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ISBN 978-85-391-0047-

9788539100477
I
Infothes Informação e Tesauro
N 11)I ~IIS irucmo, Paulo Org.; Brea, Gerson, Org.; Milovic, Miroslav, Oro.
"lIos lia Ou política? Diálogos com Hannah Arendt. I Organização" de Paulo
Nll\ ;"1 1110, Gerson Brea e Miroslav Milovic. - São Paulo: Annablume, 20 !O.
•. Op.; 14 x 21 em
SUMÁRIO
ISHN 978-85-391-0047_7

S~fI1PósiOInternacional "A vida como amor mundi, Hannnh Arendi entre a


Filosofia e a Política". Brasilin, UnB, 8 a 14 de outubro de 2006.

I.Ciência Política. 2. Política. 3. Filosofia. 4. Arendt, Hannah (1906 _ 1975) .


.:. Análisedo Discurso. r. Título. 11. Diálogos com Hannah Arendt, m. Nascimento,
IIIUlo,Orgamzador. IV Brea, Gerson, Organizador. V Milovic, Miroslav, Orga~izador.

CDU 321
COD 320.01
Catalogação elaborada por Wanda Lucia Schrnidt - CRB-8-1922 Prefácio 9

Mal e obediência - Uma nota 11


FILOSOFIA OU POLÍTICA?
AoRIANO CORREIA
DIÁLOGOS COM HANNAH ARENDT

Sentidos da "natalidade" em Hannah Arendt 21


Coordenação de produção: IvanAntunes
Diagramação: Vinícius Viana ANA MiRrAM WUENSCH
Falo e capa: Carlos Clérnen
Finalização: Vinícius Viana
A procura de um lugar no mundo: a crítica de Hannah Arendt
sobre a assimilação dos judeus à "educação do gênero humano" 35
CONSELHO EDITORIAL CELSO ANTÔNIO COELHO V/\l.
Eduardo Pefiuela Cafíizal
NorvaJ Baitello Junior
Maria Odila Leite da Silva Dias ,1 Julgando em um mundo comum: Hannah Arendt e a justiça 47
Celia Maria Marinho de Azevedo
CHRISTINA MlRANDA RIBAS
Gustavo Bernardo Krause
Maria de Lourdes Sekeff (in memoriam)
Cecilia de Almeida SalJes
A idéia de liberdade como práxis política na "teoria da ação
Pedro Roberto Jacobi
Lucrecia D' Alessio Ferrara comunicativa" de Hannah Arendt 59
CARLOS KOHN

i- edição: fevereiro de 2010


Geografias improváveis: a recepção das obras de Hannah
© Gerson Brea, Paulo Nascimento e Miroslav Milovic Arendt na Argentina (1942-1972) 71
CLAUDIA ANDREA BACCl
ANNABLUME editora. comunicação
Rua Martins, 300 . Butantã
05511-000 . São Paulo: SP . Brasil Hannah Arendt em diálogo com Alexis de TocqueviLle:o
Tel. e Fax. (011) 3812-6764 - Televendas 3031-1754
www.annablume.com.br perigo da uniformidade do pensamento nos regimes democráticos .... 77
FÁBIO ABREU DOS PASSOS
<,
SENTIDOS DA "NATALIDADE" EM HANNAH

ARE~DT3

I'
ANA MiRIAM WUENSCH

Universidade de Brasília

Dentre todos os temas e problemas, leituras e questões que nos são


apresentados pelo estilo inconfundível de Hannah Arendt (1906-1975)
talvez o mais instigante e desafiador seja a idéia, de natalidade. Essa
idéia, e as sugestões que a acompanham, atravessa, articula e ilumina
sua obra, na medida em que esta se constitui, inicialmente, em
contraposição à idéia de mortalidade - esta, um tema recorrente e bem
desenvolvido na filosofia e na teologia clássicas - como sentido da exis-
tência humana e da política.
A reflexão sobre o nascimento e a natalidade, ao longo dos textos
urendtianos, ganha forma a partir de Origens do Totalitarismo (1951), e
prossegue até A Vida do Espírito (1978). Também nas entrelinhas de
\\ critos anteriores, como em sua tese de doutorado, e no ensaio sobre
Rahel Varnhagen, já é possível encontrar indicadores do seu interesse
" istencial pelo tema; mas, como se pode ler em seu Diário Filosófico
1I 50-1973], o sentido do nascimento, em sua relação com a ação e a
I luralidade da condição humana, e com a própria filosofia, adquire, a
partir de certo momento, uma inusitada perspectiva política.

, FNI" texto foi escrito a partir de um roteiro do minicurso "Hannah Are nclr ' K"rI
lu,,' CI'S",
ministrado junto com o professor Gerson Brea, no S)mposium re 1'11, ,;,,,,,,1 "/\
[11

IIld" como amor mundi", na Universidade de Brasrlia, em 2006,


'\ FILOSOFIA OU pOLíTICA?
SENTIDOS DA "NATALIDADE" EM HANNAH ARENDT
23

l lá um claro empenho, no vigor do livro A Condição Humana (1958),


Todo homem, sendo criado no singular é um nov
'111 Li.stacar o nascimento humano como um acontecimento não trivi- ' d d 'o com eco em
vrrtu _e ~ ter nascido, Se Santo Agostinho tivesse levado essa~ espe-
al, >afirmar a natalidade como a categoria central da política, bem culaçoes as suas conseqüências teria definido h _
mo uma condição fundamental da existência humana, em , d ' os omens nao à
maneira, os gregos, como mortais, mas como "natais", e teria defi-
contraposíção à metafísica tradicional. O privilégio da reflexão sobre a nido a liberdade da Vontade não como o liberum arbitrium, a
morte, na filosofia, se dá junto com a submissão da experiência política escolha livre entre ~~erer e não querer, mas como a liberdade de
a modelos concebidos a partir de experiências não políticas e, mesmo, que Kant fala na Cntlca da razão Dura [ J E se Kant ti h
id ' , '\ ' .., Ivesse con e-
antipolíticas. CI ,o a filosofia da natalidade de Santo Agostinho provavelmente
Hannah Arendt identifica e aprofunda uma tensão entre a filoso- terra concordado que a liberdade de uma espontaneidade relativa-
fia e a política, visando liberar o pensamento político da metafísica, e ,\ mente absoluta não é mais embaraçosa para a razão humana do
estabelecer a sua dignidade própria, a partir da reflexão sobre as condi- f que o fato de os homens nascerem - continuamente reCém-chegados
ções da ação em algumas experiências políticas autênticas (potis, res publi- '" ~ ~m ~undo ~ue os ~recede no tempo, A liberdade de espontaneí-
ca, revolução, conselhos operários, resistência), e inautênticas (adminis- 2~7,~,e parte mseparavel da condição humana, (ARENDT, 1992:
tração, burocracia, totalitarismo), Neste movimento, acaba revelando
,
um poder heurístico insuspeitado na reflexão sobre o nascimento e a
natalidade para o exercício do pensamento filosófico e político, Assim, 'dPodroutroHlado, é legítimo perguntar: se houvesse uma filosofia da
na t alI a e em annah Arendt ioo d fil '
podemos perceber que o duplo estatuto de categoria política, e de condi- fácil id if ' que npo e I osofía seria? Parece mais
ção da existência humana atribuído ao nascimento, é o que permite I
fI e~tl tear, nos textos da autora, certas características de um modo
(e I oso ar em torno da natalidade, e mesmo um modo de f'l f
incorporá-lo na linguagem filosófica e politica como "natalidade", onde vrnpre ti d d I oso ar que
ga a itu es e proce imentos "natalícios" irn dí
passa a operar como um termo, e se converte em um tema de fundo, que ", " d ' por assim tzer em seus
cxercicios e pensamento político" O ' h' '
acompanha e pontua, dá o tom ao conjunto da reflexão arendtiana. , d ' u seja, se a um esboco de u
li'ona a natalidade em Hannah Arendt el f d' ma
E, embora sua suspeita dos cânones filosóficos estabelecidos sobre nrópria teoria política, ' a se con un e com a sua
a política, a natureza do poder, da ação, da liberdade, e da história, possa
ser considerada uma atitude filosófica, não podemos afirmar, sem reti- Do ~esmo modo, as reflexões sobre o nascimento e a natalid d
1\110 permitem que derí f: 'I a e
cências, que haveria uma "filosofia da natalidade" em Hannah Arendt, se errve aCImente uma antropologia fI 'f
, IlInnah Arendt I oso ica em
como sugerem alguns intérpretes a exemplo de Patricia Bowen-Moore (00) A ' como sugeriu Hans Jonas aONAS apud BIRULÉS
(HannahArendt's Philosophy ofNatality,1989) e Fernando Bárcena (Hannah , ntes, conforme uma apropriada observa cão de Paul R' '
Arendt: una filosofia de ta natalidad, 2006), Mesmo reconhecendo fontes e ',;/11" a contribuição de Hannah Arendt (RICOEUR apud AR~~~~r
procedimentos filosóficos em seu trabalho, só num sentido muito am- I,
I I" Préface), a antropologia filosófica é agora uma introducão' l'~
11111, b" que pese a definicão arendtiana da pluralidade h ' a po I
plo esta expressão poderia ser empregada, caso sejam levadas a sério 11II c d 11 I' ' umanacomo
I 11 I ,\ra oxa pura Idade de seres "únicos" " d
duas observações da autora, Uma delas está sintetizada em sua famosa I li " , sem prece entes" "na-
declaração a Günter Gaus: "Não pertenço ao círculo dos filósofos, Meu , vm contraposição à tradicional definicão do H '
1111 I 11\ l't' I" - ,amem como um
ofício - para me exprimir de uma maneira geral - é a teoria política, I a ,nao ocorre aí uma troca de conteúdo d " h
1111" )li 11' tr É' a natureza uma-
Não me sinto em absoluto uma filósofa, nem creio que seria aceita no I U o, Justamente contra a metafísica tradicional _ que tanto
círculo dos filósofos, ao contrário do que você afirma com tanta amabi- I," '1'\": :' 111I~1!t na=ur~za hu~ana, quanto estabelece parâmetros transcen-
lidade!" (ARENDT, 1993: 123), A outra observação consiste na atribui- I1 riencia poltttca para orientar a prática política _ qu
ção que ela faz a Agostinho, relativa a uma filosofia da natalidade, e a " 11li ::' () I r jeto de reflexão de Hannah Arendt, e se
Kant, pela idéia de espontaneidade da liberdade, em relação à qual o I htl lima antropologia, em sua obra, é urna antropolo ia ne ati-
nascimento torna-se a metáfora política por excelência," I ti 111 11111'111:'\ a condicão humana o f t d g g
111 I ' ' ,a o e sermos seres condiciona-
, 1'"11 1r, nantes em nossas atividades - onde a naralíd d '
. a e e uma
, ·1 FILOSOFIA OU POLíTICA? SENTIDOS DA "NATALIDADE" EM HANNAH ARENDT 25

dllN ,'nndiçã mais gerais, combinadas com outras, mais específicas - tos que permitem fruir do mundo, familiarizando-se com ele. É por isto
II\W"l 10, assim, a idéia de uma natureza humana universal, ou de fina- que "a essência da educação é a natalidade, o fato de que seres humanos
lldnd 'S humanas constituídas a priori. "Ser" natal é uma realidade fun- nascem para o mundo" (ARENDT, 1997: 223. Modificada, destaque da
dllm .ntal dos seres humanos, enquanto seres que nascem para começar autora). ABcrianças são "forasteiros" no mundo e por isto, a responsabi-
alg n vo no mundo, sem que qualquer conteúdo desta novidade seja lidade dos adultos em relação a elas consiste em "introduzi-Ias aos pou-
dnd previamente ao próprio nascimento de alguém, ou de sua 'ativida- cos ao-mundo", pois, na medida em que são novas, é preciso ter o
de r novadom do mundo. A potência do nascimento consiste em ser cuidado fundamental para que elas cheguem à "fruição do mundo como
condição de atividade humana no mundo, ser do mundo pelo nasci- ele é" (ARENDT, 1997: 239). O estranhamento e familiarização entre as
mente. Nascendo, renovamos o mundo na mesma medida em realiza- crianças e o mundo, mediado pelos adultos em sua atividade educacio-
mos nosso pertencimento a ele. Mas a promessa do novo, contida em ,\ nal, partilha com as demais ;tividades que compõem a vita activa um
r
cada nascimento, é de uma imprevisibilidade radical. O sentido das sentido comum: na medida em que todas elas "têm raízes na natalidade
atividadeshumanas, e da ação, é algo que se revela apenas no próprio [...) sua tarefa é produzir e preservar o mundo para o constante influxo
ato ou feito, e nem mesmo para o próprio agente, mas para os demais, de recém-chegados que vêm a este mundo na qualidade de estranhos,
na "teia de relações humanas". além de prevê-los e levá-los em conta" (ARENDT, 1995: 17).
Cabe, então, perguntar: qual o sentido da natalidade, que significa- Daí a responsabilidade dos adultos em relação às crianças, como a
do e direção este termo indica? É disto que trataremos a seguir. outra face do amor pelos outros e pelo mundo. A promessa de uma nova
vida está condicionada diretamente por este vínculo entre as gerações,
VARIAÇÕES DO SENTIDO DA NATALIDADE vínculo de amor - o querer que o outro seja quem ele é - e de responsa-
bilidade, o cuidado fundamental que preserva algo que possa ser reno-
o nascimento humano é apresentado pela autora como um corte vado. Por isso, "a educação é, também, onde decidimos se amamos nos-
linear no ciclo vital das espécies, onde a reprodução ocorre de modo sas crianças o bastante para não expulsá-Ias de nosso mundo e abandoná-
cíclico e repetitivo, pela reposição de membros da espécie. O nascimen- Ias aos seus próprios recursos, e tampouco arrancar de suas mãos a
to humano, para Hannah Arendt, consiste no factum do aparecimento oportunidade de empreender alguma coisa nova e imprevista para nós,
físico original de alguém no mundo, distinto dos demais, embora já preparando-as em vez disso com antecedência para a tarefa de renovar
inserido em uma comunidade. O anúncio de que "nasceu uma criança um mundo comum" (ARENDT, 1997: 247, modificada).
entre nós" indica que alguém novo apareceu, e começa a "estar entre" É por palavras e atos que o mundo comum é renovado, e esta
nós; é o começo de uma biografia, uma vida narrável situada entre o r novação depende de nossa inserção no mundo. Inserir-se no mundo é
nascimento e a morte. Uma biografia nos conta quem alguém foi, em uparecer nele, ser visível e audível aos demais, do modo tangível que a
sua singularidade, e o que de novo trouxe ao mundo por suas palavras e n ssa aparência física permite, e do modo que a "teia de relações huma-
ações entre os demais. A promessa de uma vida humana, que se inaugu- nas" permite realizar. Trata-se de um tipo especial de convivência públi-
ra Com o nascimento biológico de um indivíduo na terra, depende de cn, capaz de revelar quem alguém é, aos demais. Este tipo de inserção,
este alguém também ser introduzido no mundo, onde poderá, um dia, diz Hannah Arendt, "é como um segundo nascimento, no qual confir-
p r sua própria iniciativa, nascer uma segunda vez, por suas próprias II1Amose assumimos o fato nu de nosso aparecimento físico original"
palavras e ações. ( RENDT, 1995:189, modificada). A ação, "como início, corresponde
110 fato do nascimento, é a efetiva cão da condicão humana da natalida-
As crianças são recém-chegados, estrangeiros, para os adultos; elas
rn mas são seres novos em um mundo estranho e velho que as precede. de", e o discurso, a fala que acompanha o agir '''corresponde ao fato da
É p Ia educação, aquele longo período de vida comunitária pré-política distinção, e é a efetivação da condição humana da pluralidade, isto é, do
(fa\1'\ iliar ou escolar), que as crianças desenvolvem suas aptidões e talen- lv 'r como ser distinto e único entre iguais" (ARENDT, 1995: 191,
11li id i fícada).
26 FILOSOFIA ou POLíTICA? SENTIDOS DA "NATALIDADE" EM HANNAH ARENDT 27

As condições de pluralidade e natalidade são fundamentais para a disfarce do milagre" (ARENDT, 1995:191). Irreversível, porque o que vem
experiência política, segundo as considerações fenomenológicas de ao mundo torna-se parte do mundo, pode até desaparecer e ser esqueci-
Hannah Arendt. A pluralidade não é somente a condição sem a qual do, mas não pode ser desfeito ou desdito. Permanece a possibilidade de
não haveria experiência política e convivência humana, ela é a própria agir, outra vez, e nisto reside a esperança de renovação do mundo.
condição pela qual ocorre toda a vida política, e a condição da revela-
ção, pelo discurso, da singularidade de quem são seus agentes. A ação, o milagre que salva o mundo, a esfera dos negócios humanos, de
dentre todas as atividades humanas, "é a mais intimamente relacionada sua ruína normal e "natural" é, em última análise, o fato do nasci-
com a condição humana da natalidade; o novo inerente a cada nascimen- mento, no qual a faculdade de agir se radica ontologicamente. Em
to pode fazer-se sentir no mundo somente porque o recém-chegado possui outras palavras, é o nascimento de novos seres humanos e o novo
a capacidade de iniciar algo novo, isto é, de agir" (ARENDT, 1995: 17). •, começo, a ação de que são capazesem virtude de terem nascido. Só o
Pluralidade e natalidade são condições fundamentais, específicas, f pleno exercíciodessa capacidade pode conferir aos negócios humanos
e interdependentes para a manifestação de quem alguém é, isto é, para fé e esperança, as duas característicasessenciais da existência humana
que a Antigüidade ignorou por completo (ARENDT, 1995: 259)
tratar do problema da identidade pessoal, que não se soluciona pelas ...
teorias da natureza humana. E também não se soluciona, em Hannah ..
,
Arendt, com nenhuma tipologia de identidades fixas ou abstratas. Há O nascimento pode ser considerado como um princípio da liber-
na questão da identidade pessoal algo de inefável que, embora se mani- dade no mundo. Nosso primeiro nascimento atuaria, então, como uma
feste para os demais,é imperceptível para a própria pessoa, pois se apre- origem em nós, permanecendo a fonte de nossa capacidade de começar,
senta à maneira do daimon da religião grega; é isto o que uma biografia, iniciar algo pela ação mundana, num segundo nascimento. O nasci-
enquanto narrativa, (ou um juízo) pode sugerir sobre alguém, ao relatar mento não se esgota no fato de termos nascido, e também não se esgota
seus feitos e palavras, sem, contudo, conseguir "solidificar em palavras, em cada ato que termina". "Distintamente de sua meta, o princípio de
por assim dizer, a essência viva da pessoa, tal como se apresenta na uma ação pode sempre ser repetido mais uma vez, sendo inexaurível I... ]
fluidez da ação e do discurso" (ARENDT, 1995: 194). entretanto, a manifestação de princípios somente se dá através da ação,
Na ação, iniciamos espontaneamente algo no mundo por nossa e eles se manifestam no mundo enquanto dura a ação, e não mais"
própria iniciativa, sem estarmos impelidos pela necessidade ou utilida- (ARENDT, 1997: 199). Neste sentido, o nascimento é um princípio da
de. O factum da pluralidade, "a presença dos outros", a companhia dos ação humana, tanto quanto a condição da natalidade é parte da condi-
demais, pode nos estimular, mas não condicionar, nem mesmo causar ão humana, e se os seres humanos são, por nascimento, iniciadores
nossa inserção no mundo. O "ímpeto" para a ação, segundo Hannah (imprevisíveis, novos, milagrosos). O princípio do começo que somos, e
Arendt, "decorre do começo que vem ao mundo quando nascemos, e ao v m ao mundo por meio de nossa atividade, se realiza, mas não se esgo-
qual respondemos começando algo novo por nossa iniciativa l... ] não é ta no agir. O princípio da natalidade, na ação política, aparece como
o início de uma coisa, mas de alguém que é ele próprio, um iniciador." liberdade: "os homens são livres - diferentemente de possuírem o dom
(ARENDT, 1995: 189-190). O initium que somos, ontologicamente fa- da liberdade - enquanto agem; nem antes nem depois; pois ser livre e
lando, implica não somente a manifestação da singularidade de "quem" ngir são a mesma coisa" (ARENDT, 1997: 199).
cada um é, ao agir; também significa que por meio da ação algo de novo "Princípios como que inspiram do exterior", diz Hannah Arendt,
vem ao mundo, e o renova. rirando a honra, a glória, e o amor à igualdade como catalisadores da
Começar algo "novo" significa: trazer ao mundo algo que "não lima ação livre. Mas também o medo, a desconfiança, o orgulho desme-
pode ser previsto a partir de alguma coisa que tenha ocorrido antes" di I , ou o ódio, podem inspirar, desde o exterior, atitudes e atividades.
(ARENDT, 1995: 190-191), com toda a imprevisibilídade e irreversibilidade
inerente ao acontecimento. Imprevisivel, porque o novo ocorre à reve-
lia da estatística e da probabilidade (que pode prever o previsível, o I •\\b.. este ponto, pode-se. consultar o interessante ensaio de Roberto Esposito (EI Origen
ti" La Polítical Hannah Arendt o Simone Weil?, 1996).
conhecído, o familiar, o desastre), daí que "o novo sempre surge sob o
28 FILOSOFIA ou POLíTICA? SENTIDOS DA "NATALIDADE" EM HANNAH ARENDT
29

Assim, "a liberdade ou o seu contrário surgem no mundo sempre que mundo por sua própria trnciattva, só existe, propriamente falando, en-
tais princípios são atualízados, o surgimento da liberdade, assim como a quanto dura a ação. Mas, na medida em que a natalidade é condição da
manifestação de princípios, coincide sempre com o ato em realização" ação, podemos lembrar a possibilidade dos começos passados, ou a pos-
(ARENDT, 1997: 199). A ação é a mais pública, plural e natal das ativi- sibilidade de começos futuros, ainda não históricos. A história como
dades humanas, a forma máxima de realização da liberdade no mundo. memória, relato, narrativa, elabora o significado dos acontecimentos, a
Se agindo os seres humanos podem fundar e preservar espaços políticos posteriori.
para a liberdade aparecer, também agindo - ou não agindo - podem Dissemos antes que o nascimento era a metáfora política da liber-
reduzir ou destruir estes espaços. Esta é um risco inerente à capacidade dade em Hannah Arendt (em relação a Agostinho e Kant). Consideran-
de iniciar algo novo, inusitado ou inaudito no mundo. A sugestão de do a natureza das metáforas, bem poderíamos dizer também que a liber-
Margaret Canovan (2001) é que atentemos igualmente para os aspectos dade é a metáfora política do nascimento em Hannah Arendt, enquan-
sombrios e luminosos da ação e, portanto, da condição de natalidade. •' to realiza a promessa do nascimento, iniciando algo de novo pela ação.
Uma lembranca para não esquecermos que a pergunta fundamental do ~
Como na citação: "Todo fim da história constitui necessariamente um
livro A Condi~ão Humana: "O que estamos fazendo?"deve ser contínu- .~
novo começo; este começo é a promessa, a única "mensagem" que o fim
amente refeita, a cada acontecimento, engendrando o juízo e a compre-
pode produzir. O começo, antes de tornar-se evento histórico, é a supre-
ensão do que ocorre a cada vez.
ma capacidade do homem;politicamente, equivale à liberdade do ho-
Sobre o aparecimento e desaparecimento da liberdade no mundo,
mem. [...] Cada novo nascimento garante este comeco· ele é na verdade,
Hannah Arendt diz que cada um de nós" (ARENDT, 1998: 531). ,"
Consideremos, ainda que brevemente, a relacão entre natalidade e
o que normalmente permanece intacto nas épocas de petrificação e
história, os começos e os fins no tempo do mundo. Hannah Arendt diz
de ruína inevitável é a faculdade da própria liberdade, a pura capa-
que a história tem muitos começos, mas nenhum fim; só o completo
cidade de começar, que anima e inspira todas as atividades huma-
nas e que constitui a fonte oculta de todas as coisas grandes e belas. desaparecimento dos seres humanos da face da terra poderia encerrar
Mas enquanto essa fonte permanece oculta, a liber?ade não é uma ti finitivamente a história;
realidade tangível e concreta; isto é, não é política. E porque a fonte
da liberdade permanece presente mesmo quando a vida política se pois o que quer que o historiador chame de fim, seja o fim de um
tornou petrificada e a ação política impotente para interromper período, de uma tradição, ou de toda uma civilização, ele é o come-
processos automáticos, que a liberdade pode ser confundida tão ço para aqueles que estão vivos [...] o nascimento dos homens indivi-
facilmente com um fenômeno não-político; em tais circunstâncias, a duais, sendo novos começos, reafirma o caráter original do homem,
liberdade não é vivenciada como um modo de ser com sua espécie de uma forma que a origem jamais pode tornar-se uma coisa do
de "virtude" e virtuosidade, mas como um dom supremo que so- passado [...] o próprio fato da memorável continuidade desses co-
mente o homem, dentre todas as criaturas terrenas, parece ter rece- meços em uma seqüência de gerações garante uma história que nun-
bido, e cujos sinais e vestígios podemos encontrar em quase todas as ca pode acabar, por sera história dos seres cuja essência é começar."
suas atividades, mas que, não obstante, só se desenvolve com pleni- (ARENDT, 1993: 50-53)
tude onde a ação tiver criado seu próprio espaço concreto, onde
possa, por assim dizer, sair de seu esconderijo e fazer sua aparição Qual o sentido da natalidade para a perspectiva histórica? E qual é
(ARENDT, 1997: 217-218). II 1111 d'H d historiador, segundo Hannah Arendt? "É tarefa do histeria-
di I1 d\'1 ' tar esse novo inesperado com todas as suas implicações, em
o sentido da natalidade enquanto liberdade consiste no seu apare- ljHldqtl 'r período, e trazer à luz a força total de sua significação"
cimento no mundo, pela convivência em pluralidade entre os seres ( I IINI)T, 1993: 50). O historiador, em seu ofício - como também o
humanos na realizado do initium que cada um é, em seu agir. O dom 1111111' li ficção e o contador de histórias, em geral (incluído o
da liberd~de, a supr~ma capacidade humana de começar algo novo no 11\ 1111' \)I'v), pode auxiliar naquela "reconciliação com a realidade", onde
FILOSOFIA ou POLÍTICA?
SENTIDOS DA "NATALIDADE" EM HANNAH ARENDT 31
30

vidades humanas, incluindo a fabricação ou produção (work) e a educação.


temos que lidar com as conseqüências da liberdade, com aquele as~ecto
De todo modo, tanto as atividades que sustentam a vita activa, na criação de
irreversível da ação, que fez aparecer algo que não pode ~er desfetto, e
um mundo comum, assim como aquelas atividades espirituais, que ocor-
cujo conteúdo é preciso compreender e significar. Por Isto, seg.undo
rem no distanciamento em relação ao mundo e os outros, têm alguma
"a funcão política do contador de histórias é ensmar a
H anna h Arendt ,c. b' deri relação com a política, mesmo que não constituam, elas mesmas, atividades
aceita cão das coisas como são. Dessa aceitação, que tam em po ena ser políticas por excelência.
chamada veracidade, surge a faculdade do julgamento qu~, com as pala- A polissemia dos significados e direções dos termos nascimento e
vras de lsak Dinesen, 'no fim teremos o privilégio de apreCIar e reaprectar. natalidade em Hannah Arendt, no entrecruzamento de questões políti-
E é isso o que se nomeia Dia do Juízo' " (ARENDT, 1997: 323). . cas, ontológicas, teológicas, históricas, antropológicas, existenciais, con-
A faculdade de julgar cumpre um papel fundamental na _teona tudo, deve muito à sua tentativa de estabelecer a dignidade da política,
política de Hannah Arendt, e uma íntima conexão co~ a aç~o e a , ~ desde uma perspectiva antimetafísica. Para a continuidade da reflexão
natalidade. Como na política, estão em jogo tanto as. singularidadese sobre o tema, além do necessário aprofundamento da questão em Hannah
humanas, quanto a novidade dos acontecimentos particulares gerados Arendt, seria interessante buscar contrapor outras abordagens de pensa-
pela ação, torna-se problemático avaliar se somos realmente capazes de, dores e pensadoras contemporâneos do nascimento.
compreender e lidar com as conseqüências do que ocorre por nossa. Ficaram fora deste trabalho, pelo menos três importantes sentidos
iniciativa. Segundo Hannah Arendt, da natalidade a serem apresentados e co-relacionados. fundação, revolu·
ção e criação. Em parte pela extensão, em parte pela complexidade,
um ser cuja essênda é o começo pode trazer dentro de si um teo: ptamos por excluir deste texto as considerações sobre estes aspectos.
suficiente de origem para compreender sem categonas preconc~bl- Mas não por acaso, pois tratar deles implica em enfrentar o problema
das e para julgar sem esse conjunto de regras c~muns que e_a da violência dos começos, e a violência inerente à criação, um aspecto
moralidade. Se a essência de toda ação, e em particular a da açao que exige diversas considerações; Hannah Arendt considera a violência
política é fazer um novo começo, então a compreensão torna-se o corno uma fronteira limítrofe da política: onde a violência começa, a
outro lado da ação, a saber, aquela forma de cognição diferente das política termina.
muitas outras, que permite aos homens de ação (e não aos que se Outro ponto importante, em que não nos detivemos: entendemos
engajam na contemplação de um curso progressivo ou amaldiçoa-
que a consideração do tema passa pelo exame das fronteiras entre natu-
do da história), no final das contas, aprender a lidar com o que
I' 'Z<l e cultura, entre necessidade e liberdade, e entre experiência e lin-
irrevogavelmente passou e reconciliar-se com o que ineVItavelmente
"11(1 em, na consideração sobre o quê e como se diz o nascimento e a
existe (ARENDT, 1993: 52).
untnlidade. Em alguns de seus textos, como A Condição Humana ou a
1,(\1 .tânea de ensaios Entre o Passado e o Futuro, e A Vida do Espírito,
CONCLUSÃO l lunnah Arendt apresenta sugestões de continuidade eco-participação
1'111 r' a realidade humana e a realidade natural, vinculando-as direta-
Percorremos até aqui algumas passagens que ilustram a variação de uu-nt ao tema. Assim se dá no caso dos sentidos de imprevisibilidade,
sentidos dos termos nascimento e natalidade. Apresentamos brevemen- uovklade e milagre, que ocorrem não somente no âmbito humano, mas
te alguns deles, tais como: começo, início, iniciativa, novo, os novos 1111 to a a terra e no universo. Também é o caso do sentido do nascer
(recém.chegados, estrangeiros, forasteiros), miLagre, promessa, esperan- IIIIII() "aparecer". Por exemplo, recuperando aspectos etimológicos da pa-

ça fé, Liberdade. Verificamos uma polissemia inerente ao uso dos ter- 111\11 I natureza, no contexto em que examina o fenômeno do "agir sobre a

m~s nascimento e natalidade, conforme a passagem que se dest~que e 1l11t11l'l~Zn" no mundo moderno, Hannah Arendt diz que é o mesmo "o
examine. Alguns destes significados dizem respeito a~ que de mais espe- IIJII 1(I,cado autêntico de nossa pauuna "natureza ", quer a derivemos da
"li: (!Ir/,na nasci, nascer, ou formos buscá-la em sua origem grega, physis,
cificamente político ocorre, como a fundação e a liberdade, enq~ant~
IIH' wrtL de phyein, surgir de aLguma coisa, aparecer por si mesmo"
outros, como o milagre e o novo, são compartilhados pelas demais ati-
I JlNI T, 1995: l63, destaques da autora),
FILOSOF"IA ou POLíTICA? SENTIDOS DA "NATALIDADE" EM HANNAH ARENDT
33

Illmh "m não nos ocupamos, aqui, em examinar mais atentamente ARENDT, Hannah. Diasio filosófico [1950-1973]. Editado por Ursula Ludz e
II~ relu 'o
entre natalidade e mortalidade, nascimento, morte e imorta-
'$ Ingeborg Nordmann. Tradução espanhola de Raúl Gabás. Barcelona: Herder,
lidad , temas relacionados em Hannah Arendt, De fato, a contraposição 2006.
inicial que a autora opera entre os temas, em favor da natalidade, é uma BÁRCENA, Fernando. Hannah Arendt: una filosofia de Ia natalidad. Barcelo-
forma de recusa do predomínio metafísico da morte e da mortalidade, na: Herder, 2006.
da necessidade e da previsibilidade no exame do sentido da condição
BOWEN-MOORE, Patricia. Hannah Arendt's Philosophy of Natality. New
humana da política, A partir disso, busca estabelecer uma York. Sr. Martin's Press, 1989.
complementar idade mais equitativa entre nascimento e morte, natalida-
CANOVAN, Margaret. Terribles verdades: Ia política, Ia contingência y el mal
de e mortalidade/imortalidade para a compreensão da política e da con-
en Hannah Arendt. Tradução de [avier Eraso Ceballos. In. WAA. Hannah
dição humana, como bem observou, a este respeito, Patrícia Bowen- Arende. El legado de una mirada. (Revue lnternationale de Philosophie, 2/
Moere. Podemos dizer que a ênfase arendtiana na natalidade visa ,, 1999. n° 208). Madri: sequitur, 2001.
reequilibrar os diferentes sentidos que gravitam em torno destes temas:...
ESPOSITO, Roberro. El Origen de Ia Política i.Hannah Arendt o Simone Wei!?
Tradução de Rosa Rius Gatell. Barcelona: Paídós Studio, 1999.
"Fluindo na direção da morte, a vida do homem arrastaria consigo, ~,
inevitavelmente, todas as coisas humanas para a ruína e a destrui- lONAS, Hans. Acruar, conocer, pensar. La obra filosófica de Hannah Arendt.
ção, se não fosse a faculdade humana de interrompê-Ias e iniciar Tradução de Angela Ackermann. In: BIRULÉS, Fina (Comp.) Hannah Arendt:
algo novo, faculdade inerente à ação, como perene advertência de el orgullo de pensar, Barcelona:Gedisa, 2000.
que os homens, embora devam morrer, não nascem para morrer,
mas para começar" (ARENDT, 1995: 258)

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. The Human Ccndinon. A Study of the Central Dilemmas


Faccing Modem Man. New York: Doubleday Anchor Books, 1959,
______ . Between Past and Future. Eight Exercises in Politica! Thought.
New York: Penguin Books, 1977.
______ . Condition de ! 'homme moderne. Tradução de Georges
Fradier. Paris: Calmann.lévy/POCKET, 1983, "Préface" de Paul Ricoeur.
______ .A vida do espírito: o pensar, o querer e o julgar. Tradução de
Antônio Abranches e Helena Martins. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1992.
______ . A dignidade da Política: Ensaios e conferências. Rio de Janeiro:
Relurne-Dumará, 1993.
______ , Entre o passado e o futuro. Tradução brasileira de Mauro W.
Barbosa de Almeida. 4' ed. São Paulo: Perspectiva, 1997.
A condição humana. 7' ed. Rio de Janeiro: Forense Universi-
tária, 1995.
______ ' As origens do totalitarismo, 3' reimpressão. Trad. Roberto
Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

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