Introdução
A escola e o sistema educativo em seu conjunto podem ser entendidos como uma
instância de mediação entre os significados, os sentimentos e as condutas da co-
munidade social e o desenvolvimento particular das novas gerações. Quando se
questiona o próprio sentido da escola, sua função social e a natureza da atividade
educativa (como conseqüência das transformações e das mudanças radicais tanto
no panorama político e econômico como no terreno dos valores, das idéias e dos
costumes que compõem a cultura, ou as culturas da comunidade social), nós,
docentes, aparecemos sem iniciativa, isolados ou deslocados pela avassala-
dora força dos fatos, pela vertiginosa sucessão de acontecimentos que torna-
ram obsoletos nossos conteúdos e nossas práticas. Como não podia ser de
outra maneira, nós, docentes, vivemos no olho do furacão da inegável situa-
ção de crise social, econômica, política e cultural que vive nosso meio no
final desse milênio.
Parecemos carecer de iniciativa para enfrentar novas exigências porque, afi-
nal de contas, nos encontramos encurralados pela presença imperceptível e perti-
naz de uma cultura escolar adaptada a situações pretéritas. A escola impõe, lenta-
mente, mas de maneira tenaz, certos modos de conduta, pensamento e relações
próprios de uma instituição que se reproduz a si mesma, independentemente das
mudanças radicais que ocorrem ao redor. Os docentes e os estudantes, mesmo
vivendo as contradições e os desajustes evidentes das práticas escolares domi-
nantes, acabam reproduzindo as rotinas que geram a cultura da escola, com o
objetivo de conseguir a aceitação institucional. Por outro lado, as forças sociais
não pressionam, nem promovem a mudança educativa da instituição escolar por-
que são outros os propósitos e as preocupações prioritárias na vida econômica da
sociedade neoliberal e, pelo menos, a escola continua cumprindo bem a função
social de classificação e creche, sem interessar demasiado o abandono de sua
função educativa.
12 A. r. PÉREZ GÓMEZ
o CONCEITO DE CULTURA
Parece evidente que o contexto cultural que tanto potencia como restringe as
possibilidades de desenvolvimento do indivíduo humano mudou substancialmente
de forma acelerada nas últimas décadas para mostrar sua natureza flexível, com-
plexa, incerta, plural e diversificada. As raízes locais da cultura que definiram o
cenário próximo em que cada indivíduo incorporava a herança social, e que lhe
proporcionavam tanto a plataforma de lançamento como o horizonte de expecta-
tivas, perderam não apenas sua supremacia como também sua própria e original
identidade, atuando, em todo caso, ao mesmo tempo e de forma mediatizada com
os poderosos instrumentos de comunicação social. Com isso, parece que o indi-
víduo das sociedades do fim do século XX ampliou de maneira assombrosa seus
horizontes, seus recursos e suas expectativas culturais à custa, inevitavelmente,
de perder sua segurança.
Por outro lado, o conceito de cultura, apesar da força recuperada como re-
curso explicativo das interações humanas, não pode ser entendido sem se identi-
ficar as estreitas relações que mantém com o marco político, econômico e so-
cial no qual é gerado e com o qual interage. Se os produtos simbólicos das
interações humanas de um grupo social - isto é, o conjunto de significados,
expectativas e comportamentos - se enraízam e sobrevivem é porque mani-
festam um certo grau de funcionalidade para se desenvolver nas condições
sociais e econômicas do meio. Agora, estas relações já não podem ser consi-
deradas nem unilaterais nem dependentes, como a interpretação mecanicista
do desenvolvimento histórico impôs em grande parte do pensamento moder-
no. É evidente que os produtos culturais se geram tão adaptados, em certa
medida, ao contexto natural, econômico ou social, que mantêm, ao mesmo
tempo, um certo e irredutível grau de autonomia que provoca disfunções,
bloqueios, alternativas e, inclusive, a transformação das condições de tal con-
texto (Carspecken, 1992).
Se o conceito de formação cultural parece substituir o clássico conceito de
classe social, na minha opinião não é porque tenham deixado de existir as dife-
renças sociais em virtude do nível econômico, nem porque começam a ter mais
importância os problemas referentes à nacionalidade, à etnia, à linguagem ou à
religião, como coloca Bell (1996), esquecendo que em todos eles subjaz algum
problema relacionado com ajustiça e com a igualdade na produção e na distribui-
ção de bens; a substituição parece-me necessária para evitar a interpretação me-
canicista nas relações entre as condições econômicas e as elaborações simbólicas
dos grupos humanos. Precisamente, porque não se confirmam ditas relações me-
cânicas, porque existe um certo grau de autonomia na elaboração de significados,
expectativas e comportamentos dos indivíduos e dos grupos humanos, os limites
e as fronteiras entre eles se esfumam e confundem. Neste sentido, o conceito de
proletariado ou burguesia deixa de ter valor para compreender os comportamen-
tos individuais e os movimentos sociais. A relativa autonomia da produção sim-
bólica, a qual constitui o conceito de cultura, permite uma análise mais flexível,
dinâmica e diversificada para compreender a pluralidade e a complexidade do
comportamento humano.
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLlBERAL 15
Quando o homem organiza racionalmente não faz mais do que reproduzir, repetir ou
prolongar formas já existentes. Mas quando organiza poeticamente, dá forma ao caos,
e esta ação, que é, talvez, a melhor definição da cultura, se manifesta com uma clareza
esmagadora no caso da arte. (Castoriadis, 1993, p. 47)
1
- ._~~
objetivam em c mpoi-tamentos~ em artefatos
contexto institucional e que são~i~o~
--_
--- e em rituais ...•.que formam a pe e do
como impre~díveis e inquestioná-
/ _ye~ por seu caráter prévio à int~rvenção dos agen~. ----- - -------
* N. de T. Processo pelo qual a pessoa adquire os usos, as crenças, as tradições, etc., da sociedade
em que vive.
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLIBERAL 17
tem nos pensamentos, nos sentimentos e nas condutas dos estudantes requer des-
cer aos intercâmbios subterrâneos de significados que se produzem nos momen-
tos e nas situações mais diversas e inadvertidas da vida cotidiana da escola. ~
~ife~_~~s_cultu[as ue s~r.~ uzam no espaço escolarJ!!!.m:s<gnam o sentido
dos intercâmbios e o valorJia~Jr,ªns~9ões em mero às quais se desenvolve a co~s-
*
trução de significados de cada indivía~---~---
- Com este propósito e levando em conta a complexidade do termo cultura
anteriormente desenvolvido, me parece necessário tornar mais definido o concei-
to que utilizarei adiante. Considero5!Jtüiã}:omo o conjunto de significados, ex- 6
p~ctativas.-e comportamentos compartilhada por um eterminado grupo sQcial, \
o gual facilitá eOrdena, limita e potenciaõS·intercâmbiÔs'-socials, as produções"
s'imbólicas-emateriai s-e as realizações individuais e coletivas dentro ~ um mar- '1"_
para poder se oferecer como plataforma e ucativa, a qual tenta aclarar o sentido
e os mecanismos através dos quais exerce a ação da influência sobre as novas
gerações.
Meu propósito, ao dese Y9 y.e~ a uma d culturas ue se entrecruzam
r
no e_~pa
-.,
6 esco ar,
~_~",.
e oferecer instrumentos teóricos, linhas de análise que aci I-
tem a indagação e a compreensão da complexidade de fenômenos explícitos e
latentes que configuram a rica vida da sala de aula e da escola. Não são mais do
que pontos de partida e vias de indagação que pretendem abrir novos horizontes
à pretensão de entender os fluxos reais que pressionam a construção de significa-
dos naqueles que vivem na escola.
As diferentes culturas que se cruzam na escola sofrem, de forma indesculpá-
vel, as implacáveis determinações da complexa vida contemporânea; por isso, a
pretensão de intervir educativamente no desenvolvimento das futuras gerações
requer a compreensão de influxos sutis, onipresentes e freqüentemente invisí-
veis, porque fazem parte do cotidiano. As ferramentas de análise e os esquemas
de interpretação que ofereço aqui obviamente também não escapam à complexi-
dade e à contingência. Meu desejo é que, apesar da inevitável dificuldade do
conteúdo de alguns capítulos, as interpretações que apresento possam servir aos
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLlBERAL 19
E
ntendemos por~alta cultura ou ~ultura intel~ual o conjunto
de significados e produções que, nos diferentes âmbitos do saber e do
fazer, os grupos humanos foram acumulando ao longo da história. É um
saber destil~do pelo contraste e o escr{ltínio público e sistemático, pela ~rítica e
reformulação permanente, que se aloja nas disciplinas científicas, nas produções
artísticas e literárias, na especulação filosófica, na narração histórica ... Esta cul-
tura crítica evolui e se transforma ao longo do tempo e é diferente para os diferen-
tes grupos humanos.
Não é difícil constatar uma crise atualmente na cultura intelectual e como esta
situação de crise influi de modo substancial no âmbito escolar, provocando, sobretudo
entre os docentes, uma clara sensação de perplexidade, ao comprovar como se des-
vanecem os fundamentos que, com maior ou menor grau de reflexão e consciente
aceitação, legitimam ao menos teoricamente sua prática. Quais são os valores e os
conhecimentos da cultura crítica atual que merecem ser trabalhados na escola? Como
se identificam e quem os define?
É evidente que, nas últimas décadas, vivemos uma inevitável sensação de
crise interna e externa da configuração moderna da cultura crítica que legitimou,
ao menos teoricamente, a prática docente em nossas escolas. A cultura científica
e o modelo de racionalidade vigente na sociedade ocidental se desvanece. A mo-
dernidade, a idéia de progresso linear e indefinido, a produtividade racionalista, a
22 A. r. PÉREZ GÓMEZ
PÓS-MODERNIDADE
Sem entrar neste momento numa análise exaustiva e crítica dos pressupostos e
das propostas do pensamento pós-moderno, parece-me conveniente destacar duas
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLIBERAL 33
Um dos aspectos em que se reflete com mais intensidade a crise atual da cultura
intelectual é o grau de tensão que, ao longo da última metade do século, adquire
a polêmica entre relativismo e universalidade, matizado pelo constante renascer
das tendências etnocêntricas. Em minha opinião, esta polêmica não pode ser en-
frentada de maneira dicotômica; nela se encontram presentes, ao menos, três com-
ponentes em mútua interdependência e relativa autonomia: o indivíduo, a cultura
singular e a aspiração à comunidade universal, o que requer três níveis de análise
independentes e complementares.
Etnocentrismo
ção intelectual e o desenvolvimento moral de todos os povos da Terra (...) O rei está
nu: nós, europeus da segunda metade do século XX, não somos a civilização, apenas uma
cultura especial, uma variedade fugitiva e perecível do humano" (p. 62, 63).
As tendências etnocêntricas, que supõem a valoração do próprio como uma
categoria universal e a exclusão do alheio como subprodutos marginais já supe-
rados pela própria história, nunca podem ser consideradas superadas. Não se
trata nem exclusiva nem prioritariamente de um vício ideológico das sociedades
primitivas, mas sim de um mecanismo às vezes sutil, às vezes grosseiro de poder,
e como tal é utilizado com freqüência nos conflitos de interesses entre indiví-
duos, grupos e culturas.
Parece evidente, neste sentido, que a imposição de uma cultura sobre outras não
se restringe à época dos impérios. Em cada período histórico, renovam-se as formas
de dominação e se especializam os mecanismos de intervenção, de modo que a impo-
sição etnocêntrica se toma mais sutil e invisível, acomodada às exigências e às possi-
bilidades de cada época. Por exemplo, como destaca Fred Halliday, "não há nada
mais etnocêntrico que a ênfase que se está dando ao ano 2000. Talvez, acrescentemos
nós, o empenho em fixar Oriente e Ocidente de acordo com nossa particular localiza-
ção geográfica neste maltratado globo" (Menéndez deI Valle, 1995, p. 51).
O etnocentrismo tampouco é exclusivamente uma tendência própria da cultura
dominante. Como instrumento de poder, funciona de forma profusa dentro de cada
cultura e de cada grupo humano para legitimar culturalmente, na maioria dos casos, a
dominação dos mais poderosos e, em outros muitos, para referendar e blindar as
próprias posições. De todas as formas, parece evidente que, como afirma Gala (1993):
"As xenofobias possuem causas econômicas mais do que raciais: os ricos são recebi-
dos bem em todos os lugares, os pobres, em nenhum".
Do ponto de vista do desenvolvimento e intercâmbio do conhecimento, o
etnocentrismo atua como um recalcitrante obstáculo epistemológico, porque tor-
na impossíveis a análise e a escolha racional. Ao estabelecer a prioridade inques-
tionável das próprias representações, por ser o reflexo da superioridade cultural
adquirida no desenvolvimento histórico, dá por resolvidos, a priori, os proble-
mas e as questões que teria que submeter a estudo e a discussão. O etnocentrismo
promove tanto a exclusão injusta e injustificada do alheio como a cômoda conformi-
dade com o próprio. Em uma mesma tendência se unem, pois, dois dos aspectos mais
desagregadores para o desenvolvimento do conhecimento, a certeza e a ignorância. A
certeza inquestionável do próprio e a ignorância depreciativa do alheio.
É fácil reconhecer como a escola, filha privilegiada do Iluminismo moder-
no, exerceu e continua exercendo um poderoso influxo etnocêntrico. A escola
está reforçando de maneira persistente a tendência etnocêntrica dos processos de
socialização, tanto na delimitação dos conteúdos e valores do currículo que refle-
tem a história da ciência e da cultura da própria comunidade como na maneira de
interpretá-los como resultados acabados, assim como na forma unilateral e teóri-
ca de transmiti-los e no modo repetitivo e mecânico de exigir sua aprendizagem.
A crítica desapiedada, principalmente da antropologia, ao etnocentrismo do
pensamento iluminista em suas principais realizações, assim como as exigências
36 A. L PÉREZ GÓMEZ
Relativismo
Seus adeptos não aspiram a uma sociedade autêntica em que todos os indivíduos vivam
comodamente em sua identidade cultural, mas uma sociedade polimorfa, um mundo
heterogêneo que ponha todas as formas de vida à disposição de cada indivíduo. Pregam
menos o direito à diferença do que à mestiçagem generalizada, o direito de cada um à
especificidade do outro.
da), e Foucault (na minha) para apoiar a seguinte sugestão: a diversidade de visões do
mundo, filosofias, metafísicas e fé religiosa não impede o surgimento de um ethos
comum, a menos que uma das visões do mundo determine por completo os manda-
mentos e as proibições, e que o faça não apenas para seus próprios seguidores como
também com uma aspiração universalizante. (Heller, 1992, p. 33)
Universalidade e diferença
varrfa, 1994; Cruces, 1992; Heller, 1992; Harent, 1993; Sebreli, 1992) e que, em
muitos casos, se confundiu com a imposição etnocêntrica da poderosa civilização
ocidental contemporânea, como na proposição atual de Fukuvama."
Cabe matizar um pouco mais a diferença entre cultura e civilização. Parece
comum, embora com uma carga e um significado plural, o entendimento da cul-
tura como uma construção singular, própria de um grupo humano situado num
contexto local e numa época concreta, independentemente da magnitude de sua
influência; enquanto que, por civilização, se entende a tendência humana indivi-
dual e coletiva de se distanciar e superar as restrições da própria cultura para
integrar-se ou construir um horizonte mais amplo e universal.>
Em todo caso, não é uma distinção isenta de controvérsia. Por um lado, é muito
fácil sucumbir à tentação de considerar como cultura as formações alheias e inferio-
res, e como civilização o estado superior que alcançou a cultura própria no conflitante
devenir histórico, ao superar estágios pretéritos de constrição localista, como assim
tem ocorrido freqüentemente com a cultura ocidental. Por outro lado, o conceito de
civilização é um conceito vago e etéreo,já que supõe em certa medida o deslocamen-
to dos significados, a descontextualização das produções simbólicas; como se não
fosse também contingente a uma época e a um espaço com características geográfi-
cas, econômicas e políticas concretas e determinadas historicamente.
O desenvolvimento de cada cultura - sempre e quando abandona a funda-
mentação divina ou dogmática de suas representações, valores, instituições e com-
portamentos, assim como o desenvolvimento de cada indivíduo (Piaget, Vygotsky)
- requer um processo singular de descentralização, de estranhamento, de distân-
cia crítica para compreender os fundamentos contingentes e os interesses pas-
sados ou presentes que geram suas atuais determinações. É oportuno lembrar
aqui o pensamento de Hôrderlin ao afirmar que uma civilização somente al-
cança a plenitude se é capaz de se pôr em contradição, de "se estranhar" em
relação à sua própria identidade para fecundar-se com sua "alteridade" (Ar-
gullol e Trías, 1992, p. 99).
Em princípio, a colocação parece coincidir com as propostas do Iluminismo:
libertar-se dos preconceitos, dos mitos e dos pressupostos inquestionáveis de cada
cultura, utilizando o conhecimento e a experiência compartilhada. No entanto,
em lugar de propor o modelo próprio construído pelo Ocidente como recurso de
análise e marco de valoração, a proposta atual supõe enriquecer-se com os mode-
los alheios e, em particular, com os debates e contrastes racionalizados e experi-
mentados entre culturas. Concordo com Savater (1994) quando declara que à
medida que a cultura vai se sofisticando, tornando-se mais reflexiva e menos
impulsiva, concebe a si mesma como uma forma de vida entre outras, talvez pre-
ferível, embora não mais garantidamente humana que outras modalidades vizi-
nhas; "a esse transcender sua própria clausura auto-sufiente, que em menor ou
maior grau se encontra em todas as culturas, podemos chamar-lhe a perspectiva
civilizada" (Savater, 1994, p. 12).
Assim, pois, derrotadas as injustificadas e ambiciosas pretensões de univer-
salizar um modo concreto de exercer a racionalidade, de conceber a verdade, a
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLIBERAL 43
o processo de difusão cultural parece conduzir a uma situação característica tanto por
uma maior variação intracultural como por uma maior homogeneidade intercultural. Os
acervos culturais das diversas populações humanas cada vez se parecem mais entre si,
ao mesmo tempo que internamente se diversificam mais e mais, mediante a crescente
admissão de memes exógenos." (p. 104)
Agora, não podemos perder de vista que a cultura, neste caso a cultura críti-
ca, é um processo de elaboração simbólica em grande medida determinado pelas
condições econômicas, sociais e políticas do contexto no qual se produz. E as
características do contexto atual estão definidas pelas condições da pós-moderni-
dade. A globalização dos intercâmbios econômicos dentro das regras do livre
mercado exige a ruptura das barreiras físicas e simbólicas, as quais restringem as
possibilidades de intercâmbio comercial e a extensão universal do benefício como
princípio regente das transações. Conforme veremos no capítulo dedicado à cul-
tura social, este processo requer e estimula o desenvolvimento de alguns valores
e princípios de compreensão e comportamento que constituem o que se denomina
o pensamento único. A globalização e o pensamento único não podem ser con-
fundidos de modo algum com a universalidade, com as aspirações de construir os
marcos universais de convivência humana, respeitosos com as diferenças e com-
prometidos com a construção compartilhada. Como afirma Baudrillard (1996):
... não há, qual tesouro oculto e por descobrir, nenhum significado no ser, no mundo, na
história, em nossa vida; [o certo é] que nós criamos o significado sobre um fundo
sem fundo, que damos forma ao caos mediante nosso pensamento, nossa ação, nos-
so trabalho, nossas obras, e que este significado não tem nenhuma 'garantia' exte-
rior a ele mesmo (Castoriadis, 1993, p. 47).
Secularizar a razão significa situar seus agentes mais genuínos, a ciência e a tecnologia,
em seu próprio âmbito de incumbência, sem que se pretenda derivar deles inferências
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLlBERAL 47
Posto que a história decorre em sentido irreversível, cada acontecimento que se produz
a reestrutura por inteiro, determinando um fluxo de sucessos descontínuos comple-
tamente imprevisíveis e contingentes. Esta é a fonte mais indomável de incerteza e
acaso. (p. 107)
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLIBERAL 49
Por tudo isso, parece que a postura mais honesta e racional é reconhecer e
assumir a indeterminação, aceitar ao menos intelectualmente a carência de funda-
mento definitivo de nossos propósitos e pressupostos de compreensão e de ação.
Assumir o desnudamento ineludível e a contingência constitutiva do ser hu-
mano nos prepara para apresentarmo-nos de maneira mais modesta e tolerante
nos encontros com os demais, dentro e fora de nosso grupo e de nossa cultura.
Aceitar a caducidade e a precariedade da existência tanto dos indivíduos como
das culturas empurra para a abertura e para a cooperação, sem dúvida com mais
facilidade do que a crença numa suposta razão universal, cuja posse exclusiva ou
de forma prioritária cada um reivindica a partir de seu localismo particular, inclu-
sive à custa da autodestruição. Como sugere Forlari (1992), devemos celebrar a
emergência de um pensamento do parcial, que não impõe, mas argumenta, que
não supõe verdades transcendentais a seus enunciados e, por isso, assume a "de-
bilidade" intrínseca de qualquer postulado, o qual facilita o entendimento embora
não necessariamente o consenso.
A este respeito, é oportuno lembrar Weber, que não compartilhava o otimis-
mo iluminista que considerava que o progresso técnico seria convertido direta-
mente em progresso moral. Pelo contrário, afirmava que, mais além do naturalis-
mo ou da explicação divina, é necessário vincular a razão com a história, mas não
como fez o pensamento modernista ao entronizar sua própria concepção da razão
e converter a história em subproduto de sua intervenção, mas considerando a
razão como uma clara entidade histórica, condicionada pelos interesses e contin-
gências que, em cada época, definem os intercâmbios humanos. A razão não se
encontra à margem da história e seus condicionamentos; pelo contrário, têm suas
limitações e requerem controles e contrapesos. Não existe uma razão universal
independente, apenas razões, talvez poderosas, mas elaboradas sempre dentro de
coordenadas sociais e políticas concretas. A plural idade e a igualdade de oportu-
nidades para discrepar, isto é, para contrastar as diferentes razões, talvez seja o
melhor contrapeso da tendência impositiva da razão universal.
Enfim, destronada a razão universal, voltamos necessariamente o olhar às dife-
rentes justificativas das razões parciais. Movemo-nos inevitavelmente no terreno da
valorização ética das posições e dos comportamentos, a qual analisaremos a seguir.
de criar, propor, fazer, construir, intercambiar supõe para eles a essência do indi-
víduo, o motor do progresso e a garantia da distribuição justa e eqüitativa, segun-
do os méritos, os esforços e as capacidades de cada um. A tendência liberal assu-
me o princípio da eficiência, da ótima relação meios-fins, própria da racionaliza-
ção instrumental, e da ética das conseqüências, como o elemento principalmente
responsável do desenvolvimento da civilização: a revolução industrial, o capita-
lismo, o progresso científico e suas aplicações tecnológicas. As diferenças so-
ciais, a pobreza, a discriminação e a exclusão das minorias são consideradas como
efeitos colaterais, tributos inevitáveis ao desenvolvimento e ao progresso que
beneficia a maioria. Da mesma maneira procede a natureza vegetal e animal,
através da seleção natural para garantir a sobrevivência e a evolução. O bem da
maioria, e do progresso, parece requerer o sacrifício das minorias.
A tendência socialista, pelo contrário, defende que os intercâmbios livres
entre os indivíduos, grupos, sociedades ou culturas exigem, como lembra reitera-
damente Durkheirn, normas e instituições que os regulem para evitar o conflito, o
enfrentamento permanente e a consolidação da lei da selva. Preservar e recriar o
tecido institucional e as normas culturais que garantam a igualdade de oportuni-
dades nos intercâmbios são tão importantes para esta tendência como a iniciativa
privada se desejamos conseguir uma mínima estabilidade social que permita o
desenvolvimento social e a felicidade individual. Sem uma mínima garantia de
igualdade de oportunidades, as formações sociais não adquirem a legitimidade
requerida para encontrar a estabilidade. E a igualdade e a legitimidade social se
assentam no respeito à identidade cultural, ao valor das instituições primárias,
das tradições e das normas que a cultura foi criando para proteger o indivíduo, em
particular os mais desfavorecidos, das forças do destino e dos enfrentamentos
históricos da livre concorrência. Estas mesmas instituições e normas culturais são
consideradas pelos partidários do liberalismo como um freio e um lastro insupor-
tável que impedem o desenvolvimento criador da livre iniciativa ..
À luz do debate precedente sobre fundamentação racional da representação
e da ação, ambas tendências requerem uma importante reconstrução. A tendência
liberal e suas manifestações atuais no neoliberalismo não podem ignorar que a
ausência de fundamentação racional definitiva requer o acordo explícito e perma-
nente dos indivíduos e dos grupos, através de suas instituições, para garantir as
regras do jogo do livre intercâmbio. De outro modo, a lei do mais forte provoca-
ria a forma permanente ou a dominação autoritária ou a instabilidade, o enfrenta-
mento e o sofrimento como fenômenos concomitantes ao desenvolvimento da
livre concorrência. A vertente socialista não pode esquecer que a igualdade é uma
plataforma de progresso somente quando se apóia na liberdade, e que o fortaleci-
mento da identidade cultural, das instituições básicas, do carisma dos indivíduos
e dos povos, assim ~omo a'imposição da homogeneidade interpretativa, como
desculpa para garantir a igualdade, são obstáculos definitivos para o processo de
autonomia e de autodeterminação dos indivíduos e dos grupos sociais. Como a
história recente se encarregou de demonstrar, o simples desenvolvimento de com-
plexas instituições e normas burocráticas não garante por si mesmo a igualdade e
54 A. L PÉREZ GÓMEZ
podemos considerar igualitários aqueles que, ainda que não ignorem que os homens são
tão iguais quanto desiguais, apreciam principalmente e consideram mais importante para
uma boa convivência os que lhes são semelhantes; não-igualitários, por outro lado, aos
que, partindo do mesmo juízo de fato, apreciam e consideram mais importante, para
conseguir uma boa convivência, sua diversidade. (p. 146)
Para inventar ídolos novos não vale a pena ser iconoclasta. (Gala, 1995, p. 102)
va, como construção e projeto. E isso, como afirma Vattimo (1995), não supõe de
modo algum uma reivindicação "do local" sobre "o global", uma redução "paro-
quial" da experiência do verdadeiro. Isso significa, em princípio, a abertura da
racionalidade aos territórios proibidos, exclusivo da razão instrumental: o mito, a
estética, a intuição, a ideologia, a busca hermenêutica, o desejo etc., todos aque-
les aspectos que, mesmo resistindo a um comportamento lógico ou mecanicista,
inclusive a uma análise racional, apresentam importantes dimensões, presentes
na representação e na ação dos indivíduos e dos grupos.
O mito, por exemplo, ou as superstições ou as crenças religiosas, são ele-
mentos que não suportam a análise racional e que, no entanto, se encontram en-
raizados na cultura dos grupos humanos, de tal modo que é difícil encontrar exem-
plares individuais ou coletivos que não tenham recorrido a seu refúgio em algu-
ma ocasião, para enfrentar a incerteza e para escapar da ansiedade que provoca o
mistério, o desconhecido e o inevitável. Desconsiderar esta dimensão tão rele-
vante e difundida da espécie humana, por não encaixar nos padrões de análise
racional em uso, acredito que deve ser qualificada com toda propriedade de atitu-
de irracional. Lévi-Strauss já aconselhava não opor magia e ciência, mas conside-
rá-Ias como dois modos desiguais de conhecimento. O mito e a razão são dois
pólos de referência irredutíveis, mas inevitáveis, da história das culturas. O mito
sem razão se converte em magia e despotismo, a razão sem mito se converte
facilmente num artiffcio lógico, descamado de desejo, à imagem e semelhança do
processamento mecânico dos computadores.
Interesse pelo mito sempre houve. Durkheim falava deles como dos doadores de senti-
do à sociedade; Lévi-Strauss condicionava a possibilidade de um verdadeiro humanis-
mo a seu reconhecimento; para Blumenberg, é o mito que pode baixar a crista do prin-
cípio de realidade; Kolakovski os traz como dados para compensar os limites da razão
científica ... (Mate, 1994, p. 2)
Parece, portanto, inevitável que a conquista da autonomia leva atrelada não ape-
nas a responsabilidade de assumir a orientação do próprio destino, como também
a exigência de tomar decisões a partir do território em que habitam a dúvida e a
incerteza, sempre insuperável em certa medida. Sem destino pré-fixado e sem de-
terminações externas, culturais ou sobrenaturais, que fixem de forma definitiva o
rumo de sua atividade, o indivíduo autônomo se defronta com a necessidade de cons-
truir e reconstruir permanentemente a orientação de seu presente contínuo, de se
construir como sujeito. Não quer dizer que o sujeito humano não se encontre profusa-
mente condicionado pelos hábitos adquiridos, pelas rotinas e rituais de sua cultura,
pelas normas e instituições, pela rede de significados que constituem seu território
simbólico, e pelos papéis que desempenha; o relevante de sua condição autônoma é a
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLIBERAL 57
consciência de que todos estes aspectos são tão ineludíveis companheiros como con-
tingentes criações. Todos são produto do desenvolvimento histórico, do acaso e da
necessidade conjuntural, de interesses, conflitos e acordos concretos, e frente a todos
eles deve se perguntar a validade antropológica de suas contribuições ou limitações.
A construção do sujeito autônomo nas condições concretas que em cada
cultura impõem as instituições, as normas, os intercâmbios materiais e a rede de
significados dominante e que se especificam de maneira peculiar para cada indi-
víduo e para cada grupo humano parece situar-se no modo como cada um confi-
gura, matiza e organiza a multiplicidade de papéis que há de desempenhar na
complexidade de sua vida cotidiana. A incerteza generalizada da espécie humana
frente à construção de seu sentido se especifica na prosaica escolha de limitadas
alternativas que a cada sujeito se apresentam, na complexa rede de papéis que sua
existência requer. De todo modo, sejam poucas ou muitas as alternativas à sua
disposição, o problema do sentido de sua existência permanece sempre presente,
e em alguma medida sempre em suas mãos.
A complexidade das sociedades modernas implica que nelas não existe nem um centro
que possa representar a totalidade social, nem a possibilidade de reduzir a pluralidade
das posições valorativas a um consenso único. A aceitação do público, portanto, não
pode se vincular a um conteúdo concreto da decisão, mas aos procedimentos que permi-
tem tomar decisões. (Luhmann, em Serrano, 1994, p. 28)
Talvez seja Habermas quem tenha desenvolvido com mais detalhes as ca-
racterísticas da racionalidade procedi mental situada nos processos de comunica-
ção.'? O aspecto que mais nos interessa de sua proposição é a insistência tanto no
caráter formal e procedi mental de sua racionalidade comunicativa como na con-
cretização destes procedimentos em pressupostos e estratégias que garantam a
igualdade de oportunidades dos interlocutores, de modo que possa se efetuar um
intercâmbio aberto e respeitoso em que se evidencie a força do melhor argumen-
to. Não por acaso, os pressupostos e os valores que subjazem em sua proposta
são os requisitos ligados à constituição democrática da vida social. Nestes proce-
dimentos, voltamos a encontrar os valores básicos que aproximaram tanto como
confrontaram os grupos humanos ao longo da história: a igualdade e a liberdade.
Sem liberdade para criar e para expressar as próprias convicções, a comunicação
carece de interesse; sem a igualdade de oportunidades dos interlocutores, a co-
municação se desequilibra e desliza para a persuasão, o domínio e a imposição.
A racionalidade da representação e a racionalidade da ação parecem convergir
na afirmação radical dos procedimentos democráticos como pressupostos ótimos,
tanto para a produção, a difusão e a crítica do conhecimento como para o entendimen-
to e a organização da convivência. Portanto, o problema da cultura crítica se situa, na
minha opinião, no debate complexo e delicado sobre os pressupostos e os valores que
subjazem nos procedimentos do intercâmbio democrático e na identificação desses
mesmos procedimentos nos diversos âmbitos do saber e do fazer: na produção de
conhecimentos, na tomada de decisões na vida cotidiana e no controle do poder.
A democracia não pode, deste modo, se identificar com um modelo de orga-
nização concreta da economia, da política e da cultura, nem sequer com um mo-
delo ideal de reconciliação e harmonia. A democracia é um esquema formal, em
permanente construção, de procedimentos para enfrentar, mediante o diálogo, a
informação compartilhada, o debate e a decisão majoritária, os inevitáveis confli-
tos, desacordos e discrepâncias que aparecem na organização dos intercâmbios
no mundo da vida. Ou, como afirma Savater (1995), a democracia é um concerto
discordante, uma harmonia cacofônica, pelo que exige mais relaxamento no cole-
tivo e maior maturidade responsável no pessoal do que nenhum outro sistema
político. Agora, as condições que determinam o mundo dos intercâmbios mate-
riais e simbólicos, ou seja, as condições políticas, econômicas e culturais de uma
sociedade concreta não são indiferentes em relação à garantia dos procedimentos
que requerem o intercâmbio democrático. A liberdade e a igualdade como valo-
res imprescindíveis para a participação se encontram melhor atendidas por al-
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLIBERAL 59
guns sistemas sociais que por outros. E esta é a grandeza e a miséria da democra-
cia humana: facilita o contraste de pareceres e de experiências entre os indivíduos
e os grupos na busca contínua do melhor sistema de vida, mas não garante sua
realização. Podemos chegar a um acordo, depois do debate e da experimentação,
sobre os sistemas que não conduzem à satisfação e não favorecem o intercâmbio
democrático, mas não podemos definir racionalmente de forma positiva o sistema
concreto adequado. Somente podemos estabelecer hipóteses de trabalho e de ex-
perimentação.
Entre estas hipóteses de trabalho, podemos, de acordo com Savater (1995) e
Aranguren (1991), elencar algumas, referentes às atitudes básicas que requer o
procedimento democrático:
- Em primeiro lugar, afirmar a idéia de pluralidade e tolerância contra a
imposição de uma única ou melhor forma de pensar e de ser. Como desenvolve-
mos amplamente, o caráter inacabado, aberto e reflexivo, assim como a indeter-
minação natural da espécie humana fundamentam a diversidade de concretiza-
ções individuais e culturais. Pode-se ser cidadão de muitas maneiras e deve exis-
tir sempre uma área de livre disposição existencial, na qual as leis e as normas
culturais não devem incidir, a não ser para proteger o próprio direito dos demais.
Neste sentido, coincide Savater com a defesa que I. Berlin faz da liberdade nega-
tiva como valor individual que permite que o indivíduo se negue a qualquer com-
portamento que considere desumano por mais que o garanta um procedimento,
legitime-o uma maioria ou o sancione um conceito de razão. A diversidade e o
respeito às minorias são tão importantes na democracia como o governo das maio-
rias. Neste sentido, convém ressaltar que a democracia deve se defender ativa-
mente contra a intolerância militante dos que querem impor uma única forma de
pensar ou de viver. A democracia requer uma disposição combativa a favor da
pluralidade e do respeito às diferenças.
- Em segundo lugar, a democracia não pode se reduzir a um conjunto de
procedimentos formais para garantir os processos eleitorais. Como já destacamos
anteriormente, é um conjunto de procedimentos em que subjazem princípios e
valores que definem de forma genérica um estilo de vida individual e coletivo,
tolerante e respeitoso com a pluralidade de formas concretas de existir e compro-
metido, mediante a participação ativa, com a defesa dos direitos que garantam a
convivência na pluralidade. A democracia é uma forma de vida que inunda os
esquemas de pensamento, de sentimento e de conduta dos indivíduos e dos gru-
pos humanos com plural idade e tolerância, para potenciar a liberdade e com com-
promisso solidário para lutar pela igualdade.
- Em terceiro lugar, é necessário distinguir entre as pessoas e suas idéias ou seus
costumes. As idéias e os costumes são realizações particulares que devem ser discu-
tidas e criticadas sem nenhuma restrição. Esta é a base da racionalidade da represen-
tação e da ação na perspectiva procedimenta1: o debate permanente e ilimitado das
idéias e das propostas de ação, em busca do melhor argumento. As pessoas são sem-
pre respeitáveis, mas as idéias devem ser sempre debatidas e questionadas.
60 A. I. PÉREZ GÓMEZ
nha alemã, como expressão da mudança radical que se produz na concepção dos
saberes humanos e sociais, na segunda metade do século XX e, talvez, com mais
contundência, em suas três últimas décadas. Uma silenciosa, mas demolidora,
revolução metodológica e epistemológica percorreu as ciências sociais, direcio-
nando definitivamente seu enfoque para orientações e perspectivas tanto inter-
pretativas como construtivistas.
A crise da cultura pública se manifesta neste sentido como uma profunda e
radical revisão dos pressupostos epistemológicos que orientaram o desenvolvi-
mento do conhecimento em todos os âmbitos do saber, mas com especial trans-
cendência, significação e virulência no âmbito das ciências sociais, até o ponto de
poder afirmar, nos termos que continha a dinamite da barquinha kuhniana, que
nos encontramos evidentemente diante de um novo paradigma. O sistema básico
de crenças, de princípios e de visões gerais sobre a realidade e sobre o conheci-
mento, que guiam, condicionam e potenciam o trabalho dos investigadores, dos
intelectuais, dos políticos e dos práticos, foi subvertido de forma tão radical que
não só afeta o problema da escolha de métodos de produção e difusão do conhe-
cimento, mas especialmente, e de forma clara, a própria concepção do conheci-
mento (epistemologia) e a própria consideração da realidade (ontologia). Neste
sentido, Vattimo (1995) apresenta a hipótese de que a hermenêutica ocupou nos
anos oitenta e noventa o lugar do marxismo nos cinqüenta-sessenta e do estrutu-
ralismo nos sessenta-setenta.
O niilismo de Nietzsche; a fenomenologia de Husserl, Heidegger, Sartre,
Merleau-Ponty, Alfred Schutz, Peter Berger e Thomas Luckman; a hermenêutica
de Dilthey, Geertz, Gadamer, Ricoer; a etnografia de Malinowski, Erickson,
Wolcott, LeCompte, Goetz; a etnometodologia de Garfinkel, Mehan, Wood e Ci-
courel; o interacionismo simbólico de Mead, Blumer, Spradley, e Bogdan e Bik-
len; a teoria da ação comunicativa de Habermas, Kemmis e Zeichner; o constru-
tivismo de Gergen, Guba e Lincoln, e as posições radicais dos desconstrucionis-
tas Foucault, Derrida, ou as mais moderadas de Vattimo e Levinas ... , cada um
com sua contribuição específica, singular e diferenciada, impulsionou esta sub-
versão paradigmática que se define pelo trânsito da objetividade à subjetividade,
da explicação à compreensão interpretati va, do descobrimento à construção. Pode-
se afirmar, sem demasiado risco, que a maior parte da filosofia atual fala esta
linguagem.
Enfim, o distanciamento e a recusa dos modos de fazer e pensar próprios do
positivismo e do método hipotético dedutivo, que tão surpreendentes resultados
proporcionaram no âmbito das ciências naturais e experimentais I I, se devem à
consciência clara da identidade peculiar do sujeito humano, seus pensamentos,
afetos, condutas, valores e produtos simbólicos. Como afirmam Guba e Lincoln
(1995), o comportamento humano, ao contrário dos objetos físicos, não pode ser
compreendido sem referência aos significados, aos sentimentos e aos propósitos
que os atores humanos vinculam a suas atividades. A compreensão destes signi-
ficados exige a atenção ao contexto e à história que os condiciona e matiza, assim
como a preocupação por entender o comum e o singular. O conhecimento prático, as
62 A. I. PÉREZ GÓMEZ
gente. Esta realidade pode ser aprendida, pois, embora em princípio seja uma
realidade plástica e contingente, foi configurada ao longo do tempo pelo influxo
de fatores sociais, econômicos, políticos, culturais, étnicos e de gênero, cristali-
zando em estruturas que, embora provisórias, contingentes e mutáveis, podem se
considerar reais, ao condicionar a vida dos grupos humanos. O relativismo afirma
a existência de múltiplas realidades sociais em virtude não apenas da história
diferencial de grupos humanos, como também das distintas perspectivas subjeti-
vas a partir das quais se constrói.
O enfoque construtivista e interpretativo considera que a realidade social
tem uma natureza constitutiva radicalmente diferente da realidade natural. O mundo
social não é nem fixo, nem estável, mas dinâmico e mutável por seu caráter inaca-
bado, subjetivo, intencional e construtivo.
Por um lado, a vida social é a criação convencional dos indivíduos, grupos e
comunidades ao longo da história. As complexas - bem como mutáveis - rela-
ções condicionadas, de conflito ou colaboração, entre os indivíduos, grupos e
sociedades foram criando o que denominamos realidade social. Assim, pois, os
modos de pensamento e de comportamento individual ou coletivo, bem como as
normas de convivência, os costumes e as instituições sociais são o produto histórico
de um conjunto de circunstâncias que os homens constroem de forma condicionada,
ou seja, que as elaboram ativamente tanto como passivamente as suportam,
Se a realidade social é uma criação histórica, relativa e contingente, do mes-
mo modo que se constrói pode se transformar, reconstruir ou destruir. É uma
realidade em si mesma inacabada, em contínuo processo de criação e mudança.
Por isso, não pode se conceder o caráter de realidade somente às manifestações
atuais das estruturas sociais dominantes, aos costumes, às normas, às leis, às ins-
tituições e às idéias hegemônicas. As forças, as idéias e os comportamentos mar-
ginais, assim como as possibilidades, ainda não exploradas, de estabelecer outros
modos de relações sociais ou educativas, são também elementos relativamente
silenciados da realidade.
Por outro lado, no enfoque construtivista se mantém com rotundidade que, no
âmbito social, tão importantes são as representações subjetivas dos fatos como os
próprios fatos: os fatos e os valores. Ou melhor, os fatos sociais são redes complexas
de elementos subjetivos e objetivos. Tão importantes são as características observá-
veis de um acontecimento como a interpretação subjetiva que lhe concedem os que
participam nele. Não pode se compreender um fenômeno social ou educativo sem
entender as interpretações subjetivas dos que de, uma ou outra forma, o vivem.
Não existe, então, uma única realidade no âmbito do social em geral e do
educativo em particular, mas múltiplas realidades, em correspondência com os
múltiplos olhares de quem as vive. A partir de cada uma destas se oferecem pers-
pectivas diferentes, matizadas de forma singular pelo sujeito ou pelo grupo. Os
indivíduos são agentes ativos que constroem, de forma condicionada, o sentido
da realidade em que vivem.
Assim, pois, para compreender a complexidade real dos fenômenos sociais,
é imprescindível chegar aos significados, aos valores e aos interesses, ter acesso
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLlBERAL 65
pal, ou seja, o comportamento dos indivíduos e dos grupos diante dos aconteci-
mentos insólitos, como são em si mesmos indispensáveis para compreender o
sentido da realidade estudada, a qual se identifica precisamente pelos matizes
singulares e diferenciais. Sem o conhecimento do singular, escapa o sentido pró-
prio de qualquer realidade humana.
Em educação, esta consideração é a mais importante, se se pode dizer, por-
que o objetivo de toda prática educativa - facilitar a reconstrução do conheci-
mento experiencial do aluno - não pode se entender nem se desenvolver sem o
respeito à diversidade, às diferenças individuais que determinem o sentido, o rit-
mo e a qualidade de cada um dos processos de aprendizagem e desenvolvimento.
- O conhecimento como hipótese de trabalho. Intervenção deliberativa ver-
sus intervenção tecnológica. Dentro do enfoque construtivista e interpretativo, se
propõe uma utilização sempre hipotética e contextual do conhecimento adquiri-
do, já que se pressupõe a singularidade em parte irredutível das situações sociais,
por efeito das interações em certa medida sempre imprevisíveis dos indivíduos e
dos grupos que compõem tal espaço ecológico social. A teoria não dita direta-
mente a prática.
Dentro desta perspectiva, os conhecimentos teóricos são concebidos como
ferramentas conceituais que adquirem sua significação e sua potencialidade den-
tro de um processo discursivo de busca e intervenção na realidade; são instru-
mentos para enriquecer a deliberação. Os conhecimentos derivados de outras in-
vestigações ou experiências pessoais ou alheias devem ser utilizados sempre como
hipóteses de trabalho, como ferramentas que ajudam a indagar e a relacionar,
nunca como proposições explicativas das relações entre elementos e fatores, con-
sideradas universalmente válidas.
A cooperação e o contraste entre os diferentes indivíduos ou grupos que partici-
pam da realidade social, e entre estes e os agentes externos, é chave em todo o proces-
so de reconstrução dos significados da vida social. Superar o ego ou etnocentrismo
das interpretações localistas dos indivíduos e dos grupos é um objetivo prioritário de
toda a investigação desenvolvida dentro do enfoque interpretativo.
Por outro lado, a convicção de que o conhecimento sobre qualquer realidade
social deve estar estreitamente vinculado aos determinantes sempre mutáveis e
situacionais da ação, e de que a única forma de estabelecer um controle racional
sobre eles é a participação democrática dos que se encontram envolvidos nela,
concede um valor de primeira ordem à informação e à disseminação democrática
do conhecimento que vai se elaborando na investigação ao correr da reflexão
sobre a ação. A metáfora espacial de translação vertical do conhecimento de cima
para baixo, da teoria à prática, da reflexão à ação, da investigação à técnica, não
se combina com as características éticas de uma intervenção democrática. O co-
nhecimento que pretende ser formativo e que se propõe à transformação demo-
crática da realidade só pode favorecer tal pretensão se se produz, transforma e
utiliza democraticamente, se emerge da intervenção democrática na realidade, se
depura no debate aberto entre os participantes e se experimenta e avalia em estru-
turas de controle democrático (Goodman, 1989).
68 Â. t. PÉREZ GÓMEZ
tiva, não pode se considerar estas condições objetivas qualidades essenciais deterrni-
nantes por si mesmas dos comportamentos, mas elementos de uma rede de interações
em que se move cada indivíduo. A influência real das condições objetivas depende da
interpretação que cada indivíduo faz de sua importância, em virtude da relevância e
da significação que adquiriram no espaço concreto de suas interações mais próximas:
família, amigos, âmbito profissional, grupo cultural, meio acadêmico ...
Mais que pelas condições objetivas, materiais, econômicas ou políticas, o
indivíduo se encontra encurralado e potenciado pela posição relativa que ocupa
em seu mundo próximo de interação. A partir desta opinião, definida pela rede de
interações, interpreta tanto suas possibilidades de pensar, ser e fazer como a im-
portância das condições objetivas em que vive. Por isso, o objetivo primário da
investigação e da ação na perspectiva interpretativa é o mundo das interações, a
rede de intercâmbios em que se elaboram e filtram as interações com as quais os
sujeitos orientam suas vidas.
Agora, se, como explicitamente coloca Denzin (1995), não existe nenhum
olhar objetivo nem neutro nem no observador nem nos indivíduos observados,
mas que todas as percepções e as representações se encontram inevitavelmente
contaminadas pelo filtro da linguagem, do gênero, da classe social, da raça; en-
fim, pela posição que cada um ocupa em seu mundo próximo de relações e na
estrutura social da comunidade, a postura mais honesta na investigação é propor-
cionar as diferentes representações implicadas em cada situação, sob o modo de
histórias ou relatos particulares que discordam ou convergem, e em todo caso
ajudam a entender um pouco melhor a complexa rede de significados e os proces-
sos de sua diversificada formação, tanto pela complementaridade de alguns da-
dos que fornecem como pela singularidade e discrepância de alternativas que
podem estar presentes. O verdadeiramente importante é que as condições de li-
berdade e motivação dos participantes permitam um diálogo honesto, aberto e
sem restrições para produzir novos significados e novas interpretações, melhor
argumentados, apoiados em melhores evidências intersubjetivas.
- Construção e desconstrução na elaboração de significados. Fica claro,
nesta perspectiva, que, na interpretação, os indivíduos se valem de suas próprias
categorias e de seus próprios preconceitos para se aproximar dos fenômenos que
pretendem compreender; que, como afirma Gadamer (1975a, 1975b, 1992), nun-
ca é possível transcender a perspectiva histórica a partir da qual se interpreta, ou
seja, desde a tradição. Mas, é possível e imprescindível, se queremos explorar as
possibilidades do conhecimento, rastrear a gênese histórica e social dessas mes-
mas categorias e desses mesmos preconceitos que se formaram no indivíduo e no
grupo, como conseqüência de intercâmbios reiterados e concretos.
Construir ou reconstruir novos significados a partir das próprias categorias
requer conectar nossos esquemas com as tradições do grupo ou da cultura, em
cujas redes se forjaram as interações. Comparar, dialogar, contrastar, relacionar e
discordar com as tradições ou as orientações do pensamento público é a única
maneira de encontrar o sentido, a potencialidade e as limitações de nossas pró-
prias elaborações e de fazê-Ias inteligíveis aos demais.
70 A. I. PÉREZ GÓMEZ
...através das metáforas o doutor pode imaginar as vivências de seus pacientes, o que não
tem dor pode imaginar quem a padece, os que vivem no centro aos que estão na perife-
ria. O forte pode imaginar o fraco. As vidas luminosas, os que vivem na escuridão. Os
poetas em seu crepúsculo podem imaginar os limites do fogo estelar. Nós, desconheci-
dos, podemos imaginar o coração familiar dos desconhecidos.
Não é difícil constatar que a crise atual na cultura crítica está influindo substanci-
almente no âmbito escolar, provocando, sobretudo entre os docentes, uma clara
sensação de perplexidade, ao comprovar como se desvanecem os fundamentos
que, com maior ou menor grau de reflexão, legitimam ao menos teoricamente sua
prática. Quais são os valores e os conhecimentos da cultura crítica atual merecem
ser trabalhados na escola? Como se identificam e quem os define?
A escola, que durante estes séculos tanto contribuiu para a difusão do conhe-
cimento, para a superação da ignorância e das superstições que escravizavam o
indivíduo, para a preparação dos cidadãos e para a diminuição da desigualdade,
foi o fiel reflexo dos valores e das contradições da cultura moderna. Nela, pode-
mos encontrar o exagero e, inclusive, a caricatura dos traços mais característicos
da modernidade. Não apenas se abraçou a concepção positivista do conhecimen-
to científico e suas aplicações tecnológicas, como inclusive a aventura do conhe-
cimento humano foi apresentada na escola despojada da riqueza dos processos,
oferecendo-se como um conjunto abstrato de resultados objetivos e descarnados.
Do mesmo modo, o conceito de cultura valiosa se restringe às peculiaridades da
civilização ocidental, sua história e suas pretensões, propondo como natureza
humana os traços que definem o modelo de ser humano, sociedade, verdade,
bondade e beleza, que constituem o cânone clássico do Ocidente. Em conseqüên-
cia, a escola não apenas ignora as peculiaridades e as diferenças do desenvolvi-
mento individual e cultural, impondo a aquisição homogênea, a maioria das ve-
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLIBERAL 77
zes sem sentido, dos conteúdos perenes da humanidade, como também esquece ou
despreza em geral os processos, as contradições e os conflitos na história do pensar e
do fazer, e restringe o objetivo do ensino ao conhecimento, desatendendo, assim, o
amplo território das intuições, das emoções e das sensibilidades, assim como as exi-
gências contemporâneas das mudanças radicais e vertiginosas no panorama social.
Por outro lado, sem necessidade de cair no extremo de afirmar o relativismo
absoluto, a indiferença ética do "vale-tudo", nem a identidade inquestionável das
diferentes culturas, parece necessário reconhecer que a escola não pode transmi-
tir nem trabalhar dentro de um único marco cultural, um único modelo de pensar
sobre a verdade, o bem e a beleza. A cultura ocidental, que orientou e, freqüente-
mente, sufocou as proposições da escola em nosso âmbito, se esfacela em um
mundo de relações internacionais, de intercâmbio de informação em tempo real,
de trânsito de pessoas e grupos humanos. Por isso, os docentes e a própria insti-
tuição escolar se encontram diante do desafio de construir outro marco intercul-
tural mais amplo e flexível que permita a integração de valores, idéias, tradições,
costumes e aspirações que assumam a diversidade, a pluralidade, a reflexão críti-
ca e a tolerância.
Como teremos oportunidade de desenvolver no capítulo dedicado à cultura
acadêmica e à caracterização do ensino educativo, a finalidade prioritária da es-
cola deve ser fomentar e cuidar a emergência do sujeito. Se já não cabe esperar
certezas absolutas nem das ciências, nem das artes, nem da cultura, nem da filo-
sofia tanto em relação aos conhecimentos como em relação aos valores para or-
denar o intercâmbio humano e a gestão dos assuntos públicos; se as certezas
situacionais devem surgir da busca compartilhada, de argumentos apoiados na
reflexão pessoal, no contraste de pareceres e na experimentação e na avaliação de
projetos democraticamente estimulados e controlados; se a gestão da vida públi-
ca, de modo que ampare a liberdade individual, garanta a igualdade de oportuni-
dades e proteja as manifestações diferenciais e as propostas minoritárias, há de
ser o resultado do consenso, da participação democrática, informada e reflexiva
dos componentes da comunidade social; a emergência e o fortalecimento do su-
jeito se situam como o objetivo prioritário da prática educativa. Portanto, a ênfa-
se não deve se situar nem na assimilação da cultura privilegiada, seus conheci-
mentos e seus métodos, nem na preparação para as exigências do mundo do tra-
balho ou para o encaixe no projeto histórico coletivo, mas no enriquecimento do
indivíduo, constituído como sujeito de suas experiências, pensamentos, desejos e
afetos. Toda vez que tal enriquecimento do sujeito requer estruturas democráticas
que favoreçam e estimulem os intercâmbios culturais mais diversificados, a rei-
vindicação do sujeito supõe, ao mesmo tempo, a liberdade pessoal e o desenvol-
vimento da comunidade.
Notas
1 Niklas Luhmann [citado por Barcellona (1990)] escreveu com todas as letras ao afirmar que o
direito moderno responde, essencialmente, a uma estratégia oportunista e que é absolutamente
78 A. L PÉREZ GÓMEZ
contingente, convencional e mutável, e que os próprios direitos fundamentais são uma mera
regulamentação de fronteiras entre esferas de poder que podem ser, constantemente, ultrapassa-
das pelos poderes.
2 A este respeito me parece interessante lembrar o pensamento de Forlari (1992), quando afirma
que: "Da cultura pós-moderna, e mais ainda das teorias sobre o pós-moderno, cabe recuperar
não poucas coisas que a modernidade ignorou: corporeidade, instante, limites do Logos, não-
universalização de normas, micropolítica, valoração do estético e expressivo, recusa aos exces-
sos do militarismo e da Razão, tolerância, admissão da multiplicidade, desmistificação dos
princípios e do papel da ciência e da técnica ... " (p. 92).
3 É outra manifestação do mesmo problema que coloca Colom (1994) quando afirma que: " ... a
pós-modernidade é, antes de mais nada, a filosofia da desmistificação, da dessacralização, a
filosofia que desvela a derrubada dos velhos ídolos. As repercussões no terreno da ética são
graves: já não existem imperativos categóricos, não há evidências apodícticas. Ética e sociolo-
gia, moral e política se confundem ou se identificam. Valores sociais e valores morais se entre-
mesclam sem possibilidade de estabelecer fronteiras entre ambos (p. 51).
4 A este respeito, é interessante a polêmica entre Fukuyama e Huntintong, dois autores cujas
posições foram amplamente difundidas no âmbito acadêmico e nos meios de comunicação de
massa. Francis Fukuyama é um convencido representante da modernidade ocidental, apresen-
tando-a como o estágio superior da evolução humana. Desprezando os particularismos de ou-
tras culturas, sem dúvida inferiores, proclama o fim da história e das ideologias porque, com a
implantação das democracias formais e o êxito do livre mercado, concluímos o penoso peregri-
nar da espécie humana, cujo futuro se caracteriza pelo propósito de estender a ideologia demo-
crática a todos os povos ("The End of History?". The National Interest, Washington, verão de
1989). Huntington, pelo contrário, considera que a perda de interesse e atualidade nos grandes
relatos de natureza econômica, política e social está conduzindo ao fortalecimento das posições
culturais dos diferentes povos. Longe de estender a idéia ocidental da democracia como modelo
de organização política e de convivência, cada uma das grandes culturas se fortalece em seu
isolamento e clausura, chegando a constituir no futuro a fonte principal de conflitos e confron-
tos na humanidade.
5 Para Huntington (em Ruiz Elvira, 1993, p. 8), a distinção é necessária e útil na atualidade,
porque, na era pós-moderna do intercâmbio universal, os conflitos ou os acordos vão se produ-
zir principalmente entre civilizações. Entende-se por civilização a cultura mais ampla com a
qual pode se identificar um indivíduo. Ou seja, é o conjunto mais amplo de grupos humanos ou
nacionais que compartilham uma cultura, às vezes uma língua e quase sempre uma religião. Na
atualidade, distingue as seguintes: Islârnica, Ocidental, Africana, Hindu, Confuciana, Eslava
Ortodoxa, Latino-americana e Japonesa. Assim colocado, é duvidosa a validade interpretativa e
operativa do conceito, pela confusão que pode produzir tanto na definição interna de cada civi-
lização como na distinção entre elas.
6 Segundo Monsterin, um meme é uma unidade de informação aprendida pelo indivíduo median-
te imitação ou observação da conduta adulta de sua cultura. "Para designar as unidades de
transmemória como a mimesis (imitação)" (p. 76) ... Os memes são unidades de informação
cultural no sentido de pedaços elementares de cultura" (Monsterin, 1993, p. 78).
7 É necessário lembrar com Serrano que Weber entende os "direitos humanos" como "imperati-
vos éticos" formais, pois não definem uma modalidade específica de organização social ou
política concreta. Neles, simplesmente se estabelece que quaisquer que sejam as decisões que
numa sociedade se tomem em relação à sua organização e às suas políticas, estas só poderão ter
uma legitimidade legal racional se os procedimentos que levaram a essas decisões respeitam as
exigências dos direitos fundamentais, e se estes são garantidos pelo conteúdo dessas decisões.
Trata-se de distinguir entre as normas que garantem a contínua abertura da discussão sobre o
legítimo e o ilegítimo (imperativos éticos) e as normas que cada sociedade, grupo ou indivíduo
A CULTURA ESCOLAR NA SOCIEDADE NEOLIBERAL 79
aceita como legítimas (valores culturais). Estes dois tipos de normas possuem uma dignidade
distinta, porque são os imperativos éticos os que devem adquirir uma prioridade se se quer
conciliar a plural idade com a integridade da unidade social e com a de cada um de seus mem-
bros (Serrano Gómes, 1994, p. 121).
8 Savater (1994) considera que esta tentativa de instaurar uma ética procedi mental tem alguma
relação com as pretensões formalistas da ética kantiana. Por isso, afirma que também os requi-
sitos da comunidade ideal da comunicação a que aspiram tendencialmente as proposições de
Jürgen Habermas e de Karl Otto Apel configuram uma espécie de igualitarismo dialogante,
cuja linhagem remonta explicitamente ao formalismo kantiano.
9 Convém lembrar aqui que, sobre esta ética de procedimentos Stenhouse, constrói sua proposta
de currículo processual, no qual o importante é identificar os princípios de procedimento que
devem reger os intercâmbios e que, enfim, são a concretização dos valores educativos consen-
suados pela comunidade.
10 Neste sentido, me parece oportuno lembrar os princípios em que se sustenta a teoria da raciona-
lidade comunicativa de Habermas, brilhantemente sintetizados por Serrano Gómez (1994):
a) O entendimento é um telos interno da linguagem.
b) O entendimento racional se apóia nas pretensões de validade (verdade, retidão e veracida-
de) inscritas na força ilocucionária dos atos da fala.
c) O meio racional para questionar as pretensões de validade e buscar o restabelecimento do
entendimento é o discurso.
d) O discurso deve se sustentar na força do melhor argumento, isto é, o discurso requer a
supressão de toda coação alheia à lógica da argumentação.
e) A argumentação racional tem uma série de pressupostos que define uma "situação ideal de
fala". Esses pressupostos estão constituídos por uma série de normas em que se estabelece a
necessidade de reconnecimento recíproco dos participantes no discurso como "pessoas" (isto
é, sujeitos de direitos e deveres iguais), assim como pelo acordo de recusar toda coação que
não seja a do melhor argumento (p. 215-216).
Toulmin (1990) considera que o paradigma positivista, cujas bases remontam até Descartes e
ewton, para bem ou para mal dominou o pensamento e a investigação natural e social desde
então até nossos dias. As características essenciais deste pensamento racionalista são as seguin-
tes: ênfase e prioridade para a lógica formal sobre a retórica e para a prova sobre a argumenta-
ção; orientação ao desenvolvimento de princípios abstratos e generalizações, desprezando o
estudo dos casos individuais, concretos, diversos; esforço na elaboração de teorias fundamen-
tadas na estrutura permanente da vida, independentes do espaço e do tempo, mais do que na
exploração dos cambiantes e contextualizados problemas da prática diária.
- A versão mais extrema está representada pelo relativismo radical em suas duas vertentes prin-
ipais: a primeira é o "irrealismo" de Nelson Goodman (1984) para quem é necessário relativi-
zar a importância da ontologia, e saindo da polêmica entre idealismo e realismo, considera que
. do se situa num processo interminável de construções de significados sobre construções de
ignificados anteriores. A segunda pode ser agrupada em torno do relativismo lingüístico de
Gergen (1985) e Fish (1989), para os quais a linguagem é a única realidade que podemos co-
- ecer. Os instrumentos de elaboração, interpretação e comunicação de significados são sím-
Ios lingüísticos, cuja emergência, desenvolvimento e transformação podemos seguir, anali-
e comparar.
este respeito, convém lembrar os seguintes princípios metodológicos que Spindler (1982)
propõe:
- A observação deve ser contextualizada.
- As questões e as interrogações devem emergir à medida que o estudo progride.
- A observação deve ser prolongada e repetitiva.
- Deve-se descobrir o ponto de vista dos nativos (participantes).
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16 Denzin (1989) afirma que uma descrição rica e substancial deve conter as seguintes caracterfs-
ticas: 1) proporcionar o contexto da ação, 2) estabelecer as intenções e os significados que
orientam a ação, 3) apresentar a ação como um texto que pode ser, portanto, objeto de múltiplas
interpretações.
17 Van Manem (1992) distingue três estilos de redação de informes etnográficos: "Narrações realis-
tas ... proporcionam um retrato demasiado direto, um relato de fatos da cultura estudada, livre de
considerações sobre como o investigador produz tal retrato. Narrações confidenciais ... como o nome
indica, enfocam mais o investigador do que a cultura estudada. Narrações impressionistas ... são
relatos personalizados de momentos fugazes do trabalho de campo, expressos de forma dramática.
Por isso, abrangem elementos de ambos os estilos, realistas e confidenciais" (p. 7).