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DUNKER, C.I.L. – Uso Clínico da Noção de Traço Unário. Revista Acheronta, 2002.

Uso Clínico da Noção de Traço Unário

Christian Ingo Lenz Dunker1

1. Rastro, Traço e Significante

O desenvolvimento da noção de traço unário (einziger zug), no interior do


Seminário sobre a Identificação, pode ser entendido como um esforço de Lacan em três
frentes distintas. Temos primeiramente a tentativa de articular uma teoria do sujeito
inteiramente dedutível da noção de significante. Para isso foi necessário empreender uma
espécie de gênese lógica do significante, em outras palavras como afinal o significante se
constitui. Em decorrência deste duplo problema vemos, especialmente à partir da lição IX,
a introdução de uma novidade metodológica, a saber o recurso à topologia.

A estratégia de Lacan, no que diz respeito a esta gênese lógica do significante,


implica em pensar cada etapa da formação do significante em associação à uma vicissitude
da identificação e cada etapa da identificação como uma operação lógica do sujeito. Mas
por que Lacan teria retornado ao problema da identificação neste momento de seu ensino ?
A resposta só pode ser encontrada pela análise desta seqüência de seminários que abordam
sucessivos temas clínicos entre 1960 e 1964 ou seja, transferência, identificação e angústia.
Penso que estes três seminários compõe um bloco relativamente homogêneo dentro do
ensino de Lacan e que tem por problema central resolver a aporia criada a partir da primeira
teoria da constituição do sujeito. Sucintamente podemos dizer que esta aporia decorre da
percepção crescente de que a constituição do sujeito, pensada a partir da dialética do desejo
e do estádio do espelho, não é totalmente compatível com os desenvolvimentos em torno da
noção de significante. Isso se reduz a um problema relativamente simples: como o plano
especular, formativo do eu e da alienação primordial do sujeito pode se articular ao plano
do significante e mais extensivamente, à linguagem ? Como justificar, teoricamente, esta

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Psicanalista, professor do Programa de Pós Graduação em Psicologia da Universidade São Marcos.

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passagem sem ter que apelar para uma espécie de salto transcendental entre as imagens e
as palavras ?
Vários elementos pressionam por uma solução para este problema, situemos alguns:

(1) A criança nasce imersa na linguagem, a estrutura precede o sujeito, o simbólico


antecede o imaginário, no entanto a criança não nasce falando, ela deve se apossar da
linguagem na mesma medida em que a linguagem dela se apossa e subordina. Mas como
explicar esta intrusão do significante ?
(2) Podemos explicar perfeitamente a tese freudiana de que o inconsciente é um aparelho de
memória recorrendo à noção de cadeia significante, no entanto como incluir neste trajeto
afirmações como a de que há no inconsciente representação coisa, ou de que os traços
mnêmicos, constitutivos do inconsciente, são visuais e não acústicos ?
(3) Ora, a releitura da teoria freudiana do narcisismo, nos termos do estádio do espelho,
acaba carregando dentro de si a primazia de uma metáfora visual. Isso deveria nos levar ao
desenvolvimento de uma teoria da percepção, alternativa francamente descartada por
Lacan.

É no contexto de indagações como estas que Lacan se verá lançado em uma


reconstrução da teoria do narcisismo procurando encontrar um fundamento não especular e
lingüístico, para o próprio campo da especularidade, ou seja um fundamento simbólico para
o imaginário. Ressalte-se então a escolha do tema da identificação, ou seja, a “forma mais
primitiva de laço afetivo com o objeto” segundo a definição freudiana. A teoria da
identificação, predominante em Lacan até este momento toma por modelo a identificação
histérica, ou seja uma identificação com a totalidade de uma situação, uma identificação
com o desejo. Ora esta abordagem permite passar facilmente da totalidade de uma situação,
para a totalidade das situações, ou seja, o campo do Outro como lugar da linguagem e
discurso do inconsciente. Ocorre que isso deixa em aberto as duas formas anteriores de
identificação: a identificação primitiva e a identificação regressiva. A tese de que a
regressão é regressão aos significantes de uma demanda prescrita contorna relativamente
bem o segundo caso. Quando ao primeiro teríamos ainda de recorrer a um pressuposto
nitidamente aversivo para Lacan, qual seja, o da existência de um estado inicial

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indiferenciado onde mãe e criança formariam uma unidade (Einheit). Unidade precária,
instável, dependente do olhar do outro, mas, ainda assim unidade. Unidade cujo referente é
o estado de apaixonamento (Verlibtheit), de fascinação regressiva verificada nos fenômenos
de massa e também no hipnotismo.
Diante deste problema vemos surgir uma solução absolutamente engenhosa. Lacan
começa sobrevalorizando uma expressão de pouco peso no texto de Freud, qual seja a de
que o primeiro e o segunto tipo de identificação (a primordial e a regressiva) não se dão
com a situação global, como a identificação histérica, mas com “um único traço unário
(einziger zug) do objeto”. A idéia de traço vem realmente à calhar, ela marca sua
insistência em outros momentos metapsicologicamente relevantes, como por exemplo a
Carta 52, além disso o traço é pensável tanto em termos de linguagem quanto em termos
espaciais. Passemos então a esta arqueologia do significante.
Em primeiro lugar há a operação de rastro. O rastro é “o que o objeto deixa
enquanto ele se vai”2. Ele indica algo que não está lá. É o signo de uma ausência, como as
pegadas de Sexta feira. Mas se o rastro é um primeiro nível de negação da coisa, seu
atributo característico é que ele pode ser apagado ou anulado.
Mas um rastro que é negado materialmente não é mais um rastro, mas torna-se um
traço ou uma letra. Dois exemplos, a rasura que corta uma palavra ou as marcas entalhadas
em um osso, ou em qualquer outra superfície que lhe dê suporte: a pele, o papel, a tela. O
traço é, finalmente equiparável a uma forma material compatível com a representação coisa
e com a idéia de traço mnêmico visual.
Em um terceiro tempo temos a negação do traço operada pela barra, aqui sim
congruente com o recalcamento propriamente dito. Chegamos então ao significante. Este
herdará, do traço três propriedades fundamentais: a repetição, sua estrutura posicional e seu
caráter diferencial. No entanto, em oposição ao traço, o significante jamais poderá ser
apagado, ele é volátil não fixo como o traço. Mas a característica mais instigante que separa
o traço do significante é que eles remontam a estruturas diferentes de linguagem. O traço se
articula pela estrutura da escrita, o significante se articula pela estrutura da língua.
Vemos assim como Lacan encontra algo, no domínio da linguagem e ao mesmo
tempo dotado de espacialidade, capaz de sustentar uma fixação baseado na “identidade de

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Lacan, J. – Seminário IV, p. 281.

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percepção” e ao mesmo tempo não redutível à especularidade. Aqui há uma revolução


silenciosa de grandes implicações cínicas: estrutura da escrita e estrutura da linguagem não
são a mesma coisa. Fica então justificada teoricamente, uma antiga metáfora empregada por
Lacan para definir a própria clínica psicanalítica: um exercício de escuta sim, mas também
um exercício de leitura. Coloco então minha pergunta: quais as implicações clínicas da tese
de que o traço em geral e o traço unário em particular são passíveis de leitura pelo analista,
especificamente no que toca ao tratamento das identificações ?

2. Clínica da Identificação

Comecemos por separar um aspecto que por vezes levante algum embaraço clínico.
A identificação com o traço único do objeto é bem exemplificada pela formação do sintoma
histérico. Neste caso se trata da substituição de uma escolha de objeto por uma
identificação que toma a via regressiva. É o caso da tosse de Dora: em vez de sustentar uma
escolha amorosa ela retoma aquilo que a liga ao pai pela via deste traço “a tosse” que o
representa. Por esta via, ela se transforma no objeto perdido. Daí a imensa utilidade da
noção para pensar o tema da melancolia.
Mas, curiosamente, não se trata então, na formação de sintoma histérico de
identificação histérica. Se há identificação histérica em Dora, esta se passa em relação á
Sra. K. e não em relação ao pai. Vemos aqui uma primeira regularidade clínica interessante.
É comum verificarmos, nos casos de histeria, uma certa pendularidade entre a formação de
novos sintomas histéricos e a problematização de novas identificações histéricas. No
desenvolvimento do tratamento tudo se passa como se a cada solução ou deslocamento de
legítimos sintomas encontrássemos um período subseqüente dominado pela aparição ou
intensificação de novas identificações. Uma espécie de oscilação entre sintomas “nativos” e
sintomas “importados”.
Como se sabe a identificação histérica facilmente captura sintomas disponíveis no
campo do outro, particularmente no campo do outro feminino. É o caso do famoso exemplo
da epidemia da decepção amorosa no pensionato de meninas, mencionado por Freud. Mas
este tipo de sintoma, geralmente transitório, é altamente responsivo à localização do
significante que suporta tal identificação, geralmente o significante fálico. Neste caso a

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escuta, entendida aqui como pontuação, é suficiente para deslocar o sujeito daquela
identificação específica. O problema é que o trabalho extensivo sobre este tipo de sintoma,
que por sua responsividade torna-se fácil escolha na direção do tratamento acaba por fazer
sucumbir o sujeito em novos, e agora “verdadeiros”, sintomas histéricos. É o que pude
notar em certos analisantes que vem de trajetórias psicoterapêuticas que precedem a vinda
para a análise.
O mesmo já não se pode dizer do legítimo sintoma histérico. Neste caso a
reconstrução da estrutura metafórica do sintoma, de suas cadeias identificatórias que lhe
conferem uma envoltura formal e dos significantes que lhe estruturam é um movimento
preparatório para sua solução. Quero sugerir que nesta circunstância se trata também de
isolar o traço unário que faz a escrita do sintoma. Está sempre em jogo a descoberta de um
significante no real. Essa, parece-me ser, a designação que Lacan confere ao traço unário,
por exemplo, nos seminário III e IV. Isso pode ser apontado fenomenologicamente pelo
esgotamento da significação do sintoma. Ou seja, o traço, como elemento legível, deve
mostrar ao sujeito o suporte insensato de seu sintoma. Mais tarde aqui será tematizada a
noção de gozo, mas ela não é absolutamente necessária para entendermos como o que se
encontra na raiz do sintoma deve, necessariamente, resistir ao movimento tradutivo da
significação, mas também ao movimento de insistência significante. Trata-se de
transliteração, ou seja, passar de um regime de linguagem (a língua) a outro regime de
linguagem (a escrita). Atenção, é este movimento o aspecto crucial da operação, não a
nomeação do traço unário. Este não pode ser nomeado, pois é pura diferença. Sempre, e
apenas neste nível, podemos ver aquilo que é mais particularmente constitutivo do estilo de
um sujeito na criatividade de seu sintoma.
Podemos agora comparar os dois termos desta oscilação dos sintomas na histeria.
Os sintomas por identificação ao significante são coletivizantes, fazem laço social e
suportam a identidade do sujeito como um sistema de inclusões. Eles são sintomas cujo
fundamento é a unificação com o outro. Neles o que separa une.
Os sintomas por identificação ao traço, ao contrário, são singularizantes, marcam a
separação do sujeito em relação ao outro. Eles operam uma exclusão do campo do Outro, o
que é metapsicologicamente compreensível, pois o traço não pertence ao campo do Outro,
rigorosamente falando. Neles o que une separa.

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Nos dois casos o sujeito padece de um “erro de conta”, no primeiro ele deixa de se
contar, pois conta-se no outro, no segundo ele deixa-se de se contar pois sua identificação o
conta como - 1, no plano do significante.

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