONDE DE VALMONT À MARQUESA DE MERTEUIL

" Poderes do céu, eu tinha uma alma para a dor; dai-me outra
para a felicidade." Creio que é assim que se exprime o terno
Saint-preux. Mais bem dotado do que ele, possuo simultaneamente
as duas existências. Sim, minha amiga, sou ao mesmo
tempo muito feliz e muito desgraçado; e visto que lhe dou inteira
confiança, devo-lhe a dupla história das minhas dores e dos
meus prazeres.
Saiba pois que a ingrata devota continua a ser severa para
comigo. Já estou na quarta carta devolvida. Quarta, digo mal;
porque, tendo adivinhado desde a primeira devolução que outras
se lhe seguiriam, e não querendo desperdiçar tempo, tomei
a decisão de escrever os meus queixumes em lugares-comuns, e
de não datar: desde o segundo correio, é sempre a mesma carta
que vai e vem; mudo apenas o sobrescrito. Se a minha bela acabar
como acabam geralmente as belas, e se se enternecer um dia,
pelo menos de cansaço, guardará enfim a missiva, e então será a
altura de me pôr em dia. Bem vê que, com este novo género de
correspondência, não posso estar nem mais avançado, nem
mais informado do que no primeiro dia.
Descobri contudo que a volúvel criatura mudou de confidente:
tenho a certeza de que, desde a partida daqui, não veio
nenhuma carta dela para Madame de Volanges, ao passo que já
vieram duas para a velha Rosemonde; e como esta nada nos diz,
como já não abre a boca sobre "a sua querida filha", de quem
antes falava sem cessar, concluí que fora ela quem recebera a
confidência. Presumo que por um lado a necessidade de falar de
mim; e por outro lado a vergonha de expor, perante Madame de
Volanges, um sentimento há tanto tempo renegado, produziram
esta grande revolução. Receio ter perdido com a troca: porque
as mulheres quanto mais velhas, mais ríspidas e severas se tornam.
A primeira dir-lhe-ia mal de mim: mas esta dir-lhe-á ainda
pior do amor; e a sensível e pudibunda dama tem mais terror do
sentimento do que de mim.
A única maneira de saber o que se passa é, como vê, interceptar
a correspondência clandestina. Já dei ordem ao meu criado;
e aguardo a execução de dia para dia. Até lá, só posso agir
ao acaso: assim, há oito dias, revejo inutilmente todos os processos
conhecidos, os dos romances e os das minhas memórias
secretas; não encontro nenhum que convenha às circunstâncias
da aventura ou ao carácter da heroína. O difícil não seria introduzir-me
em casa dela, mesmo de noite, adormecê-la e transformá-la
numa nova Clarisse: mas depois de mais de dois meses de
cuidados e de trabalhos, recorrer a meios que me são estranhos,
arrastar-me servilmente pelo caminho dos outros, e triunfar sem
glória! :.. Não, ela não terá "os prazeres do vício e as honras da
virtude". Não me basta possuí-la, quero que ela se entregue.
Ora, para tal não basta penetrar até junto dela, mas sim fazê-lo
com o seu consentimento; encontrá-la só e na disposição de me
escutar; sobretudo fechar-lhe os olhos quanto ao perigo, porque,
se o vê, saberá vencê-lo ou morrer. Mas quanto melhor sei
o que é preciso fazer, mais reconheço as dificuldades, e ainda
que a minha amiga faça outra vez troça de mim, confesso-lhe
que o meu embaraço aumenta à medida que me ocupo cada vez
mais do caso.
A cabeça ficar-me-ia tonta, creio, sem as felizes distracções
que me dá a nossa comum aluna; é a ela que devo o ter ainda
alguma coisa a fazer que não elegias.
Acredita que a rapariguinha estava de tal modo furiosa, que
se passaram três longos dias antes que a sua carta produzisse
efeito completo? Eis como uma só ideia falsa pode estragar o
mais agradável dos temperamentos!
Enfim; só no sábado é que veio andar à roda de mim, e balbuciar-me
algumas palavras; pronunciadas no entanto tão baixo
e abafadas de tal maneira pela vergonha, que era impossível
ouvi-las. Mas o rubor que causaram fez-me adivinhar o sentido.
Até aqui tinha-me mantido sobranceiro: mas amaciado por um
tão agradável arrependimento, consenti em encontrar-me nessa
mesma noite com a linda penitente; e esta graça da minha parte
foi recebida com todo o reconhecimento devido a uma tão grande
mercê.
Como nunca perco de vista os seus projectos e os meus, resolvi
aproveitar a ocasião para conhecer ao certo o valor desta
criança e também para lhe apressar a educação. Mas, para continuar
este trabalho com mais liberdade, tive necessidade de
mudar o local dos nossos encontros; porque um pequeno gabinete,
que separa o quarto da sua aluna do da mãe, não lhe inspirava
suficiente segurança para a deixar manifestar-se à vontade.
Prometera a mim mesmo provocar "inocentemente" algum ruído
susceptível de lhe causar o receio bastante para a decidir a
escolher, de futuro, um asilo mais tranquilizador; ela poupou-me
o trabalho.
A pequena gosta de rir; e, para lhe agradar, decidi-me, nos
intervalos, a contar-lhe todas as aventuras escandalosas que me
passavam pela cabeça; para as tornar mais picantes e prender-lhe
a atenção, atribuí-as todas à Mamã dela, que me deliciei
desta forma a galardoar de vícios e de ridículos.
Não era sem motivo que tinha tomado esta decisão: de facto
não havia melhor maneira de encorajar a tímida aluna e de
lhe inspirar ao mesmo tempo o mais profundo desprezo pela
mãe. Já há muito tinha notado que, se este meio nem sempre é
necessário para seduzir uma rapariga, é indispensável, e muitas
vezes até o mais eficaz, quando a queremos depravar; porque
aquela que não respeita a mãe não se respeitará a si própria:
verdade moral que acho tão útil, que me foi bem fácil fornecer
um exemplo em apoio do preceito.
No entanto, a sua aluna, que não pensava na moral, sufocava
de riso a cada instante; e enfim, uma vez, ia quase rebentando
às gargalhadas. Não tive dificuldade em lhe fazer crer que
tinha sido "um barulho horrível". Fingi um grande medo que
ela facilmente compartilhou. Para que ela se lembrasse bem,
não permiti que o prazer nascesse de novo, e deixei-a três horas
mais cedo que de costume; combinámos também, ao despedir-nos,
que a partir do dia seguinte seria no meu quarto que nos
encontraríamos:
Já aqui a recebi duas vezes; e neste curto intervalo a aprendiza
tornou-se quase tão sabida como o mestre. Sim, na verdade,
ensinei-lhe tudo, até mesmo as complacências! Omiti apenas
as precauções.
Ocupado toda a noite, ganho desta forma o benefício de
dormir uma grande parte do dia; e como não há neste momento
no castelo companhia que me atraia, limito-me a aparecer no
salão durante uma hoca. Tomei mesmo, a partir de hoje, a decisão
de comer no meu quarto, e não tenciono deixá-lo a não ser
para pequenos passeios: Estas excentricidades são levadas à
conta do meu estado de saúde. Declarei que estava ligeiramente
indisposto; anunciei também um pouco de febre. Tenho apenas
de falar com uma voz lenta e apagada. Quanto à alteração do
meu rosto, confie na sua aluna. "O amor providenciará."1

* Regnard, Folies Amoureuses.

Ocupo o ócio pensando nos meios de reconquistar à minha


ingrata as vantagens que perdi, e também a escrever uma espécie
de catecismo da depravação para uso da minha pupila. Divirto-me
a designar tudo pelo termo técnico: e rio antecipadamente
da interessante conversa que daqui resultará entre ela e
Gercourt, na noite de núpcias. Nada mais agradável do que a
ingenuidade com que ela se serve já do pouco que sabe desta língua!
Ela não imagina que se possa falar doutra forma. Esta
criança é realmente sedutora! O contraste entre a ingénua candura
e a linguagem descarada não deixa de fazer efeito, e, não
sei porquê, agora só me agradam as coisas extravagantes.
Talvez me abandone demasiado a esta, visto que comprometo
o tempo e a saúde: mas espero que a minha fingida doença,
além de me salvar do tédio do salão, ainda me possa ser de
qualquer utilidade junto da austera devota, cuja virtude de tigre
se alia contudo à doce sensibilidade! Não duvido que já esteja
instruída deste grande acontecimento, e gostava imenso de saber
o que ela pensa; tanto mais que apostaria de bom grado que
não deixará de se atribuir as honras. Regularei o meu estado de
saúde pela impressão que produzir sobre ela.
Ei-la, minha bela amiga, ao corrente dos meus problemas
como se fora eu próprio. Desejo ter em breve notícias mais interessantes
para lhe transmitir, e, peço-lhe que o creia, no prazer
que prometo a mim mesmo, conto muito com a recompensa que
espero de si.

Castelo de..., 11 de Outubro de 17

CARTA CXI

O CONDE DE GERCOURT A MADAME DE VOLANGES

Parece que tudo está tranquilo nesta região, minha senhora;


e esperamos, dum dia para o outro, a licença de voltar a França.
Espero que não duvidareis que desejo sempre com o mesmo
ardor regressar e atar os laços que me deverão unir a vós e a
Mademoiselle de Volanges. No entanto o duque de..., meu
primo, a quem sabeis bem que devo obrigações, acaba de me
participar a sua chamada a Nápoles. Manda-me dizer que tenciona
visitar Roma e ver, no caminho, a parte da Itália que lhe
falta conhecer. Exorta-me a acompanhá-lo nessa viagem que
durará aproximadamente seis semanas ou dois meses. Não devo
ocultar-vos que me seria agradável aproveitar esta ocasião, pois
bem vejo que uma vez casado não terei tempo para mais ausências
do que as exigidas pelo serviço. Talvez seja, aliás, mais conveniente
adiar o casamento para o Inverno; pois só então todos
os meus parentes estarão reunidos em Paris, e principalmente o
marquês de..., - a quem devo a esperança de vir a pertencer à
vossa família. Apesar destas considerações, os meus projectos a
este respeito subordinar-se-ão inteiramente aos vossos; e se preferirdes
o que combinámos em primeiro lugar, renunciarei a
estes meus planos. Peço-vos somente que me façais saber o mais
depressa possível as vossas intenções a este respeito. Esperarei a
vossa resposta aqui e só por ela regularei o meu procedimento.
Sou com todo o respeito, minha senhora, e com todos os
sentimentos que convêm a um filho, o vosso muito humilde, etc.

Conde de Gercourt

Bastia, 10 de Outubro de 17

CARTA CXII

MADAME DE ROSEMONDE A PRESIDENTE DE TOURVEL

(Ditada)

Só agora recebi, minha querida filha, a vossa carta de 1/11, e


as doces censuras que contém. Confessai que tivestes vontade de
me fazer ainda mais; e que se vos não tivésseis lembrado de que
éreis minha filha, ter-me-íeis ralhado a valer. Teríeis sido no
entanto bem injusta! Era o desejo e a esperança de vos poder
responder eu própria que me faziam adiar todos os dias; e vedes
que ainda hoje sou obrigada a servir-me da mão da minha criada
de quarto. O maldito reumatismo voltou-me; anichou-se
desta vez no braço direito e estou mesmo maneta. Eis de que vos
serve, jovem e fresca como sois, ter uma amiga tão velha! Pagais
pelos meus incómodos.
Logo que as dores me dêem um pouco de descanso, prometo
conversar longamente convosco. Entretanto dir-vos-ei apenas
que recebi as vossas duas cartas, que teriam duplicado, se
tal fosse possível, a minha terna amizade por vós; e que nunca
deixarei de compartilhar intensamente tudo o que vos diz respeito.
O meu sobrinho também está um pouco indisposto, mas
sem gravidade, nada de inquietante; um ligeiro incómodo, que,
ao que me parece, lhe afecta mais o espírito do que a saúde.
Quase não o vemos.
O afastamento dele e a vossa partida tiraram a alegria ao
nosso grupo. A pequena Volanges sobretudo não diz uma palavra
e boceja desalmadamente durante todo o dia. Especialmente
de há alguns dias para cá, dá-nos a honra de adormecer profundamente
logo após o jantar.
Adeus, minha querida filha; serei sempre para vós a amiga,
a mãe, e até a irmã, se a avançada idade me permitisse tal título.
Enfim, estou-vos ligada pelos mais ternos sentimentos.
Assinada: Adelaide, em nome de Madame de Rosemonde.

Castelo de.. ., 14 de Outubro de 17* *.


CARTA CXIII

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Creio que devo preveni-lo, Visconde, que começam a falar


de si em Paris; reparam na sua ausência e já se começa a adivinhar
a causa. Assisti ontem a um jantar muito concorrido, onde
se disse positivamente que estava preso na aldeia por um amor
romanesco e infeliz; logo a alegria se pintou no rosto de todos
os invejosos dos seus êxitos e de todas as mulheres que desprezou.
Se me acreditar, não deixará aumentar estes murmúrios
perigosos e virá destruí-los imediatamente com a sua presença.
Pense que, se uma vez deixar perder a ideia de que se lhe não
resiste, em breve sentirá que lhe resistem com efeito mais facilmente;
e que os seus rivais lhe perdem o respeito e ousam combatê-lo:
qual de entre eles se não julga mais forte que a virtude?
Sobretudo pense que, na multidão de mulheres de que se vangloriou,
todas as que não possuiu vão tentar elucidar o público,
enquanto as outras procurarão enganá-lo. Enfim, conte com ser
julgado tão abaixo do seu valor, como até agora o foi acima.
Volte, Visconde, não sacrifique a reputação a um capricho
pueril. Cumpriu todos os nossos planos em relação à pequena
Volanges; quanto à sua Presidente, não será, parece-me, permanecendo
a dez léguas dela que se libertará dessa fantasia. Julga
que ela o irá procurar? Talvez já se se não se lembre de si, ou só
se recorde para se felicitar de o ter humilhado. Ao menos aqui,
poderá achar ocasião para reaparecer com brilho, e bem precisa
disso; e mesmo que se obstine na sua ridícula aventura, não vejo
em que o seu regresso o possa prejudicar; antes pelo contrário.
Com efeito, se a sua Presidente o "adora" como tantas vezes
me disse, e tão poucas provou, a sua única consolação e prazer
deve ser agora falar de si, saber o que faz, o que diz, o que pensa,
tudo enfim que lhe diga respeito. Estas misérias tornam-se
importantes em relação às privações que se sofrem. São as migalhas
de pão que caem da mesa do rico: este desdenha-as; mas o
pobre recolhe-as avidamente e alimenta-se delas. Ora, a pobre
Presidente recebe agora todas essas migalhas, e quantas mais
tiver, menos pressa terá em ceder ao apetite do resto.
Para mais, visto que lhe conhece a confidente, não duvidará
que cada carta contenha um pequeno sermão, e tudo o que ela
julga próprio para corroborar a sensatez e fortificar a virtude.
Para quê, pois, deixar a uma recursos para se defender e à outra
para o prejudicar?
Não que eu seja da sua opinião quanto à perda que julga ter
sofrido com a mudança de confidente. Em primeiro lugar,
Madame de Volanges odeia-o, e o ódio é sempre mais engenhoso
e clarividente do que a amizade. A virtude da sua velha tia
não se empregará nem um só instante a denegrir o querido sobrinho;
porque a virtude também tem fraquezas. Para mais os
seus receios partem duma observação absolutamente falsa.
Não é verdade que as mulheres quanto mais velhas, mais
rispidas e severas se tornam. É dos quarenta aos cinquenta anos
que o desespero de ver no rosto fanar-se, a raiva de se sentirem
obrigadas a abandonar as pretensões e prazeres a que estão ainda
presas, tornam quase todas as mulheres azedas e hipócritas.
Precisam desse longo intervalo para fazer por inteiro esse grande
sacrifício: mas uma vez consumado, dividem-se todas em
duas classes.
A mais numerosa é a das mulheres que, nunca tendo tido
mais do que beleza e juventude, caem numa apatia imbecil de
que só acordam por causa do jogo ou de algumas práticas de
devoção; estas são sempre ameaçadoras, muitas vezes impertinentes,
às vezes um pouco intriguistas, mas raramente más.
Nem se pode dizer se essas mulheres são ou não severas: sem
ideias e sem consistência, repetem, sem compreender e indiferentemente,
tudo o que ouvem dizer e conservam-se por si
próprias absolutamente nulas.
A outra classe, muito mais rara, mas verdadeiramente preciosa,
é a das mulheres que, tendo tido um carácter e não desprezando
alimentar a razão, sabem criar-se uma existência
quando a da natureza lhes falta; e tomam o partido de enfeitar o
espírito com os ornatos que dantes empregavam para o corpo.
Estas têm geralmente uma sã maneira de julgar, o espírito ao
mesmo tempo sólido, alegre e gracioso. Substituem as graças
sedutoras por uma bondade que prende, e ainda por uma alegria
cujo encanto aumenta em proporção com a idade: é assim
que conseguem aproximar-se de juventude e fazer-se amar por
ela. Mas então, em vez de serem, como o seu amigo diz, rispidas
e severas, o hábito da indulgência, as longas reflexões sobre a
natureza humana, e enfim, as recordações da juventude, os únicos
laços que ainda as prendem à vida, colocá-las-iam talvez
demasiado perto da facilidade.
O que lhe posso dizer é que tendo sempre procurado as senhoras
idosas, de quem cedo achei útil a aprovação, encontrei
muitas para quem me atraía tanto a inclinação como o interesse.
Fico por aqui; porque como o meu amigo agora se inflama
tão depressa e de forma tão moralona, tenho medo que se apaixone
subitamente pela sua velha tia e que vá com ela a sepultar
no túmulo onde afinal o Visconde já vive de há uns tempos a
esta parte. Volto pois ao que me interessa.
Apesar do encantamento em que está com a colegialzinha,
não creio que ela pese qualquer coisa nos seus projectos. Achou-a
à mão de semear, apossou-se dela: ainda bem! Mas não se
trata verdadeiramente duma inclinação. Nem sequer é, vendo
bem, um verdadeiro prazer: o meu amigo possui-lhe apenas o
corpo! Já não falo do coração, pois duvido que se preocupe com
isso: mas nem sequer lhe ocupa o espírito. Não sei se deu conta
disso, mas tenho a prova na última carta que ela me escreveu;
envio-lha para que veja com os seus próprios olhos. Repare que,
quando fala de si, é sempre o senhor de Valmont; que todas as
ideias, mesmo as que lhe faz nascer, conduzem-na sempre a
Danceny e a este não chama senhor, mas simplesmente Danceny.
É assim que ela o distingue de todos os outros; e mesmo
quando se entrega a si, é apenas dele que se torna íntima. Se tal
conquista lhe parece sedutora, se os prazeres que ela oferece o
prendem, é certamente modesto e pouco exigente! Admito que a
guarde para si; entra até nos nossos projectos. Mas acho que
isso não vale qualquer espécie de incómodo; deveríamos ter
também algum domínio sobre ela e não permitir, por exemplo,
que se aproxime de Danceny senão depois de lho termos feito
esquecer um pouco.
Antes de deixar de me ocupar de si, para chegar à minha
vez, quero ainda dizer-lhe que esse processo de se desculpar com
uma doença me parece demasiado conhecido e usado. De facto,
Visconde, que falta de imaginação! Também me repito às vezes,
como irá ter ocasião de ver; mas procuro variar os pormenores,
e, o que é mais importante, o êxito dá-me razão. Vou tentar
obter mais um e correr uma nova aventura. Concordo que esta
não será uma distracção, e morro de tédio.
Não sei porquê, mas desde a aventura de Prévan que Belleroche
se me tornou insuportável. Está de tal forma atencioso,
terno e cheio de veneração, que já não posso mais. A cólera dele,
no primeiro momento, agradou-me; no entanto tive de o

* Ver Carta CIX.

acalmar, porque deixá-lo agir seria comprometer-me: não haveria


maneira de o chamar à razão. Decidi pois mostrar-lhe mais
amor para pôr ponto final no assunto, mas ele tomou-me a sério,
e desde essa altura exaspera-me com o seu encantamento
eterno. Noto principalmente a insultante confiança que vai
depositando em mim e a segurança com que me considera sua
para sempre. Sinto-me verdadeiramente humilhada. Deve apreciar-me
bem pouco, para se julgar com bastante valor para me
prender! Pois não me dizia ultimamente que eu nunca amara
ninguém além dele? Oh, naquele momento foi preciso apelar
para toda a minha prudência para o não desiludir, contando-lhe
a verdade. Eis mais um cavalheiro que pretende direito exclusivo!
Concordo que é elegante e tem um belo rosto: mas no fundo
é apenas um recruta nestas coisas do amor. Chegou finalmente
o momento, é preciso que nos separemos.
Há já quinze dias que experimento, e tentei sucessivamente
a frieza, o mau humor, as discussões; mas o sujeito é tenaz e não
larga a presa facilmente: é preciso portanto tomar uma decisão
mais violenta; por isso levo-o para a minha casa de campo. Partimos
depois de amanhã. Irão connosco apenas algumas pessoas
desinteressadas e pouco perspicazes, e teremos quase tanta liberdade
como se estivéssemos sós. Então, sobrecarregá-lo-ei a
tal ponto de amor e carícias, viveremos de tal modo unicamente
um para o outro, que aposto que ele desejará ainda mais do que
eu o fim desta estada, que agora considera uma tão grande felicidade;
se não regressar mais farto de mim do que eu já estou
dele, poderá dizer, caro Visconde, que não percebo mais disto
que o meu amigo.
O pretexto para esta retirada é ter de me ocupar seriamente
com o meu processo, que irá finalmente a tribunal no começo
do Inverno. O que sem dúvida me convém, porque é muito desagradável
ter assim toda a fortuna em perigo. Não chego a estar
inquieta: primeiro porque a razão está do meu lado; todos
os meus advogados mo asseguram. E mesmo que assim não fosse,
era preciso ser bem inábil se não soubesse ganhar um processo
em que tenho por adversários apenas menores e o velho tutor!
Mas como é preciso não descurar nada num assunto tão
importante, terei efectivamente comigo dois advogados. Parece-lhe
triste esta viagem? No entanto, se ela me fizer ganhar o
processo e perder Belleroche, não lamentarei o meu tempo.
E agora, Visconde, adivinhe-lhe o sucessor; aposto cem contra um.
Ora! Como se eu não soubesse já que nunca acerta em
nada... Pois bem, é Danceny. Admirado? Porque, enfim, ainda
não estou reduzida à educação de crianças! Mas este merece que
se lhe faça excepção; tem todas as graças da juventude e de forma
nenhuma a frivolidade. A sua grande reserva é de molde a
afastar todas as suspeitas, e não se pode imaginar nada de mais
agradável na intimidade. Não que tenhamos chegado já a vias
de facto, por enquanto sou apenas a confidente; mas sob o véu
da amizade, creio ver-lhe uma grande simpatia por mim, e sinto
que vou retribuir. Seria na verdade grande lástima que tanto espírito
e delicadeza se fossem sacrificar e embotar junto dessa
imbecil da Volanges! Espero que ele se engane quando julga
amá-la: ela está tão longe de o merecer! Não que tenha ciúmes
dela; mas seria um crime e quero salvar Danceny. Peço-lhe pois,
Visconde: evite que durante a minha viagem ele se possa encontrar
com a sua Cecília, como tem ainda o mau hábito de a chamar.
Um primeiro amor tem sempre maior poder do que julgamos,
e não respondo por nada se ele a tornasse a ver agora; sobretudo
durante a minha ausência. Depois do meu regresso, tratarei
de tudo e responsabilizo-me pelo êxito.
Ainda pensei levá-lo comigo, mas sacrifiquei este plano à
minha habitual prudência; e depois tive medo que percebesse
qualquer coisa entre mim e Belleroche; ficaria desesperada se ele
tivesse a menor ideia do que se passa. Quero pelo menos que me
imagine pura e sem mácula; enfim, tal como seria preciso ser
para o merecer.

Paris, 15 de Outubro de 17* *

CARTA CXIV

A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE

Minha querida amiga, cedo a uma viva inquietação; e sem


saber se estareis em estado de me responder, não posso impedir-me
de vos interrogar. O estado do senhor de Valmont, que
vós considerais "sem perigo", não me deixou tão tranquila
como pareceis estar. Não é raro que a melancolia e o desejo de
solidão sejam sintomas precursores de alguma grave doença; os
sofrimentos do corpo, como os do espírito, fazem desejar o isolamento;
e muitas vezes censuramos o mau humor de quem
deveríamos antes lamentar os males.
Parece-me que ele devia pelo menos consultar alguém.
Como é que estando também tão doente, não tendes um médico
ao pé de vós? O meu, que já hoje vi, e não vos esconderei que o
consultei indirectamente, é de opinião que nas pessoas activas
essa espécie de apatia súbita não deve ser deixada sem vigilância;
e acentuou que as doenças só cedem quando tratadas a
tempo. Por que deixar correr esse risco a alguém que vos é tão
caro?
O que faz aumentar a minha inquietação é que há quatro
dias não recebo notícias dele. Meu Deus! Não me estareis a
enganar quanto ao seu estado? Porque teria deixado de me escrever
tão de repente? Se fosse somente o efeito da minha teimosia
em lhe devolver as cartas, creio que ele teria tomado mais
cedo essa decisão. Enfim, mesmo sem crer em pressentimentos,
desde há uns dias pesa sobre mim uma tristeza que me assusta.
Ah, talvez eu esteja na véspera da maior das infelicidades!
Não podeis calcular, e tenho vergonha de vo-lo contar,
quanto me custa não receber essas mesmas cartas, que afinal me
recusaria a ler. Tinha ao menos a certeza de que ainda pensava
em mim, e tocava qualquer coisa vinda dele. Não abri essas cartas,
mas chorava olhando-as: as minhas lágrimas eram mais
doces e mais fáceis; e só elas dissipavam um pouco a constante
opressão que sinto desde o meu regresso. Suplico-vos, minha
indulgente amiga,escrevei-me assim que puderdes; e entretanto
enviai-me todos os dias notícias vossas e dele.
Apercebo-me de que mal escrevi uma palavra em especial
para vós: mas conheceis os meus sentimentos, a dedicação sem
reservas, o terno reconhecimento que dedico à vossa amizade;
perdoareis a perturbação em que estou, devida às penas mortais,
ao terrível tormento de recear males de que sou talvez a
causadora. Meu Deus! Esta ideia desesperante persegue-me e
dilacera-me o coração; faltava-me esta infelicidade, e sinto que
estou destinada a sofrê-las todas.
Adeus, minha querida amiga: não me falteis com a vossa
amizade, e lamentai-me. Receberei hoje carta vossa?

Paris, 16 de Outubro de 1 7* *

CARTA CXV

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

É inconcebível, minha bela amiga, como as pessoas deixam


de se compreender assim que se afastam. Enquanto estive ao pé
de si, .tivemos sempre as mesmas reacções, a mesma maneira de
ver; e porque já não vos vemos há três meses, não chegamos a
acordo sobre nada. Quem tem a culpa? Certamente a Marquesa
não hesitaria em responder: mas eu, mais prudente, ou mais delicado,
prefiro calar-me. Responderei apenas à sua carta, e continuarei
a contar-lhe o que faço.
Em primeiro lugar, quero agradecer-lhe o conselho que me
dá acerca dos boatos que correm a meu respeito; mas não me
inquieto por enquanto; tenha a certeza de os fazer cessar em
breve. Esteja tranquila; reaparecerei mais célebre do que nunca
e cada vez mais digno de si.
Espero até que venham a atribuir qualquer mérito à aventura
da pequena Volanges, que despreza tão facilmente: como se
não fosse nada roubar, numa noite, uma rapariga ao bem-amado:
em seguida servir-se dela como de coisa sua, e sem
qualquer embaraço; obter dela aquilo que nem sequer se ousa
exigir a todas as profissionais, e isto, sem a perturbar no seu
terno amor, sem a tornar inconstante, nem mesmo infiel - porque,
com efeito, não lhe ocupo apenas a cabeça -, de maneira
que, depois de me passar a fantasia, a colocarei de novo nos
braços do bem-amado, sem que ela tenha dado por nada. Será
isto um feito vulgar? E, além disto, creia-me, uma vez saída das
minhas mãos, os princípios que lhe revelei continuarão a desenvolver-se;
e profetizo que a tímida aluna se lançará em breve em
largos voos, capazes de honrarem o mestre.
No entanto, se alguém preferir o género heróico, mostrarei a
Presidente, esse modelo de todas as virtudes, respeitada mesmo
pelos mais libertinos, a tal ponto que se tinha perdido até a ideia
de a atacar! Mostrá-la-ei, digo, esquecida dos deveres e da virtude,
sacrificando reputação e dois anos de prudência, para correr
atrás da felicidade de me agradar, para se embriagar com a de
me querer bem; julgando-se paga de tantos sacrifícios, com uma
palavra, um olhar, que nem sequer obterá sempre. Farei ainda
mais, abandoná-la-ei; e ou não conheço esta mulher ou não terei
sucessor. Ela resistirá à necessidade de consolação, ao hábito
do prazer, ao desejo de vingança. Enfim, terá vivido apenas
para mim; e quer a sua vida seja longa ou não, terei sido o único
a abrir e a fechar a barreira. Realizado este triunfo, direi aos
meus rivais: "Eis a minha obra, e procurem um segundo exemplo
em todo o século!"
Vai-me perguntar donde me vem hoje este excesso de confiança?
É que desde há oito dias sou confidente da minha bela;
ela não me diz os seus segredos, mas eu surpreendo-lhos. Duas
cartas dela para Madame de Rosemonde bastaram para me instruir,
e só lerei as outras por curiosidade. Aproximar-me dela
será mais do que suficiente para alcançar o êxito, e os meios
para tal já os encontrei. Vou imediatamente pô-los em acção.
Está curiosa, suponho? Mas não, para a castigar de não
acreditar nas minhas invenções, não as saberá. Merecia que lhe
retirasse radicalmente a minha confiança, pelo menos nesta
aventura; e, com efeito, sem o doce prémio atribuído por si ao
meu bom sucesso, não lhe voltaria a falar nela. Bem vê que estou
zangado. No entanto, na esperança de que se venha a corrigir,
limitar-me-ei a esta ligeira punição; e, regressando à indulgência,
esqueço por uns momentos os meus grandes projectos,
para conversar consigo acerca dos seus.
Ei-la portanto no campo, enfadonho como o sentimento e
triste como a fidelidade! E esse pobre Belleroche! Não se contenta
em o obrigar a beber a água do esquecimento, necessita
ainda de o atormentar! Como está ele? Suporta bem as náuseas
do amor? Divertir-me-ia se ele ainda por cima se prendesse mais
a si; teria curiosidade de ver que remédio mais eficaz conseguireis
empregar. Lamento-a de facto por ter sido obrigada a recorrer
a esse. Só uma vez, na minha vida, utilizei o amor como processo.
Tinha certamente um forte motivo, visto que se tratava
da Condessa de...; e vinte vezes, nos braços dela, tentei dizer-lhe:
"Minha senhora, renuncio ao lugar,que solicito, e permita-me
que abandone aquele que ocupo." E também, de todas as
mulheres que possuí, a única de quem tenho verdadeiramente
prazer em dizer mal.
Quanto ao seu motivo, acho-o, para dizer a verdade, dum
ridículo raro; e tinha razão em crer que não conseguiria adivinhar
o sucessor. Pois quê? É por Danceny que está com esse trabalho
todo? Ah! Cara amiga, deixe-o lá adorar a sua virtuosa
Cecília e não se meta nessas brincadeiras de crianças. Deixe-as
educarem-se junto das criadas, ou entregarem-se a pequenos
jogos inocentes umas com as outras. Para que se vai ocupar
dum noviço que não saberá nem possuí-la nem deixá-la, e a
quem será preciso ensinar tudo? Digo-lhe muito a sério, desaprovo
a escolha, e por muito secreta que venha a ficar, humilhá-la-á
pelo menos a meus olhos e perante a sua consciência.
Diz que começa a tomar interesse por ele: oca vamos, vamos,
engana-se certamente, e creio até que já descobri a causa
do seu erro. O seu fastio por Belleroche veio num tempo de escassez
e, não lhe oferecendo Paris por onde escolher, as suas
ideias, sempre demasiado vivas, concentraram-se sobre o primeiro
objecto que lhe apareceu. Mas pense que, no regresso,
poderá escolher entre mil; e se enfim receia cair na inacção
adiando, ofereço-me para a distrair.
Daqui até ao seu regresso, os meus grandes afazeres terão
terminado duma maneira ou doutra; e, certamente, nem a pequena
Volanges, nem a própria Presidente me ocuparão de tal
modo que não possa estar ao pé de si sempre que a minha amiga
o desejar. Talvez mesmo que, daqui até lá, já eu tenha reposto a
rapariguinha nas mãos do seu discreto apaixonado. Sem concordar,
por mais que a Marquesa diga, que não seja um gozo
atraente como tenho em projecto que ela guarde de mim toda a
vida uma ideia superior à de todos os outros homens, lancei-me
com ela num ritmo que não poderei manter por muito tempo
sem prejudicar a saúde; e já apenas me prende a ela o interesse
devido aos assuntos de família...
Compreende-me, não é verdade?... É que espero uma segunda
época para confirmar a minha esperança, e assegurar-me
de que realizei plenamente os meus projectos. Sim, bela amiga,
já possuo um indício de que o marido da minha aluna não correrá
o risco de morrer sem posteridade; e que o futuro chefe da
casa de Gercourt será apenas um rebento da de Valmont. Mas
deixe-me terminar segundo a minha fantasia esta aventura que
encetei a seu pedido. Pense que, se fizer de Danceny um inconstante,
tirará todo o picante à história. Considere finalmente
que, oferecendo-me para o representar junto de si, tenho, parece-me,
alguns direitos à preferência.
Como estou certo dela, não receei contrariar os seus objectivos,
concorrendo eu próprio para aumentar a terna paixão do
discreto apaixonado pelo primeiro e digno objecto da sua escolha.
Tendo ontem encontrado a sua aluna ocupada em lhe escrever,
e tendo-a primeiro arrancado desta doce ocupação para
outra mais doce ainda depois para ler a carta; e como a achei
fria e constrangida, fiz-lhe sentir que não era assim que ela consolaria
o seu namorado, e decidia-a a escrever outra ditada por
mim; na qual, imitando o melhor que pude o seu tom disparatado,
tratei de alimentar o amor do jovem com uma esperança
mais certa. A pequena estava toda encantada, disse-me, por se
ver a escrever tão bem, e daqui em diante serei eu o encarregado
da correspondência. Que não terei eu sido para Danceny? Fui,
sucessivamente, amigo, confiante, rival e amante! Ainda neste
momento, presto-lhe o serviço de o salvar dos perigosos tentáculos
da minha amiga. Sim, sem dúvida, perigosos; porque possuí-la
e perdê-la, é comprar um momento de felicidade por uma
eternidade de saudades.
Adeus, bela amiga; tenha a coragem de liquidar Belleroche
o mais depressa que puder. Deixe Danceny sossegado, e prepare-se
para me reencontrar e me dar de novo os deliciosos prazeres
da nossa primeira ligação.

P. S. - Felicito-a pela próxima decisão do grande processo, e


agradar-me-ia imenso que esse feliz acontecimento se desse sob
o meu reinado.

Castelo de..., 19 de Outubro de 17* "

CARTA CXVI

O CAVALEIRO DANCENY A CECÍLIA VOLANGES

Madame de Merteuil partiu esta manhã para o campo; assim,


minha encantadora Cecília, eis-me privado do único prazer
que me restava na sua ausência, o de falar de si à nossa amiga.
Permitiu-me há pouco tempo que lhe desse este título; apressei-me
a servi-me dele, pois parecia-me que assim me aproximava
mais de si. Meu Deus, como essa mulher é amável! E que encanto
lisonjeiro ela sabe dar à amizade! Na Marquesa parece que
este belo sentimento se embeleza e se fortifica com tudo o que
ela recusa ao amor. Se soubesse como ela gosta de si e como
gosta de me ouvir falar a seu respeito!... É sem dúvida isso o
que me prende a ela. Que felicidade poder viver unicamente
para ambas, passar incessantemente das delícias do amor à
doçura da amizade, consagrar-lhes toda a minha existência, ser
de qualquer forma o ponto de encontro da vossa recíproca afeição;
e sentir sempre que, ocupando-me com a felicidade duma,
trabalho igualmente para a da outra! Tem o dever de gostar
muito, muito, encantadora amiga, desta mulher adorável. A
afeição que tenho por ela, deve a Cecília dar-lhe ainda mais valor,
compartilhando-a comigo. Depois de ter experimentado o
encanto da amizade, desejo que o conheça também. Os prazeres
que não compartilhamos juntos, parece-me que os gozo apenas
por metade. Sim, minha Cecília, gostaria de cercar o seu coração
dos mais doces sentimentos; que cada uma das suas palpitações
a fizesse experimentar uma sensação de felicidade; e julgaria
ainda retribuir-lhe apenas uma parte da felicidade que receberia
de si.
Por que é que estes encantadores projectos são apenas uma
quimera da minha imaginação, e a realidade não me oferece senão
privações dolorosas e indefinidas? A esperança que me tinha
dado de nos vermos nesse castelo, compreendo que é preciso
renunciar a ela. Só me resta a consolação de me persuadir de
que na realidade tal lhe não é possível. E esquece-se de mo dizer,
de chorar comigo! Já por duas vezes as minhas queixas a este
respeito ficaram sem resposta. Ah! Cecília! Cecília! Creio que
me tem amor com todas as forças da sua alma, mas a sua alma
não é ardente como a minha! Por que não me cabe a mim afastar
os obstáculos? Por que não são os meus interesses que devo
proteger, em vez dos seus? Em breve lhe provaria que nada é
impossível ao amor.
Também não me informa quando deve terminar esta cruel
ausência. Ao menos aqui, ver-nos-íamos algumas vezes. Os seus
olhos maravilhosos reanimariam a minha alma abatida; a enternecedora
expressão deles tranquilizaria o meu coração, que
algumas vezes bem o precisa. Perdão, minha Cecília; este receio
não é uma suspeita. Acredito no seu amor, na sua constância.
Ah, muito infeliz seria se duvidasse. Mas tantos obstáculos, e
sempre renovados! Minha amiga, estou triste, muito triste. Parece
que a partida de Madame de Merteuil avivou em mim o
sentimento de todas as minhas dores.

Adeus, Cecília; adeus, minha bem-amada. Pense que o seu


amado se aflige, e que está na sua mão fazê-lo feliz.

Paris, 17 de Outubro de 17* *

CARTA CXVII

CECíLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY

(Ditada por Valmont)

Acredita pois, meu bom amigo, que é preciso censurar-me


para eu estar triste, quando sei que se aflige? E duvida que sofra
também por todas as suas dores? Compartilho consigo mesmo
as que lhe causo voluntariamente; e ainda por cima me entristeço
por ver que não me faz justiça. Oh! Isso não está certo. Bem
vejo o que o aborrece; é que nas duas últimas vezes em que me
pediu para vir aqui, nada lhe respondi a esse respeito; mas será
essa resposta tão fácil de dar? Julga que não sei que o que deseja
não me fica bem? E no entanto, se me é tão penoso recusar de
longe, que seria se estivesse presente? E depois, por o ter querido
consolar um momento, ficaria infeliz toda a minha vida.
Repare, nada lhe escondo por minha parte: eis as minhas
razões; julgue agora por si. Teria talvez feito o que quer se não
fosse o que lhe contei, que o senhor de Gercourt, causador de
todas as nossas dores, não chegará tão cedo; e que, como, de há
um tempo para cá, a Mamã me testemunha muito mais amizade
e eu, pelo lado, a acarinho quanto posso, nem sei o que não será
possível obtermos dela. E se pudermos ser felizes sem que eu
nada tenha a censurar-me, não será muito melhor? A acreditar
no que me dizem, os homens gostam menos das suas mulheres
quando elas os amaram muito antes de o serem. É esse temor
que me contém ainda mais que tudo o resto. Meu amigo, não
está seguro do meu coração, e não será sempre tempo?
Escute, prometo-lhe que, se não puder evitar a infelicidade
de casar com esse senhor de Gercourt, que já tanto odeio mesmo
antes de o conhecer, nada me impedirá depois de me dedicar
a si tanto quanto puder e de o amar acima de tudo. Como só me
interessa ser amada por si, e saberá bem que se procedo mal não
é por minha culpa, nada mais me importará; contanto que me
prometa amar-me sempre tanto como agora. Mas, meu amigo,
até lá, deixe-me continuar a proceder assim; e não insista mais
numa coisa que tenho razões para não fazer, e no entanto me
penaliza recusar-lhe.
Gostaria também que o senhor de Valmont não fosse tão
solícito por si; isso torna-me ainda mais triste Oh! Tem ali um
grande amigo, asseguro-lhe! Tudo o que faria se aqui estivesse,
ele o faz. Mas adeus, querido amigo; comecei a escrever-lhe
demasiado tarde e passei nesta tarefa uma parte da noite. Vou-me
deitar e recuperar o tempo perdido. Beijo-o, mas não me
ralhe mais.

Castelo de..., 18 de Outubro de 17* *

CARTA CXVIII

O CAVALEIRO DANCENY A MARQUESA DE MERTEUIL

Se acreditar no calendário, adorável amiga, há apenas dois


dias que estais ausente; mas, se acreditar no meu coração, há
dois séculos. Ora, sei-o por vós, é sempre no coração que devemos
acreditar; é pois já tempo que regresseis, todos os vossos
assuntos devem estar mais que tratados. Como quereis que me
interesse pelo vosso processo, se, perdido ou ganho, devo do
mesmo modo pagar-lhe as custas pelo tédio da vossa ausência?
Oh! Que vontade eu tenho de ralhar! E como é triste, com um
tão belo pretexto para estar zangado, não ter o direito de o mostrar!
Não vos parece que é uma verdadeira infidelidade, uma
negra traição, deixar este amigo longe de vós, depois de o ter
habituado à vossa presença? Por mais que consulteis os advogados,
nunca encontrarão justificação para este mau procedimento;
e, de resto, essa gente só dá razões, e não bastam razões para
responder aos sentimentos.
Por mim, tanto me assegurastes que era a razão que vos
ordenava essa viagem, que me indispusestes com ela. Já não a
quero ouvir; mesmo que me ordene que vos esqueça. E no
entanto essa razão é bem razoável; e na verdade não seria tão difícil
como pensais. Bastaria apenas desabituar-me de pensar em
vós: e nada aqui, asseguro-vos, me faria recordar de vós.
As nossas mais belas mulheres, as que são consideradas
mais desejáveis, estão tão longe de vós que só dariam uma pálida
ideia da vossa beleza. Creio mesmo que com olhos mais experimentados,
quanto mais parecidas convosco as julgamos a
princípio, maiores diferenças se acham depois; por mais que
façam, por mais que empreguem tudo o que sabem, falta-lhes
sempre o serem vós, e é aí que reside positivamente o encanto.
Infelizmente, quando os dias são longos, e se está desocupado,
sonha-se, constroem-se castelos de areia, inventam-se quimeras;
pouco a pouco a imaginação exalta-se: quer-se embelezar a
obra, junta-se tudo o que pode agradar, atinge-se por fim a perfeição;
e quando aqui se chega, o retrato conduz-nos de novo ao
modelo, e fica-se espantado por ver que afinal não se fazia outra
coisa senão pensar em vós.
Neste mesmo momento, sou ainda vítima dum erro idêntico.
Pensais talvez que foi para me ocupar de vós que me pus a
escrever-vos? Nada disso: foi pelo contrário, para vos esquecer.
Tinha cem coisas a dizer-vos, de que não éreis o objecto, e que,
como o sabeis, me interessam vivamente; foi contudo destas que
acabei por me desviar. Desde quando o encanto da amizade
suplanta o do amor? Ah! Se eu observasse melhor, talvez tivesse
uma pequena censura a fazer-lhe! Mas chiu! Esqueçamos esta
ligeira falta com medo de nela recair; e que a minha própria
amiga o ignore.
Também, porque não estais aqui presente para me responder,
para me conduzir ao bom caminho se me perco, para me
falar da minha Cecília, para aumentar, se é possível, a felicidade
que experimento ao amá-la, com a ideia tão doce ao meu coração
de que é a vossa amiga que amo? Sim, confesso, o amor que
ela me inspira tornou-se-me ainda mais precioso, desde que tivestes
a bondade de ser minha confidente. Gosto tanto de vos
abrir o coração, de ocupar o vosso com os meus sentimentos, de
os depositar nele sem reserva! Parece-me que os acarinho melhor
desde que vos dignastes acolhê-los; e depois, olhando-vos,
digo para comigo: "É nela que está guardada toda a minha felicidade.
Nada tenho de novo a comunicar-vos sobre a minha situação.
A última carta que recebi dela aumenta e confirma a minha
esperança, mas retarda-a ainda. No entanto as razões dela são
tão ternas e tão honestas, que não posso nem censurá-la nem
queixar-me. Talvez não vos seja possível compreender muito
bem o que vos digo; mas porque não estais aqui? Conquanto se
diga tudo à amiga, nem tudo se ousa escrever. Os segredos do
amor, sobretudo, são tão delicados que não é possível confidenciá-los
de qualquer maneira. Se algumas vezes permitimos que
se nos escapem, é preciso não os perder de vista e, de certo
modo, vê-los entrar no seu novo asilo. Ah, regressai pois, adorável
amiga; bem vedes que o vosso regresso é necessário. Esquecei
finalmente as mil razões que vos retêm onde vos encontrais
ou então dai-me uma que me ensine a viver onde não estais.
Tenho a honra de ser, etc.

Paris, 19 de Outubro de 17* *

CARTA CXIX

MADAME DE ROSEMONDE A PRESIDENTE DE TOURVEL

Se bem que ainda sofra muito, querida amiga, tento no entanto


escrever-vos eu própria, a fim de poder falar do que vos
interessa. O meu sobrinho continua na sua misantropia. Manda
regularmente saber notícias minhas todos os dias; mas nem uma
única vez veio ele próprio informar-se, se bem que lho tivesse
pedido: de forma que não o vejo mais do que se ele estivesse em
Paris. Encontrei-o no entanto esta manhã, onde menos o esperava.
Foi na capela, aonde desci pela primeira vez depois da minha
dolorosa doença. Soube hoje que há quatro dias ele vai regularmente
ouvir missa. Deus queira que isto dure!
Quando entrei, dirigiu-se-me e felicitou-me afectuosamente
pelas minhas melhoras. Como a missa começasse, abreviei a
conversa que tencionava retomar depois, mas desapareceu antes
que o pudesse encontrar. Não vos esconderei que o achei um
pouco mudado. Mas, querida filha, não me façais arrepender da
confiança na vossa sensatez com inquietações demasiado vivas;
e sobretudo podeis estar certa de que preferiria afligir-vos a
enganar-vos.
Se o meu sobrinho continuar a evitar-me, tomarei a decisão,
assim que estiver melhor, de o visitar no seu quarto e tratarei de
adivinhar a causa desta singular mania, que creio bem tenha
algo a ver convosco. Informar-vos-ei do que tiver sabido. Deixo-vos,
já não posso mexer os dedos: e além disso, se a Adelaide
soubesse que escrevi, ralhar-me-ia toda a noite. Adeus, querida
amiga.

Castelo de..., 20 de Outubro de 17* *

CARTA CXX

O VISCONDE DE VALMONT AO PADRE ANSELMO

(Bernardo do convento da Rua Saint-Honoré)


Não tenho a honra de ser conhecido por vós, senhor: mas
sei da inteira confiança que em vós tem a senhora de Tourvel e
sei, além disso, quanto essa confiança é dignamente merecida.
Creio portanto poder, sem ser indiscreto, dirigir-me a vós, para
obter um favor essencial, verdadeiramente digno do vosso santo
mister, e no qual o interesse da senhora de Tourvel se encontra
aliado ao meu.
Tenho em meu poder papéis importantes que lhe dizem respeito,
que não podem ser confiados a ninguém e que não quero
nem devo entregar senão nas próprias mãos dela. Não tenho
maneira de a informar disto, porque certas razões, que talvez
conheçais por ela, mas que não me julgo autorizado a comunicar-vos,
a levaram a tomar a decisão de recusar toda a correspondência
comigo: decisão que hoje voluntariamente confesso
não poder censurar, visto que ela não podia prever acontecimentos
que eu próprio estava bem longe de esperar e que apenas
foram possíveis pela força sobre-humana que é forçoso reconhecer
neles.
Peço-vos, pois, senhor, vos digneis informá-la das minhas
novas resoluções, e pedir-lhe da minha parte uma entrevista
particular, durante a qual possa, pelo menos em parte, reparar
os erros com as desculpas; e, com este último sacrifício, destruir
a seus olhos os únicos vestígios ainda existentes dum erro ou
duma falta que me tornou culpado para com ela.
Só após esta expiação preliminar ousarei depor a vossos pés
a humilhante confissão das minhas imensas loucuras; e implorar
a vossa mediação para uma reconciliação bem mais importante
ainda, e infelizmente mais difícil. Posso contar, senhor,
que não me recusareis as vossas atenções, tão necessárias e tão
preciosas? E que vos dignareis encorajar a minha fraqueza e
guiar os meus passos num caminho novo que desejo sinceramente
seguir, mas que confesso, corando, não conhecer ainda?
Espero a vossa resposta com a impaciência do arrependido
que deseja reparar o mal feito, e peço-vos que me acrediteis tão
reconhecido quão venerador,
Vosso muito humilde, etc.

P. S. - Autorizo-vos, senhor, caso o julgueis conveniente,


a comunicar esta carta por inteiro a Madame de Tourvel, a
quem me considerarei toda a vida no dever de respeitar e em
quem não deixarei jamais de venerar aquela de quem o Céu se
serviu para reconduzir a minha alma à virtude, por meio da tocante
visão da sua.

Castelo de..., 22 de Outubro de 17*.

CARTA CXXI

A MARQUESA DE MARTEUIL AO CAVALEIRO DANCENY

Recebi a vossa carta, meu jovem amigo; mas antes de vos


agradecer é preciso que vos ralhe e vos previna de que, se não
vos corrigirdes, não obtereis resposta para a próxima vez. Se
quereis ter a minha confiança, abandonai pois esse tom galanteador,
que é apenas gíria do amor, desde que não seja a expressão
dele. É esse o estilo da amizade? Não, meu amigo, cada sentimento
tem a linguagem que lhe é peculiar; servir-se de outra, é
disfarçar o pensamento que se exprime. Bem sei que as mulheres
vulgares nada entendem do que se lhes diz se não for traduzido,
de qualquer maneira, na gíria do costume; mas julgava merecer,
confesso-o, que me distinguísseis delas. Estou verdadeiramente
zangada, talvez mais do que deveria, por me terdes avaliado
mal.
Encontrareis pois na minha carta tudo o que falta na vossa:
franqueza e simplicidade. Dir-vos-ei de boa vontade, por exemplo,
que teria um grande prazer em vos ver, e que estou contrariada
por só ter à minha volta pessoas que me aborrecem, em
vez de outras que me agradam; mas vós, a esta mesma frase,
traduzi-la-eis assim: ensinai-me a viver onde não estais; de
maneira que quando estiverdes, suponho, junto da vossa amada,
não vos sentiríeis bem se eu não estivesse presente como terceiro
elemento. Que pena! E essas mulheres, a quem falta sempre
serem eu, achais por acaso que isso também falta à vossa
Cecília? Eis no entanto aonde conduz uma linguagem que, pelo
abuso que dela se faz hoje em dia, está ainda a baixo da gíria
dos cumprimentos, e se transforma cada vez mais num simples
protocolo em que se acredita tanto como no "muito-humilde-servidor" !
Meu amigo, quando me escreverdes, que seja para me dizer
a vossa maneira de pensar e sentir, e não para me enviar frases
que encontrarei, sem precisar de vós, mais ou menos bem ditas
no romance em moda. Espero que não vos zangareis com o que
vos digo, mesmo que verifiqueis um pouco de mau humor; porque
não nego que o tenha: mas para evitar até a suspeita do defeito
que vos censuro, não vos direi que este mau humor seja
talvez um pouco aumentado pelo afastamento em que me encontro
de vós. Parece-me afinal de contas que valeis mais que
um processo e dois advogados, e talvez até do que o atencioso
Belleroche.
Vede como em vez de vos desolardes com a minha ausência,
vos deveríeis felicitar; porque nunca vos tinha feito um tão belo
elogio. Creio que o exemplo me contagia e que desejo também
dizer-vos galanteios: mas não, prefiro continuar na minha franqueza;
é pois apenas ela que vos assegura da terna amizade que
tenho por vós, e do interesse que ela me inspira. É maravilhoso
ter um jovem amigo cujo coração está ocupado junto de outra.
Não é o sistema de todas as mulheres; mas é o meu. Parece-me
que nos entregamos com mais prazer a um sentimento do qual
nada se pode ter a recear: foi por isso que desde muito cedo passei
convosco ao papel de confidente. Mas escolhei as vossas
amadas tão jovens, que pela primeira vez me apercebi de que
começo a envelhecer: preparai-vos assim para uma longa carreira
de constâncias, e sinceramente desejo que seja recíproca.
Tendes razão em vos submeterdes às razões ternas e honestas
que, segundo dizeis, retardam a vossa felicidade. Uma defesa
prolongada é o único mérito que resta às que não resistem sempre;
e aquilo que eu acharia imperdoável em qualquer outra,
excepto numa criança como a pequena Volanges, seria o não
saber evitar um perigo, de que já foi suficientemente advertida
pela confissão que ela própria fez do seu amor. Vós, os homens,
não avaliais o que é a virtude, e quanto custa sacrificá-la! Mas
por pouco que uma mulher raciocine, ela deve saber que independentemente
da falta que comete, um momento de fraqueza é
para ela a maior das infelicidades; e não percebo como pode
haver alguma que se deixe conquistar, desde que tenha um
momento para reflectir.
Não deveis combater esta ideia, porque ela é que me prende
principalmente a vós. Salvar-me-eis dos perigos do amor; e se
bem que até aqui tenha sabido defender-me sem vós, consinto
em estar-vos reconhecida por tal, e amar-vos-ei mais e melhor.
E após isto, caro Cavaleiro, peço que Deus vos tenha na Sua
santa e digna guarda.

Castelo de. . ., 22 de Outubro de 17*

CARTA CXXII

MADAME DE ROSEMONDE A PRESIDENTE DE TOURVEL

Esperava, querida filha, poder finalmente acalmar as vossas


inquietações; e vejo com pesar que vou pelo contrário aumentá-las
de novo. Sossegai, no entanto; o meu sobrinho não está
em perigo; não se pode mesmo dizer que esteja verdadeiramente
doente. Mas passa-se certamente qualquer coisa de extraordinário
nele. Não compreendo absolutamente nada; mas saí do
quarto dele com um sentimento de tristeza, talvez até de medo,
que me censuro de vos fazer compartilhar, e acerca do qual não
posso no entanto impedir-me de conversar convosco. Eis o que
se passou: podeis estar certa que sou fiel, porque mesmo que eu
viva ainda outros oitenta anos, não esquecerei a impressão que
me fez essa cena tão triste.
Fui pois esta manhã aos aposentos do meu sobrinho: encontrei-o
a escrever, e cercado por uma multidão de montes de papéis,
que pareciam ser o objecto do seu trabalho. Estava de tal
forma entretido, que já eu estava no meio do quarto, ainda ele
não tinha voltado a cabeça para saber quem entrara. Assim que
me viu, notei que enquanto se levantava se esforçava por dar
uma certa compostura ao rosto, e talvez tenha sido isso mesmo
que me fez reparar com mais atenção. Para dizer a verdade, não
se tinha arranjado nem empoado; mas achei-o pálido e magro, e
sobretudo com a fisionomia transtornada. O olhar, que vimos
já tão vivo e tão alegre, estava triste e abatido; enfim, aqui entre
nós, não gostaria que o tivésseis visto assim: porque tinha um
aspecto comovente, e muito próprio, segundo creio, a inspirar
essa terna piedade, que é uma das mais perigosas armadilhas do
amor.
Se bem que abalada pelo que observava, comecei no entanto
a conversa como se não me tivesse apercebido de nada. Inquiri
primeiro da sua saúde, e sem me dizer que era boa, não se lamentou
no entanto que fosse má. Então queixei-me da sua ausência,
que tinha um pouco o aspecto de mania, e procurei juntar
um pouco de bom humor ao meu "sermão"; mas respondeu-me
apenas, e num tom compenetrado: ah mais um erro,
confesso... mas será reparado conjuntamente com os outros."
A expressão do rosto, ainda mais do que as palavras, desconcertou-me,
e apressei-me a dizer-lhe que estava a dar demasiada
importância a uma simples censura ditada pela amizade.
Começámos então a conversar tranquilamente. Declarou-me,
pouco depois, que talvez um assunto, "o caso mais importante
da sua vida", o chamasse em breve a Paris: mas como tive
medo de adivinhar o que era, querida, e que este intróito levasse
a uma confidência que não queria ouvir, não lhe fiz perguntas, e
contentei-me em dizer que esperava que as distracções lhe fossem
úteis à saúde. Acrescentei que desta vez não lhe faria nenhum
pedido, visto amar os meus amigos por eles próprios; a
esta simples frase, cerrando-me as mãos e falando com uma
veemência que não consigo reproduzir: "Sim, minha tia", disse-me,
"amai, amai muito um sobrinho que vos respeita e vos
adora; e, como dizeis, amai-o por ele próprio. Não vos preocupeis
com a sua felicidade, e não perturbeis com nenhum remorso
a eterna tranquilidade que espera fruir em breve. Repeti que
me perdoais e amais: sim, haveis de perdoar-me; conheço a vossa
bondade; mas como esperar a mesma indulgência daqueles
que ofendi tantas vezes?". Então curvou-se um pouco, para me
esconder, creio, os traços de dor que o timbre da voz traía contra
a vontade dele.
Mais comovida do que posso dizer-vos, levantei-me precipitadamente;
e sem dúvida notou o meu susto, porque imediatamente,
retomando a compostura, disse: "Perdão, perdão, senhora;
sinto que me perturbo contra minha vontade. Peço-vos
que esqueçais as minhas palavras e recordeis apenas o meu profundo
respeito. Não deixarei", acrescentou, "de ir junto de vós
renovar as minhas homenagens antes de partir". Pareceu-me
que esta última frase me convidava a terminar a visita; e de facto
retirei-me.
Mas quanto mais reflicto, menos percebo o que ele quis dizer.
Que assunto é este, que considera "o mais importante da
sua vida" ? Por que me pedia perdão? Donde lhe veio este enternecimento
involuntário com que me falava? Já formulei mil
vezes estas interrogações, sem conseguir responder-lhes. Nada
vejo nelas que se relacione convosco: no entanto, como os olhos
do amor são mais clarividentes que os da amizade, quis que
nada ignorásseis do que se passou entre mim e meu sobrinho.
Tive de me interromper quatro vezes para escrever esta longa
carta, que seria ainda mais longa se me não sentisse tão fatigada.
Adeus, minha querida filha.
Castelo de..., 25 de Outubro de 17"*

CARTA CXXIII

O PADRE ANSELMO AO VISCONDE DE VALMONT

Recebi, senhor Visconde, a carta com que me honrastes; e


ontem dirigi-me, conforme os vossos desejos, a casa da pessoa
em questão. Expus-lhe o objecto e os motivos da diligência que
me havíeis pedido para desempenhar junto dela. Apesar de
achar demasiado presa à sensata decisão que tomara, depois de
lhe ter demonstrado que se arriscava com a sua recusa a pôr um
obstáculo ao vosso feliz regresso e a opor-se assim aos projectos
misericordiosos da Divina Providência, acabou por consentir na
vossa visita, com a condição de que seria a última, e encarregou-me
de vos anunciar que estaria em casa na próxima quinta-feira,
28. Pede-vos que se esse dia vos não convier, a informeis
e lhe indiqueis um outro. A vossa carta será recebida.
No entanto, senhor Visconde, permiti-me que vos peça que
não adieis sem fortes razões, para que mais cedo vos possais
consagrar inteiramente às louváveis disposições que me afirmastes.
Pensai que o que se não apressa a aproveitar o momento
da graça se arrisca a que ela lhe seja retirada; que embora a
bondade divina seja infinita, a sua aplicação é regulada pela justiça;
e pode haver um momento em que o Deus de misericórdia
se transforme em Deus de vingança.
Se continuardes a honrar-me com a vossa confiança, peço-vos
que acrediteis que estarei às vossas ordens sempre que o
desejardes: e por maiores que sejam os meus afazeres, a minha
importante tarefa será sempre cumprir os deveres do santo ministério
a que me dediquei inteiramente; e o momento mais belo
da minha vida seria aquele em que visse os meus esforços serem
realçados pela bênção do Todo-Poderoso. Somos fracos e pecadores
e nada podemos por nós próprios!
Mas o Deus que vos chama tudo pode; e devemos também à
sua bondade, vós, o desejo constante de vos unirdes a Ele, e eu,
os meios de aí vos conduzir. E com o Seu socorro, espero convencer-vos
de que só a santa religião pode dar, mesmo neste
mundo, a felicidade sólida e durável que vãmente se procura na
fogueira das paixões humanas.
Tenho a honra de ser, com respeitosa consideração, etc.

Paris, 25 de Outubro de 17*

CARTA CXXIV

A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE

Tomada ainda do espanto em que se lançou a nova de que


ontem conhecimento, não esqueço, senhora, a satisfação
que ela vos deve causar, e apresso-me a dar-vos parte dela. O
senhor de Valmont já se não ocupa de mim nem do seu
amor; agora pretende apenas emendar, com uma vida mais edificante,
as faltas, ou antes, os erros da juventude. Fui informada
dessa resolução pelo padre Anselmo, a quem se dirigiu para de
futuro o guiar, e também para lhe conseguir um encontro comigo,
que segundo julgo terá como principal objectivo devolver-me
as minhas cartas que conservara até aqui, apesar do meu
pedido em contrário.
Só me resta, sem dúvida, aplaudir esta feliz transformação,
e felicitar-me se, tal como diz, pude de algum modo concorrer
para ela. Mas por que havia de ser eu o instrumento, e por que
me custaria isso o repouso da minha vida? Por que motivo seria
o meu infortúnio o preço da felicidade do senhor de Valmont?
Oh, minha indulgente amiga, desculpai este queixume. Sei que
não me cabe perscrutar os desígnios de Deus: mas enquanto eu
lhe suplico sem cessar, e sempre em vão, força para vencer este
meu desgraçado amor, Ele prodigaliza-a a quem a não pedia, e
deixa-me sem socorro, inteiramente entregue à minha fraqueza.
Mas abafemos murmúrios tão culpados. Bem sei que o filho
pródigo recebe, no regresso, mais graças do pai do que o filho
que nunca se ausentara. Como poderemos pedir contas Àquele
que nada nos deve? E mesmo que gozássemos perante Ele de
alguns direitos, quais poderiam ser os meus? Ousarei vangloriar-me
duma sensatez que só devo a Valmont? Salvou-me
como poderia queixar-me por sofrer por ele? Não: ser-me-ão
caros os meus sofrimentos, se são o preço da sua felicidade. Era
necessário que ele regressasse ao Pai. O Deus que o formou ama
com certeza a sua obra. Não criou esse ser encantador para fazer
dele um réprobo. Devo suportar a dor da minha audaciosa
imprudência; pois não devia eu compreender que, se me era
interdito amá-lo, nem sequer me devia permitir-me vê-lo?
O meu erro ou a minha desdita foi não ter aceitado durante
muito tempo esta verdade. Sois testemunha, minha querida e
digna amiga, de que me submeti a esse sacrifício, assim que o
reconheci necessário; mas para que ele fosse completo, faltava
só que o senhor de Valmont o não compartilhasse. Ousarei confessar-vos
que esta ideia é agora a que mais me atormenta?
Insuportável orgulho, que adoça os males que experimentamos com
aqueles que fazemos sofrer! Ah! Hei-de vencer este coração rebelde
e acostumá-lo às humilhações.
Foi sobretudo para conseguir isso que consenti em receber,
na próxima quinta-feira, a penosa visita do senhor de Valmont.
Será, então, o próprio a dizer-me que já não represento nada
para ele, que a frágil passageira emoção que nele despertara se
extinguiu inteiramente! Verei o seu olhar pousar-se sobre mim,
sem comoção, enquanto o medo de denunciar a minha me obrigará
a baixar os olhos. E receberei da sua indiferença essas
mesmas cartas que recusou durante tanto tempo às minhas insistentes
súplicas; devolvê-las-á como objectos inúteis que já lhe
não interessam; e as minhas mãos trémulas, ao receber esse despojo
vergonhoso, sentirão que ele lhe é entregue por uma mão
firme e tranquila! Enfim, vê-lo-ei afastar-se, afastar-se para
sempre, e os meus olhos segui-lo-ão, sem verem os seus voltarem-se
para mim.
Era preciso que suportasse tanta humilhação! Ah! Tentarei
ao menos torná-la útil, deixando-me penetrar pelo sentimento
da minha fraqueza. Sim, conservarei precisamente essas cartas
de que ele já não faz caso. Impor-me-ei a vergonha de as ler
todos os dias, até que as lágrimas lhes apaguem os últimos traços;
e as dele, hei-de queimá-las, porque estão contaminadas
com o perigoso veneno que corrompeu a minha alma. Oh! Mas

que é o amor, que nos faz até ter saudades dos perigos a que nos
expõe; e que sobretudo tememos sentir ainda, quando já o não
inspiramos! Deixemos esta paixão funesta, que só permite a
escolha entre a vergonha e a desgraça, e que por vezes as reúne;
que pelo menos a prudência substitua a virtude.
Como quinta-feira ainda está longe! Que pena não poder
consumar imediatamente esse doloroso sacrifício e esquecer-lhe
em seguida a causa e o desejo! Esta visita importuna-me; arrependo-me
de ter acedido. Oh! Para que precisa ainda ver-me?
Que representamos agora um para o outro? Se me ofendeu,
perdoo-lhe. Felicito-o e louvo-o por querer emendar as suas faltas.
Farei mais, imitá-lo-ei; e visto que fui seduzida pelos mesmos
erros, o exemplo dele ajudar-me-á. Mas se projecta fugir de
mim, por que começa por me procurar? Não está cada um de
nós empenhado em esquecer o outro? Ah! Será esse de hoje em
diante o meu único cuidado.
Se o permitirdes, minha respeitável amiga, será junto de vós
que me irei ocupar desse difícil trabalho. Se necessito socorro e
até mesmo consolação, só de vós os quero receber. Só vós sabeis
ouvir-me e falar ao meu coração. A vossa preciosa amizade
preencherá toda a minha existência. Nada me parecerá difícil
para secundar os cuidados que me dispensardes. Dever-vos-ei a
tranquilidade, a felicidade, a virtude; e o fruto das vossas bondades
será o de me tornardes digna de tudo isto.
Julgo que me dispersei muito nesta carta; presumo-o pela
perturbação em que estive sempre enquanto vos escrevia. Se
nela se encontrar algum sentimento de que eu deva corar, cobri-lo
com a vossa indulgente amizade. Confio inteiramente
nela. De vós não esconderei nenhum movimento do meu coração.

Adeus, minha respeitável amiga. Espero dentro de poucos


dias anunciar-vos a minha chegada.

Paris, 25 de Outubro de 17*.

QUARTA PARTE

CARTA CXXV

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Eis vencida essa mulher orgulhosa que ousara crer que me


podia resistir! Sim, minha amiga, tive-a, possuí-a inteiramente; e
desde ontem que nada mais tem a conceder-me.
Estou ainda demasiado cheio da minha felicidade para a
poder apreciar: espanto-me do encanto desconhecido que experimentei.
Será pois verdade que a virtude aumenta o valor duma
mulher, até no momento em que deixa de a ter? Mas não, releguemos
essa ideia pueril para as almas simplórias. Não se encontra
quase por toda a parte uma resistência mais ou menos
bem fingida ao primeiro triunfo? E já alguma vez tinha eu encontrado
o encanto de que falo? Contudo, não é o do amor;
porque, enfim, se junto desta mulher espantosa tive por vezes
momentos de fraqueza que se assemelhavam a essa paixão pusilânime,
soube sempre vencê-los e voltar aos meus princípios.
Mesmo que a cena de ontem me tenha, segundo suponho, levado
um pouco mais longe do que contava; mesmo que tenha partilhado
por um momento a perturbação e a embriaguez que inspirava,
essa ilusão passageira estaria dissipada presentemente;
e, no entanto, o mesmo encanto subsiste. Expermentaria até,
confesso-o, um prazer assaz doce em me entregar a ele, se isso
não me causasse uma certa inquietação. Seria eu, na minha idade,
dominado como um principiante por um sentimento involuntário
e desconhecido? Não: é preciso, antes de tudo, combatê-lo
e aprofundá-lo.
De resto, talvez já tenha entrevisto a causa! Comprazo-me
pelo menos com esta ideia, e gostaria que fosse verdadeira.
Na multidão de mulheres junto das quais desempenhei até
hoje o papel e as funções de amante, não tinha ainda encontrado
nenhuma que não tivesse pelo menos tanta vontade de se
" entregar como eu de a isso a forçar; tinha-me até habituado a
chamar pudibundas às que faziam apenas metade do caminho,
por oposição a tantas outras, cuja defesa provocante cobria
imperfeitamente os primeiros favores que tinham concedido.
Aqui, pelo contrário, encontrei a princípio uma prevenção
desfavorável, fundamentada depois nos conselhos e nas informações
duma mulher odienta, mas sagaz; uma timidez natural e
extrema que fortificava um pudor lúcido; um apego à virtude,
conduzida pela religião, e que contava já dois anos de triunfo; e,
para finalizar, iniciativas súbitas, inspiradas por estes diferentes
motivos, tendo por fim furtar-se à minha perseguição.
Não se trata, pois, como nas minhas outras aventuras
duma simples capitulação mais ou menos vantajosa, da qual é
mais fácil tirar proveito do que vaidade; é uma vitória completa,
arrancada por uma campanha penosa e resolvida definitivamente
por sábias manobras. Nada de espantar pois que este êxito,
devido apenas a mim, me seja mais precioso; e o acréscimo
de prazer que experimentei no triunfo, e que ainda sinto, é a
doce impressão do sentimento da glória. Acarinho esta maneira
de ver, que me poupa a humilhação de pensar que possa depender
de qualquer maneira da escrava que submeti: que não detenho
apenas em mim a plenitude da minha felicidade; e que a
faculdade de ma fazer gozar em toda a sua força esteja reservada
a tal ou tal mulher, com exclusão de qualquer outra.
Estas sensatas reflexões regularão toda a minha conduta
nesta importante ocasião; e pode estar certa de que não me deixarei
prender de maneira a não poder, a todo o momento, quebrar
a meu bel-prazer estes novos laços. Falo-lhe já da ruptura,
e ignorais ainda por que meios a ela adquiri direitos; leia, pois, e
veja a que se expõe a sabedoria quando tenta socorrer a loucura.
Estudava tão atentamente as minhas palavras e as respostas
, que obtinha, que espero reproduzi-las com uma exactidão que,
satisfaça.
Verá, pelas duas cópias de cartas aqui juntas, qual o medianeiro
que escolhera para me aproximar da minha bela, e com
que zelo a santa criatura se empenhou em nos unir. O que é preciso
saber também, e que eu tinha descoberto por uma carta,

* Cartas CXX e CXXIII.

interceptada como de costume, é que o receio e a pequena humilhação


de ser abandonada tinham perturbado um pouco a pudicícia
da austera devota; e tinham-lhe enchido o coração e a cabeça
de ideias que, lá por não terem sentido, nem por isso deixavam
de ser interessantes. Foi depois destes preparativos indispensáveis
que ontem, quinta-feira, 28, dia marcado e concedido
pela ingrata, me apresentei, escravo tímido e arrependido, em
casa dela, para sair mais tarde coroado vencedor.
Eram seis horas da tarde quando cheguei a casa da bela reclusa;
porque, desde o regresso, a sua porta tem estado fechada
a toda a gente. Tentou levantar-se quando fui anunciado; mas
os joelhos trémulos não lho permitiram: voltou a sentar-se imediatamente.
Como o criado que me tinha introduzido tivesse
qualquer serviço a fazer na sala, pareceu impacientar-se e preenchemos
este intervalo com os cumprimentos usuais. Mas para
não perder tempo numa ocasião em que todos os instantes eram
preciosos, examinei cuidadosamente o local; e marquei logo
qual seria o teatro da minha vitória. Poderia ter escolhido um
mais cómodo: porque neste mesmo quarto havia uma otomana.
Mas notei que em face dela estava um retrato do marido; e receei,
confesso-o, que, com esta mulher tão singular, um simples
olhar lançado por acaso para aquele lado bastasse para destruir
num ápice o resultado de tantos esforços. Ficámos finalmente
sós e entrei no assunto.
Depois de explicar, em poucas palavras, que o padre Anselmo
a devia ter informado do motivo da minha visita, queixei-me
do tratamento rigoroso a que fora submetido; e acentuei
particularmente o desprezo que me tinha sido testemunhado.
Defendeu-se, como esperava; e, como certamente calcula, apresentei
como provas a desconfiança e o medo que eu inspirara; a
fuga escandalosa que se seguira, a recusa de responder às minhas
cartas, de as receber até, etc., etc. Quando começou a justificação,
que seria bem fácil, julguei dever interrompê-la; e para
me fazer perdoar por esta brusquidão, cobri-a logo de lisonjas.
"Se tais encantos", recomecei eu, "produziram uma impressão
tão profunda sobre o meu coração, as vossas virtudes não fizeram
menos sobre a minha alma. Seduzido, sem dúvida, pelo
desejo de me aproximar, atrevi-me a julgar-me digno delas. Não
vos censuro por terdes sido de opinião diferente; mas castigo-me
pelo meu erro. Como o embaraço a forçasse ao silêncio,
continuei: "Desejei, senhora, ou justificar-me aos vossos olhos,
ou obter o vosso perdão pelos erros que me atribuís, a fim de
poder ao menos terminar com alguma tranquilidade uma vida a
que já não dou valor, desde que vos recusastes embelezá-la. "
Aqui tentou responder. "O meu dever não me permitia..."
E a dificuldade de terminar a mentira que o dever lhe exigia não
a deixou acabar a frase. Recomecei então no tom mais terno: "É
então verdade que foi de mim que fugistes?" - "Aquela partida
era necessária." - "E também que me afastais de vós?" - "Assim
é preciso." - "E para sempre?" - "É o meu dever." Desnecessário
se torna dizer-lhe que, durante este curto diálogo, a voz
da terna devota estava opressa e que os seus olhos não se erguiam
para mim.
Julguei dever animar um pouco esta cena esmorecente; assim,
levantando-me com ar de despeito, disse então: "A vossa
firmeza devolve-me a minha. Pois bem, senhora, ficaremos separados
- sim; mais separados até do que pensais: e tereis então
todo o tempo para vos felicitardes da vossa obra." Um pouco
,; surpreendida por este tom de censura, quis replicar. "A resolução
que haveis tomado", disse ela... "É apenas o efeito do desespero",
acrescentei com ímpeto. "Quisestes fazer-me infeliz;
provar-vos-ei que o haveis conseguido para além mesmo dos
vossos desejos." "Desejo a vossa felicidade", respondeu. E o
tom da voz começava a anunciar uma emoção assaz forte. Assim,
lançando-me aos seus pés, e com o tom dramático que me
, conhece, exclamei: "Ah, cruel! Como pode existir para mim
uma felicidade se vós a não compartilhardes? Como encontrá-la
longe de vós? Ah, nunca, nunca!" Confesso que, abandonando-me
a este ponto, contara imenso com o auxílio das minhas
lágrimas; mas, ou por má disposição, ou talvez apenas por efeito
da atenção penosa e contínua que prestava a tudo, foi-me
impossível chorar.
Por felicidade recordei-me que para subjugar uma mulher
todos os meios são bons; e que bastava impressioná-la com um
forte arrebatamento, para que a impressão permanecesse profunda
e favorável. Supri então a falta de sensibilidade pelo terror;
e para tal, mudando apenas a inflexão da voz, e mantendo
a mesma atitude, continuei: "Sim, faço este juramento a vossos
pés: ou vos possuo ou morro." Ao pronunciar estas últimas
palavras, os nossos olhares encontraram-se. Não sei o que a tímida
criatura viu ou julgou ver nos meus; mas levantou-se com
ar assustado e escapou-se dos meus braços que a rodeavam.
Verdade seja que nada fiz para a reter: porque já notara várias
vezes que as cenas de desespero, conduzidas com demasiada
vivacidade, caem no ridículo quando se tornam longas ou quando
só deixam saídas verdadeiramente trágicas, coisa que eu estava
muito longe de desejar. Entretanto, enquanto ela se esquivava,
acrescentei num tom baixo e sinistro, mas de maneira a
poder ser ouvido: "Pois bem! A morte!"
Levantei-me então; e, guardando um momento de silêncio,
lançava sobre ela, como por acaso, olhares selvagens, que lá por
parecerem alucinados nem por isso eram menos clarividentes e
observadores. O porte pouco seguro, a respiração apressada, a
contracção dos músculos, os braços trémulos e meio levantados,
tudo me provava que o efeito fora tal como o desejava:
mas, como no amor só de perto algo se concretiza, e como estávamos
um pouco afastados um do outro, era necessário antes
do mais que nos aproximássemos. Para o conseguir, passei o
mais rapidamente possível a uma aparente tranquilidade, propícia
para acalmar os efeitos desta situação violenta, mas sem lhe
enfraquecer a impressão.
A minha transição foi: "Sou um infeliz. Quis viver para a
vossa felicidade, e estraguei-a. Consagrei-me à vossa tranquilidade,
e perturbo-a." Em seguida, com um ar calmo mas constrangido:
"Perdão, senhora: pouco habituado às tempestades
das paixões, não sei reprimir-lhes os ímpetos. Se fiz mal em deixar-me
levar por eles, pensai ao menos que é a última vez. Ah,
acalmai-vos, acalmai-vos, peço-vos.. E durante esta longa frase,
aproximei-me insensivelmente. "Se quereis que me acalme,
respondeu a bela amedrontada, "estai também mais tranquilo".
- "Pois bem! Sim, prometo-vos", disse-lhe eu. E acrescentei
com uma voz mais fraca: "Se o esforço é grande, ao menos não
será longo. Mas", acrescentei logo com um ar alucinado, "vim,
não é verdade, para restituir as vossas cartas? Por piedade, dignai-vos
aceitá-las. É mais um sacrifício que me resta fazer; não
me deixeis nada que me me possa diminuir a coragem. E tirando
do bolso a preciosa colecção, disse: "Eis o enganador testemunho
das afirmações da vossa amizade! Era o que me prendia
à vida; tomai-o. Dai pois vós mesma o sinal que nos deve separar
para todo o sempre."
Aqui, a amante receosa cedeu inteiramente à sua meiga inquietação.
"Mas, senhor de Valmont, que tendes, que quereis
dizer? O passo que hoje destes não é voluntário? Não é o fruto
das vossas próprias reflexões? E não são elas que vos levaram a
aprovar a atitude absolutamente necessária que tomei por dever?
" - "Pois bem!", disse eu, "essa atitude impede-me uma
decisão." - "Qual!?" - "A única que pode, ao mesmo tempo
que me separa de vós, pôr fim aos meus tormentos." - "Mas,
respondei-me, que decisão é?" Neste ponto, apertava-a nos
meus braços, sem que ela se defendesse; e calculando, por este
esquecimento do decoro, quanto a emoção devia ser forte e
poderosa: "Mulher adorável", disse eu, ousando o entusiasmo,
"não fazeis ideia do amor que inspirais. Nunca sabereis até que
ponto fostes adorada, e como este sentimento me era mais caro
que a minha existência! Que os vossos dias sejam afortunados e
tranquilos; que se embelezem com toda a felicidade de que me
haveis privado! Retribuí ao menos este desejo sincero com um
remorso, uma lágrima; e crede que o último dos meus sacrifícios
não será o mais doloroso para o meu coração. Adeus."
Enquanto falava assim, sentia o seu coração palpitar com
violência; observava-lhe a alteração do rosto; sobretudo via as
lágrimas sufocá-la, e no entanto só corriam raras e penosas. Só
então tomei a decisão de fingir afastar-me; mas agarrando-me
com força: "Não, escutai-me", disse ela vivamente. "Deixai-me",
respondi. "Tendes de me escutar, quero que me escuteis."
- "Devo afastar-me de vós!" - "Não!", gritou ela... Com esta
última palavra lançou-se, ou antes, caiu desmaiada nos meus
braços. Como duvidava ainda de tão feliz êxito, fingi um grande
susto; mas ao mesmo tempo, conduzi-a, ou melhor, levei-a ao
colo para o local precedentemente escolhido como terreno da
minha glória; e com efeito, quando voltou a si já estava abandonada
e submetida ao seu feliz vencedor.
Até aqui, minha bela amiga, achar-me-á, creio, duma pureza
de método que lhe agradará; e verá que não me afastei em
nada dos verdadeiros princípios desta guerra, que já muitas vezes
notáramos ser tão parecida com a outra. Compare-me pois
com Turenne ou Frederico. Obriguei a combater um inimigo
que queria apenas contemporizar; consegui, por meio de sábias
manobras, escolher o terreno e a disposição das forças; inspirei
confiança ao inimigo para mais facilmente o poder alcançar no
seu esconderijo; nada deixei ao acaso, considerando o valor que
teria o triunfo e a necessidade de reservar uma saída em caso de
derrota; finalmente, só abri as hostilidades quando já tinha uma
retirada assegurada, de forma a poder proteger e conservar tudo
o que conquistara anteriormente. Eis, creio, tudo o que é possível
fazer; mas receio agora ter-me deixado amolecer, como Aníbal
pelas delícias de Cápua. Eis o que aconteceu depois.
Esperava evidentemente que um tão grande acontecimento
não se passaria sem as lágrimas e o desespero do costume; ora
notei a princípio sobretudo um estado de confusão e uma espécie
de recolhimento; mas atribuí ambos à sua pudicícia: assim,
sem me preocupar com estas ligeiras diferenças, que supus meramente
locais, enveredei pela grande estrada das consolações,
convencido de que, como de costume, as sensações ajudariam o
sentimento, e que uma só acção fazia mais do que todas as palavras,
que eu, porém, não deixava de lado. Mas encontrei uma
resistência verdadeiramente assustadora, menos pela sua força
do que pela forma que revestia.
Imagine uma mulher sentada, rígida, rosto imóvel; sem aspecto
de pensar, ouvir ou compreender; de cujos olhos fitos as
lágrimas deslizam continuamente e sem esforço. Assim estava
Madame de Tourvel enquanto eu lhe falava; mas se eu tentava
chamar-lhe a atenção para mim por meio duma carícia, mesmo
pelo gesto mais inocente, a esta aparente apatia sucedia imediatamente
o terror, a sufocação, as convulsões, e alguns gritos
entrecortados, mas sem articular uma palavra.
Estas crises repetiram-se várias vezes, e cada vez mais fortes;
a última foi mesmo tão violenta que fiquei inteiramente desanimado,
e receei por momentos ter obtido uma vitória inútil.
Recorri então aos lugares-comuns do costume, entre os quais se
encontrava este: "Desesperais-vos porque me haveis feito feliz?
" A estas palavras, a adorável mulher voltou-se para mim; e
o rosto, se bem que ainda um pouco alucinado, já tinha no entanto
retomado a sua expressão celestial. "Sois pois feliz?" Afirmei
com mais força ainda. "E feliz por minha causa!" Multipliquei
as lisonjas e as meiguices. Enquanto eu falava os membros
distenderam-se-lhe; tombou com moleza, apoiada contra o sofá;
e abandonando-me uma das mãos de que ousara apossar-me,
disse: "Sinto que essa ideia me consola e alivia."
Calcula certamente que uma vez colocado no bom caminho,
não o voltei a abandonar; era realmente o que tinha a fazer.
Assim, quando quis tentar um segundo êxito, encontrei a princípio
certa resistência, e o que se passara anteriormente tornou-me
circunspecto. Mas chamando de novo em meu auxílio
aquela mesma ideia da minha felicidade, verifiquei logo o seu
efeito benéfico: "Tendes razão", disse-me a meiga criatura; "só
posso suportar a minha existência na medida em que ela servir
para vos fazer feliz. Vou-me consagrar inteiramente a isso: a
partir deste momento entrego-me, e nunca mais encontrareis da
minha parte nem recusas, nem remorsos." Foi com esta ingénua
e sublime candura que me abandonou a sua pessoa e os seus
encantos, e aumentou assim a minha felicidade ao compartilhá-la.
A embriaguez foi completa e recíproca; e, pela primeira
vez, a minha sobreviveu ao prazer. Ao sair dos braços dela caía-lhe
aos pés, jurando-lhe amor eterno; e, é preciso confessá-lo,
eu acreditava no que dizia. Enfim, mesmo depois de nos termos
separado, a sua lembrança não me deixava, e tive de fazer um
esforço para a esquecer.
Ah, por que não está aqui para equilibrar o mérito da acção
pelo da recompensa? Mas não perderei nada por esperar, não é
verdade? E espero poder considerar como assente entre nós o
feliz acordo que lhe propus na minha última carta. Bem vê que
cumpro a minha parte, e que, como lhe prometi, os meus assuntos
estarão suficientemente avançados para lhe poder dedicar
uma parte do meu tempo. Apresse-se a despachar esse estorvo
do Belleroche, e deixe em paz o dulçoroso Danceny, para se
ocupar apenas de mim. Mas o que faz no campo, que nem sequer
me responde? Sabe que tenho vontade de lhe ralhar? Mas a
felicidade predispõe à indulgência. E não esqueço, aliás, que ao
colocar-me de novo no número dos seus apaixonados, devo
submeter-me às suas pequenas fantasias. Lembre-se, porém, de
que o novo amante nada quer perder dos antigos direitos do
amigo...
Adeus, como outrora... Sim, adeus, meu anjo! Envio-te
todos os beijos do amor.

P. S. - Sabe que Prévan ao fim do seu mês de prisão foi obrigado


a abandonar o regimento? É a novidade do dia em Paris.
Na verdade, ei-lo cruelmente punido por uma patifaria que não
cometeu, e a minha amiga obteve um êxito completo!

Paris, 29 de Outubro de 17* *

CARTA CXXVI

MADAME DE ROSEMONDE A PRESIDENTE DE TOURVEL

Ter-vos-ia respondido mais cedo, minha amável filha, se a


fadiga da minha última carta me não tivesse provocado dores
que me impediram durante estes dias de poder utilizar o braço.
Estava desejando agradecer-vos as boas notícias que me destes
do meu sobrinho, e de vos dar, a vós, as minhas sinceras felicitações.
Temos de ver nisto um golpe da Providência, que, tocando
um, salvou o outro. Sim, minha querida filha, Deus que queria
apenas experimentar-vos, socorreu-vos no momento em que as
vossas forças estavam esgotadas; e apesar do vosso queixume,
deveis, creio, prestar-Lhe acções de graças. Não é que eu não
veja muito bem que seria mais agradável para vós que tivésseis
sido a primeira a tomar essa resolução, e que a de Valmont fosse
apenas a sequência; parece-me até, falando humanamente, que
os direitos do nosso sexo teriam sido assim mais resguardados,
e nós não queremos perder nenhum! Mas que interessam essas
considerações ligeiras perante os importantes objectivos que se
encontram realizados? Vemos alguém que se salva dum naufrágio
queixar-se por não ter podido escolher o meio?
Sentireis em breve, minha querida filha, que as penas que
temeis se hão-de aligeirar por si próprias; e mesmo que subsistissem
sempre e com a mesma agudeza, não deixaríeis por isso
de sentir que seriam ainda mais fáceis de suportar que os remorsos
do crime e o desprezo por si própria. Inutilmente vos teria
falado mais cedo com esta aparente severidade: o amor é um
sentimento independente, que a prudência pode fazer evitar,
mas que não sabe vencer; e que, uma vez nascido, morre apenas
ou de morte natural, ou pela ausência absoluta de esperança. É
este último caso, no qual vos encontrais, que me dá a ousadia e
o direito de vos dizer livremente a minha opinião. É cruel assustar
um doente desesperado, a quem só se devem consolações e
paliativos: mas é sensato esclarecer um convalescente sobre os
perigos que correu, para lhe inspirar a prudência de que necessita
e a submissão aos conselhos que lhe podem ser necessários.
Visto que me escolhestes como médico, é como tal que vos
falo, e que vos digo que os incomodozinhos que sentis agora, e
que talvez necessitem ainda alguns remédios, nada são comparados
com a doença alarmante de que está agora assegurada a
cura. E em seguida como amiga, amiga duma mulher razoável e
virtuosa, permitir-me-ei acrescentar que essa paixão, que vos
subjugou, paixão tão infeliz em si própria, era-o ainda mais
pelo seu objecto. A acreditar no que se diz, o meu sobrinho, que
confesso amar talvez com fraqueza, e que reúne muitas qualidades
louváveis e outros tantos atractivos, é perigoso para as mulheres
e culpado perante elas, e para ele seduzi-las e desgraçá-las
é o mesmo. Creio que o teríeis convertido. Nunca alguém foi
mais digno disso: mas já tantas se gabaram do mesmo, vendo
depois essa esperança desenganada, que prefiro não vos ver
reduzida a esse recurso.
Pensai agora, minha querida filha, que em vez de tantos perigos
que correríeis, tereis, além do repouso de consciência e da
tranquilidade, a satisfação de ter sido a principal causa da feliz
transformação de Valmont. Por mim, não duvido que seja grande
parte trabalho da vossa corajosa resistência, e que um momento
de fraqueza da vossa parte teria deixado o meu sobrinho
numa danação eterna. É-me agradável pensar assim, e desejo
ver-vos pensar da mesma maneira; encontrareis assim as primeiras
consolações, e eu terei razões para vos amar ainda mais.
Espero-vos aqui dentro de poucos dias, minha amável filha,
tal como anunciais. Vinde encontrar de novo a calma e a felicidade
nos mesmos lugares em que as perdestes, vinde principalmente
regozijar-vos com a vossa terna mãe, de terdes tão fielmente
cumprido a palavra que lhe havíeis dado de nada fazer
que não fosse digno dela e de vós!

Castelo de..., 30 de Outubro de 17

CARTA CXXVII
A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONdE DE VALMONT

Se ainda não respondi, Visconde, à sua carta de 19, não foi


por falta de tempo; mas simplesmente porque ela me irritou e a
não achei razoável. Tinha pensado que o melhor era deixá-la no
esquecimento; mas visto que insiste, que parece empenhado nas
ideias que sugere, e que toma o meu silêncio por um consentimento,
urge que lhe exponha claramente a minha opinião.
Tive por vezes a pretensão de substituir sozinha um serralho
inteiro; mas nunca aceitei fazer parte de um. Pensava que o meu
amigo sabia isso. Pelo menos, neste momento, já não o ignora e
julgará facilmente quanto me pareceu ridícula a sua proposta.
Pois quê! Poderia eu sacrificar uma inclinação, e para mais uma
inclinação recente, para me ocupar de si? E ocupar-me como?
Esperando a vez, como escrava submissa, dos sublimes favores
de Sua Alteza. Quando, por exemplo, se quiser distrair por um
momento desse encanto desconhecido que a adorável, a celeste
Madame de Tourvel foi a única a fazer-lhe sentir, ou quando
temer comprometer perante a atraente Cecília a ideia superior
que ela conserve de si; então, descendo até mim, virá procurar
prazeres, na verdade menos vivos, mas sem consequências; e as
suas preciosas bondades, embora um pouco raras, bastarão
para a minha felicidade.
Vejo que está cheio de si: mas eu também não sou modesta;
e por mais que me olhe, não me acho decaída até esse ponto.
Talvez seja defeito da minha parte, mas previno-o de que possuo
ainda muitos outros.
Em primeiro lugar o de acreditar que o colegial, o dulçoroso
Danceny, só se ocupando de mim, sacrificando-me, sem se fazer
valer, uma primeira paixão, ainda antes de a ter satisfeito, e
amando-me enfim como se ama na idade dele, poderia, apesar
dos seus vinte anos, contribuir bem mais do que o Visconde
para a minha felicidade e os meus prazeres. Permito-me mesmo
acrescentar que, se me desse na fantasia a ideia de lhe dar um
adjunto, não seria certamente o Visconde, pelo menos por agora.
Por que razões?, perguntará. Em primeiro lugar poderia não
haver nenhuma: porque o capricho que me faria preferi-lo,
pode igualmente excluí-lo. Mas quero, por delicadeza, dar-lhe o
motivo da minha decisão. Parece-me que teria de me fazer demasiados
sacrifícios: e eu, em vez de mostrar o reconhecimento
que esperaria de mim, seria capaz de julgar que ainda merecia
mais! Bem vê que, tão afastados um do outro pela nossa maneira
de pensar, de nenhum modo nos podemos unir; e temo que
me seja necessário muito tempo, mesmo muito, antes de mudar
de sentimentos. Prometo avisá-lo quando estiver corrigida. Até
lá, creia-me, pode arranjar outras aventuras e guardar os seus
beijos; tem muito onde empregá-los melhor!..
Adeus, como antigamente, diz? Antigamente, porém, fazia
muito mais caso de mim; não me limitava aos terceiros papéis e
esperava que eu dissesse sim
, para estar certo do meu consentimento.
Aceite pois que em vez de lhe dizer também adeus, como
antigamente, lhe diga adeus como agora.
A sua serva, senhor Visconde.

Do castelo de..., 31 de Outubro de 17* *

CARTA CXXVIII
A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE

Só ontem recebi, senhora, a vossa resposta tardia. Ter-me-ia


causado imediatamente a morte se a minha existência me pertencesse:
mas outro a possui; e esse outro é o senhor de Valmont.
Vede que nada vos escondo. Considerareis talvez que á
não sou digna da vossa amizade, mas prefiro perdê-la a iludi-la.
Tudo o que vos posso dizer é que, obrigada pelo senhor de
Valmont a escolher entre a sua morte e a sua felicidade me decidi
por esta. Não me envaideço, nem me acuso: digo simplesmente
o que se passou.
Podeis imaginar facilmente, depois disto, como me fez impressão
a vossa carta e as severas verdades que contém
não julgueis que ela tenha feito nascer em mim o remorso ou
que possa transformar os meus sentimentos ou conduta. Não é
que eu não passe por momentos cruéis; mas quando sinto o
coração despedaçado, quando temo já não poder suportar os
tormentos, penso: Valmont é feliz; e tudo desaparece perante
essa ideia ou antes, tudo se transforma em prazer.
Dediquei-me pois ao vosso sobrinho; foi por ele que me
perdi. Tornou-se o centro único dos meus pensamentos, sentimentos
e acções. A vida ser-me-á preciosa enquanto for necessária
à sua felicidade, e considerá-la-ei sempre venturosa. Se algum
dia ele pensar doutro modo.... não terá da minha parte
nem queixas nem censuras. Já ousei imaginar esse momento
fatal, e a minha decisão está tomada.
Já vedes quão pouco me pode afectar o temor, que pareceis
ter, de que um dia o senhor de Valmont me desgrace: porque,
antes de o querer, terá cessado de amar-me; e que me importarão
as vãs censuras que não ouvirei? Só ele será o meu juiz.
Como terei vivido só para ele, será ele o detentor da minha memória;
e se se vir obrigado a reconhecer que o amava, sentir-me-ei
suficientemente justificada.
Acabais, senhora, de ler o meu coração. Preferi a desgraça
de perder a vossa estima, pela minha franqueza, à de me tornar
indigna dela pelo aviltamento da mentira. Pensei que devia esta
inteira confiança às vossas antigas bondades para comigo. Se
acrescentasse uma palavra poder-vos-ia levar a suspeitar que
tenho o orgulho de contar ainda com ela, quando pelo contrário
me faço justiça deixando de pretendê-la.
Sou com respeito, senhora, a vossa muito humilde e obediente
serva.

Paris, 1 de Novembro de 17* *.

CARTA CXXIX

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Diga-me pois, minha bela amiga, donde vem esse tom de


azedume e de sarcasmo que predomina na sua última carta?
Que crime cometi eu, aparentemente sem dar por isso, e que
tanto a irrita? Acusa-me de me ter dado ares de contar com o
seu consentimento antes de o ter obtido: mas julguei que o que
para os outros poderia parecer presunção, seria sinal da confiança
que deposito em si; e desde quando este sentimento prejudica
a amizade ou o amor? Unindo a esperança ao desejo, cedi
apenas ao impulso natural que nos leva a colocar-nos sempre o
mais perto possível da felicidade que buscamos; e tomou como
efeito do orgulho o que era apenas o reflexo da minha ansiedade.
Bem sei que é costume, nestes casos, aparentar uma dúvida
respeitosa: mas sabe perfeitamente que é apenas uma fórmula
um simples protocolo; e achei-me autorizado a supor que essas
precauções minuciosas não eram necessárias entre nós.
Parece-me até que esta atitude franca e livre, quando fundada
sobre uma antiga ligação, é preferível às insípidas meiguices,
que tão frequentemente tornam o amor desenxabido. De resto,
o valor que vejo nesta atitude talvez resulte apenas daquele que
atribuo à felicidade que ela me lembra: mas por isso mesmo,
ser-me-ia penoso vê-la discordar de mim.
Eis o único erro que suponho ter cometido: porque não
imagino que pudesse ter pensado seriamente que existisse uma
mulher no mundo que me parecesse preferível a si; e, ainda
menos, que tenha podido apreciá-la tão mal como finge crer.
diz-me a este respeito que olhou para si própria e que não se
encontrou decadente a esse ponto. Disso estou certo, e prova
apenas que o seu espelho é fiel. Mas não poderia ter concluído,
com mais facilidade e justiça, que eu não iria pensar isso de si ?
Procuro em vão a causa de tão estranha ideia. Parece-me
no entanto que ela resulta, mais ou menos, dos elogios que fiz a
outras mulheres. Deduzo-o pelo menos da sua afectação em salientar
os epítetos de adorável, celeste, atraente, de que me servi
ao falar-lhe em Madame de Tourvel e na pequena Volanges.
Mas não sabe que estas palavras, mais escolhidas ao acaso que
por reflexão, exprimem menos a opinião que se tem da pessoa,
do que a situação em que nos encontramos quando dela falamos?
E se, no próprio momento em que me sentia tão vivamente
afectado, quer por uma quer por outra, eu não a desejava
menos; se lhe dava a preferência sobre ambas, visto que enfim
não poderia renovar a nossa ligação senão em prejuízo das outras
duas, não vejo que isso fosse motivo de grande censura.
Não me será mais difícil justificar-me do encanto desconhecido,
com que parece ter ficado também um pouco chocada:
porque, antes do mais, nem sempre as sensações desconhecidas
são as mais fortes. Oh, quem poderia levar a melhor sobre os
deliciosos prazeres que só a minha amiga sabe tornar sempre
novos, e cada vez mais vivos? Quis portanto apenas dizer que
aquele encanto era dum género que ainda não tinha experimentado;
mas sem pretender atribuir-lhe qualquer classificação; e
acrescentei, o que hoje repito, que o saberei combater e vencer.
E nisto aplicarei todo o meu zelo, se vir nesse ligeiro trabalho
uma homenagem a oferecer-lhe.
Quanto à pequena Cecília creio inútil falar dela. Foi a seu
pedido que me encarreguei dessa criança, e só espero a sua ordem
de partida para me pôr ao largo. Notei a ingenuidade e a
frescura dela; achei-a atraente por momentos porque nos comprazemos
sempre na nossa obra: mas não possui consistência
suficiente para prender as atenções.
Agora, minha bela amiga, apelo para o seu senso de justiça,
para as suas primeiras bondades para comigo; para a longa e
perfeita amizade, para a inteira confiança que depois estreitaram
ainda mais os laços que nos uniam: mereci porventura o
tom rigoroso que tomou para comigo? Mas como lhe será fácil
compensar-me quando quiser! Uma palavra sua apenas, e verá
se existem encantos e afeições que me retenham um só minuto.
Voaria para os seus braços, e provar-lhe-ia, mil vezes e de mil
maneiras, que é, que será sempre, a verdadeira soberana do meu
coração.
Adeus, bela amiga; espero a sua resposta com toda a ansiedade.

Paris, 3 de Novembro de 17* *

CARTA CXXX

MADAME DE ROSEMONDE À PRESIDENTE DE TOURVEL

Por que motivo, minha querida, já não quereis ser minha


filha? por que é que pareceis comunicar-me que vai acabar a
correspondência entre nós? É para me castigar de não ter adivinhado
o que era tão pouco verosímil? Ou desconfiais que vos
afligi voluntariamente? Não, conheço demasiado o vosso coração
para crer que assim possa julgar o meu. Desta forma o desgosto
em que me mergulhou a vossa carta é muito menos por
minha causa do que por vós!
Ó minha jovem amiga! Digo-vos com tristeza; mas sois
demasiado digna de ser amada, para que alguma vez o amor vos
torne feliz.
Ah! Qual foi a mulher verdadeiramente delicada e sensível
que não encontrou o infortúnio nesse mesmo sentimento que
lhe parecia anunciar tanta felicidade! Saberão os homens apreciar
a mulher que possuem?
Alguns haverá honestos no procedimento e constantes na
afeição: mas, mesmo entre esses, quão poucos se sabem elevar à
altura do nosso coração! Não penseis, minha querida filha, que
o amor deles seja igual ao nosso. Experimentam a mesma loucura;
muitas vezes entregam-se-lhe com mais arrebatamento; mas
desconhecem este zelo inquieto, esta delicada solicitude, que
nos obriga a cuidados ternos e contínuos, cujo único fim é sempre
o objecto amado. O homem goza com a felicidade que sente,
e a mulher com a que proporciona. Esta diferença, tão importante
e tão pouco notada, influi no entanto, de modo bem
palpável, na totalidade das respectivas condutas. O prazer de
um consiste em satisfazer os seus desejos, o da outra, principalmente,
em os fazer nascer. Agradar é para ele um meio de chegar
ao triunfo; enquanto para ela é o próprio triunfo. E a coqueteria,
tantas vezes censurada às mulheres, representa apenas o
exagero desta forma de sentir e prova a sua verdade. Enfim, o
gosto exclusivo, que caracteriza particularmente o amor, é no
homem apenas uma preferência, que serve, quando muito, para
graduar um prazer, que um outro objecto enfraqueceria talvez
mas não destruiria; enquanto nas mulheres é um sentimento
profundo, que não só destrói todo o desejo estranho, mas que,
mais forte do que a natureza, e independente até do domínio
dela, só as deixa experimentar repugnância e desgosto, onde
pareceria dever nascer a voluptuosidade.
E não deveis pensar que as excepções, mais ou menos numerosas,
que seja possível citar, se oponham com êxito a estas verdades
comuns! Estão até confirmadas pelo consenso geral, que
distinguiu, apenas para os homens, a infidelidade da inconstância:
distinção de que se orgulham, em vez de por ela se sentirem
humilhados; e que, no nosso sexo, só foi adoptado por essas
mulheres depravadas que fazem a vergonha dele, e para quem
todos os processos são bons, a fim de se salvarem da penosa
sensação da sua baixeza.
Julguei, minha querida filha, que podia ser-vos útil ter estas
reflexões a opor às ideias quiméricas duma felicidade perfeita,
com que o amor ilude sempre a nossa imaginação; esperança
enganadora, a que nos conservamos presas, mesmo quando nos
vemos forçadas a abandoná-la, e cuja perda agrava e multiplica
os desgostos já demasiado reais duma viva paixão! Este papel
de vos suavizar as dores, de lhes diminuir o número, é o único
que quero, que posso desempenhar neste momento. Nos males
sem remédio, os conselhos só podem incidir sobre o regime a
seguir. Peço-vos somente que vos lembreis que lamentar um
doente não é censurá-lo. Oh, quem somos nós para nos censurarmos
uns aos outros? Deixemos o direito de julgar Àquele que
lê nos corações; e tenho a ousadia de acreditar que, aos seus
olhos paternais, uma multidão de virtudes pode resgatar uma
fraqueza.
Mas, suplico-vos, minha querida amiga, evitai sobretudo
essas resoluções violentas, que não mostram força mas antes um
desânimo completo: não esqueçais que, tornando um outro
possuidor da vossa existência, para me servir da vossa expressão,
não pudestes contudo privar os vossos amigos do que já
antes possuíam, e que nunca cessarão de reclamar.
Adeus, minha querida filha, lembrai-vos às vezes da vossa
terna mãe, e crede que sereis sempre, e acima de tudo, o objecto
dos seus mais queridos pensamentos.

Castelo de..., 4 de Novembro de 17* *

CARTA CXXXI

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Até que enfim, Visconde; desta vez estou mais contente consigo
do que da outra; e agora, falemos amigavelmente, espero
convencê-lo de que, tanto para si como para mim, o acordo que
parece desejar seria uma verdadeira loucura.
Nunca reparou que o prazer, que é com efeito o único fim
de reunião dos dois sexos, não basta no entanto para os unir? E
que, se é precedido do desejo que aproxima, é também seguido
do alheamento que afasta? uma lei da natureza, que só o amor
pode transformar; e o amor; é possível senti-lo quando se quer?
No entanto é sempre necessário; e seria na verdade embaraçoso,
se se não tivesse notado que felizmente bastava que existisse
dum lado. A dificuldade tornou-se de metade do tamanho, e
nem sequer há muito a perder; com efeito um goza a felicidade
de amar, o outro a de agradar, um pouco menos viva na verdade,
mas a que se junta o prazer de trair, o que provoca o equilíbrio;
enfim, tudo se arranja.
Mas, diga-me, Visconde, qual de nós dois se encarregará de
trair o outro? Conhece a história dos dois batoteiros, que se
reconheceram durante o jogo: nada conseguiremos, disseram
paguemos as despesas a meias; e abandonaram a partida. Sigamos,
creia-me, este exemplo prudente, e não percamos juntos
um tempo que podemos empregar tão bem algures.
Para lhe provar que penso tanto no seu interesse como no
meu, e que não procedo assim nem por irritação nem por capricho,
não lhe recuso o prémio combinado entre nós: de resto
bem vejo que uma única noite nos bastará; e tenho a certeza de
que saberemos tão bem embelezá-la, que a veremos findar com
pena. Mas não esqueçamos que essa mágoa é necessária à felicidade;
e por mais doce que seja a nossa ilusão, não vamos acreditar
que possa ser durável.
Como vê, resigno-me, e isto sem que o Visconde tenha ainda
cumprido a obrigação que tinha para comigo: porque enfim,
devia ter-me dado a primeira carta da celeste pudibunda; e no
entanto, ou porque ela representa algo para si, ou porque esqueceu
as condições do contrato, que talvez o interesse menos do
que me pretende fazer crer, não recebi nada, absolutamente
nada. No entanto, ou me engano muito, ou a terna devota deve
escrever bastante: pois em que se há-de ocupar quando está só?
Certamente que não tem ânimo para se distrair. Como vê, teria
se quisesse algumas censuras a fazer-lhe; mas deixo-as em silêncio,
para compensar um pouco da irritação que pus talvez na
minha última carta.
E agora, Visconde, só me resta fazer-lhe um pedido; e é tanto
por si como por mim: é o de adiar o momento que também
desejo muito, mas que me parece dever ser retardado até ao meu
regresso à cidade. Por um lado, aqui não teríamos a necessária
liberdade; e, por outro, eu correria um risco: porque bastaria
um pouco de ciúme para prender sem remédio este triste Belleroche,
que no entanto agora parece estar por um fio. Vejo bem
que ele já se esforça para continuar a amar-me; e eu ponho por
vezes tanta malícia como prudência nas carícias com que o sobrecarrego.
Ao mesmo tempo, bem vê que não seria um sacrifício
digno de si! Uma infidelidade recíproca dará um encanto
bem mais picante.
Sabe que às vezes lamento que estejamos reduzidos a estes
recursos? No tempo em que nos amávamos, porque creio que
era amor, eu era feliz; e o Visconde? Mas porque ocupar-me
ainda duma felicidade que não volta? Não, por mais que diga, o
regresso é impossível. Em primeiro lugar, exigirei sacrifícios que
não poderia ou não quereria fazer-me, e que eu talvez não mereça;
e depois, como prendê-lo? Oh, não, não, nem quero pensar
nisso; e apesar do prazer que acho em escrever-lhe, prefiro deixá-lo
bruscamente. Adeus, Visconde.

Castelo de..., 6 de Novembro de 17 *.

CARTA CXXXII

A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE

Comovida pelas vossas bondades para comigo, senhora, teria


repousado inteiramente nelas se me não retivesse de algum
modo o receio de as profanar, aceitando-as. Por que motivo é
que sou forçada a considerá-las tão preciosas, no próprio momento
em que já não me sinto digna delas? Ah, mas ousarei pelo
menos testemunhar-vos o meu reconhecimento; admirarei, sobretudo,
essa indulgência da virtude, que só conhece as nossas
fraquezas para se apiedar, e cujo poderoso encanto exerce sobre
os corações uma influência tão doce e tão forte, mesmo comparada
com o encanto do amor.
Mas essa amizade, merecê-la-ei ainda quando já não basta
para a minha felicidade? Posso dizer o mesmo dos vossos conselhos;
aprecio-lhes o valor e não os posso seguir. E como não
acreditar numa felicidade perfeita, quando a experimento neste
momento? Sim, se os homens são tal como dizeis, é necessário
fugir-lhes, são odiosos; mas como Valmont está longe de se lhes
assemelhar! Se tem como eles essa violência da paixão, a que
chamais arrebatamento, é nele ultrapassada pelo excesso da sua
delicadeza! Oh, minha amiga, falais-me de partilhar as minhas
penas, regozijai-vos então com a minha felicidade; é ao amor
que a devo, e o objecto dele aumenta-lhe o valor. Amais o vosso
sobrinho, dizeis, talvez por fraqueza. Ah, se o conhecêsseis
como eu! Amo-o idolatradamente, e muito menos do que ele
merece. deixou-se sem dúvida arrastar para alguns erros, ele
próprio concorda; mas quem conheceu como ele o verdadeiro
amor? Que mais posso dizer? Sente-o com a mesma força com
que o inspira.
Irei julgar que esta é uma das ideias quiméricas com que o
amor ilude sempre a nossa imaginação: mas nesse caso, por que
se teria tornado mais terno, mais solícito, agora que nada mais
tem a obter? Confesso que antes lhe notava um ar de reflexão
de reserva, que raramente abandonava, é que muitas vezes me
recordava, mesmo sem querer, as falsas e cruéis impressões que
me haviam dado acerca dele. Mas desde que se pode entregar
sem constrangimento aos movimentos do seu coração, parece
adivinhar todos os desejos do meu. Quem sabe se não nascemos
um para o outro? Se me não estava reservada a felicidade de lhe
ser necessária? Ah, se é uma ilusão, que eu morra antes que ela
acabe. Mas não; quero viver para o amar, para o adorar. Por
que deixaria de amar-me? Que outra mulher o poderia tornar
mais feliz do que eu? E, sinto-o por mim, a felicidade que damos
é a mais forte cadeia, a única que prende verdadeiramente. Sim,
é este sentimento delicioso que enobrece o amor, que o purifica
e o torna digno de uma alma terna e generosa, como a de Valmont.

Adeus, minha querida, respeitável e indulgente amiga. Quereria


demorar mais tempo a escrever-vos; mas chegou a hora em
que ele me prometeu vir, e qualquer outra ideia me abandona.
Perdão! Mas sei que desejais a minha felicidade; e é tão grande
neste momento que me abandono totalmente a ela.

Paris, 7 de Novembro de 17* *.

CARTA CXXXIii

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Quais são pois, minha bela amiga, esses sacrifícios que me


julga incapaz de fazer, e cujo prémio seria afinal agradar-lhe?
Ah! Dê-mos somente a conhecer, e, se hesitar em lhos oferecer
permito-lhe que recuse as minhas homenagens. Que.julga de
mim desde há algum tempo, se, mesmo quando é indulgente,
ainda continua a duvidar dos meus sentimentos ou da minha
energia? Sacrifícios que eu não poderia ou não queria fazer! Supõe-me
então apaixonado, dominado? E o valor que dei ao
triunfo, suspeita que o atribuo à pessoa? Ah, graças ao Céu, não
estou ainda reduzido a isso, e guardo-me para lho provar. Sim,
prová-lo-ei, mesmo que seja com Madame de Tourvel. Seguramente,
depois disso, não lhe ficarão dúvidas.
Foi-me possível, julgo que sem me comprometer, conceder
algum tempo a uma mulher, que tem pelo menos o mérito de ser
dum género que raramente se encontra. Talvez também a estação
morta em que veio esta aventura me tenha levado a entregar-me
com mais entusiasmo; e agora que o grande movimento
mal recomeça, não é de admirar que ela me ocupe ainda quase
inteiramente. Pense no entanto que ainda não há oito dias que
gozo o fruto de três meses de trabalhos. Tantas vezes me demorei
mais tempo com o que valia muito menos e não me custara
tanto! E nunca a minha amiga me julgou mal por isso.
Mais ainda, quer saber a verdadeira causa da solicitude que
emprego? Ei-la. Esta mulher é naturalmente tímida; durante os
primeiros dias duvidava sem cessar da sua felicidade, e essa dúvida
bastava para a perturbar: de forma que só agora começo a
poder observar até onde vai o meu poder nesse campo. Eis uma
coisa que ardia em curiosidade por saber; e a oportunidade não
é tão fácil de encontrar como se julga.
Em primeiro lugar, para muitas mulheres, o prazer é apenas
o prazer e nada mais do que isso; e para essas, seja qual for o título
que nos concedam, somos simples criados, puros moços de
recados, cujo mérito reside apenas na actividade, e entre os
quais o que mais faz é sempre o que faz melhor.
Numa outra classe, talvez hoje a mais numerosa, a celebridade
do amante, o prazer de o ter arrebatado a uma rival, o receio
de que por sua vez lhe seja roubado, ocupa quase inteiramente
as mulheres: nós contribuímos, claro, mais ou menos
para esta felicidade de que gozam; mas ela depende mais das
circunstâncias do que da pessoa. Vem-lhes por nós, mas não de
nós.
Precisava por isso de encontrar, para as minhas observações,
uma mulher delicada e sensível, que se dedicasse unicamente
ao amor, e que, no próprio amor, visse só o amante; cuja
emoção, não seguindo o caminho habitual, partisse sempre do
coração para os sentidos; já a vi, por exemplo (e não falo do
primeiro dia), sair do prazer toda chorosa, e um instante depois
reencontrar a voluptuosidade numa palavra que respondia à
sua alma. Enfim, era necessário ainda acrescentar essa natural
candura, tornada invencível de tanto se lhe entregar, e que lhe
não permite esconder nenhum dos sentimentos do coração.
Ora, concordará que tais mulheres são raras; e julgo mesmo
que, sem esta, nunca me teria sido dado encontrar nenhuma.
Não será pois de estranhar se ela me prender mais tempo do
que qualquer outra; e se a observação que quero fazer sobre ela
exige que a torne feliz, inteiramente feliz, por que me recusaria
eu a tal, tanto mais que isso serve os meus planos, em vez de os
contrariar? Mas por que o espírito se encontra ocupado, segue-se-lhe
que o coração seja escravo? Não, sem dúvida. Mas o
valor que não deixo de atribuir a esta aventura não me impedirá
de me entregar a outras, ou mesmo de a sacrificar a algumas
mais agradáveis.
Sinto-me de tal modo livre que nem sequer descurei a pequena
Volanges, a quem afinal dou tão pouca importância. A
mãe trá-la para a cidade dentro de três dias; e desde ontem que
arranjei maneira de assegurar as minhas comunicações: uma
gratificação ao porteiro, e umas bugigangas à mulher, resolveram
o assunto. E imaginar que Danceny não soube encontrar
um processo tão simples! E ainda dizem que o amor nos torna
inventivos! Pelo contrário, embrutece aqueles que domina. E
pensa que me não saberei defender? Ah! Esteja tranquila. Vou
já, dentro de poucos dias, enfraquecer, partilhando-a, a impressão
talvez demasiado viva que experimentei; e se uma só partilha
não bastar, multiplicá-las-ei.
Mas estarei pronto a entregar a jovem colegial ao seu discreto
amante, logo que a minha amiga o julgue oportuno. Parece-me
que já não tem razões para o impedir; e eu consinto em
prestar esse insigne serviço ao pobre Danceny. É, na verdade, o
mínimo que lhe devo por todos os que me prestou. Está agora
numa grande inquietação por saber se será recebido em casa de
Madame de Volanges. Vou-o acalmando o melhor que posso,
assegurando-lhe que, dum ou doutro modo, o tornarei feliz na
primeira oportunidade: e enquanto espero, continuo a ocupar-me
da correspondência, que ele quer recomeçar logo após a
chegada da sua Cecília. Já tenho seis cartas dele, e ainda receberei
mais uma ou duas antes desse dia feliz. É preciso que o rapaz
esteja muito desocupado!
Mas deixemos esse par infantil, voltemos a nós; que eu possa
ocupar-me unicamente da tão doce esperança que me deu a
sua carta. Sim, prender-me-á, sem dúvida; nem lhe perdoaria se
duvidasse. Alguma vez deixei de lhe ser constante? Os nossos
laços foram desfeitos, mas não quebrados; a nossa pretensa
ruptura foi um erro da nossa imaginação: os nossos sentimentos
e interesses mantiveram-se unidos. Tal como o viajante que regressa
desenganado, reconhecerei que deixara a felicidade para
perseguir a esperança; e direi como d'Hancourt:

Plus je vis d'étrangers, plus j'amai ma patrie.

Não fuja mais à ideia, ou antes, ao sentimento que a reconduz


até mim; e depois de termos provado todos os prazeres nas
nossas diversas incursões, regozijemo-nos com a felicidade de
sentir que nenhum deles é comparável ao que experimentáramos
e que reencontraremos mais delicioso ainda.
Adeus, encantadora amiga. Acedo em esperar pelo seu regresso:
mas apresse-o e não esqueça que o desejo muito.

Castelo de..., 11 de Novembro de 17* *

CARTA CXXXIV

A MARQUESA DE MERTEUiL AO VISCONdE DE VALMONT

Na verdade o Visconde é como as crianças, diante de quem


não se pode dizer nada e a quem não se pode mostrar nada, que
não desejem imediatamente! Bastou passar-me uma simples
ideia pela cabeça, à qual, aliás, o preveni de que não queria
prestar atenção, e foi o bastante para que tentasse prender-me a
ela, quando eu a procurava esquecer, querendo, por assim dizer,
obrigar-me a compartilhar os seus estouvados desejos! Acha
generoso da sua¨parte deixar-me carregar sozinha o fardo da
prudência? Torno a dizer-lho, e repito-o a mim própria mais
frequentemente ainda, o acordo que me propõe é realmente
impossível. Ainda que o Visconde pusesse no assunto toda a
generosidade que me mostra neste momento, não acredita que
eu tenha também as minhas susceptibilidades, e não queira aceitar
sacrifícios que prejudiquem a sua felicidade?
Ora, não será verdade, Visconde, que se ilude quanto ao
sentimento que o prendeu a Madame de Tourvel? É amor, ou
esse sentimento nunca existiu: nega-o de cem maneiras mas
prova-o de mil. O que é, por exemplo, esse subterfúgio de que se
serve para consigo mesmo, porque acredito que seja sincero
comigo, e que o leva a atribuir ao prazer de observar, o desejo,
que não pode esconder nem combater, de conservar essa mulher?
Não parecerá que nunca fez nenhuma outra feliz perfeitamente
feliz? Ah! Se duvida, tem a memória bem curta! mas não
não se trata de nada disto. Muito simplesmente o coração ilude-lhe
o espírito, e obriga-o a recorrer a fracas justificações;
mas eu, que não tenho nenhum interesse em enganar-me a mim
própria, não sou tão fácil de contentar.
É o caso que, notando embora a delicadeza que o levou a
suprimir cuidadosamente todas as palavras que imaginou pudessem
ter-me desagradado, vi no entanto que, talvez sem dar
por isso, conservava as mesmas ideias. Com efeito, já não se trata
da adorável, da celeste Madame de Tourvel: mas é ainda uma
mulher espantosa, uma mulher delicada e sensível, e isto, com
exclusão de todas as outras; uma mulher rara, enfim, e como
não se encontra outra igual. O mesmo se passa com o tal encanto
desconhecido, que não é o mais forte. Pois bem, seja: mas visto
que até aqui nunca o tinha encontrado, é bem de crer que não
o volte a encontrar no futuro, e que a sua perda seja irreparável.
Ora, ou isto são sintomas infalíveis de amor, ou então temos de
renunciar a encontrá-lo em parte alguma.
Tenha a certeza que desta vez lhe falo sem mau humor.
Prometi a mim mesma nunca mais me deixar assaltar por ele;
reconheci que se podia tornar uma armadilha perigosa. Creia-me,
sejamos amigos, e fiquemos por aí. Agradeça-me a coragem
que mostrei em defender-me: sim, coragem; porque às vezes
é bem precisa, até para não se tomar uma decisão que se
sabe errada.
É pois apenas para o pôr de acordo comigo por persuasão
que vou responder à sua pergunta sobre os sacrifícios que eu
exigiria e que o Visconde não poderia fazer. Sirvo-me de propósito
da palavra exigir, porque tenho a certeza de que, dentro em
breve, irá achar-me, com efeito, demasiado exigente: mas tanto
melhor! Em vez de me zangar com as suas recusas, agradecer-lhas-ei.
Olhe, não é consigo que quero dissimular, embora o
devesse talvez fazer.
Exigirei pois, veja a crueldade!, que essa rara, essa espantosa
Madame de Tourvel não seja para si mais do que uma mulher
vulgar, uma mulher como ela é, afinal: porque, não nos deixemos
enganar, esse encanto, que supomos achar nos outros, é em
nós que existe; é apenas o amor a embelezar o objecto amado.
Mesmo que este sacrifício lhe seja impossível, tem no entanto
que mo prometer, jurar até; mas, aviso, não acreditarei em falsas
promessas. Só me deixarei convencer pelo conjunto do seu
procedimento.
Mas ainda não é tudo; sou muito caprichosa! O sacrifício
da pequena Cecília, que me oferece com tão boa vontade, não
me interessa. Pedir-lhe-ei, pelo contrário, que continue esse
penoso serviço, até nova ordem da minha parte; talvez porque
goste de abusar do meu poder ou talvez porque, mais indulgente
ou mais justa, me baste dispor dos seus sentimentos, sem querer
prejudicar os seus prazeres. De qualquer forma, quero ser obedecida;
e as minhas ordens serão rigorosas!
Considerar-me-ia então obrigada a agradecer-lhe; quem
sabe? Talvez até a recompensá-lo. Por exemplo, abreviaria uma
ausência que se me tornaria insuportável. Encontrar-nos-íamos
finalmente, Visconde, encontrar-nos-íamos... de que maneira?...
Mas lembre-se de que isto é apenas uma conversa, o simples
relato dum projecto impossível, e não quero ser a única a
esquecê-lo...
Sabe que o meu processo me inquieta um pouco? Quis finalmente
conhecer ao certo quais eram as minhas armas; os advogados
citam-me as leis, e sobretudo autoridades, como eles lhes
chamam: mas já não me acho tão forte como supunha. Quase
lamento não ter aceitado o acordo. No entanto tranquilizo-me,
pensando que o procurador é hábil, o advogado eloquente e a
demandista bonita. Se estes três argumentos não bastassem, seria
preciso alterar toda a sequência do assunto, e que viria a
acontecer ao respeito pelos antigos costumes?
O processo é actualmente a única coisa que me retém aqui.
Belleroche, acabou-se: desistiu; trabalho compensado. Chegou
ao ponto de se lamentar por não ter ido ao baile desta noite
queixume desocupado! Restituí-lo-ei à liberdade quando regressar
a Paris. Ao fazer este doloroso sacrifício, consolo-me com a
generosidade que ele me atribui.
Adeus, Visconde, escreva muitas vezes: os pormenores dos
seus prazeres compensam-me em parte dos aborrecimentos que
enfrento.

Castelo de...11 de Novembro de 17 -"

CARTA CXXXV

A PRESiDENTE DE TOURVEL A MADAME dE ROSEMONDE

Tento escrever-vos, sem saber ainda se serei capaz. Ah! Meu


Deus Quando penso que na minha última carta era o excesso
de felicidade que me impedia de a continuar! É o de desespero
que me pesa agora; só me deixa força para sentir as dores, e
rouba-ma quando tento exprimi-las.
Valmont... Valmont já me não ama, o seu amor nunca existiu.
O amor não desaparece assim. Ele engana-me, trai-me, ultraja-me.
Suporto todos os infortúnios e humilhações que é possível
reunir, e é dele que me vêm !
E não julgueis que é uma simples suspeita: estava bem longe
de as sentir. Nem tenho a sorte de poder duvidar. Vi-o: que me
poderá dizer para se justificar?... Mas que lhe importa! Nem
sequer tentará... Infeliz! Que lhe interessarão as tuas censuras e
lágrimas? Não é de ti que ele se ocupa!..
É pois verdade que me sacrificou, me abandonou mesmo...
E por quem? Por uma vil criatura... Mas que digo? Ah! Já nem
tenho o direito de a desprezar. Ela traiu menos deveres, é menos
culpada do que eu. Oh! Como é doloroso o desgosto, quando é
fruto remorso! Sinto que os meus tormentos redobram. Adeus
minha querida amiga; por muito indigna de piedade que me
tenha tornado, senti-la-íeis certamente por mim, se pudésseis
fazer uma ideia do que sofro.
Acabo de reler a carta e apercebi-me de que em nada vos
pode elucidar; vou pois tentar a coragem de vos contar este
cruel acontecimento. Foi ontem; eu devia, pela primeira vez
desde o meu regresso, cear fora da minha casa. Valmont veio
ver-me às cinco horas; nunca me parecera tão terno. Deu-me a
entender que o meu projecto de sair o contrariava, e, como imaginais,
tive logo a ideia de ficar em casa. No entanto, duas horas
depois, e de repente, o seu ar e tom mudaram sensivelmente.
Não sei se me escapou qualquer coisa que lhe tenha desagradado;
pelo quer que fosse, pouco tempo depois, afirmou lembrar-se
de uma ocupação que o obrigava a deixar-me, e foi-se embora:
mas não o fez sem manifestar uma muito viva pena, que me
pareceu carinhosa, e que então julguei sincera.
Entregue a mim própria, achei mais conveniente não faltar
aos meus primeiros compromissos, visto que estava livre agora.
Acabei por me arranjar e parti na carruagem. Infelizmente o
cocheiro fez-me passar diante da Ópera, e vi-me envolvida no
tumulto da saída; uns quatro passos à minha frente, e na fila ao
lado da minha, vi a carruagem de Valmont. O coração bateu-me
logo com mais força, mas não de temor; e a única ideia que
me ocupava era o desejo de que a minha carruagem avançasse.
Em vez disso, foi a dele que foi obrigada a recuar, e que ficou ao
lado da minha. Debrucei-me imediatamente: qual não foi o meu
espanto quando vi a seu lado uma prostituta, bem conhecida
como tal! Afastei-me, como podereis supor, e era já bastante
para me afligir o coração; mas o que vos deve custar a acreditar,
é que essa rapariga, aparentemente instruída por alguma odiosa
confidência, não deixara a portinhola, nem cessara de me olhar,
com gargalhadas capazes de provocarem uma cena.
No acaMrunhamento em que me encontrava, deixei-me no
entanto conduzir à casa onde devia cear; mas foi-me impossível
ficar; sentia-me a cada instante prestes a desmaiar, e sobretudo
custava-me reter as lágrimas.
Assim que regressei escrevi ao senhor Valmont e enviei-lhe
logo a carta; não estava em casa. Querendo, por qualquer preço,
sair do estado de morte em que me achava, ou confirmá-lo
para sempre, reenviei-a com ordem de o esperar; mas antes da
meia-noite o meu criado voltou, com a notícia de que o cocheiro,
que recolhera, lhe dissera que o patrão não voltaria nessa
noite. Esta manhã julguei nada mais ter a fazer do que tornar a
pedir as minhas cartas, e dizer-lhe que não voltasse a minha
casa. Dei ordens nesse sentido; mas eram, certamente, inúteis.
Passa do meio-dia; ainda não apareceu, nem recebi qualquer
recado da parte dele.
Agora, querida amiga, nada mais tenho a acrescentar: eis-vos
instruída e conheceis o meu coração. A minha única esperança
é de que não tenha muito tempo para afligir a vossa delicada
amizade.

Paris, 15 de Novembro de 17* *

CARTA CXXXVI

A PRESIDENTE DE TOURVEL AO VISCONDE DE VALMONT

Com certeza, senhor, que, depois do que ontem se passou,


não esperais voltar a ser recebido em minha casa, e com certeza
que nem sequer o desejais! Este bilhete é pois menos para vos
pedir que não volteis, do que para vos solicitar essas cartas que
nunca deveriam ter existido; e que, se puderam interessar-vos
um momento, como provas da cegueira que tínheis procurado
fazer nascer, só poderão ser-vos indiferentes agora que ela se
dissipou, visto que exprimem um sentimento que destruístes.
Reconheço e confesso que errei ao depositar em vós uma
confiança de que tantas outras antes de mim tinham sido vítimas;
nisto só tenho de me acusar a mim própria: mas julgava
que pelo menos não merecia ser abandonada por vós ao desprezo
e ao insulto. Julgava que, tendo-vos sacrficado tudo, e renunciando
por vós aos direitos, à estima dos outros e à minha
própria, podia esperar todavia não ser julgada por vós mais severamente
que pelo público, cuja opinião separa ainda, por um
imenso intervalo, a mulher fraca da depravada. Estes erros, que
são os de toda a gente, são os únicos de que vos falo. Calo os
queixumes de amor; o vosso coração não compreenderia o meu.
Adeus, senhor.

Paris, 15 de Novembro de 17 *
CARTA CXXXVII

O VISCONDE DE VALMONT A PRESIDENTE DE TOURVEL

Acabam agora, senhora, de me entregar a vossa carta; tremi


ao lê-la, e mal me deixou forças para lhe responder. Que ideia
horrível faz de mim! Ah, sem dúvida tenho defeitos; e tais que
nunca mos perdoarei em toda a vida, mesmo que os cubrísseis
com a vossa indulgência. Mas os de que me acusais estiveram
sempre bem longe da minha alma! O quê, eu! humilhar-vos!
aviltar-vos! quando vos respeito tanto como vos amo; quando
só conheci o orgulho, no momento em que me julgastes digno
de vós. As aparências iludiram-vos; e confesso que eram contra
mim: mas não tínheis no coração o que bastava para as combater?
E ele não se revoltou só com a ideia de que poderia ter razões
para queixar-se do meu? Contudo acreditastes! Assim, não
só me julgastes capaz desse delírio atroz, mas haveis até receado
ser vítima dele em virtude das vossas bondades para comigo.
Ah, se vos julgais degradada a esse ponto pelo vosso amor, é
porque eu próprio sou aos vossos olhos bem vil!
Oprimido pelo sentimento doloroso que esta ideia me causa,
perco a afastá-la o tempo que devia empregar a destruí-la.
Confessarei tudo; ainda uma outra consideração me retém. É
então preciso recordar factos que queria aniquilar, e fixar a vossa
atenção e a minha sobre um momento de erro que quereria
resgatar com o resto da minha vida, de que procuro ainda a
causa, e cuja lembrança deve fazer para sempre a minha humilhação
e o meu desespero? Ah, se acusando-me excito a vossa
cólera, não tereis ao menos que procurar longe a vingança; bastar-vos-á
deixar-me entregue aos meus remorsos.
E no entanto, quem acreditará? Este acontecimento teve
como causa primeira o poderoso encanto que sinto junto de
vós. Foi ele que me fez esquecer por tempo excessivo um assunto
importante, que não podia ser adiado. Deixei-vos demasiado
tarde e não encontrei a pessoa que procurava. Esperava avistá-la
na Ópera, mas a minha tentativa foi também baldada. Encontrei
aí Emília, com quem me relacionei num tempo em que
estava bem longe de vos conhecer ou de conhecer o amor; não
tinha levado carruagem e pediu-me que a deixasse em casa, bem
perto dali. Não vi nenhum perigo nisso e acedi. Mas foi então
que vos encontrei; senti logo que seríeis levada a julgar-me culpado.
O temor de vos desagradar ou de vos afligir é tão forte em
mim, que deveria ser e foi com efeito logo notado. Confesso
mesmo que me levou a tentar evitar que a rapariga se mostrasse;
este esforço de delicadeza voltou-se afinal contra o amor. Habituada,
como todas as da sua espécie, a só se sentir segura dum
prestígio sempre usurpado por meio de abusos a que se atrevem,
Emília não quis deixar escapar uma ocasião tão retumbante.
Quanto mais via aumentar o meu embaraço, mais fazia por se
mostrar; e a sua louca alegria, de que coro que tenhais podido
julgar-vos objecto, tinha apenas por motivo a dor cruel que eu
sentia, dor essa proveniente ainda do meu respeito e do meu
amor.
Até aqui sou sem dúvida mais infeliz do que culpado; e estes
erros, que são os de toda a gente, e os únicos de que me falais,
estes erros, não existindo, não me podem ser censurados. Mas
calais em vão os queixumes do amor; não poderei guardar sobre
eles o mesmo silêncio; um interesse demasiado vivo obriga-me
a rompê-lo.
Não é que, na confusão em que fui lançado por este inconcebível
equívoco, possa, sem uma dor aguda, dedicar-me a evocar
lembranças. Compenetrado dos meus erros, consentirei em
suportar o castigo, ou esperarei com o tempo o perdão merecido
pela minha constante ternura e pelo meu arrependimento.
Mas como me poderei calar, quando o que me falta dizer é tão
importante para a sensibilidade de todo o vosso ser?
Não penseis que procuro um subterfúgio para desculpar ou
aliviar a minha falta; confesso que sou culpado. Mas não confesso,
nem confessarei nunca, que este erro humilhante possa
ser encarado como um ultraje feito ao amor. Oh, que pode haver
de comum entre uma surpresa dos sentidos, entre um momento
de esquecimento de nós próprios, logo seguido pela vergonha
e pelo remorso, e um sentimento puro, que só pode nascer
numa alma delicada, manter-se pela afeição, e ter como fruto
a felicidade! Ah, não profaneis assim o amor! Evitai sobretudo
profanar-vos, reunindo no mesmo ponto de vista o que nunca
se pôde confundir. Deixai as mulheres vis e degradadas recearem
uma rivalidade que sentem que contra elas se pode estabelecer,
e sofrer os tormentos duma inveja igualmente cruel e
humilhante: mas vós! afastai os olhos desses objectos que maculariam
os vossos olhares; e, pura como a Divindade, puni como
ela a ofensa sem a sentirdes.
Mas que pena me podereis impor que me seja mais dolorosa
do que a que sinto? Que possa ser comparada ao remorso de
vos ter desagradado, ao desespero de vos ter afligido, à ideia
insuportável de me ter tornado menos digno de vós? Procurais
castigar-me! E eu peço-vos consolações: não porque as mereça,
mas porque me são necessárias, e só me podem vir de vós.
Se de repente, esquecendo o nosso amor deixando de dar
valor à minha felicidade, quiserdes pelo contrário arrastar-me
para uma dor eterna, tendes esse direito: feri; mas se, mais indulgente
ou mais sensível, vos lembrais ainda dos sentimentos
tão ternos que uniam os nossos corações; dessa voluptuosidade
da alma, sempre renascente e de cada vez mais vivamente sentida;
desses dias tão doces, tão felizes que cada um de nós deve ao
outro; de todos esses bens do amor que só ele pode dar; preferireis
talvez fazê-los renascer a destruí-los. Que mais poderei dizer?
Perdi tudo, e por minha culpa, mas tudo posso reaver pela
vossa bondade. Compete-vos decidir agora. Acrescento só uma
palavra. Ainda ontem me juráveis que a minha felicidade estava
segura enquanto dependesse de vós! Ah! senhora, abandonar-me-eis
hoje a um desespero eterno?

Paris, 15 de Novembro de 17* *

CARTA CXXXVIII

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA De MERTEUIL

Insisto, minha bela amiga: não estou apaixonado; e não


tenho culpa se as circunstâncias me forçam a representar esse
papel. Basta que consinta, e volte; verá com os seus próprios
olhos como sou sincero. Prestei ontem as minhas provas, e estas
não podem ser anuladas pelo que se passa.
Estava eu ontem em casa da meiga e púdica dama, e não
tinha mais nenhum assunto a tratar: porque a pequena Volanges,
apesar do seu estado prematuro, devia passar toda a noite no baile
de Madame V... A desocupação fizera-me desejar
prolongar o encontro; e exigira até para isso um pequeno sacrifício:
mas apenas me fora concedido, e já todo o prazer que esperava
tinha sido perturbado pela ideia desse amor que se obstina
em atribuir-me; ou pelo menos em censurar-me; de forma
que só sentia o desejo de poder simultaneamente certificar-me e
convencê-la de que era da sua parte pura calúnia.
Tomei então uma decisão violenta; e, alegando um pretexto
bastante inconsistente, abandonei a minha bela, algo surpreendida,
e sem dúvida bastante aflita. Eu, porém, fui tranquilamente
ter com Emilia à Ópera; e ela poder-lhe-ia contar que, até à
manhã de hoje em que nos separámos, nenhum remorso perturbou
os nossos prazeres.
No entanto eu teria uma grande causa de inquietação, se a
minha perfeita indiferença me não tivesse salvo: imagine que
estando a uns quatro prédios de distância da Ópera, com Emília
na minha carruagem, veio a da austera devota arrumar-se exactamente
ao lado da minha, e a dificuldade de circulação deixou-no
perto dum quarto de hora ao lado um do outro. Via-se
tão bem como se fosse meio-dia e não havia maneira de escapar.
Mas não foi tudo; decidi dizer a Emília que se tratava da
senhora da carta. (Lembra-se talvez dessa loucura e de que Emília
era a mesa.) Ela, que o não tinha esquecido, e que é zombeteira,
não descansou enquanto não examinou à vontade esta
virtude, como ela dizia, e isso com grandes e irritantes gargalhadas.
Mas também ainda não foi tudo; pois a dama ciumenta não
mandou logo uma carta a minha casa nessa mesma noite? Eu
não estava: mas, na sua obstinação, tornou a mandar com ordem
para me esperarem. Eu, como estava decidido a ficar com
Emília, mandara embora a carruagem, com ordem ao cocheiro
de voltar a buscar-me esta manhã; e quando ao chegar encontrou
o mensageiro do amor, achou bem dizer-lhe simplesmente
que eu já não regressava naquela noite. Imaginará o efeito desta
notícia; na volta encontrei-me despedido com toda a dignidade
que exigia a circunstância!
Assim esta aventura, que acha interminável, teria podido,
como vê, acabar esta manhã; se não acabou, não foi, como irá
talvez pensar, porque dê muito valor à continuação: mas antes
porque, por um lado, não achei decente deixar que outrem
rompesse; e, por -outro, porque quis reservar-lhe a homenagem
desse sacrifício.
Respondi pois ao severo bilhete com uma longa epístola
sentimental. Expus longas razões, e contei com o amor para as
fazer passar por boas. êxito total. Acabo de receber um segundo
bilhete, ainda muito severo, que confirma a eterna ruptura,
como é das regras; mas já num tom diferente. Insiste em que
não quer voltar a ver-me: essa decisão é enunciada quatro vezes
repetida da maneira mais irrevogável. Concluí que não tinha
um momento a perder para aparecer. Enviei já o meu criado
para entreter o porteiro; e dentro dum momento irei eu próprio
fazer assinar o meu perdão: porque nas questões desta espécie,
só há uma fórmula capaz de obter a absolvição geral, e essa só
se executa pessoalmente.
Adeus, minha encantadora amiga; parto para tentar este
grande golpe.

Paris, 15 de Novembro de 17* *.

CARTA CXXXIX
A PRESIDENTE DE TOURVEL A MADAME DE ROSEMONDE

Como me acuso, minha sensível amiga, por vos ter falado


demasiado, e demasiado cedo,de males passageiros! Sou a causa
de que vos aflijais neste momento; esses desgostos que vos vêm
de mim duram ainda, e eu sou já de novo feliz. Sim, tudo está
esquecido, perdoado; digamos antes sanado. Ao estado de dor e
angústia sucederam a calma e as delícias. Oh, alegria do meu
coração, como posso exprimir-vos! Valmont está inocente; não
se é culpado quando se ama tanto. Esses erros graves e ofensivos
que eu lhe censurava com tanta amargura, não os cometera; e
se, num só ponto, precisei de indulgência, não é certo que também
eu tinha injustiças a serem perdoadas?
Não vos falarei pormenorizadamente dos factos ou das razões
que os justificam; talvez até o espírito os apreciasse mal:
só ao coração é que compete senti-los. Mas se me acusardes de
fraqueza, chamarei a vossa opinião para apoiar a minha. Em
relação aos homens, vós própria o dissestes, a infidelidade não é
inconstância.
Não é que eu não sinta que esta distinção, aprovada pelo
consenso geral, fere ainda a delicadeza; mas de que se queixaria
a minha, quando a de Valmont sofre mais ainda? Esse erro que
esqueço, não penseis que ele o perdoe a si próprio ou se console;
e no entanto, já reparou bem essa ligeira falta pelo excesso do
seu amor e da minha felicidade!
Ou a minha felicidade é maior, ou aprecio-a mais desde que
receei tê-la perdido: mas o que vos posso dizer é que, se ainda
me sentisse com força para suportar desgostos tão cruéis como
os que acabo de sofrer, não julgaria pagar assim demasiado
caro o acréscimo de felicidade que depois saboreei. Oh, minha
terna mãe! Repreendei a esta vossa filha irreflectida por vos ter
afligido com tanta precipitação; ralhai-lhe por ter julgado temerariamente
e caluniado aquele que ela não devia cessar de adorar:
mas ao mesmo tempo que a reconheceis imprudente, contemplai-a
feliz e aumentai-lhe a alegria compartilhando-a.

Paris, noite de 16 de Novembro de 17* *

CARTA CXL

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Que se passa, minha bela amiga, que não recebo resposta


sua? A minha última carta parecia-me no entanto merecê-la; já
há três dias que a devia ter recebido e espero ainda! O menos
que lhe posso dizer é que estou zangado; deste modo nada lhe
contarei das minhas aventuras.
Acerca do belíssimo efeito da reconciliação; de ter dado
lugar a novas ternuras, em vez de censuras e desconfiança; de
ser eu agora quem recebe as desculpas e reparações devidas à
minha candura caluniada, nada lhe direi; e sem o acontecimento
imprevisto da última noite, nem sequer lhe escreveria. Mas
como diz respeito à sua pupila, e como naturalmente ela não
estará capaz de lhe escrever durante algum tempo, encarrego-me
eu disso.
Por motivos que facilmente adivinhará ou não, de há uns
dias para cá que Madame de Tourvel não me podia ocupar o
tempo; e como essas razões não podiam existir na pequena Volanges,
tornara-me mais assíduo junto dela. Graças ao amável
porteiro, não precisava de vencer quaisquer obstáculos; e levávamos,
a sua pupila e eu, uma vida cómoda e regrada. Mas o
hábito conduz à negligência; nos primeiros dias, achávamos
sempre as precauções insuficientes para a nossa segurança; tremíamos
ainda detrás dos ferrolhos. Ontem, uma distracção inacreditável
causou o acidente que lhe quero contar; e se pelo meu
lado apanhei um susto, a donzela pagou mais caro.
Não dormíamos, mas estávamos no repouso e no abandono
que se seguem à voluptuosidade, quando ouvimos a porta do
quarto abrir-se de repente. Agarrei logo a espada, tanto para
minha defesa como para da nossa comum pupila: avancei e não
vi ninguém, mas com efeito a porta estava aberta. Como tínhamos
luz, fiz uma busca, mas não encontrei vivalma. Lembrei-me
então que nos esquecêramos das precauções habituais; e que a
porta, apenas encostada, ou mal fechada, se abrira por si própria.
Voltei para me juntar à minha tímida companheira e tranquilizá-la,
mas não a encontrei no leito; caíra ou tentara esconder-se
na alcova: enfim, estava desmaiada e sem outro movimento
a não ser fortes convulsões. Imagine o meu embaraço!
Ainda consegui deitá-la na cama, e até fazê-la voltar a si: mas
ferira-se na queda, e as consequências não tardaram.
Dores de rins e cólicas violentas, outros sintomas ainda
menos equívocos, depressa me esclareceram quanto ao seu estado:
mas, para a elucidar, foi preciso revelar-lhe primeiro que se
encontrava grávida; porque não fazia a mínima ideia. Nunca
ninguém, antes desta pequena, conservou tanta inocência, fazendo
ao mesmo tempo tão bem tudo o que é preciso para se
desfazer dela! Oh, esta não perde tempo a reflectir!
Mas lamentava-se e vi que era preciso tomar uma decisão.
Ficou então combinado que eu iria imediatamente ao médico e
ao cirurgião da casa, e que os preveniria de que alguém os viria
buscar, contando-lhes tudo, sob segredo; que ela, por seu lado,
chamaria a criada de quarto logo que eu saísse; que lhe confidenciaria
tudo ou não, como quisesse; mas que a mandaria buscar
socorro, e proibiria sobretudo que acordassem Madame de
Volanges: delicada e natural atenção duma filha que teme inquietar
a mãe.
Fiz as duas diligências e as duas confissões o mais depressa
que pude, e voltei para casa, donde não saí ainda: mas o cirurgião,
que eu aliás já conhecia, veio ao meio-dia relatar-me o estado
da doente. Não me enganara; mas ele espera que, se não
sobrevier qualquer complicação, ninguém lá em casa dará por
nada. A criada de quarto está no segredo; o médico deu um
nome à doença; e este assunto arrumar-se-á como milhares de
outros, a não ser que mais tarde nos possa ser útil que dele se
fale.
Mas haverá ainda interesses comuns entre a minha amiga e
eu? O seu silêncio deixa-me dúvidas; já nem acreditaria nisso, se
o meu desejo não procurasse a todo o custo manter-me a esperança.

Adeus, minha bela amiga: beijo-a, mau-grado o seu rancor.

Paris, 21 de Novembro de 17* *

CARTA CXLI

A MARQUESA DE MARTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT


Meu Deus! Visconde, como me maça com a sua obstinação!
Que lhe importa o meu silêncio? Pensa talvez que o mantenho
por falta de razões para me defender? Ah! Prouvera a Deus!
Mas não, é antes porque me custa dizer-lhas.
Fale-me francamente; ilude-se a si próprio ou procura enganar-me ?
A diferença entre as suas palavras e acções deixa-me
hesitar apenas entre esses dois sentimentos: qual é o verdadeiro?
Que quer que lhe diga, quando eu própria não sei que pensar?
Parece que dá grande valor à sua última cena com a Presidente;
mas o que é que ela prova a favor da sua opinião e contra
a minha? Com certeza que eu lhe não disse que amava essa
mulher o bastante para não a enganar, para não aproveitar todas
as ocasiões que lhe parecessem agradáveis ou fáceis: nem
sequer duvido de que para si seja quase a mesma coisa satisfazer
com outra, com a primeira que apareça, os desejos que aquela
lhe tem feito nascer; e nem sequer me surpreende que, por uma
libertinagem de espírito que é inútil negar-lhe, tenha uma vez
feito por deliberação o que fez mil outras por acidente. Quem
sabe se isso não é moda do tempo, e o que fazem todos, desde o
perverso ao mais idiota dos inocentes? Hoje o que se abstém
passa por romanesco, e não é esse, parece-me, o defeito de que o
acuso.
Mas o que disse, o que pensei, o que penso ainda é que nem
por isso deixa de amar a Presidente; não, com certeza, com um
amor puro e terno, mas com o que lhe é dado sentir; com aquele
que faz, por exemplo, ver numa mulher atractivos ou qualidades
que ela não tem; que a coloca num lugar à parte, e todas as
outras abaixo; que o conserva preso a ela, mesmo quando a ultraja;
tal como um sultão pode sentir pela favorita, o que não o
impede de preferir muitas vezes uma simples odalisca. Esta
comparação parece-me tanto mais certa, quanto é verdade que,
tal como ele, o Visconde nunca é nem o amigo, nem o amante
duma mulher; mas sempre ou o seu tirano ou o seu escravo. Por
isso estou bem certa que se humilhou e aviltou, para voltar a
estar nas graças desse belo objecto! E demasiado feliz por tê-lo
conseguido, assim que julgou chegado o momento de obter o
perdão, deixa-me por virtude desse grande acontecimento.
Ainda na sua última carta, se me não fala unicamente dessa
mulher, é porque nada me quer dizer das suas grandes aventuras;
são para si tão importantes, que julga o silêncio que faz
sobre elas uma punição para mim. E é depois de mil provas da
sua acentuada preferência por uma outra, que me pergunta
tranquilamente se há ainda interesses comuns entre nós! Tome
cuidado, Visconde! Quando eu responder, a minha resposta será
irrevogável; e recear pronunciá-la neste momento é já talvez esclarecer
demasiado. Deste modo, não quero falar nisso.
O mais que posso fazer é contar-lhe uma história. Não terá
talvez tempo para a ler, ou para lhe prestar a necessária atenção?
Isso é consigo. Será afinal, supondo o pior, apenas uma história
deitada ao mar.
Um dos meus conhecidos tinha-se deixado prender, tal
como o meu amigo, por uma mulher que não estava à sua altura.
Mas ao mesmo tempo tinha a lucidez de ver que, mais tarde
ou mais cedo, aquela aventura o prejudicaria; e corava de vergonha
por não ter coragem para romper. O seu embaraço era
tanto maior, quanto se gabara aos amigos de se manter inteiramente
livre; e não ignorava que o ridículo aumenta à medida
que procuramos fugir-lhe. Passava assim a vida a fazer tolices e
a dizer depois: não tenho culpa. Este homem tinha uma amiga
que por um momento esteve tentada a revelá-lo a todos nesse
estado de embriaguez, e a tornar assim o seu ridículo perpétuo:
mas, mais generosa do que maliciosa, ou talvez por qualquer
outro motivo, quis tentar um último recurso, para poder, em
qualquer caso, dizer como o amigo: não tenho culpa. Remeteu-lhe
então, sem mais palavra, a carta que segue, como um remédio
cujo uso poderia ser útil para debelar o mal.

"De tudo nos aborrecemos, meu anjo, é uma lei da natureza;


não tenho culpa.
Se agora me aborreço duma aventura que me ocupou inteiramente
durante quatro longos meses, não tenho culpa.
Se tive tanto amor como tu virtude, e já é afirmar muito,
não é para admirar que um tenha acabado ao mesmo tempo que
a outra. Não tenho culpa.
Resulta disso, que desde há algum tempo te engano: mas
também a tua implacável ternura a isso me obrigava! Não tenho
culpa.
Hoje, uma mulher que amo loucamente exige que te sacrifique.
Não tenho culpa.
Bem vejo que julgarás chegado o momento de me chamares
perjuro: mas se a natureza concedeu aos homens apenas a constância,
e legou às mulheres a obstinação, não tenho culpa.
Crê-me; tal como eu, escolhe outro amante. Este conselho é
bom, muito bom; se o achas mau, não tenho culpa.
Adeus, meu amigo, tive-te com prazer, deixo-te sem pena;
talvez volte ainda. É assim o mundo. Não tenho culpa. "

Não é o momento para lhe dizer, Visconde, o efeito desta


última tentativa, e o que se lhe seguiu: mas prometo que lho direi
na próxima carta. Nela encontrará também o ultimatum
sobre a renovação do tratado que me propõe. Até lá, simplesmente
adeus...
A propósito, agradeço-lhe todos os pormenores sobre a
pequena Volanges; é um artigo que se deve guardar até ao dia
seguinte ao casamento, para a gazeta de maledicência. Entretanto,
apresento-lhe os meus pêsames pela perda da sua descendência.
Boa noite, Visconde.

Castelo de..., 24 de Novembro de 17* *.

CARTA CXLII

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Palavra, minha bela amiga, não sei se li mal ou se não compreendi


a sua carta, a história que me narra e o modelo epistolar
que continha. O que lhe posso dizer, é que este último me pareceu
original e próprio para o efeito: por isso copiei-o simplesmente
e, mais simplesmente ainda, enviei-o à celestial Presidente.
Não perdi um momento, pois enviei ontem à tarde a terna
missiva. Preferi assim, em primeiro lugar porque prometera
com efeito escrever-lhe ontem; e também porque pensei que
toda a noite não seria demais para ela se recolher e meditar sobre
esse grande acontecimento, mesmo que pela segunda vez me
censure a expressão.
Esperava poder enviar-lhe esta manhã a resposta da minha
bem-amada: mas é quase meio-dia e ainda nada recebi. Esperarei
até às três horas, e se até então não tiver notícias, irei eu próprio
procurá-las; porque, quando se trata de decisões, só o primeiro
passo é que custa.
Agora, como pode imaginar, estou ansioso por saber o fim
da história desse seu conhecido, tão cruelmente suspeitado de
não saber, em caso de necessidade, sacrificar uma mulher. Ter-se-á
corrigido? E a generosa amiga ter-lhe-á perdoado?
Anseio também por receber o seu ultimatum: como diz tão
politicamente! Tenho curiosidade em saber se, mesmo nesta última
diligência, ainda encontrará amor. Oh, sem dúvida, há, e
muito! Mas por quem? No entanto, não quero pôr nada em
realce, e espero tudo da sua bondade.
Adeus, minha encantadora amiga; só fecharei esta carta às
duas horas, na esperança de lhe poder juntar a desejada resposta.

Duas horas da tarde

Não veio nada, o tempo urge; só posso acrescentar uma


palavra: recusar-me-á ainda desta vez os ternos beijos de amor?

Paris, 27 de Novembro de 17

CARTA CXLIII

A PRESIDENTE DE TOURVEL A MEDAME DE ROSEMONDE

Minha senhora, despedaçou-se o véu em que estava pintada


a ilusão da minha felicidade. A funesta verdade alumia-me, e só
me deixa esperar uma morte certa e próxima, cujo caminho está
traçado entre a vergonha e o remorso. Segui-la-ei e bendirei os
meus tormentos se eles me abreviarem a existência. Envio-vos a
carta que ontem recebi; não acrescentarei nenhuma reflexão,
não o necessita. Não é já altura para queixas, resta-me sofrer.
Não preciso de piedade, mas de força.
Recebei pois, minha senhora, o meu único adeus, e atendei
o meu último pedido; é que me deixeis entregue à minha sorte,
que me esqueçais inteiramente, que não conteis mais comigo.
Há um limite na infelicidade, para além do qual até a própria
amizade aumenta os sofrimentos e não os pode sarar. Quando
as feridas são mortais, todo o socorro se torna desumano. Qualquer
sentimento que não seja o desespero me é alheio. Nada me
pode convir mais do que a noite profunda em que vou ocultar a
minha vergonha. Chorarei as minhas faltas, se é que ainda posso
chorar, pois desde ontem que não deito uma lágrima. O meu
coração seco já as não consente.
Adeus, minha senhora. Não deveis responder-me. Jurei sobre
essa carta cruel que não receberia mais nenhuma outra.

Paris, 27 de Novembro de 17".

CARTA CXLIV

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Minha bela amiga, ontem às cinco horas da tarde, impaciente


por não ter notícias, apresentei-me em casa da bela abandonada;
disseram-me que saíra. Vi, nesta frase, uma recusa de
me receber que me não zangou, nem surpreendeu; e retirei-me,
na esperança de que esta diligência da minha parte levaria pelo
menos uma dama tão educada a honrar-me com uma palavra de
resposta. O desejo que tinha de a receber fez-me passar de propósito
por minha casa por volta das nove horas, mas nada encontrei.
Espantado com este silêncio, que não esperava, encarreguei
o meu criado de ir buscar informações, e saber se a sensível
criatura estava morta ou moribunda. Enfim, quando voltei informou-me
que Madame de Tourvel saíra de facto, às onze horas
da manhã, com a criada de quarto; que mandara seguir para
o convento de..., e que às sete da tarde reenviara a carruagem e
os criados, dizendo que a não esperassem em casa. Evidentemente,
tomou a grande decisão. O convento é o refúgio próprio
para uma viúva; e se persiste numa tão louvávél resolução,
acrescentarei, a todas as obrigações que já lhe devo, a da celebridade
que vai ter esta aventura.
Bem lhe dizia, há já algum tempo, que, apesar das suas inquietações,
eu reapareceria na sociedade brilhando com um
novo esplendor. Que se mostrem, pois, esses críticos severos,
que me acusavam dum amor romanesco e infeliz; que façam
rupturas mais rápidas e mais brilhantes: ou antes, exijo melhor:
que se apresentem como. consoladores, o caminho está-lhes
aberto. Pois bem! Que ousem tentar a carreira que percorri até
ao fim; e se um deles obtiver o mínimo êxito, cedo-lhe o primeiro
lugar. Mas todos sentirão que, quando me emprego a fundo,
a impressão que deixo é inapagável. Ah! Esta sê-lo-á, sem dúvida;
e deixarei de me vangloriar de todos os meus outros triunfos,
se algum dia tiver junto desta mulher um rival preferido.
Concordo que esta decisão que ela tomou lisonjeia o meu
amor-próprio; mas custa-me que ela tenha encontrado em si
força suficiente para se separar de mim. Não haverá pois, entre
nós ambos, outros obstáculos além dos que eu próprio coloquei!
O quê! Se eu ansiasse pela reconciliação, ela poderia não a
querer; que digo? Não a desejar, não a considerar a suprema felicidade!
E então é assim que se ama! Acha, minha bela amiga, que
devo permitir isto? Não poderei eu, e não seria preferível tentar
conduzir de novo esta mulher a encarar a possibilidade de uma
reconciliação, tão desejada quanto esperada? Poderia tentar
esta diligência sem lhe atribuir qualquer importância; e, deste
modo, sem que representasse qualquer menosprezo em relação
a si. Seria, pelo contrário, uma simples experiência que tentaríamos
de acordo; e mesmo que obtivesse êxito, seria um processo
de renovar, à sua vontade, um sacrifício que lhe deve ter sido
agradável. Agora, minha bela amiga, resta-me receber o prémio,
e faço votos pelo seu regresso. Volte depressa para reencontrar
o seu amante, os seus prazeres, os seus amigos, e a continuação
das aventuras.

A da pequena Volanges correu maravilhosamente. Ontem


como a minha inquietação me não permitia permanecer em
lado nenhum, passei, nas minhas diversas saídas, pela casa de
Madame de Volanges. Encontrei a sua pupila já no salão, ainda
com trajos de doente, mas em plena convalescença, e cada vez
mais fresca e interessante. Vós, mulheres, num tal caso, ficaríeis
um mês num sofá: palavra, vivam as raparigas! Esta, na verdade,
deu-me desejo de me certificar se a cura fora perfeita!
Devo ainda dizer-lhe que este acidente da menina quase
tornou louco o seu sentimental Danceny. Primeiro de desgosto;
hoje de alegria. A sua Cecília estava doente! Como deve imaginar,
a cabeça anda à volta com uma tal desgraça. Três vezes por
dia mandava saber notícias, e não deixava passar nem um sem
se apresentar ele próprio; enfim pediu, numa bela missiva à
mãe, licença para a ir felicitar pela convalescença dum ente tão
querido; Madame de Valanges consentiu; de modo que encontrei
o rapaz instalado como noutro tempo, apenas com um pouco
mais de familiaridade que ele não ousava ainda permitir-se.
Foi mesmo por ele que soube pormenores; porque saímos
ao mesmo tempo e o fiz tagarelar. Não imagina o efeito que esta
visita lhe causou. Uma alegria, desejos e transportes impossíveis
de exprimir. Eu, que gosto das grandes iniciativas, acabei de lhe
fazer perder a cabeça, garantindo-lhe que dentro de poucos dias
lhe arranjaria maneira de ver ainda de mais perto a sua bela.
Estou, de facto, decidido a entregar-lha, logo que faça a
minha experiência. Quero consagrar-me inteiramente a si; e
depois valeria a pena que a sua pupila fosse também minha aluna,
se não soubesse enganar senão o marido? A obra-prima é
que engane também o amante, e sobretudo o seu primeiro
amante; porque eu, por mim, não tenho que me acusar de alguma
vez ter pronunciado a palavra amor.
Adeus, minha bela amiga; volte logo que possa para gozar
do seu poder sobre mim, receber as homenagens e pagar-me o
prémio.

Paris, 28 de Novembro de 17* *

CARTA CXLV

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Seriamente, Visconde, abandonou a Presidente? Enviou-lhe


a carta que redigi para ela? É na verdade encantador; e ultrapassou
as minhas esperanças! Confesso com sinceridade que esse
triunfo me lisonjeia mais do que todos os que até agora tenho
obtido. Achará talvez que avalio muito alto essa mulher, que
antes apreciava tão pouco; nada disso: é que não foi sobre ela
que alcancei esta vitória; foi sobre o Visconde. Eis o que me diverte,
e que é verdadeiramente delicioso.
Sim, Visconde, sei que amava muito Madame de Tourvel e
que a ama ainda; ama-a como um louco: mas porque eu me
divertia a envergonhá-lo, sacrificou-a corajosamente. Teria sacrificado
mil para não ser vítima dum gracejo. Ao que nos conduz
a vaidade! Le Sage tem razão quando diz que ela é inimiga
da felicidade.
Como ficaria agora, se eu tivesse querido apenas pregar-lhe
uma partida? Mas sou incapaz de enganar, bem o sabe; e mesmo
que, por minha vez, ficasse agora reduzida ao desespero e ao
convento, corro todos os riscos, e entrego-me ao vencedor.
No entanto, se capitulo é por pura fraqueza: porque, se eu
quizesse, quantas brincadeiras não teria ainda para fazer! E talvez
o Visconde o merecesse! Admiro, por exemplo, a subtileza
ou a falta de jeito com que docemente me propõe que o deixe
reconciliar-se com a Presidente. Convinha-lhe muito, não é assim,
vangloriar-se dessa ruptura sem perder os prazeres da posse?
E como então esse aparente sacrifício nada significaria para
si, oferece-se para o renovar segundo a minha vontade! Por esta
infeliz combinação, a celeste devota julgar-se-ia sempre a única
eleita do seu coração, enquanto eu me orgulharia de ser a rival
preferida; seríamos ambas enganadas, mas o meu amigo estaria
contente, e o resto que importa?
É pena que com tanto talento para os projectos, tenha tão
pouco para a execução; e que por uma só diligência inconsiderada
tenha levantado um obstáculo invencível ao que mais deseja.
O quê! Tinha a ideia de tentar uma reconciliação e ousou
escrevê-lo na minha carta! Supôs-me inábil a esse ponto! Creia-me,
Visconde, quando uma mulher quer ferir o coração de outra,
raramente deixa de encontrar o ponto mais sensível, e o ferimento
é incurável. Enquanto feria esta, ou antes, dirigia os
seus golpes, não esqueci que esta mulher era minha rival, que
por um momento a preferiu a mim, e que enfim me colocara
abaixo dela. Se falhei na vingança, consinto em pagar o erro.
Por isso, Visconde, acho que deve tentar todos os meios: insisto
mesmo, e prometo não me aborrecer com o seu êxito, se o alcançar.
Estou tão descansada a este respeito que nem penso
mais nisso. Falemos doutra coisa.
Por exemplo, da saúde da pequena Volanges. Dar-me-á
notícias seguras no meu regresso, não é verdade? Muito estimarei
recebê-las. Depois disso, compete-lhe a si decidir do que mais
convirá: entregar a menina ao namorado, ou tentar ser pela
segunda vez o fundador dum novo ramo dos Valmont, sob o
nome de Gercourt. Esta ideia diverte-me muito; deixo-lhe a escolha,
mas peço-lhe que não tome uma decisão definitiva sem
que conversemos ambos. Não se trata de adiar uma data longínqua,
porque brevemente estarei em Paris. Não lhe posso dizer
precisamente o dia; mas tenho a certeza que, logo que eu chegue,
será o primeiro a ser informado.
Adeus, Visconde; apesar das minhas disputas, partidas e
censuras, amo-o sempre muito, e preparo-me para lho provar.
Até à vista, meu amigo.

Castelo de..., 29 de Novembro de 17 **.

CARTA CXLVI

A MARQUESA DE MERTEUIL AO CAVALEIRO DANCENY

Parto enfim, meu jovem amigo, e amanhã à tarde estarei de


volta a Paris. No meio de toda a confusão que acarreta uma
viagem, não receberei ninguém. No entanto, se tiverdes alguma
confidência urgente a fazer-me, abrirei uma excepção à regra
geral; mas só para vós: por isso, peço-vos segredo da minha
chegada. O próprio Valmont não será informado.
Se alguém me tivesse dito, há uns tempos atrás, que dentro
em pouco teríeis a minha exclusiva confiança, não o acreditaria.
Mas a vossa foi a causa da minha. Quase estou tentada a acreditar
que usastes de muita habilidade, direi mesmo sedução. E isso
seria muito mal! Todavia não seria perigosa agora; tendes de
facto mais com que vos ocupar! Quando a heroína está em cena,
esquece-se a confidente.
Por isso não tivestes tempo de me contar os vossos últimos
triunfos. Quando a vossa Cecília estava ausente, o tempo não
chegava para escutar as vossas ternas queixas. Tê-las-íeis feito
para o eco, se não existisse eu para as escutar. Quando, depois,
ela esteve doente, ainda fui honrada com o relato das vossas
inquietações, tínheis necessidade de alguém a quem as contar.
Mas agora que ela está em Paris, que recoperou a saúde, e sobretudo
que a vedes às vezes, ela basta-vos, e os vossos amigos já
não valem nada.
Não vos repreendo; a culpa é dos vossos vinte anos. Desde
Alcibíades até vós, não sabemos já que os jovens só recorrem à
amizade nos desgostos de amor? A felicidade torna-os às vezes
indiscretos, mas jamais confidentes. Direi tal como Sócrates:
gosto que os meus amigos venham até mim, quando se sentem
felizes: mas, na sua qualidade de filósofo, passava bem sem eles
quando não apareciam. Nisso, não sou tão sensata como ele, e
senti o vosso silêncio com toda a fraqueza duma mulher.
Não penseis que sou exigente: estou muito longe de o ser! O
mesmo sentimento que me leva a notar estas privações faz com
que as suporte com coragem, quando são a causa ou a prova da
felicidade dos meus amigos. Conto convosco amanhã à tarde,
contanto que o amor vos deixe livre e desocupado: proíbo-vos
de me fazerdes o mínimo sacrifício.
Adeus, Cavaleiro; terei muito prazer em ver-vos: vireis?

Castelo de..., 29 de Novembro de 17* *.

CARTA CXLVII

MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE

Ficareis certamente tão aflita como eu, minha digna amiga,


quando souberdes do estado em que se encontra Madame de
Tourvel; está doente desde ontem: a doença atacou-a profundamente,
e apresenta sintomas tão graves que estou verdadeiramente
alarmada.
Uma febre ardente, um delírio violento e quase contínuo,
uma sede que se não sacia nunca, eis tudo o que se observa. Os
médicos dizem que não podem diagnosticar ainda; e o tratamento
será tanto mais difícil quanto é certo que a doente recusa
com obstinação toda a espécie de remédios: a ponto que foi preciso
agarrá-la para a sangrar; e de duas outras vezes foi necessário
usar do mesmo processo para lhe tornar a pôr a ligadura,
que ela pretendia arrancar no meio do delírio.
Vós que a conhecestes como eu, tão fraca, tão tímida e tão
doce, podereis imaginar que quatro pessoas mal a possam conter,
e que logo que lhe tentem falar razoavelmente se lance
numa ira inexprimível? Por mim, creio que não seja mais do que
delírio, e que não se trate duma verdadeira alienação do espírito.
O que aumenta os meus receios a esse respeito é o que se
passou anteontem.
Nesse dia, ela chegou pelas 11 horas da manhã, com a criada
de quarto, ao convento de... Como foi educada nessa casa e
conservou o hábito de aí voltar às vezes, foi recebida como habitualmente,
e pareceu a todos tranquila e de boa saúde. Aproximadamente
duas horas depois, perguntou se o quarto que
ocupara quando era pensionista estava vago, e como lhe respondessem
que sim, pediu para o ir ver; a superiora e outras religiosas
acompanharam-na. Foi então que declarou que voltava
a viver nesse quarto, que, afirmava, nunca deveria ter abandonado;
e donde só sairia por morte: foram as palavras dela.
Primeiro ninguém soube que dizer; mas, passado o primeiro
espanto, expuseram-lhe que o seu estado de mulher casada não
autorizava a que a recebessem sem permissão especial. Nem
essa razão, nem mil outras conseguiriam nada; e a partir desse
momento obstinou-se, não só a não sair do convento, mas até a
não deixar o quarto. Enfim, impotentes, às sete horas da tarde,
consentiram que passasse lá a noite. Mandaram embora as carruagens
e os criados, e adiaram para o dia seguinte a decisão.
Certificam que durante o serão o seu ar e porte nada tinham
de alucinados, ambos eram modestos e reflectidos; apenas caiu
quatro ou cinco vezes num cismar tão profundo que não conseguiram
despertá-la falando-lhe; e que, cada vez que saía dele,
levava as mãos à fronte como se a apertasse com força: e por
isso, como uma das religiosas presentes lhe perguntasse se lhe
doía a cabeça, olhou-a longamente antes de responder, e disse
por fim: "Não é aí que está o mal!" Um momento depois pediu
que a deixassem só, e que de futuro lhe não fizessem mais perguntas.
Toda a gente se retirou, excepto a criada de quarto, que felizmente
devia dormir no mesmo quarto que a senhora, por falta
de lugar.
Conforme a narração da rapariga, a ama esteve muito tranquila
até às onze da noite. Disse então que se queria deitar: mas,
antes de estar completamente despida, pôs-se a andar pelo quarto,
com muitos movimentos e gestos. Júlia, que fora testemunha
de tudo o que se passara durante o dia, não ousou dizer nada e
esperou em silêncio durante perto de uma hora. Por fim, Madame
de Tourvel chamou-a duas vezes seguidas; só teve tempo de
acudir, e a senhora caiu-lhe nos braços dizendo: "Não posso
mais." Deixou-se conduzir até ao leito, mas não quis tomar
nada, nem que alguém fosse buscar socorro. Mandou somente
pôr água perto dela, e ordenou a Júlia que se deitasse.
Esta assegura que esteve sem dormir até às duas da manhã,
e que não ouviu, durante esse tempo, nem movimentos nem
queixas. Mas. afirma que foi acordada às cinco horas pelo delírio
da ama, que falava em voz alta e forte; e que tendo-lhe então
perguntado se não precisava de nada, e não obtendo resposta,
acendeu o castiçal e foi ao leito de Madame de Tourvel, que a
não reconheceu; mas que, interrompendo de repente a conversação
sem seguimento que ia discorrendo, gritou vivamente:
"Deixem-me só, deixem-me nas trevas; são as trevas que me
convêm." Eu própria notei ontem que esta frase lhe volta muitas
vezes.
Enfim, Júlia aproveitou-se desta ordem para sair e ir procurar
gente e socorro: mas Madame de Tourvel recusou ambos,
com iras e delírios que depois se repetiram frequentemente.
A confusão em que isto fez mergulhar o convento decidiu a
superiora a mandar procurar-me ontem às sete da manhã...
Ainda não era dia. Acudi imediatamente. Quando me anunciaram
a Madame de Tourvel, pareceu retomar o conhecimento, e
respondeu: "Ah, sim, que entre." E assim que me aproximei do
leito, olhou-me fixamente, tomou-me a mão, que apertou, e disse
com voz forte, mas triste: "Morro por vos não ter acreditado.
" Mas logo em seguida, escondendo os olhos, voltou à sua
frase mais frequente: "Deixem-me só, etc."; e perdeu por completo
o conhecimento.
Estas palavras que me dirigiu, e ainda outras que deixou
escapar no seu delírio, fazem-me temer que esta cruel doença
tenha uma causa mais cruel ainda. Mas respeitemos os segredos
da nossa amiga, e limitemo-nos a lastimar a sua infelicidade.
Todo o dia de ontem foi muito agitado, e dividido entre
aterradores acessos de delírio e momentos de abatimento letárgico,
os únicos em que tem e dá algum repouso. Deixei a sua
cabeceira só às nove da noite, e voltarei esta manhã para todo o
dia. Claro que não abandonarei a minha amiga tão infeliz; mas
o que é desolador é a obstinação dela em recusar todos os cuidados
e socorros.
Envio-vos o boletim desta noite, que acabo de receber, e
que, como vereis, é um pouco consolador. Terei o cuidado de
vos trazer inteiramente a par de tudo.
Adeus, minha digna amiga, vou para junto da doente. A
minha filha, que felizmente está quase inteiramente restabelecida,
cumprimenta-vos.

Paris, 29 de Novembro de 17* *

CARTA CXLViii

O CAVALEIRO DANCENY A MARQUESA DE MERTEUIL

Ó vós que eu amo! ó tu que eu adoro! vós que fizestes a


minha felicidade! tu que a cumulaste! Amiga sensível, terna
amante, por que é que a lembrança da tua dor vem perturbar o
encanto que experimento? Ah! acalmai-vos, é a amizade que
vo-lo roga. Oh! minha amiga, sede feliz! é a súplica do amor.
Ah! que censuras tendes a fazer-vos? Crede-me, a vossa delicadeza
engana-vos. Os remorosos que vos causa, os erros de
que me acusa, são igualmente ilusórios; e sinto no meu coração
que houve entre nós um sedutor único: o amor. Não temas entregar-te
aos sentimentos que inspiras, deixar-te penetrar pelo
fogo que fazes nascer. O quê! Seriam os nossos corações menos
puros por só tarde terem sido esclarecidos? Não, com certeza. É
só a sedução que, agindo sempre com um fim, pode combinar a
marcha e os meios, e prever de longe os acontecimentos. Mas o
verdadeiro amor não permite meditar e reflectir: afasta-nos dos
projectos por meio dos sentimentos; o seu poder é tanto mais
forte quanto nos é desconhecido, e é na sombra do silêncio que
nos prende por laços que são impossíveis de conhecer ou de
romper.
Deste modo, ainda ontem, apesar da viva emoção que me
causava a ideia do vosso regresso, do prazer intenso que senti ao
ver-vos, julgava no entanto ser chamado e conduzido apenas
pela tranquila amizade: ou antes, inteiramente entregue aos
doces sentimentos do meu coração, bem pouco me preocupava
em esclarecer-lhes a origem ou a causa. Tal como eu, minha terna
amiga, também tu sentias, sem o saber, esse encanto poderoso
que entregava as nossas almas às doces impressões da ternura;
e ambos só reconhecemos o amor ao sair da embriaguez em
que esse deus nos mergulhara.
Mas é isso que nos justifica em vez de nos condenar. Não,
não traíste a amizade, nem eu abusei da tua confiança. Ambos,
é certo, ignorávamos os nossos sentimentos; mas essa ilusão
experimentávamo-la apenas, não a procurávamos fazer nascer.
Ah, em vez de a lamentarmos, pensemos na felicidade que nos
trouxe; e sem a perturbarmos com injustas censuras, dediquemo-nos
antes a aumentá-la ainda com o encanto da confiança é
da segurança. Oh, minha amiga! Como esta esperança é cara ao
meu coração! Sim, de ora em diante, livre de todo o temor, inteiramente
dada ao amor, partilharás os meus desejos, os meus
êxtases, o delírio dos meus sentidos, a embriaguez da minha
alma; e cada instante dos nossos dias afortunados será assinalado
por uma nova voluptuosidade.
Adeus, adoro-te! Ver-te-ei esta tarde, mas encontrar-te-ei só?
Não ouso esperá-lo. Ah! Tu não o desejas tanto como eu.
Paris, 1 de Dezembro de 17* *.

CARTA CXLIX

MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE

Ontem durante todo o dia tive esperanças, minha digna


amiga, de vos poder dar esta manhã notícias mais favoráveis da
saúde da nossa querida doente; mas desde ontem à tarde que
essa esperança foi destruída, e só me resta a pena de a ter perdido.
Um acontecimento, bem indiferente na aparência, mas bem
cruel pelas consequências que teve, tornou o estado da doente
tão lastimável como antes, se é que o não agravou.
Nada teria compreendido desta súbita transformação, se
ontem não tivesse recebido as confidências da nossa infeliz amiga.
Como ela me não deixou ignorar que também estáveis informada
de todos os seus infortúnios, posso falar sem reserva sobre
a sua triste situação.
Ontem de manhã, quando cheguei ao convento, disseram-me
que a doente dormia há mais de três horas; e o sono era tão
profundo e tranquilo, que por um momento receei que fosse letárgico.
Algum tempo depois acordou, e abriu ela própria as
cortinas do leito. Olhou-nos a todos surpreendida; e quando me
levantei para ir junto dela, reconheceu-me, chamou-me e pediu-me
que me aproximasse. Não me deu tempo para a interrogar,
e perguntou-me onde estava, o que fazíamos ali, se estava
doente e por que não se encontrava em casa. Primeiro pensei
que se tratava dum novo delírio, embora mais tranquilo que o
precedente: mas vi que ela compreendia muito bem as minhas
respostas. Tinha com efeito recuperado a razão, mas não a memória.
Interrogou-me, com muitos pormenores, sobre tudo o que
lhe acontecera desde que chegara ao convento, para onde não se
lembrava de ter vindo. Respondi com exactidão, suprimindo
apenas o que teria podido assustá-la: e quando pelo meu lado
lhe perguntei como estava, respondeu-me que não sofria nesse
momento; mas que tinha sido muito atormentada durante o
sono, e que ainda se sentia fatigada. Exortei-a a acalmar-se e a
falar pouco; depois disto, fechei em parte as cortinas, que deixei
somente entreabertas, e sentei-me perto do leito. Ao mesmo
tempo, ofereceram-lhe um caldo que tomou e achou bom.
Ficou assim cerca de meia hora, durante a qual não falou
senão para agradecer os cuidados que eu lhe dispensara; e pôs
nos agradecimentos a gentileza e a graça que lhe conheceis. Em
seguida guardou durante algum tempo um absoluto silêncio,
que só rompeu para dizer: "Ah, sim, lembro-me de aqui ter vindo";
e um momento depois, gritou dolorosamente: "Minha
amiga, minha amiga, lamentai-me; reencontro os meus infortúnios.
" Como nesse momento me aproximei dela, agarrou-me na
mão e, apoiando nela a cabeça, continuou: "Grande Deus, não
poderei então morrer?" A sua expressão, mais ainda que as palavras,
enterneceu-me até às lágrimas; compreendeu-o pela
minha voz, e disse-me: "Lamentais-me! Ah, se soubésseis..." E
depois interrompendo-se: "Ordenai que nos deixem sós, e dir-vos-ei
tudo. "
Tal como julgo ter-vos indicado, tinha já suspeitas sobre
qual deveria ser o assunto desta confidência; e temendo que esta
conversa, que previa dever ser longa e triste, prejudicasse o estado
da nossa infeliz amiga, recusei-me a princípio, sob o pretexto
de que ela necessitava de repouso: mas insistiu e acedi às suas
instâncias. Assim que ficámos sós, contou-me tudo o que já vos
narrou, e que por essa razão vos não repetirei.
Falou-me enfim da maneira cruel como foi sacrificada e
acrescentou: "Estava certa de que morreria por causa disso e
tinha coragem; mas sobreviver ao infortúnio e à vergonha, é-me
impossível." Tentei combater este desânimo, ou antes, este desespero,
com as armas da religião, até então com tanto poder
sobre ela; mas senti logo que não tinha força suficiente para
essas augustas funções, e propus-lhe então que se chamasse o
padre Anselmo, que sei ser depositário de toda a sua confiança.
Consentiu e pareceu mesmo desejá-lo muito. Mandámos com
efeito buscá-lo, e ele veio imediatamente. Permaneceu muito
tempo com a doente, e disse ao sair que, se os médicos pensassem
como ele, julgava poder adiar a cerimónia dos sacramentos,
e que voltaria no dia seguinte.
Eram cerca das três horas da tarde, e até às cinco a nossa
amiga esteve muito tranquila: de modo que todos voltáramos a
ter esperança. Por desgraça, trouxeram-lhe então uma carta.
Quando pretenderam entregar-lha, respondeu não querer receber
nenhuma e ninguém insistiu. Mas a partir desse momento,
ficou muito agitada. Pouco depois, perguntou donde vinha a
carta. Não estava selada. Quem a trouxera? Ninguém sabia. Da
parte de quem vinha? Não o tinham dito ao porteiro. Em seguida
guardou silêncio durante algum tempo; depois disto, recomeçou
a falar: mas as suas frases sem seguimento só nos indicaram
que o delírio voltara.
Contudo houve ainda um intervalo tranquilo, até que pediu
que lhe entregassem a carta que haviam trazido para ela. Assim
que lhe lançou um olhar gritou: "Dele! Meu Deus!", e depois
com uma voz forte, mas abafada: "Tomem-na, tomem-na."
Mandou imediatamente fechar as cortinas do leito e proibiu
todos de se aproximarem: mas pouco depois fomos obrigados a
voltar junto dela. O delírio recomeçara mais violento do que
nunca, e era acompanhado de convulsões verdadeiramente assustadoras.
Estes acidentes não cessaram em toda a tarde; e o
boletim desta manhã informa-me de que a noite não foi menos
agitada. Enfim, o seu estado é tal, que me espanto que não tenha
já sucumbido; e não vos escondo que me restam poucas
esperanças.
Suponho que essa funesta carta seria do senhor de Valmont,
mas que ousará ele dizer-lhe ainda? Perdão, minha cara amiga;
evitarei qualquer reflexão: mas é muito cruel ver perecer tão
desgraçadamente uma mulher, até agora tão feliz e tão digna de
o ser.

Paris, 2 de Dezembro de 17 *

CARTA CL

O CAVALEIRO DANCENY A MARQUESA DE MERTEUIL

Enquanto espero a felicidade de te tornar a ver, minha terna


amiga, entrego-me ao prazer de te escrever; e é ocupando-me de
ti que atenuo a pena de estar afastado. Expor-te os meus sentimentos,
recordar-me dos teus, é para o meu coração um verdadeiro
prazer; e é através dele que mesmo o momento das privações
me oferece ainda mil bens preciosos. No entanto, segundo
disseste, não receberei resposta tua: mesmo esta carta será a última;
e privar-nos-emos duma correspondência que, quanto a
ti, é perigosa, e de que não temos necessidade. Claro que, se insistes,
te acreditarei: pois que podes tu querer que por essa
mesma razão eu não queira também? Mas antes de dizer a última
palavra, não consentirás que falemos sobre isso?
Quanto aos perigos, deves tu decidir: nada posso prever, e
limito-me a pedir-te que olhes pela tua segurança, porque não
posso estar tranquilo sabendo-te inquieta. No que respeita a
este assunto, não somos nós ambos que formamos um, és tu que
és nós ambos.
Não é o mesmo quanto à necessidade: aqui temos de pensar
do mesmo modo, e se temos opiniões diferentes, é com certeza
por não nos explicarmos ou compreendermos. Eis pois o que
julgo sentir.
Sem dúvida que uma carta parece muito pouco necessária
quando nos podemos ver livremente. Que poderá ela dizer, que
uma palavra, ou olhar, ou mesmo um silêncio, não exprimissem
cem vezes melhor? Isto parece-me tão verdadeiro que, no momento
em que me falaste de não mais nos escrevermos, essa
ideia deslizou facilmente sobre a minha alma; perturbou-a talvez,
mas não a afectou. Tal como quando, querendo beijar-te
sobre o coração, encontro uma fita ou um véu; afasto-o apenas,
sem chegar a ter o sentimento de um obstáculo.
Mas depois separámo-nos; e logo que deixaste de estar presente,
essa ideia da carta voltou a atormentar-me. Porquê,
murmurei, mais essa privação? Pois quê! Por estarmos afastados
nada mais teremos a dizer-nos? Suponhamos que, favorecidos
pelas circunstâncias, passamos juntos um dia inteiro; será
preciso que o tempo para conversar seja roubado ao do prazer?
Sim, ao do prazer, minha terna amiga; porque ao pé de ti, mesmo
os momentos de repouso fornecem ainda uma voluptuosidade
deliciosa. Enfim, mesmo que tenhamos muito tempo, acabamos
por nos separar; e, depois, fica-se tão só! É então que
uma carta se torna preciosa! Se a não lemos, pelo menos olhamo-la...
Ah! Sem dúvida, pode-se olhar uma carta sem a ler, tal
como de noite sinto que teria ainda prazer em tocar o teu retrato...
O teu retrato, digo? Mas uma carta é o retrato da alma.
Não tem, como a fria imagem, essa fixidez que tão distante é do
amor; presta-se a todos os nossos movimentos: alternadamente
anima-se, goza, repousa-se... Todos os teus sentimentos me são
tão preciosos! Privar-me-ás dum meio de os coligir?
Tens a certeza de que a necessidade de me escrever nunca te
atormentará? Se na solidão o teu coração se dilata ou se aflige,
se um movimento de alegria agita a tua alma, se uma involuntária
tristeza a vem perturbar por um momento, não será então no
seio do teu amigo que expandirás a tua felicidade ou o teu desgosto?
Terás então um sentimento que ele não partilhará? Deixá-lo-ás
então, sonhador e solitário, vaguear longe de ti?...
Minha amiga!... Minha terna amiga!... Mas é a ti que compete
decidir. Quis somente debater o assunto e não seduzir-te; só te
apresentei razões, ouso crer que seria mais convincente com súplicas.
Procurarei, se persistes, não me afligir; farei esforços
para dizer a mim próprio o que me terias escrito: mas escuta,
di-lo-ias melhor do que eu; e sobretudo ser-me-ia muito mais
agradável de ouvir.
Adeus, minha encantadora amiga; aproxima-se a hora em
que te poderei ver: abandono-te com pressa, para te reencontrar
mais cedo.

Paris, 3 de Dezembro de 17* *


CARTA CLI

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

Sem dúvida, Marquesa, me não julga tão inexperiente, a


ponto de pensar que me pude deixar iludir quanto ao encontro

a sós em que a surpreendi esta tarde, e ao espantoso acaso que


conduzira Danceny a sua casa! Não é que a sua fisionomia tão
treinada não tenha sabido assumir às mil maravilhas uma expressão
calma e serena, nem que se tenha traído por alguma das
frases que às vezes escapam à perturbação ou ao pesar. Concordo
até que os seus olhares dóceis a serviram perfeitamente; e se
se tivessem feito acreditar tão bem como compreender, eu estaria
longe de sentir ou conservar a mínima suspeita, e nem por
um momento desconfiaria do desgosto enorme que lhe causava
esse estranho importuno. Mas, para não ostentar em vão tão
grandes talentos, para obter o êxito que desejava, para conseguir
enfim a ilusão que procurava fazer nascer, seria preciso em
primeiro lugar instruir o seu cândido amante com mais cuidado.
Visto que se começa a dedicar à educação, ensine os seus
alunos a não corarem e a não se desconcertarem ao mínimo
gracejo; a não negarem tão vivamente, quanto a uma só mulher,
as mesmas coisas de que se defendem tão debilmente quanto a
outras. Ensine-lhes ainda a saberem escutar o elogio da sua
amante, sem se julgarem obrigados a prestar-lhe as homenagens;
e se permite que a olhem em sociedade, que ao menos saibam
disfarçar esse olhar de posse tão fácil de reconhecer, e que
confundem tão inabilmente com o do amor. Então pode mandá-los
comparecer aos exames públicos, sem que a sua conduta
deixe mal a sábia professora; e eu próprio, muito feliz por concorrer
para a sua celebridade, prometo-lhe elaborar e publicar
os programas desse novo colégio.
Mas até lá espanto-me, confesso, que fosse a mim que experimentasse
tratar como um colegial. Oh, com qualquer outra
mulher, depressa me vingaria! E teria nisso um tão grande prazer!
Como esse prazer ultrapassaria facilmente o que ela me julgara
fazer perder! Sim, é só para si que prefiro a reparação à
vingança; e não julgue que esteja preso pela mínima dúvida ou
pela mais ligeira incerteza; sei tudo.
Está em Paris há quatro.dias; e todos os dias recebeu Danceny,
e só ele. Ainda hoje a sua porta estava fechada; e só faltou
ao porteiro, para me impedir de chegar a si, uma segurança
igual à sua. No entanto eu podia ter a certeza, como me mandou
dizer, de ser o primeiro informado da sua chegada; dessa
chegada de que ainda me não podia informar o dia, enquanto
me escrevia na véspera da partida. Negará estes factos ou tentará
desculpar-se? uma e outra coisa são igualmente impossíveis;
e no entanto ainda me contenho! Por aqui reconhecerá o seu
poder; mas creia-me: satisfeita por o ter experimentado, não
deverá abusar dele mais tempo. Conhecemo-nos bem, Marquesa;
estas palavras devem bastar-lhe.
Disse-me que amanhã estará fora de casa todo o dia? Oxalá
que saia de facto; pode ter a certeza de que o saberei. Mas, enfim,
voltará ao fim da tarde; e para a nossa difícil reconciliação,
não teremos tempo de sobra até ao dia seguinte. Mande-me
dizer se será em sua casa, ou na outra, que se farão as nossas
numerosas e recíprocas expiações. Sobretudo, acabou-se o
Danceny. A sua má cabeça estava cheia dele, não posso ter ciúmes
desse delírio da imaginação: mas pense que a partir deste
momento, o que era apenas uma fantasia tornar-se-á uma nítida
preferência. Não me julgo feito para essa humilhação, e não
quero recebê-la de si.
Conto até que esse sacrifício não vos pareça tal. Mas mesmo
que lhe custasse um tanto, parece-me que já lhe dei um belo
exemplo! Uma mulher simultaneamente sensível e bela, que só
vivia para mim, e que neste momento morre talvez de amor e
remorso, vale bem um jovem colegial, a quem, poderemos dizer,
não falta figura nem espírito, mas que não tem nem prática nem
segurança.
Adeus, Marquesa; nada lhe digo dos meus sentimentos por
si. Prefiro neste momento não sondar o meu coração. Espero a
sua resposta. Medite bem nela, pense bem que tanto quanto lhe
é fácil ainda fazer-me esquecer a ofensa que me infligiu, tanto
mais uma recusa da sua parte, um simples adiamento, a gravará
no meu coração em traços inapagáveis.

Paris, noite de 3 de Dezembro de 17* *

CARTA CLII

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Tenha cuidado, Visconde, poupe mais a minha extrema timidez!


Como quer que eu suporte a ideia deprimente de incorrer
na sua indignação; e sobretudo que não sucumba ao terror
da sua vingança? Tanto mais que, como sabe, se me fizer uma
infâmia ser-me-á impossível retribuí-la. Seria escusado que eu
falasse, a sua existência não seria nem menos brilhante, nem
menos tranquila. Na verdade, que teria a temer? Ser obrigado a
partir, se lhe dessem tempo. Mas não se vive no estrangeiro tão
bem como aqui? E afinal de contas, contanto que a Corte de
França o deixasse tranquilo onde se fixasse, para si seria apenas
mudar o cenário dos seus triunfos. Após ter tentado chamá-lo à
razão por meio destas considerações morais, voltemos ao nosso
problema.
Sabe, Visconde, por que é que não tornei a casar? Não foi
com certeza por não ter encontrado partidos vantajosos; mas
unicamente para que ninguém tenha o direito de censurar as
minhas acções. Nem sequer foi por medo de não poder fazer o
que me apetecesse, pois sempre acabaria por o conseguir: mas
porque me teria incomodado a ideia de que alguém se julgasse
com direito a queixar-se; e, enfim, porque só gosto de atraiçoar
por prazer, e não por necessidade. E eis que o Visconde me escreve
a carta mais conjugal que se possa imaginar! Só me fala
de erros do meu lado e de benevolência do seu! Mas como se
pode faltar àquele a quem nada se deve? Não sou capaz de o
saber !
Vejamos: afinal de que se trata? Encontrou Danceny em
minha casa, e isso desagradou-lhe? Pois bem: e que concluiu
daí? Ou que se tratava dum acaso, como eu lhe disse, ou que
fora por minha vontade, ao contrário do que lhe dizia. No
primeiro caso a sua carta é injusta; no segundo, ridícula; não valia
a pena escrevê-la! Mas está com ciúmes, e os ciúmes não raciocinam.
Pois bem! Pensarei eu por si.
Ou tem rival, ou não. Se tem, deve agradar para ser preferido;
se não tem, deve agradar ainda mais para evitar vir a tê-lo.
Em ambos os casos, deve seguir a mesma conduta; assim, para
que atormentar-se! Para quê, sobretudo, atormentar-me a mim!
Já não sabe ser amável? Já duvida do seu êxito? Vejamos, Visconde,
é injusto para si próprio. Mas não é isso; é que, aos seus
olhos, eu não mereço tanto trabalho. Deseja muito menos as
minhas bondades, do que abusar do seu poder. Vamos, o Visconde
é um ingrato. E aqui estou eu a ficar sentimental! E por
pouco que eu continuasse neste tom, esta carta podia tornar-se
muito terna: mas o senhor não o merece.
Também não merece que eu me justifique. Para o castigar
das suas suspeitas, deixo-o ficar com elas: deste modo, nada
direi sobre a data do meu regresso, nem sobre as visitas de Danceny.
Teve muito trabalho para se informar, não é verdade?
Pois bem! Já está mais adiantado? Espero que tenha tido muito
prazer nessa tarefa; quanto a mim, em nada estragou o meu.
O que posso responder à sua ameaçadora carta, é que ela
não teve nem o dom de me agradar, nem o poder de me intimidar;
e que neste momento não estou nada disposta a aceder aos
seus pedidos.
Para falar verdade, aceitá-lo tal como hoje se mostra, seria
fazer-lhe realmente uma infidelidade. Não era recomeçar com o
meu antigo amante; mas antes arranjar um novo, e que nem de
longe vale o outro. Ainda não esqueci bastante o primeiro para
assim me enganar. O Valmont que eu amava era encantador.
Concordo mesmo que não encontrei homem mais agradável.
Ah, suplico-lhe, Visconde, se o encontrar, traga-mo; esse será
sempre bem recebido.
Contudo previna-o de que, em qualquer caso, não será nem
para hoje nem para amanhã. O seu Menechmel prejudicou-o; e,
apressando-me demasiado, temo enganar-me. Ou talvez já eu
tenha dado a palavra a Danceny para esses dois dias? E a sua
carta mostrou-me que se zangava quando faltavam à palavra.
Bem vê que é preciso esperar.
Mas que lhe importa? Acabará por se vingar bem do seu
rival. Ele não fará pior à sua amante do que o Visconde já fez à
dele; e afinal, não vale uma mulher o mesmo que outra? São
estes os seus princípios. Mesmo aquela que fosse terna e sensível,
que existisse só para si, que morresse por fim de amor e
remorso, seria do mesmo modo sacrificada à primeira fantasia,
ao terror de ser troçado por um momento; e quer que nos mortifiquemos?
Ah, isso não é justo.
Adeus, Visconde; volte de novo a ser amável. Escute, só
quero achá-lo outra vez encantador; e desde que esteja certa
disso, comprometo-me a provar-lho. Sou na verdade demasiado
indulgente.

Paris, 4 de Dezembro de 17

Alude à comédia de Plauto Os Menechmes, que trata de dois irmãos


gémeos, inteiramente semelhantes. (N. do T.)

CARTA CLIII

O VISCONDE DE VALMONT À MARQUESA DE MERTEUIL

Respondo imediatamente à sua carta, e procurei ser claro; o


que não é fácil em relação a si, quando por vezes toma a decisão
de não compreender.
Não eram necessários longos discursos para estabelecer
que, tendo cada um de nós na mão tudo o que é preciso para
destruir o outro, temos igual interesse em nos pouparmos mutuamente:
não é disso que se trata. Mas, entre a decisão violenta
de nos destruirmos, e a outra, sem dúvida melhor, de ficarmos
unidos como temos sido, de nos tornarmos ainda mais íntimos
reatando a nossa antiga ligação; entre estas duas decisões, dizia
eu, há mil outras a tomar. Não é ridículo dizer-lhe, repetir-lhe
que, a partir de hoje, serei seu amante ou seu inimigo.
Bem vejo que a necessidade da escolha a importuna; que lhe
agradaria mais tergiversar; e não ignoro que nunca foi do seu
agrado ser assim colocada entre o sim e o não: mas deve sentir
também que a não posso deixar sair desse círculo estreito sem
me arriscar a ser iludido; e devia prever que o não suportaria.
Compete-lhe pronunciar-se: deixo-lhe a decisão, mas não posso
ficar na incerteza.
Já a previno de que me não enganará com os seus raciocínios,
bons ou maus; que me não seduzirá com lisonjas a enfeitar
recusas; e que enfim chegou o momento da franqueza. Desejo
até dar-lhe o exemplo; e declaro com prazer que prefiro paz e
união: mas se é preciso quebrar ambas, quero ter o direito e os
meios para tal.
Acrescento até que o mínimo obstáculo levantado do seu
guerra: bem vê que a resposta que lhe peço não exige frases largas
e belas. Bastam duas palavras.

Paris, 4 de Dezembro de 17

Resposta da Marquesa de Merteuil escrita no fim


da mesma carta

Pois bem: guerra.

CARTA CLIV

MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE

Os boletins informar-vos-ão melhor do que eu poderia fazer,


minha cara amiga, acerca do estado grave da nossa doente.
Inteiramente entregue aos cuidados que lhe dispenso, só roubo
tempo para vos escrever, quando há outros acontecimentos
além dos da doença. Eis um, que eu estava bem longe de esperar.
Trata-se duma carta do senhor de Valmont, a quem aprouve
escolher-me como confidente e mesmo como intermediária
junto de Madame de Tourvel, para quem juntara uma carta à
minha. Devolvi uma ao mesmo tempo que respondia à outra.
Mando-vos esta última e penso que julgareis, como eu, que não
podia nem devia fazer o que ele me pede. Mesmo que o tivesse
querido, a nossa infeliz amiga não estaria em estado de me
compreender. O delírio é contínuo. Mas que dizeis deste desespero
do senhor de Valmont? Em primeiro lugar, devemos acreditá-lo,
ou quererá ele somente iludir todos e até ao fim? Se
desta vez é sincero, bem pode dizer que construiu ele próprio a
sua infelicidade. Creio que terá ficado pouco satisfeito com a
minha resposta: mas confesso que tudo o que me faz pensar
sobre esta funesta aventura me revolta cada vez mais contra o
seu autor.

Adeus, minha querida amiga; volto às minhas tristes funções,


e pouca esperança tenho de as ver coroadas de êxito. Conheceis
os meus sentimentos para convosco.

Paris, 5 de Dezembro de 17* *

N. dos T. - Na edição Classiques Garnier", de 1952, elaborada sobre o


manuscrito autógrafo, dá-se em nota a carta referida por Madame de Volanges,
que Laclos teria escrito e depois suprimido, e de que damos a tradução:

O VISCONDE DE VALMONT A MADAME DE VOLANGES

Sei, minha senhora, que não gostais de mim; também não ignoro que fostes
sempre contrária à minha pessoa junto de Madame de Tourvel, e do mesmo
modo não tenho dúvidas de que, mais do que nunca, experimenteis os mesmos
sentimentos a meu respeito. Convenho até que possais julgar justos esses
sentimentos.
Entretanto, é a vós que me dirijo, e não receio pedir-vos que entregueis
a Madame de Tourvel a carta que junto aqui para ela, e ainda solicitar-vos que
consigais que a leia e a disponhais a isso dando-lhe a certeza do meu
arrependimento, do meu pesar e sobretudo do meu amor. Sinto que esta
diligência poderá parecer-vos estranha; a mim próprio ela admira. Mas
o desespero apodera-se dos meios
sem os calcular, e, por outro lado, um interesse tão grande, tão caro e
que nos é comum deve afastar qualquer outra consideração. Madame de Tourvel
está à morte; Madame de Tourvel é infeliz: é necessário restituir-lhe a vida, a
saúde e a felicidade. Eis o objectivo a cumprir. Todos os meios são bons, desde
que possam assegurar ou apressar o êxito. Se rejeitardes este que vos ofereço,
ficareis responsável pelo acontecimento da sua morte: o vosso pesar e o meu
desespero eterno, tudo será obra vossa. Sei que ultrajei indignamente uma
mulher digna de toda a minha adoração; sei que só as minhas torpes ofensas são
a causa de todos os males que ela suporta. Não pretendo diminuir as minhas
faltas nem desculpá-las. Mas vós, senhora, deveis temer tornar-vos cúmplice
impedindo-me de as reparar. Mergulhei o punhal no coração da vossa amiga, mas
só eu posso retirar o ferro da ferida, só eu conheço os meios de a curar. Que
importa que eu seja culpado, se posso ser útil? Salvai a vossa amiga, salvai-a!
É do vosso socorro que ela necessita, e não da vossa vingança.

Paris, 4 de Dezembro de 17" "

CARTA CLV

O VISCONDE DE VALMONT AO CAVALEIRO DANCENY

Passei duas vezes por sua casa, meu caro Cavaleiro: mas
desde que abandonou o papel de apaixonado pelo de aventureiro
galante, é impossível encontrá-lo. Todavia o seu criado de
quarto assegurou-me que voltaria a casa esta tarde, e que tinha
ordem para o esperar; mas eu, que estou ao par dos seus projectos,
bem vi que o meu amigo não voltaria senão por um momento,
para vestir o trajo apropriado, e que imediatamente recomeçaria
as suas corridas vitoriosas. Ainda bem, e só devo
aplaudi-lo: mas talvez, para esta noite, seja tentado a mudar de
direcção. Ignora ainda o caminho que tomaram metade dos
assuntos que lhe dizem respeito; devo pô-lo ao corrente daquele
que desconhece, e depois decidirá. Dedique algum tempo a ler
esta carta. Não será afastá-lo dos seus prazeres, pois, pelo contrário,
ela tem como objectivo permitir-lhe a escolha.
Se fosse eu o depositário de todas as suas confidências, se
tivesse sabido por si a parte dos segredos que fui forçado a adivinhar,
a elucidação teria vindo a tempo; e o meu zelo, menos
hábil, não entravaria agora os seus movimentos. Mas partamos
do ponto em que estamos. Qualquer que seja a decisão que
tome, nunca deixará de fazer a felicidade de alguém.
Tem um encontro para esta noite, não é verdade? Com uma
mulher encantadora e a quem adora? Pois na sua idade, que
mulher não adoramos, pelo menos nos oito primeiros dias! O
cenário deve contribuir também para o prazer. Uma casinha
deliciosa, que existe só para si, deve aumentar a voluptuosidade
com os encantos da liberdade e do mistério. Está tudo combinado,
esperam-no e o meu amigo arde no desejo de chegar! Eis o
que ambos sabemos, se bem que nada me tenha dito. Agora, eis
o que não sabe, e de que devo informá-lo.
Desde o meu regresso a Paris que me ocupava com os meios
de o pôr em contacto com Mademoiselle de Volanges, tal como
lhe prometera; e ainda da última vez que lhe falei, tive ocasião
de julgar pelas suas respostas, direi até pelo seu entusiasmo, que
contribuía para a sua felicidade. Sozinho não conseguiria eu
resolver esta questão tão difícil, mas, depois de ter preparado os
:- meios, deixei o resto entregue ao zelo da sua jovem apaixonada.
Ela encontrou, no seu amor, recursos que faltavam à minha
experiência: enfim, para mal do meu amigo, ela conseguiu o que
desejava. Há dois dias, disse-me ela esta tarde, que todos os obstáculos
estão vencidos e que a vossa felicidade depende só de si.
Há dois dias que anseia por transmitir-vos ela própria a notícia,
e, apesar da ausência da mãe, não deixaria por isso de ser
recebido: mas nem sequer apareceu! E, para lhe não esconder
nada, ou por capricho ou a valer, a criaturinha pareceu-me um
tanto zangada por essa falta de ardor da sua parte. Encontrou
enfim um meio de me mandar chamar e obrigou-me a prometer
que lhe enviaria o mais cedo possível a carta que junto. Pelo zelo
que mostrou, iria apostar que se trata dum encontro para esta
noite. Seja o que for, prometi, pela honra e pela amizade, que
lhe faria chegar às mãos a terna missiva durante o dia, e não
posso nem quero faltar à minha palavra.
E agora, jovem, que tenciona fazer? Colocado entre a coqueteria
e o amor, entre o prazer e a felicidade, qual vai ser a
sua escolha? Se eu falasse ainda ao Danceny de há três meses, ou
mesmo de há oito dias, conhecedor do coração dele, sê-lo-ia
também das suas decisões; mas o Danceny de hoje, arrastado
pelas mulheres, entregando-se a aventuras, e tornado, como é
costume, um tanto nervoso, preferirá ele uma donzela tímida,
que só tem por si a beleza, a inocência e o amor, aos atractivos
duma mulher experiente?
Por mim, meu caro amigo, parece-me que, mesmo dentro
dos seus novos princípios, que confesso serem também um pouco
os meus, as circunstâncias far-me-iam decidir pela jovem
amante. Primeiro, será mais uma, e depois a novidade, e ainda o
temor de perder o fruto dos seus cuidados desprezando colhê-lo;
porque, enfim, por esse lado, seria de facto uma oportunidade
falhada, que nem sempre volta, sobretudo se se trata duma
primeira fraqueza: muitas vezes, neste caso, basta um momento
de zanga, uma suspeita de ciúme, menos ainda, para impedir o
mais belo triunfo. A virtude que se afoga agarra-se às vezes aos
ramos; mas uma vez salva, mantém uma certa reserva e não é já
fácil de surpreender.
E do outro lado, afinal que se arrisca? Nem sequer uma ruptura;
quando muito uma disputa, que, com alguns cuidados,
pagará o prazer duma reconciliação. Que mais resta a uma
mulher que se entregou, a não ser á indulgência? Que poderá
ganhar com a severidade? A perda dos prazeres, sem proveito
para a sua reputação.
Se, como suponho, seguir o caminho do amor, que me parece
ser também o da razão, creio que será prudente não se desculpar
pela falta do encontro; deixe simplesmente que o esperem:
se se arrisca a dar uma desculpa é muito possível que tentem
verificá-la. As mulheres são curiosas e obstinadas; tudo se pode
descobrir: acabo, como sabe, de ser vítima de um exemplo disso.
Mas se lhe deixar a esperança, como será alimentada pela
vaidade, só morrerá muito tempo depois do momento propício
para as informações: e então amanhã o meu amigo só terá de
escolher o obstáculo intransponível que o reteve; esteve doente,
morto até se for preciso, ou qualquer outra coisa com que estará
igualmente desesperado, e tudo se arranjará.
De resto, qualquer que seja a decisão que tome, peço-lhe só
que me informe; e como não tenho qualquer interesse, acharei
sempre que fez bem. Adeus, meu caro amigo.
Acrescento ainda que lastimo Madame de Tourvel; estou
desesperado por estar separado dela; daria metade da minha
vida pela felicidade de lhe consagrar a restante. Ah! Acredite-me,
só o amor nos pode fazer felizes.

Paris, 5 de Dezembro de 17* *

CARTA CLVI

CECíLIA VOLANGES AO CAVALEIRO DANCENY

(Junta à precedente)

Por que é que acontece, meu caro amigo, que deixo de o ver,
quando não deixo de lhe querer? Não o deseja tanto como eu?
Ah! Agora é que estou triste! Mais triste do que quando estávamos
completamente separados. O desgosto que os outros me
faziam sofrer é agora de si que me vem, e isso custa-me muito
mais.
Desde há uns dias que a Mamã nunca está em casa, bem o
sabe; e esperava que procurasse aproveitar esse tempo de liberdade:
mas já nem sequer pensa em mim; sou muito infeliz! Tanta
vez me disse que era eu que amava menos! Eu bem sabia que
era o contrário, e eis a prova. Se tivesse vindo ver-me, ter-me-ia
visto de facto: porque eu não sou como o Cavaleiro; penso só
no que nos pode reunir. Merecia que eu nada lhe dissesse do que
fiz para isso, e que me deu tanto trabalho: mas amo-o demasiado
e tenho tanta vontade de o ver, que não posso fugir a dizer-lhe
tudo. E depois, verei se realmente me tem amor!
Trabalhei tão bem que convenci o porteiro, o qual me prometeu
que o deixará entrar como se o não visse todas as vezes
que venha: e podemos confiar nele, porque é muito boa pessoa.
Trata-se apenas de evitar que o vejam em casa; e isso será muito
fácil, se só vier à noite, quando já nada há a temer. Por exemplo,
desde que a Mamã sai todos os dias, deita-se todas as noites às
onze horas; assim teremos tempo de sobra.
O porteiro disse-me que quando quiser vir deste modo, em
vez de bater à porta, deve bater à janela dele e que ele abrirá
imediatamente; e, depois, achará a escada interior; e como não
pode usar luz, deixarei a porta do meu quarto entreaberta, o
que sempre o iluminará um pouco. Tomará cuidado em não
fazer barulho, principalmente ao passar pela porta da Mamã.
Quanto à da minha criada de quarto, não faz mal, porque me
prometeu que não acordaria; é também muito boa rapariga! E
para se ir embora, será o mesmo. Agora, veremos se vem.
Meu Deus, por que é que sinto o coração bater tão forte
enquanto lhe escrevo? É porque me vai acontecer alguma infelicidade,
ou é a esperança de o ver que assim me perturba? O que
sinto é que nunca o amei tanto, e nunca desejei tanto dizer-lho.
Venha, meu amigo, meu querido amigo; para que lhe possa repetir
cem vezes que o amo, que o adoro, que só o amarei a si.
Achei um meio de mandar dizer ao senhor de Valmont que
precisava falar-lhe; e ele, como é um bom amigo, virá com certeza
amanhã, e vou pedir-lhe que lhe mande logo a minha carta..
Esperá-lo-ei pois amanhã à noite, e virá sem falta se não quiser
que a sua Cecília seja muito infeliz.
Adeus, meu caro amigo; beijo-o com todo o amor.

Paris, 4 de Dezembro de 17* *.

CARTA CLVII

O CAVALEIRO DANCENY AO VISCONDE DE VALMONT

Não duvide, meu caro Valmont, nem do meu coração, nem


do meu procedimento: como poderia eu resistir a um desejo da
minha Cecília? Ah! É certamente ela a única que amo, que sempre
amarei! A sua ingenuidade, a sua ternura, têm para mim um
encanto de que pude ter a fraqueza de me deixar afastar, mas
que nada apagará. Metido noutra aventura, por assim dizer sem
dar por isso, muitas vezes a lembrança de Cecília me veio perturbar
mesmo nos mais doces prazeres; e talvez nunca o meu
coração lhe tenha rendido homenagens mais verdadeiras do que
no próprio momento em que lhe era infiel. Contudo, meu amigo,
respeitemos a delicadeza dela, e escondamos-lhe os meus
erros; não para a iludir, mas para a não afligir. A felicidade de
Cecília é o mais ardente voto que formulo; nunca me perdoaria
uma falta que lhe tivesse custado uma lágrima.
Mereci, bem o sinto, as zombarias que me dirige, sobre o
que chama os meus novos princípios, mas pode crer que não é
por eles que me guio neste momento; e a partir de amanhã estou
decidido a prová-lo. Ir-me-ei acusar àquela que foi a causa do
meu desvario e o partilhou; dir-lhe-ei: "Lede no meu coração;
ele tem por vós a mais terna amizade; a amizade unida ao desejo
parece-se tanto com o amor!... Enganámo-nos ambos; mas,
susceptível de erro, sou incapaz de má fé." Conheço a minha
amiga; é tão honesta como indulgente; fará mais do que perdoar,
aprovar-me-á até. Ela própria muitas vezes se censurava
por ter traído a amizade; muitas vezes a sua susceptibilidade
perturbava o amor. Mais sensata do que eu, fortificará na minha
alma esses temores que eu temerariamente procurava sufocar
na sua. Ficar-lhe-ei devendo o ter-me tornado melhor e a si o
ser mais feliz. Ó meus amigos! Partilhem o meu reconhecimento.
A ideia de que lhes devo a felicidade aumenta-lhe o valor.
Adeus, meu caro Visconde. O excesso de alegria não me
impede de pensar nas suas penas, e de as compartilhar. Se lhe
pudesse ser útil! Madame de Tourvel continua então inexorável?
Dizem-na doente. Meu Deus, como tenho pena de si! Oxalá
que ela recupere simultaneamente a saúde e a indulgência, e o
faça eternamente feliz! São os desejos da amizade; espero que o
amor os escute.
Gostaria de falar mais tempo consigo; mas o tempo urge, e
talvez já Cecília me espere.

Paris, 5 de Dezembro de 17* *, à noite.

CARTA CLVIII

O VISCONDE DE VALMONT A MARQUESA DE MERTEUIL

(Ao despertar)

Então, Marquesa, que tal os prazeres da noite passada? Um


pouco fatigada? Concorde que Danceny é encantador! Faz prodígios,

esse rapaz! Não esperava isto dele, não é verdade? Vamos,


quero ser justo para comigo mesmo; semelhante rival merecia
bem que eu lhe fosse sacrificado. A sério, é um rapaz cheio
de boas qualidades! Mas sobretudo de amor, constância, delicadeza!
Ah! Se conseguir que ele a ame como ama a sua Cecília,
nunca mais terá rivais a temer: ele provou-lhe esta noite. Talvez,
à força de coqueteria, outra mulher possa roubá-lo por um
momento; os jovens não sabem resistir a fosquinhas provocantes;
mas esteja tranquila, uma palavra só do objecto amado basta,
como agora vê, para dissipar as ilusões; assim só lhe falta vir
a ser esse objecto para ser perfeitamente feliz.
Certamente a Marquesa não falhará; possui um tacto demasiado
seguro para que se possa recear tal. No entanto, a amizade
que nos une, tão sincera da minha parte como reconhecida
da sua, levou-me a desejar-lhe a experiência desta noite; foi
obra do meu zelo, que teve um belo êxito: mas nada de agradecimentos;
não vale a pena: nada podia ser mais fácil.
No fundo, que me custou? Um ligeiro sacrifício e um pouco
de habilidade. Consenti em partilhar com esse jovem os favores
da amada dele; mas enfim, ele sempre tinha tantos direitos
como eu; esquecera-me disso! A carta que ela lhe escreveu, fui
eu que a ditei: mas foi só para ganhar tempo, porque bem sabíamos
em que o empregar. A que eu próprio enviei, oh!, não era
nada, quase nada; algumas reflexões da amizade para guiar a
escolha do novo amante: mas, por minha honra, eram inúteis; a
verdade deve dizer-se, ele não hesitou um momento.
E depois, com toda aquela candura, irá hoje a sua casa contar-lhe
tudo; e certamente essa narrativa lhe agradará ! Começará
assim: "Lede no meu coração"
é o que ele me escreveu: e
bem vê que desta forma tudo se remedeia. Espero que, ao fazer
essa leitura, compreenda finalmente que os amantes demasiado
jovens têm os seus perigos; e ainda que mais vale ter-me como
amigo do que como inimigo.
Adeus, Marquesa; até à primeira ocasião.

Paris, 6 de Dezembro de 17* *

CARTA CLIX

A MARQUESA DE MERTEUIL AO VISCONDE DE VALMONT

Não gosto que se acrescentem graças de mau gosto a atitudes


deselegantes; e isso não está mais nos meus hábitos que no
meu gosto. Quando tenho motivos de queixa de alguém, não o
escarneço; faço melhor: vingo-me. Por muito contente que esteja
neste momento, não se esqueça de que não seria a primeira
vez que se aplaudiria antecipadamente, na esperança dum triunfo
que lhe escaparia no próprio momento em que se felicitava.
Adeus.

Paris, 6 de Dezembro de 17* *

CARTA CLX

MADAME DE VALaNGES A MADAME DE ROSEMONDE

Escrevo do quarto da nossa infeliz amiga, cujo estado é mais


ou menos o mesmo. Hoje à tarde haverá uma conferência de
quatro médicos. O que, como sabeis, costuma ser mais uma
prova de perigo do que um socorro.
Parece no entanto ter recuperado um pouco de lucidez durante

a noite passada. A criada de quarto informou-me esta


manhã que, por volta da meia-noite, a sua ama a chamou; quis
ficar sozinha com ela, e ditou-lhe uma carta assaz longa. Júlia
acrescentou que, quando estava ocupada a preencher o sobrescrito,
o delírio se apossou de novo de Madame de Tourvel: de
forma que a rapariga ficou sem saber a quem o remeter. Admirei-me
a princípio de que a própria carta não bastasse para lho
revelar, e tendo-me ela respondido que receara enganar-se e que
a Presidente lhe recomendara que enviasse a carta imediatamente,
tomei a decisão de a abrir.
Mando-vos justamente o que encontrei, e que na verdade
não se dirige a ninguém, visto que se dirige a toda a gente. Creio
no entanto que foi ao senhor de Valmont que a nossa infeliz
amiga quis primeiro escrever, mas acabou por ceder, sem dar
por isso, à desordem das ideias. Como quer que seja, pensei que
esta carta não devia ser remetida a ninguém. É a vós que a envio,
pois assim podereis ver melhor os pensamentos que ocupam
o cérebro da nossa doente. Enquanto permanecer tão vivamente
afectada, não terei esperanças. O corpo dificilmente se
restabelece quando o espírito está tão pouco tranquilo.
Adeus, querida e digna amiga. Felicito-vos por estardes
afastada do triste espectáculo que tenho diariamente debaixo
dos olhos.

Paris, 6 de Dezembro de 17*2.


CARTA CLXI

A PRESIDENTE DA TOURVEL A...


(Ditada por ela e escrita pela criada de quarto)

Ente cruel e malfazejo, não deixarás de me perseguir? Não


te basta teres-me torturado; degradado, aviltado, queres ainda
roubar-me a paz do túmulo? Pois como! Nesta mansão de trevas
onde a ignomínia me obrigou a enterrar-me, as dores não
dão tréguas e a esperança é desconhecida? Não imploro um
perdão que não mereço: para sofrer sem me queixar, bastará
que os sofrimentos não excedam as minhas forças. Mas não
tornes os tormentos insuportáveis. Deixa-me as dores, apaga-me
a cruel memória dos bens que perdi. Depois de mos roubares,
não traces de novo diante dos meus olhos a sua desoladora
imagem. Eu era inocente e tranquila: foi por te ter visto que
perdi o repouso; foi ao escutar-te que me tornei criminosa. Autor
dos meus erros, que direito tens de os punir?
Onde estão os amigos que me adoravam, onde estão eles? O
meu infortúnio horroriza-os. Nenhum ousa aproximar-se. Sinto-me
oprimida, e eles deixam-me sem auxílio.! Morro, e ninguém
me lamenta. Toda a consolação me é recusada. A piedade
detém-se nas margens do abismo onde o criminoso mergulha.
Os remorsos dilaceram-no, e os seus gritos não são ouvidos !
E tu, a quem ultrajei; tu, cuja estima aumenta o meu suplício;
tu, que serias afinal o único a ter o direito de te vingares,
que fazes longe de mim? Vem punir uma mulher infiel. Que eu
sofra finalmente tormentos merecidos. Já me teria submetido à
tua vingança; mas faltou-me a coragem de te revelar a tua desonra.
Não foi por dissimulação, foi por respeito. Que ao menos
esta carta te informe do meu arrependimento. O céu assumiu
a defesa da tua causa e vinga-te duma injúria que ignoravas.
Foi ele que me prendeu a língua e me reteve as palavras;
receou que me perdoasses uma falta que ele queria punir.
Subtraiu-me à tua indulgência, que teria ferido a sua justiça.
Implacável na sua vingança, abandonou-me àquele que me
desgraçou. Este último é simultaneamente o causador do meu
desvario e o carrasco que me castiga. Em vão lhe quero fugir;
persegue-me; está sempre presente, obceca-me sem cessar. Mas
como está mudado! Os olhos exprimem apenas ódio e desprezo.
A boca só profere insultos e censuras. Os braços, que dantes me
abraçavam, querem despedaçar-me. Quem me salvará do seu
bárbaro furor?
Mas quê? É ele... Não me engano; é ele que volto a ver. Oh,
meu adorável amigo! Acolhe-me nos teus braços; esconde-me
no teu seio: sim, és tu, és tu mesmo! Por que funesta ilusão não
te tinha reconhecido? Como sofri com a tua ausência ! Oh ! Não
nos separemos outra vez. Nunca mais nos separemos. Deixa-me
respirar. Vê como o meu coração bate! Ah! Já não é de receio,
mas sim da doce emoção do amor. Por que te recusas às minhas
ternas carícias? Mostra-me o teu olhar tão doce! Que laços procuras
desta maneira romper? Para quem preparas esse cadafalso?
Que é que te transtorna assim a fisionomia? Que fazes?
Deixa-me: tremo! Deus! É outra vez esse monstro!
Minhas amigas, não me abandoneis. Vós que me aconselháveis
a evitá-lo, ajudai-me a combatê-lo; e vós que, mais indulgente,
havíeis prometido diminuir as minhas dores, vinde pois
para junto de mim. Onde estais ambas? Se já não é permitido
ver-vos, respondei ao menos a esta carta; dizei ao menos que a
vossa amizade é ainda a mesma.
Larga-me, cruel! Que nova fúria te anima? Receias que um
sentimento suave penetre até à minha alma? Duplicas os meus
tormentos; obrigas-me a odiar-te. Oh! Como o ódio é doloroso!
Como corrói o coração que o destila! Por que me persegues?
Que podes ter ainda para me dizer? Não me colocaste na impossibilidade
de te escutar e de te responder? Não esperes mais
nada de mim. Adeus, senhor.

Paris, 5 de Dezembro de 17* *

CARTA CLXII

O CAVALEIRO DANCENY AO VISCONDE DE VALMONT

Estou informado, senhor, do vosso procedimento para comigo.


Sei também que, não contente por me terdes indignamente
enganado, não receais vangloriar-vos e aplaudir-vos. Vi a
prova da traição escrita por vosso punho. Confesso que senti o
coração compungido, e que tive vergonha de ter contribuído
para o odioso abuso que fizestes da minha cega confiança: contudo
não vos invejo este vergonhoso triunfo; tenho apenas curiosidade
de saber se o conservareis no campo da honra. Espero
ter a resposta amanhã de manhã, entre as oito e nove horas, se
quiserdes aparecer na porta do bosque de Vincennes, aldeia de
Saint-Mande. Encarregar-me-ei de aí fazer aparecer tudo o que
for necessário para os esclarecimentos que me restam obter de
vós.
Cavaleiro Danceny.
Paris, 6 de Dezembro de 17* *, à noite.

CARTA CLXII

O SENHOR BERTRAND A MADAME DE ROSEMONDE

Minha senhora,

É com grande pena que cumpro o doloroso dever de anunciar


uma notícia que vos vai causar um tão grande desgosto.
Permiti que exorte em primeiro lugar essa piedosa resignação
que todos admiram por vós, e que é o único sentimento capaz
de nos ajudar a suportar os males de que está semeada a nossa
miserável vida.
O senhor vosso sobrinho... Meu Deus! Ver-me obrigado a
afligir uma tão respeitável dama! O vosso sobrinho teve a infelicidade
de sucumbir num combate singular que teve esta manhã
com o Cavaleiro Danceny. Ignoro inteiramente a causa da disputa;
mas afigura-se-me, pelo bilhete que encontrei ainda na
algibeira do senhor Visconde e que tenho a honra de vos enviar,
afigura-se-me, dizia, que não era ele o agressor. E foi justamente
ele que o céu permitiu que sucumbisse!
Estava eu em casa do senhor Visconde, esperando-o, no
próprio momento em que o trouxeram. Imaginai a minha perturbação,
ao ver o vosso sobrinho conduzido por dois criados e
todo banhado em sangue. Recebera dois golpes, e já se encontrava
muito fraco. O senhor Danceny estava também presente, e
chorava. Ah! Sem dúvida que deve chorar: mas de que serve
derramar lágrimas quando se causou uma desgraça irreparável !
Eu por mim não me contive; e apesar do pouco que sou, disse-lhe
o que pensava do caso. Mas foi então que o senhor Visconde
se mostrou verdadeiramente grande. Ordenou que me
calasse; agarrou na mão do assassino, chamou-lhe amigo, beijou-o
diante de todos, e disse-nos: "Ordeno-vos que trateis este
senhor com toda a consideração devida a um homem valente e
de brio." Mandou ainda que lhe entregassem, diante de mim,
uns papéis volumosos que não conheço, mas de que sei terem
para ele muita importância. Em seguida, quis que os deixassem
sós por um momento. Entretanto eu mandara sem demora
buscar todos os socorros, tanto espirituais como temporais:
mas, ai!, o mal não tinha remédio. Menos de meia hora depois,
o senhor Visconde perdera o conhecimento. Só pôde receber a
extrema-unção; e mal a cerimónia acabara, dava ele o último
suspiro.
Meu Deus! Quando recebi nos braços à nascença este precioso
esteio duma ilustre casa, poderia eu prever que seria nos
meus braços que ele expiraria e que teria de chorar a sua morte?
Uma morte tão precoce e tão infeliz! As lágrimas deslizam-me
mesmo sem eu querer. Peço-vos perdão, minha senhora, de ousar
misturar a minha dor à vossa: mas em todas as classes se
pode ter coração e sensibilidade; e seria muito ingrato se não
chorasse toda a vida um senhor que tantas atenções tinha para
comigo, e que me honrava com a máxima confiança.
Amanhã, depois do funeral, mandarei selar tudo e podeis
descansar inteiramente nos meus cuidados. Não ignorais certamente,
minha senhora, que este infeliz acontecimento anula o
vosso testamento e torna as vossas disposições inteiramente livres.
Se vos puder ser de qualquer utilidade, peço-vos que me
queirais dar as vossas ordens: porei todo o meu zelo em as executar
pontualmente.
Sou, com o mais profundo respeito, minha senhora, vosso
muito humilde, etc.

Bertrand

Paris, 7 de Dezembro de 17 * *.

CARTA CLXIV

MADAME DE ROSEMONDE AO SENHOR BERTRAND

Recebi a vossa carta mesmo agora, meu caro Bertrand, e


por ela soube do terrível acontecimento de que o meu sobrinho
foi a infeliz vítima. Sim, sem dúvida que terei ordens a dar-vos;
e só elas me farão pensar noutra coisa que não seja a minha
mortal aflição.
O bilhete do senhor Danceny, que me enviastes, é prova
convincente de que foi ele o provocador do duelo: e a minha
intenção é que apresenteis queixa imediatamente em meu nome.
Perdoando ao seu inimigo, ao seu assassino, o meu sobrinho
pôde satisfazer a sua natural generosidade; mas cabe-me a mim
vingar ao mesmo tempo a sua morte, a humanidade e a religião.
Nunca será demais excitar a severidade das leis contra este resto
de selvajaria que ainda infecta os nossos costumes; e não creio
que o perdão das injúrias nos possa ser prescrito num caso destes.
Espero pois que seguireis esta questão com todo o zelo e
toda a actividade de que vos sei capaz, e que deveis à memória
do meu sobrinho. Tratareis, antes de tudo, de ir ter da minha
parte com o senhor Presidente de..., e de conferenciar com ele.
Não lhe escrevo, apressada como estou de me entregar inteiramente
à minha dor. Apresentareis as minhas desculpas, e mostrar-lhe-eis
esta carta.
Adeus, meu caro Bertrand; louvo e agradeço os vossos bons
sentimentos, e estou para sempre ao vosso dispor.

Castelo de..., 8 de Dezembro de 17* *.

CARTA CLXV

MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE

Sei que já estais informada, minha querida e digna amiga,


da perda que acabais de sofrer; conhecia a vossa ternura para
com o senhor de Valmont, e partilho sinceramente a aflição que
deveis sentir. Custa-me imenso na verdade ver-me forçada a
acrescentar novas dores às que já sofreis: mas só vos resta também
verter lágrimas pela nossa infeliz amiga. Perdemo-la ontem,
às onze horas da noite. Por uma fatalidade ligada ao seu
destino, e que parecia troçar de toda a prudência humana, o
curto intervalo que sobreviveu ao senhor de Valmont foi o bastante
para tomar conhecimento da morte dele; e, como ela própria
o disse, para sucumbir sob o peso das suas desgraças, só
depois da medida estar completamente cheia.
Com efeito, já vos informara de que havia dois dias que ela
estava absolutamente inconsciente; e ainda ontem de manhã,
quando o médico chegou e nos aproximámos do leito, não nos
reconheceu e não pudemos obter nem uma palavra, nem o
menor sinal. Pois bem! Mal nos tínhamos aproximado da chaminé,
e enquanto o médico me informava do triste acontecimento
da morte do senhor de Valmont, aquela infeliz mulher
recuperou a lucidez, ou porque a natureza sozinha tivesse produzido
essa transformação, ou porque fosse causada pelas repetidas
palavras de "senhor de Valmont" e de "morte", que talvez
tenham recordado à doente as únicas ideias de que ela se ocupava
de há muito tempo a esta parte.
Seja como for, abriu precipitadamente as cortinas do leito,
gritando: "O quê! Que dizeis? O senhor de Valmont morreu?"
Ainda tive esperanças de lhe fazer crer que se enganara, e assegurei-lhe
a princípio que tinha ouvido mal: mas, longe de se
deixar convencer, exigiu que o médico recomeçasse a cruel narrativa;
e vendo que eu procurava ainda dissuadi-la, chamou-me
e disse-me em voz baixa: "Para quê querer enganar-me? Ele já
tinha morrido para mim!" Foi forçoso ceder.
A nossa infeliz amiga escutou primeiro com um ar bastante
tranquilo; mas logo interrompeu a narrativa, dizendo: "Basta,
já sei o suficiente." Pediu imediatamente que se fechassem as
cortinas; e quando o médico lhe quis prestar os cuidados que o
seu estado exigia, não consentiu que ele se aproximasse.
Assim que ele saiu, mandou também embora a enfermeira e
a criada de quarto; e quando já estávamos sós, pediu-me que a
ajudasse a pôr-se de joelhos sobre o leito, e que a segurasse.
Permaneceu algum tempo em silêncio, e sem outra expressão
que a das lágrimas que corriam abundantemente. Por fim, juntando
as mãos e elevando-as ao céu: "Deus Todo-Poderoso",
disse ela com voz fraca mas fervorosa, "submeto-me à Tua justiça;
mas perdoa a Valmont. Que as minhas desgraças, que reconheço
merecidas, não lhe sejam motivo de censura, e bendirei
a Tua misericórdia!". Permiti-me, minha querida e digna amiga,
entrar em pormenores sobre um tal assunto que bem vejo deve
renovar e agravar as vossas dores, apenas porque penso que este
rogo de Madame de Tourvel será de grande consolo para a vossa
alma.
Depois de ter proferido estas poucas palavras a nossa amiga

deixou-se cair nos meus braços; e mal voltara a deitá-la, veio-lhe


uma prolongada fraqueza, que no entanto cedeu aos tratamentos
habituais. Assim que voltou a si, pediu-me que mandasse
chamar o padre Anselmo, e acrescentou: "Neste momento é
o único médico de que preciso; sinto que os meus males vão em
breve terminar." Dizia sentir uma opressão e falava com dificuldade.
Pouco depois mandou-me entregar, pela criada de quarto, o
cofrezinho que vos envio; disse-me que continha papéis pessoais,
e encarregou-me de vo-lo enviar logo após a sua morte.
Em seguida falou-me de vós, e da vossa amizade por ela, tanto
quanto o seu estado lho permitia, e com muita ternura.
O padre Anselmo chegou por volta das quatro horas, e ficou
perto de uma hora sozinho com ela. Quando entrámos de
novo, o rosto da doente estava calmo e sereno; mas era fácil
perceber que o padre Anselmo tinha chorado muito. Ficou para
assistir às últimas cerimónias da igreja. Este espectáculo, sempre
tão imponente e doloroso, foi-o ainda mais pelo contraste que
formava a tranquila resignação da doente com a dor profunda
do seu venerável confessor, que se desfazia em lágrimas ao lado
dela. A comoção tornou-se geral; e aquela que todos choravam
foi a única a não chorar.
O resto do dia passou-se nas habituais rezas, que só foram
interrompidas pelos frequentes desmaios da doente. Finalmente,
por volta das onze da noite, pareceu mais oprimida e aflita.
Avancei a mão para procurar o braço dela; ainda teve forças
para a agarrar, e colocou-a sobre o coração. Já não o senti bater;
e, com efeito, a nossa infeliz amiga expirou nesse mesmo
momento.
Recordais-vos, minha querida amiga, que quando da vossa
última viagem aqui, há menos de um ano, ao falarmos de algumas
pessoas cuja felicidade nos parecia mais ou menos assegurada,
nos detivemos com prazer sobre o destino desta mesma
mulher, de quem hoje choramos simultaneamente as desventuras
e a morte? Virtudes, qualidades louváveis, graças; um carácter
tão doce e fácil; um marido que ela amava, e por quem era
adorada, um círculo de amigos onde ela se sentia bem, e de que
fazia as delícias; beleza, juventude, fortuna; tantos dons reunidos
e perdidos por uma só imprudência! Oh, Providência! Sem
dúvida que devemos adorar os teus decretos; mas como são
incompreensíveis! Fico-me por aqui; receio aumentar a vossa
tristeza, ao entregar-me à minha.
Deixo-vos e vou ver a minha filha que está um pouco indisposta.
Ao informá-la esta manhã da morte tão rápida de duas

1 Este cofrezinho continha todas as cartas relativas à sua aventura com o


senhor de Valmont.
pessoas suas conhecidas, sentiu-se mal e mandei-a deitar-se.
Espero no entanto que este ligeiro incómodo não terá consequências.
Naquela idade ainda não se está habituado aos desgostos,
e a impressão que causam é por isso mais viva e forte.
Esta sensibilidade tão à flor da pele é sem dúvida uma qualidade
louvável; mas como aquilo que vemos todos os dias nos ensina
a temê-la! Adeus, querida e digna amiga.

Paris, 9 de Dezembro de 17* *.

CARTA CLXVI

O SENHOR BERTRAND A MADAME DE ROSEMONDE

Minha senhora,

Em consequência das ordens que me haveis feito a honra de


dar, encontrei-me com o senhor Presidente de..., comuniquei-lhe
a vossa carta, prevenindo-o de que, segundo os vossos desejos,
eu nada faria a não ser pelos seus conselhos. O respeitável
magistrado encarregou-me de vos observar que a queixa que
tendes a intenção de fazer contra o senhor Cavaleiro Danceny
comprometeria igualmente a memória do senhor vosso sobrinho,
cuja honra ficaria inevitavelmente manchada pela sentença
da corte, o que seria sem dúvida uma grande infelicidade. A sua
opinião é, pois, que se deve evitar semelhante diligência; e que,
se houvesse alguma coisa a fazer, seria pelo contrário tratar de
evitar que o Ministério Público tomasse conhecimento desta
infeliz aventura, que já fez demasiado ruído.
Estas observações pareceram-me cheias de sabedoria, e
tomo a decisão de esperar novas da vossa parte.
Peço-vos, minha senhora, que tenhais a amabilidade de, ao
enviar-mas, acrescentar algumas linhas sobre o vosso estado de
saúde, de que receio extremamente a reacção a tantas desgraças.
Espero que perdoareis esta liberdade à minha dedicação e zelo.
Sou com respeito, minha senhora, vosso, etc.

Paris, 10 de Dezembro de 17* *

CARTA CLXVII

ANÓNIMA AO SENHOR CAVALEIRO DANCENY

Senhor,

Tenho a honra de vos prevenir de que se falou, esta manhã,


no tribunal da corte, entre os funcionários de el-rei, do duelo
que travastes nestes últimos dias com o senhor Visconde de
Valmont, e é de recear que o Ministério Público apresente queixa.
Pensei que este aviso vos podia ser útil, quer para que façais
agir os vossos protectores a fim de evitar consequências desagradáveis;
quer, no caso de isso não ser possível, para estardes em
posição de vos defenderdes.
Se me permitis um conselho, creio que faríeis bem, durante
algum tempo, em aparecerdes menos vezes em público do que o
tendes feito ultimamente. Se bem que geralmente se seja indulgente
para com casos destes, deve-se ao menos esse respeito
para com a lei.
Esta precaução torna-se tanto mais necessária quanto me

chegou aos ouvidos que uma certa Madame de Rosemonde, que


me afirmam ser tia o senhor de Valmont, queria apresentar
queixa contra vós, e então o Ministério Público não poderia
deixar de tomar o assunto em mãos. Talvez fosse conveniente
que conseguísseis intervir junto dessa dama.
Motivos particulares impedem-me de assinar esta carta.
Mas espero que, ignorando embora donde ela vos vem, não
deixareis ao menos de prestar justiça ao sentimento que a ditou.
Tenho a honra de ser, etc.

Paris, 10 de Dezembro de 17* *

CARTA CLXVIII

MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE

Espalham-se por aqui, minha querida e digna amiga, acerca

de Madame de Merteuil, boatos bastante estranhos e muito lastimáveis.


Evidentemente estou bem longe de os crer, e apostaria
até que não passam de horríveis calúnias; mas sei demasiado
bem como este género de maldades, mesmo as menos verosímeis,
adquirem facilmente consistência, e como a impressão que
deixam se apaga dificilmente, para não estar alarmada com estas,
embora eu julgue fácil destruí-las. Desejaria, sobretudo, que
fosse possível sustê-las desde já, e antes que se tivessem espalhado
mais. Só ontem soube, demasiado tarde, os horrores que se
começam por aí a dizer; e quando mandei esta manhã um criado
a casa de Madame de Merteuil, acabara ela de partir para o
campo, onde deve passar dois dias. Não me souberam dizer
para casa de quem tinha ido. A criada, com quem falei, disse-me
que a sua ama lhe ordenara que só a esperasse na próxima quinta-feira;
e nenhum dos criados que ela aqui deixou sabia mais
qualquer coisa. Eu própria não sou capaz de adivinhar onde
possa estar; não me recordo de nenhum dos seus conhecimentos
que esteja no campo até tão tarde.
Como quer que seja, podereis, assim o espero, conseguir-me,
daqui até ao seu regresso, os esclarecimentos que lhe podem
ser úteis: porque fundamentam estas odiosas histórias sobre
as circunstâncias da morte do senhor de Valmont, das quais
suponho deverei ter sido informada se são verdadeiras, ou que
pelo menos vos será fácil esclarecer, favor que muito vos peço.
Eis o que espalham; ou, pelo menos, o que por enquanto se
murmura apenas, mas que não tardará certamente a dar mais
brado.
Diz-se que a querela surgida entre o senhor de Valmont e o
Cavaleiro Danceny é obra de Madame de Merteuil, que os enganava
igualmente a ambos; que, como quase sempre acontece,
os dois rivais começaram por se bater, e só depois é que, entre
si, descobriram a verdade: daqui resultou uma reconciliação
sincera; e que para acabar de revelar a verdadeira Madame de
Merteuil ao Cavaleiro Danceny, e também para se justificar inteiramente,
o senhor de Valmont juntou às suas palavras um
grande maço de cartas, constituindo a correspondência que
mantinha regularmente com ela, e em que esta conta sobre si
própria, e no mais audacioso dos estilos, as anedotas mais escandalosas
que se possam imaginar.

Acrescenta-se que Danceny, na sua primeira indignação,


entregou as cartas a quem as quis ver, e que circulam agora por

Paris. Citam-se particularmente duas: uma onde ela narra a


inteira história da sua vida e dos seus princípios, e que dizem ser
o cúmulo do horror; a outra, que iliba totalmente o senhor de
Prévan, de cuja história certamente vos recordais, pela prova
que contém de que ele apenas cedeu a nítidas provocações de
Madame de Merteuil, e que o encontro estava combinado com
ela.
Tenho felizmente fortes razões para crer que estas acusações
são tão falsas como odiosas. Primeiro, sabemos ambas que o
senhor de Valmont não se ocupava com certeza de Madame de
Merteuil, e tenho todo o motivo para crer que Danceny não lhe
dava mais atenção: parece-me assim demonstrado que ela não
podia ser nem o motivo, nem a autora da desavença. Não compreendo
igualmente que interesse teria tido Madame de Merteuil,
que supõem de acordo com Prévan, em fazer uma cena
que só poderia ser desagradável pelo seu escândalo, e que poderia
vir a ser muito perigosa para ela, visto que arranjava assim
um inimigo irreconciliável que ficava senhor de uma parte do
seu segredo, e que possuía então muitos partidários. No entanto,
é caso para pensar que, depois desta aventura, não se tenha
levantado uma única voz a favor de Prévan, e que, mesmo da
sua parte, não tenha havido qualquer reacção.
Estas reflexões levar-me-iam a suspeitá-lo de ser o autor dos
boatos que correm, e a considerar estas infâmias como obra do
ódio e da vingança dum homem que, vendo-se perdido, esperava
por este meio espalhar pelo menos dúvidas, e desviar as atenções,
o que talvez lhe convenha. Mas qualquer que seja a origem
destas maldades, o mais urgente é destruí-las. Cairiam por si
próprias se se descobrisse, como é verosímil, que os senhores de
Valmont e Danceny não se falaram após o infeliz duelo, e que
não houve nenhuma entrega de papéis.
Na minha impaciência de verificar os factos, enviei esta
manhã um criado a casa do senhor Danceny; mas também não
se encontra em Paris. Os seus criados disseram ao meu que ele
partira nessa noite, por causa dum aviso que recebera ontem, e
que se encontrava em lugar secreto. Aparentemente receia as
consequências da questão. É pois só por vós, minha querida e

* Cartas LXXXI e LXXXV desta colecção.

digna amiga, que posso obter os pormenores que me interessam,


e que tão necessários podem vir a ser a Madame de Merteuil.
Renovo os meus pedidos para que mos façais chegar às
mãos o mais cedo possível.

P. S. - A indisposição de minha filha não teve consequências;


ela apresenta-vos os seus respeitos.
Paris, 11 de Dezembro de 17*

CARTA CLXIX

O CAVALEIRO DANCENY A MADAME DE ROSEMONDE

Minha senhora,

Talvez acheis a decisão que hoje tomo um pouco estranha;


mas, suplico-vos, escutai-me antes de me julgar, e não vejais audácia
e temeridade onde só existem respeito e confiança. Não
ignoro a culpa de que sou réu a vossos olhos; e nunca ma perdoaria
a mim próprio, se pudesse pensar por um momento que
me teria sido possível evitá-la. Podeis mesmo ter a certeza, minha
senhora, de que o facto de me considerar isento de censura
não me inibe de desgostos; e posso ainda acrescentar com sinceridade
que aqueles que vos causo contam muito entre os que
sinto. Para que acrediteis nestes sentimentos que ouso expor
diante de vós, deve bastar-vos que vos preste justiça, e que saibais
que, sem ter a honra de ser por vós conhecido, tenho no
entanto a de vos conhecer.
Contudo, quando gemo sob a fatalidade que causou simultaneamente
os vossos desgostos e a minha infelicidade, querem
fazer-me recear que, inteiramente entregue à vingança, vós procurareis
os meios de a satisfazer, recorrendo até à severidade da
lei.
Permiti que vos observe que a este respeito a vossa dor vos
engana, visto que neste ponto o meu interesse está essencialmente
ligado ao do senhor de Valmont, que se encontraria envolvido
ele próprio na condenação que teríeis provocado contra
mim. Julgaria eu, minha senhora, poder pelo contrário contar
mais com o vosso auxílio do que com a vossa oposição, nos cuidados
que eu poderia vir a ser obrigado a tomar para que este
infeliz acontecimento permanecesse envolto em silêncio.
Mas este recurso de cumplicidade, que convém igualmente
ao culpado e ao inocente, não satisfaz a minha delicadeza; e
desejando afastar-vos como parte, reclamo-vos como juiz. A
estima das pessoas que respeitamos é demasiado preciosa para
que eu me deixe expoliar da vossa sem a defender, e creio que
possuo os meios para tal.
De facto, se concordais que a vingança nos é permitida, digamos
melhor, que temos a obrigação de a exercer, quando se
foi traído no seu amor, na sua amizade, e, sobretudo, na sua
confiança; se concordais com isto, os meus erros vão desaparecer
a vossos olhos. Não acrediteis nas minhas palavras; mas
lede, se para tanto tiverdes coragem, a correspondência que
deposito em vossas mãos. A quantidade de cartas aí incluídas
em original parece dar o direito de supor como autênticas as de
que só existem cópias. De resto, recebi estes papéis, tais como
tenho a honra de vo-los enviar, do próprio senhor de Valmont.
Nada acrescentei, e tirei apenas duas cartas que me autorizei a
publicar.
Uma era necessária à comum vingança do senhor de Valmont
e minha, à qual ambos tínhamos direito, e de que ele me
encarregara expressamente. Achei, de resto, que era prestar um
verdadeiro serviço à sociedade desmascarar uma mulher tão
realmente perigosa como é Madame de Merteuil, e que, como

podereis ver, é a única, a verdadeira causadora de tudo o que se


passou entre mim e o senhor de Valmont.
Um sentimento de justiça levou-me também a publicar a
segunda, para justificação do senhor de Prévan, que mal conheço,
mas que não merecia de forma alguma o tratamento rigoroso
que acaba de sofrer, nem a severidade dos juízos do público,
mais temível ainda e sob a qual geme desde então, sem nada ter
com que se defenda.

1 Foi com esta correspondência, com a entregue igualmente por ocasião


da morte de Madame de Tourvel, e com as cartas confiadas também a Madame
de Rosemonde por Madame de Volanges, que se formou a presente recolha,
cujos originais subsistem nas mãos dos herdeiros de Madame de Rosemonde.

Encontrareis pois apenas as cópias destas duas cartas, de


que me vejo forçado a guardar os originais. Quanto ao resto,
não creio poder colocar em mãos mais seguras um depósito que
me interessa não seja destruído, mas de que me envergonharia
de abusar. Creio, minha senhora, ao confiar-vos estes papéis,
servir tão bem as pessoas a quem dizem respeito, como se os tivesse
enviado a elas próprias; e poupo-lhes o embaraço de os
receberem de mim, e de me saberem informado de aventuras
que, sem dúvida, desejam que todos ignorem.
parte duma colecção bem mais volumosa, donde o senhor
de Valmont a tirou na minha presença, e que encontrareis quando
os selos forem tirados, sob o título, que eu vi, de Conta aberta
entre a Marquesa de Merteuil e o Visconde de Valmont.
Tomareis, a este respeito, a decisão que a prudência vos sugerir.
Sou com respeito, minha senhora, o vosso, etc.

P. S. - Alguns avisos que recebi e os conselhos dos amigos


decidiram-me a ausentar-me de Paris por algum tempo: mas o
meu esconderijo, secreto para toda a gente, não o será para vós.
Se me honrardes com uma resposta, peço-vos que a envieis para
a Comendadoria de..., por intermédio de P..., e ao cuidado do
senhor Comendador de... É de casa dele que tenho a honra de
vos escrever.

Paris, 12 de Dezembro de 17* *

CARTA CLXX

MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE

Caminho, cara amiga, de surpresa em surpresa, e de desgosto


em desgosto. Só uma mãe pode imaginar o que ontem sofri
durante toda a manhã; e embora as mais cruéis inquietações se
tenham acalmado depois, resta-me ainda uma grande aflição a
que não vejo o fim.
Ontem, pelas dez da manhã, admirada por a minha filha
não ter ainda aparecido, mandei a minha criada de quarto descobrir
qual seria a causa do atraso. Veio um momento depois
muito assustada, e assustou-me ainda mais, comunicando-me
que a minha filha não estava nos seus aposentos; e que desde
manhã que a criada dela a não encontrava. Imagine a minha
situação! Mandei reunir todos os criados e o porteiro, e todos
me juraram não saber nada e nada poder dizer-me sobre o acontecimento.
Passei pelo quarto da minha filha. A desordem que aí
reinava mostrou-me claramente que só saíra de manhã: mas
não encontrei mais nenhum esclarecimento. Examinei os armários
e a secretária; encontrei tudo no lugar e todos os trajos,
com excepção do vestido com que saíra. Nem sequer levara o
pouco dinheiro que tinha com ela.
Como só ontem ela tivera conhecimento do que se diz acerca
de Madame de Merteuil, e lhe era dedicada, a ponto de ter
chorado durante todo o serão, lembrei-me que ela ignorava que
Madame de Merteuil estava no campo, e a minha primeira ideia
foi que tivesse querido ir ver a amiga, e cometido a loucura de ir
sozinha. Mas o tempo, que corria sem que ela voltasse, mergulhou-me
de novo em terríveis inquietações. Cada instante aumentava
a minha aflição; e, ardendo por saber a verdade, não
ousava tentar informar-me, com terror de dar a conhecer uma
diligência que, talvez, depois preferisse ter escondido de todos.
Não, nunca sofri tanto na minha vida.
Enfim, já passava das duas, quando recebi ao mesmo tempo
uma carta da minha filha e outra da Superiora do convento
de... A carta de Cecília dizia apenas que temia que eu me opusesse
à sua vocação religiosa, e que não ousara falar-me em tal;
o resto eram só desculpas por ter tomado, sem minha licença,
aquela decisão, que eu não desaprovaria decerto, acrescentava,
se lhe conhecesse os motivos, que no entanto me pedia que não
tentasse descobrir.
A Superiora contava-me que, tendo visto chegar uma jovem
só, se recusara primeiro a recebê-la; mas que, depois de a interrogar
e saber quem ela era, julgara prestar-me um serviço, começando
por dar asilo à minha filha, para a não obrigar a novas
diligências, a que parecia estar resolvida. A Superiora, oferecendo-se
como era razoável para me entregar a minha filha, se eu a
reclamar, exorta-me, como convém à sua posição, a não me
opor a uma vocação que considera tão decidida; dizia-me ainda
que não me pudera informar mais cedo do sucedido, devido à
dificuldade que tivera em conseguir que a minha filha me escrevesse,
porque o projecto dela era, segundo me informa, que
todos ignorassem para onde se retirara. É bem cruel a obstinação
dos jovens!
Dirigi-me imediatamente a esse convento; e depois de ter
visto a superiora, pedi-lhe que me deixasse ver a minha filha;
esta consentiu em vir a muito custo, e toda trémula. Falei-lhe
diante das religiosas, e só: tudo o que consegui arrancar-lhe,
entre muitas lágrimas, é que nunca poderia ser feliz senão no
convento; tomei a decisão de a deixar ficar, mas ainda sem fazer
parte das noviças como me pedia. Receio que a morte de Madame
de Tourvel e a do senhor de Valmont tenham afectado de
algum modo esta cabeça tão jovem. Por muito respeito que tenha
pela vocação religiosa, não veria sem pena, e até sem temor,
a minha filha tomar um tal caminho. Parece-me que temos já
bastantes deveres a cumprir, mesmo sem procurarmos mais; e
ainda que não é naquela idade que sabemos o que nos convém.
O que aumenta o meu embaraço é o próximo regresso do
senhor de Gercourt; será preciso romper este casamento tão
vantajoso? Como dar a felicidade aos filhos, se não basta desejá-la
e dispensar-lhe todos os cuidados? Ficar-vos-ia muito agradecida
se me dissésseis como precederíeis no meu lugar; não
posso tomar nenhuma decisão. Nada me aterroriza tanto como
ter de decidir do destino dos outros, e temo igualmente empregar
nesta ocasião a severidade do juiz e a fraqueza da mãe.
Acuso-me de aumentar os vossos desgostos falando-vos dos
meus; mas conheço o vosso coração: a consolação que dais aos
outros torna-se para vós na maior que poderíeis receber.
Adeus, querida e digna amiga; espero as duas respostas com
grande impaciência.

Paris, 13 de Dezembro de 17* *.

CARTA CLXXI

MADAME DE ROSEMONDE AO CAVALEIRO DANCENY

Depois do que me deu a conhecer, senhor, resta-me chorar


em silêncio. Lamentamos vivermos ainda, quando sabemos
semelhantes horrores; coro de ser mulher quando vejo uma
capaz de semelhantes excessos.
Concordo, senhor, em pelo meu lado deixar no silêncio e
esquecimento tudo o que possa referir-se ou dar seguimento a
estes tristes acontecimentos. Desejo até que eles vos não causem
mais nenhuns desgostos além dos resultantes da infeliz vitória
que tivestes sobre meu sobrinho. Apesar dos erros que sou forçada
a reconhecer nele, sinto que nunca me consolarei da sua
perda: mas a minha eterna mágoa será a única vingança que me
permitirei sobre vós; cabe ao vosso coração apreciar-lhe a grandeza.
Se permitis à minha idade uma reflexão que se não faz na
vossa, é que, se estivéssemos esclarecidos quanto à nossa verdadeira
felicidade, não a procuraríamos fora dos limites prescritos
pelas leis e pela religião.
Podeis estar certo de que guardarei fielmente o depósito que
me confiastes, mas peço-vos que me autorizeis a não o dar a
ninguém, nem a vós, senhor, a não ser que seja necessário para
vossa justificação. Ouso crer que vos não recusareis a esta súplica,
e que sentis que muitas vezes se sofre por nos termos deixado
arrastar, mesmo pela mais justa vingança.
Não me atardo mais em pedidos, de tão persuadida que estou
da vossa generosidade e delicadeza; seria digno de ambos
depositar também nas minhas mãos as cartas de Mademoiselle
de Volanges, que parece que conservais e que certamente vos
não interessam já. Sei que esta menina cometeu muitas faltas
para convosco; mas não julgo que penseis em a castigar: e, pelo
menos por respeito por vós próprio, não aviltareis um objecto
que tanto amastes. Nem preciso acrescentar que a consideração
que a filha não merece é devida à mãe, essa respeitável dama,
em relação à qual algo tendes a reparar: porque, enfim, mesmo
que procuremos justificar-nos por uma pretensa delicadeza de
sentimentos, aquele que primeiro tenta seduzir um coração ainda
honesto e simples torna-se o primeiro incitador à sua corrupção,
e para sempre responsável dos desvarios e excessos que se
lhe seguem.
Não vos admireis, senhor, de encontrar tanta severidade do
meu lado; é a maior prova que vos posso dar da minha inteira
estima. Esta aumentará ainda se aceitardes, como desejo, guardar
um segredo, cuja repercussão vos prejudicaria e traria a
morte a um coração maternal, que já feristes. Enfim, senhor,
desejo prestar este serviço à minha amiga; e se receasse que me
recusásseis esta consolação, pedir-vos-ia que meditásseis primeiro
que é a única que me deixastes.
Tenho a honra de ser. etc.

Do castelo de..., 15 de Dezembro de 17".

CARTA CLXXII

MADAME DE ROSEMONDE A MADAME DE VOLANGES

Se tivesse sido obrigada, minha querida amiga, a mandar vir


e a esperar de Paris os esclarecimentos que me pedis a respeito
de Madame de Merteuil, ainda não me seria possível dar-vos-los;
e sem dúvida só teria recebido informações vagas e incertas:
mas vieram-me donde as não esperava, donde menos as
poderia esperar; e estas são absolutamente certas. Oh, minha
amiga! Como essa mulher vos enganou!
Repugna-me entrar em pormenores sobre este amontoado
de horrores; mas, seja o que for que se diga, podeis ter a certeza
que ainda se está longe da verdade. Espero, minha querida amiga,
que me conheçais o suficiente para acreditar na minha palavra;
que não exigireis de mim nenhuma prova; que vos bastará
saber que existem em abundância, e que as tenho neste momento
entre mãos.
É com uma imensa dor que vos peço que não me obrigueis a
justificar o conselho que me pedis, relativamente a Mademoiselle
de Volanges. Rogo-vos que não vos opunhais à vocação que
ela mostra. Certamente nenhum motivo vos pode autorizar a
forçar alguém a tomar semelhante decisão, quando o interessado
não se sente chamado: mas às vezes é uma grande felicidade
que ele sinta o apelo divino; e bem vedes que a vossa própria
filha vos diz que não a desaprovaríeis, se soubésseis os motivos
dela. Aquele que inspira os nossos sentimentos sabe melhor que
a nossa vã sabedoria o que convém a cada ¨um, e muitas vezes o
que parece um acto da sua severidade, é, pelo contrário, uma
manifestação de clemência.
Enfim, a minha opinião, que bem sei que vos afligirá, e por
isso mesmo deveis crer que não vo-la dou sem ter reflectido, é de
que deixeis Mademoiselle de Volanges ficar no convento, visto
ser essa a sua escolha; que encorajeis, em vez de contrariar, o
projecto que ela parece ter formado; e que, enquanto se espera
pela execução do mesmo, não deveis hesitar em romper o casamento
que tínheis combinado.
Depois de ter preenchido estes penosos deveres da amizade
e na impossibilidade em que me encontro de acrescentar qualquer
consolação, resta-me, querida amiga, pedir-vos a graça de
nunca mais me interrogardes sobre nada que esteja relacionado
com estes tristes acontecimentos: deixemo-los esquecer, como
merecem; e sem procurar inúteis e terríveis esclarecimentos
" submetamo-nos aos decretos da Providência, confiemos na sabedoria
das suas decisões, mesmo quando ela não permite que
as compreendamos. Adeus, minha querida amiga.

Castelo de, 15 de Dezembro de 17* *.

CARTA CLXXIII

MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE


Oh, minha amiga! Com que véu assustador envolveis o destino
da minha filha! E pareceis temer que eu tente levantá-lo!
, Que me esconde ele pois, que possa afligir ainda mais o coração
de uma mãe do que as horríveis suspeitas a que me abandonais?
Quanto mais conheço a vossa amizade, a vossa indulgência,
mais os tormentos redobram: vinte vezes, desde ontem, quis sair
desta cruel incerteza e pedir-vos que me informásseis sem considerações
nem desvios; e de cada vez tremi de medo, pensando
no pedido que me haveis feito de não vos interrogar. Enfim,
tomo uma decisão que me deixa ainda alguma esperança; e espero
que a vossa amizade não se recusará ao meu pedido: é que
me informeis se compreendi aproximadamente o que me queríeis
dizer; que não receeis revelar-me tudo o que a indulgência
materna pode cobrir, e que não seja impossível de emendar: Se
as minhas desgraças excedem esta medida então consinto com
até onde os meus receios podem ir.
Minha filha mostrou ter certa simpatia pelo Cavaleiro Danceny,
e fui informada de que chegou a receber cartas dele, e até a
responder-lhe; mas supunha ter conseguido impedir que este
erro de criança tivesse consequências perigosas; hoje, que tudo
receio, concebo que teria sido possível enganar a minha vigilância,
e temo que a minha filha, seduzida, tenha levado os seus
desvairos ao cúmulo.
Recordo-me ainda de certas circunstâncias que parecem fortificar
este receio. Informei-vos de que minha filha se sentiu mal
ao receber a notícia da desgraça acontecida ao senhor de Valmont;
talvez esta reacção tivesse apenas por causa a ideia dos
riscos que o senhor Danceny tinha corrido no combate. Depois,
quando ela chorou tanto ao saber o que se dizia a respeito de
Madame de Merteuil, talvez o que interpretei como sendo a dor
da amizade fosse apenas o efeito do ciúme ou da pena de descobrir
que o seu amado lhe era infiel. A sua última decisão pode
também, parece-me, explicar-se pelo mesmo motivo. Muitas
vezes supomo-nos chamadas para Deus, apenas porque nos sentimos
revoltadas contra os homens. Enfim, supondo que estes
factos sejam verdadeiros, e que os conheci, será possível, sem
dúvida, que os acheis suficientes para justificar o conselho rigoroso
que me haveis dado.
Contudo, se assim fosse, e embora censurando minha filha,
pensaria no entanto dever tentar ainda todos os meios para a
salvar dos tormentos e dos perigos inseparáveis duma vocação
ilusória e passageira. Se o senhor Danceny não perdeu por completo
a noção da honestidade, não se recusará a reparar um erro
de que só ele é autor; e creio enfim que o casamento com minha
filha seja suficientemente vantajoso para que ele e a família se
sintam lisonjeados.
Eis, querida e digna amiga, a única esperança que me resta;
apressai-vos a confirmá-la, se tal é possível. Adivinhais como
anseio pela vossa resposta, e golpe terrível significaria o vosso
silêncio.
Ia fechar a carta, quando um cavalheiro meu conhecido me
veio visitar e me contou a cena cruel por que Madame de Merteuil
passou anteontem. Como não recebi ninguém nestes últimos
dias, de nada sabia até este momento; eis a história, tal
como ma narrou uma testemunha ocular.
Madame de Merteuil, ao chegar do campo, antes de ontem,
quinta-feira, dirigiu-se à "Comédia Italiana", onde tinha o seu
camarote; estava sozinha, e, o que lhe deve ter parecido estranho,
nenhum homem a foi cumprimentar durante todo o espectáculo.
À saída, entrou, como era seu costume, no pequeno salão
que já estava cheio de gente; imediatamente se levantou um
rumor, de que aparentemente não se supôs objecto. Avistou um
lugar vago num dos bancos, e sentou-se; mas logo todas as
mulheres que aí se encontravam se levantaram como de acordo
e deixaram-na absolutamente só. Este nítido movimento de indignação
geral foi aplaudido por todos os homens e fez aumentar
os murmúrios, que, dizem, foram até às vaias.
Para que nada faltasse à sua humilhação, teve o azar de o
senhor Prévan, que ainda não tinha aparecido em parte alguma
depois da sua aventura, entrar nesse momento no pequeno salão.
Assim que o viram, toda a gente, homens e mulheres, o cercou
e aplaudiu; achou-se, por assim dizer, transportado para
diante de Madame Merteuil, pelo público que fazia círculo em
volta deles. Afirmam que Madame de Merteuil conservou o ar
de quem não vê nem ouve coisa alguma, e que nem sequer o rosto
se lhe alterou, mas creio que é exagero. De qualquer forma,
esta situação, verdadeiramente ignominiosa para ela, durou até
ao momento em que anunciaram a sua carruagem; à partida, os
apupos escandalosos redobraram. É horrível ser-se ainda parente
desta mulher. O senhor de Prévan foi, nessa mesma noite,
muito bem acolhido por todos os oficiais do seu regimento que
aí se encontravam, e ninguém duvida que em breve lhe restituirão
o cargo e o posto.
A mesma pessoa que me contou tudo isto disse-me que
Madame de Merteuil teve, na noite seguinte, um forte ataque de
febre, que se supôs a princípio ser o efeito da situação violenta
em que se encontrava; mas já se sabe, desde ontem à noite, que
se declarou um ataque de varíola, confluente e com grande virulência.
Na verdade creio que morrer seria para ela uma felicidade.
Diz-se ainda que toda esta aventura a prejudicará muito
no seu processo, que está prestes a ser julgado e no qual se pretende
que ela tinha necessidade que a favorecessem.
Adeus, minha querida e digna amiga. Vejo que os maus foram
castigados, mas não encontro nisso nenhum consolo para
as infelizes vítimas.

Paris, 18 de Dezembro de 17* *

CARTA CLXXIV

O CAVALEIRO DANCENY A MADAME DE ROSEMONDE

Tendes razão, minha senhora, e certamente não vos recusarei


nada que dependa de mim e a que parecerdes atribuir qualquer
valor. O maço que tenho a honra de vos enviar contém
todas as cartas de Mademoiselle de Volanges. Se as lerdes, vereis
com espanto como se pode reunir tanta ingenuidade e tanta
perfídia. É, pelo menos, o que mais me impressionou na última
leitura que acabo de fazer.
Mas, podemos sobretudo deixar de sentir a mais viva indignação
contra Madame de Merteuil, quando nos recordarmos
do horroroso prazer com que aplicou todos os cuidados em
abusar de tanta inocência e candura?
Não, já não amo. Nada conservo dum sentimento tão indignamente
traído; e não é ele que me leva a procurar justificar
Mademoiselle de Volanges. No entanto, esse coração tão simples,
esse carácter tão doce e fácil, não se deixariam levar para o
bem, mais facilmente ainda do que o foram para o mal? Que
outra jovem, saindo do mesmo convento, sem experiência e
quase sem ideias, e trazendo para o mundo, como quase sempre
acontece, uma igual ignorância do bem e do mal; que outra, dizia
eu, teria podido resistir melhor a tão condenáveis artifícios?
Ah, para ser indulgente, basta reflectir a quantas circunstâncias
independentes de nós se encontra ligada a alternativa assustadora
da delicadeza ou da depravação dos nossos sentimentos.
Far-me-íeis pois justiça, minha senhora, pensando que os erros
de Mademoiselle de Volanges, que sem dúvida senti vivamente,
não me inspiram contudo qualquer ideia de vingança. Já basta
ser obrigado a renunciar a amá-la! Custar-me-ia demasiado
odiá-la.
Não precisei de reflectir para desejar que tudo o que lhe diz
respeito, e que a poderia prejudicar, ficasse para todo o sempre
ignorado por toda a gente. Se na aparência adiei durante algum
tempo a realização dos vossos desejos a este respeito, creio poder
revelar-vos o motivo; quis esperar até ter a certeza de que
não seria incomodado pelas consequências deste infeliz caso.
Na altura em que pedia a vossa indulgência, a que ousava crer-me
mesmo com alguns direitos, receei ter o aspecto de a comprar
por esta condescendência da minha parte; e certo da pureza
dos meus motivos, tive, confesso-o, o orgulho de querer que
não pudésseis duvidar deles. Espero que me perdoareis este escrúpulo,
talvez demasiado susceptível, pela veneração que me
inspirais e pela importância que esta me leva a atribuir à vossa
estima.
O mesmo sentimento me faz pedir-vos, como última graça,
que me informeis se achais que preenchi todos os deveres que
me impuseram as infelizes circunstâncias em que me encontrei.
Uma vez tranquilo a este respeito, a minha decisão está tomada;
parto para Malta: irei com prazer, e aí guardarei religiosamente
os votos que me separarão dum mundo do qual, tão novo ainda,
já tenho tanto a queixar-me; irei enfim procurar esquecer,
sob um céu estrangeiro, a lembrança de tantos horrores acumulados,
e cuja recordação só poderia entristecer e torturar-me a
alma.
Sou com respeito, minha senhora, etc.

Paris, 26 de Dezembro de 17* *

CARTA CLXXV

MADAME DE VOLANGES A MADAME DE ROSEMONDE

O destino de Madame de Merteuil parece cumprir-se finalmente,


minha querida e digna amiga; e é de tal sorte que os seus
maiores inimigos estão divididos entre a indignação que ela
merece, e a piedade que inspira. Tinha razão ao dizer que seria
para ela uma felicidade morrer da varíola. Curou-se, é verdade,
mas ficou horrivelmente desfigurada; por cúmulo, perdeu um
olho. Não a voltei a ver; mas disseram-me que está verdadeiramente
hedionda.
O Marquês de..., que não perde ocasião para uma maldade,
dizia ontem, falando dela, que a doença a virara do avesso, e
que tinha agora a alma estampada no rosto. Infelizmente todos
acharam que a expressão era justa.
Um outro acontecimento vem acrescentar-se às desgraças e
aos erros dela. O processo foi julgado anteontem, e perdeu-o
por unanimidade. Coube-lhe o pagamento das custas, danos e
juros, e foi forçada a restituir os bens aos menores: de forma
que o pouco da fortuna dela que não estava comprometido no
processo foi absorvido, e até para mais, pelas despesas.
Assim que soube esta notícia, embora ainda doente, fez os
seus preparativos e partiu de noite, sozinha e pela mala-posta.
Os criados dizem hoje que nenhum a quis seguir. Crê-se que
tomou o caminho da Holanda.
Esta partida ainda fez mais barulho que todo o resto; visto
que levou os diamantes, coisa de muito valor, e que deviam ser
integrados na herança do marido; as pratas, as jóias; enfim,
tudo o que pôde, deixando perto de 50000 libras de dívidas.
Uma verdadeira bancarrota.
A família deve reunir-se amanhã para chegar a acordo com
os credores. Se bem que parente muito afastada, ofereci o meu
concurso; mas não estarei presente à reunião, pois devo assistir
a uma cerimónia muito mais triste. A minha filha toma amanhã
o hábito de noviça. Espero que não esquecereis, querida amiga,
que, neste grande sacrifício que faço, não tenho outro motivo
para a tal me julgar obrigada, a não ser o silêncio que guardastes
para comigo.
O senhor Danceny abandonou Paris há quinze dias. Dizem
que vai para Malta e que tem o projecto de lá se fixar. Talvez
ainda fosse a tempo de o reter... Minha amiga!... A minha filha
é assim tão culpada? Perdoareis sem dúvida que uma mãe só
muito dificilmente ceda a esta horrível certeza.
Que fatalidade se espalhou pois em volta de mim desde há
um tempo, que me feriu nos seres que me eram mais queridos! A
minha filha e a minha amiga!
Quem poderá deixar de tremer ao pensar nos males que
pode causar uma só ligação perigosa! E que desgostos se não
poupariam meditando mais nesta verdade! Que mulher não fugiria
à primeira proposta de um sedutor? Que mãe poderia sem
tremer ver alguém além dela falar à sua filha? Mas estas tardias
reflexões vêm só depois dos acontecimentos; e uma das mais
importantes verdades, e talvez das mais largamente reconhecidas,
permanece sufocada e sem emprego no turbilhão dos nossos
inconsequentes costumes.
Adeus, minha querida e digna amiga; sinto neste momento
que a nossa razão, já insuficiente para evitar as nossas infelicidades,
o é ainda mais para nos consolar.

Paris, Janeiro de 17* *

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