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0 por Celso Barros (26/09/2013) 9 amigos curtiram isso

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Em sua reflexão sobre um modelo Amálgama


clássico de estadista, FHC escolheu há ± 2 semanas

enfatizar nossa abertura para o Houve quem criticasse a filosofia enqua


tal. Um desses foi Karl Marx, que afirmo
mundo que o mundo já tinha sido suficientemen
pensado, se tratava agora de transform
ARTHUR GRUPILLO

“Pensadores que inventaram


o Brasil”, de Fernando
Henrique Cardoso

1.
Esse livro deveria ter tido muito mais
impacto do que teve até agora. É um livro REVISTAAMALGAMA.COM.BR

do melhor aluno de Florestan Fernandes,


de um sujeito que foi presidente da
Associação Internacional de Sociologia, do
primeiro sociólogo no mundo a conseguir Do mesmo
um bom emprego (só por oito anos, mas
enfim); e é um livro que é praticamente autor:
um “Saudação às Favelas” do pensamento A morte do
social brasileiro, uma lista de chamada dos Velho
grandes intérpretes da nação. Infelizmente,
o FHC pós-1994 virou um objeto de
indiferença para muitos dos intelectuais
A tragédia
que saberiam resenhá-lo (nem sempre por do civil-
esquerdismo; às vezes só porque ele agora militar
“é só um político”), e de respeito
reverencial por um bando de puxa-sacos
conservadores que provavelmente acham A década
em que
que esse livro é uma espécie de “guia
Villa perdeu
politicamente incorreto da sociologia
brasileira”.

Há várias coisas que se pode fazer com


esse livro. Imagino que muita gente vá
comprá-lo para conhecer os autores
discutidos. Em alguns casos isso dá
razoavelmente certo: o texto sobre Faoro
(único escrito especialmente para o livro)
é a melhor apresentação que eu já vi de Os
Donos do Poder; o texto apresentado na
FLIP também dá uma boa visão geral
sobre Freyre; a introdução à Revolução
Burguesa no Brasil faz o mesmo por
Florestan (ou, ao menos, pela primeira
parte do livro de Florestan); Caio Prado e
Sérgio Buarque merecem discussões bem
mais rápidas, que funcionam melhor para
quem já os leu, a não ser na aula magna
do Instituto Rio Branco, que talvez seja o
melhor texto do livro. Os textos sobre
Nabuco são ótimos (embora a discussão
de FHC sobre os traumas de infância de
Nabuco seja meio forçada), mas não sei se
serão bem compreendidos por quem
nunca o leu. O mesmo vale para Celso
Furtado e Antonio Candido (embora a
apresentação de Parceiros do Rio Bonito
seja boa, e termine com uma bela frase).

O livro também tem discussões boas para


quem já conhece a história do pensamento
social brasileiro, como a sugestão de que o
volume sobre monarquia brasileira de
Sérgio Buarque de Holanda na História
da Civilização Brasileira talvez seja seu
melhor livro, a crítica de quem vê muita
influência de Marx em Celso Furtado, a
discussão sobre o equilíbrio de Weber e
Marx em Florestan, a discussão sobre a
importância de A Revolução Brasileira na
obra de Caio Prado, e a boa comparação
entre Nabuco e Tocqueville, só para ficar
nas que me chamaram mais atenção
(lembrando que não sou, nem de longe,
especialista em pensamento brasileiro;
deve ter coisa bem mais sofisticada ali).

Mas acho que as possibilidades de leitura


mais interessantes do livro são duas: a
pertinência do debate sobre a formação
nacional após a crise do nacional-
desenvolvimentismo, e como os textos de
FHC, em especial os dos anos noventa, se
inserem nessa discussão.

2.
Entre os textos reunidos no livro estão
cinco perfis (Euclides, Paulo Prado, Sérgio
Buarque, Caio Prado, Celso Furtado)
escritos em 1978 para a antiga revista
Senhor Vogue, que publicou uma série
sobre “Livros Indispensáveis à Construção
do Presente”: em cada edição vinha o
resuminho de um livro famoso (Sertões,
Raízes, Formação etc.) com uma
introdução de FHC.

A leitura das apresentações sofre um


pouco por não estarem acompanhadas dos
resumos, que, naturalmente, liberavam
FHC de sumariar os livros, permitindo
que seus textos fossem só comentários,
indicações de por que cada livro seria
importante: Os Sertões, por forçar o
reconhecimento do Brasil pobre e
profundo por parte da intelectualidade
nacional; Retrato do Brasil, de Paulo
Prado, eu não sei por que seria
indispensável, mas FHC garante que é
porque representa bem o estilo ensaísta
meio romântico de pensar a identidade
nacional; Raízes, de SBH por ser um
esforço raro de pensar nossas origens do
ponto de vista da democracia (com seu
respeito às regras, em oposição aos
arranjos personalistas que favoreciam a
oligarquia), o que, brilhantemente nota
FHC, era um feito e tanto em 36, quando
a democracia estava em baixa no Brasil e
no mundo; Formação, do Caio Prado, por
enfatizar como fundamental para nossa
história a contradição entre uma
colonização de sentido fundamentalmente
mercantil e voltada para o mercado
mundial que construiu uma sociedade
baseada no trabalho escravo; E Formação,
do Furtado, por ter impulsionado a
discussão histórica sobre o
subdesenvolvimento econômico, por
vários achados de histórica econômica, e
por ter inaugurado a fase em que a
economia entra com tudo na discussão
sobre o Brasil, e passa a oferecer a
linguagem em que ela, até hoje, acontece.

Talvez já lhe tenha ocorrido a questão:


FHC fez uma série sobre “livros
indispensáveis” e não incluiu Gilberto
Freyre? Aqui temos a primeira escolha
discutível dos editores. Na verdade, se
vocês checarem o site do Instituto FHC,
houve, sim, um artigo de FHC sobre o
Freyre na série da Senhor Vogue (e houve
também um outro, sobre Roberto
Simonsen, que não entrou no livro;
inexplicavelmente, porque também é
interessante, apesar de curtíssimo). Fiquei
curioso em saber o que havia no texto
excluído e fui à Biblioteca Nacional
procurar a Senhor Vogue, mas eles não
têm o número com o artigo sobre Freyre
(deu para ver, entretanto, que Senhor
Vogue era uma bela revista). Rodei os
sebos aqui do centro em horas de almoço
e ninguém tinha ouvido falar da revista. A
Scena Aberta, aquela sensacional banca de
Ipanema que vende revistas raras, tinha
um número, de outro ano. Já estava
desistindo quando descobri que todos os
textos estavam disponíveis no site do
Instituto FHC. Estou contando isso para
avisar que, se você acha que ir à Biblioteca
Nacional ou rodar sebos foram tempo
perdido, é absolutamente impossível que
qualquer coisa daqui em diante nesse texto
lhe interesse.

O que está no artigo sobre Freyre que não


foi publicado? Nada de imensamente
importante, talvez. É provável que a opção
por não publicá-lo tenha se dado porque
vários de seus temas são retomados nos
textos, mais longos, que foram incluídos.
Mas pelo menos o seguinte trecho, que
encerra o texto, mereceria republicação:

Oxalá surja algum outro


sociólogo-escritor, se possível
menos dado ao mito, mas que
não tenha os ouvidos moucos
para a tensão criadora e que
deixe a mão solta ao impulso da
pena e possa captar, para além
do banalmente observável, a
vida contemporânea. Falta-nos,
e como, um “Grande Indústria e
Favela”, menos preso às
virtudes (de resto, mais difíceis
de gabar) do capitão de
indústrias e mais sensível aos
anseios, ao modo de ser e ao
intuir do futuro das camadas
populares, capaz de ver na
favela não o cadinho da
marginália mas o ergástulo dos
trabalhadores das periferias
sem fim, estepes quentes das
nossas cidades. E tomara que
nosso Gilberto-futuro se apiade
menos dos trabalhadores,
depois do Paraíso, de que o
Gilberto-original dos negros
libertos. Que não seja
trombeteiro de sua utopia
regressiva e tenha mais fé no
cotidiano restaurado por uma
vontade de igualdade, mas que
deixe no livro as marcas de
talento tão fortes quanto as de
Gilberto Freyre.

O texto se chama “À Espera de Grande


Indústria e Favela”, e ninguém na editora
achou que seria interessante lembrar que
FHC queria escrever um livro como Casa
Grande e Senzala? Não desperta a
curiosidade de vocês pensar como seria
essa reescritura do Freyre pós-Florestan?
No mínimo, o texto deveria ter entrado
para o leitor entender melhor do que se
trata a afirmação do FHC às páginas 13 e
14, onde diz que, após compreender
melhor os acontecimentos do final do
século XX, percebeu que não fazia mais
sentido “o sonho que eu acalentava de
escrever um Grande Indústria e Favela”.

Antes que você pergunte, eu pergunto: o


que têm a ver os eventos do final do
século XX com a impertinência de uma
grande obra de interpretação nacional?
Certo, uma das regras da ABNT nos anos
noventa era que todo texto de humanas
tinha que começar “com a queda do Muro
de Berlim e a globalização…”, mas eu
pensava que isso já tivesse sido revogado
(agora é “com o advento das redes
sociais…”).
3.
Logo no início, FHC já adianta sua
posição sobre o negócio da “formação”, a
questão, que orientou todos os autores
comentados, da identidade nacional
brasileira, o que nos une, o que faz de nós
um país, quais as dificuldades de se
construir um país a partir de nossa
história. Na aula inaugural do Instituto
Rio Branco de 93 (talvez o melhor texto
do livro), FHC ainda lamenta que não
haja uma nova grande interpretação do
país. Mas no prefácio de 2013 adverte que
não acha que haja mais espaço para isso.
Segundo ele, na sua geração a coisa já não
fazia muito sentido, porque (1)àquela
altura do campeonato, o país já estava
“formado” (ou, ao menos, tão formado
quanto países costumam ser) e (2)embora
na época eles não tenham percebido isso,
no momento em que escreviam o
capitalismo entrava em sua fase global, e o
tema da “formação” estava muito ligado à
ideia de um capitalismo nacional. O
prefácio termina com uma nota citando
com aprovação o artigo do Marcos Nobre
na piauí nº 74 sobre a impertinência, no
momento atual, do debate sobre
formação. (FHC cita novamente o Nobre
nessa entrevista da Folha.)

O mérito do texto de Marcos Nobre (que


é bom) é justamente identificar períodos
diferentes na discussão sobre a formação
(Candido e Furtado, por exemplo,
escreviam em um momento bem diferente
de Prado Jr./Buarque/Freyre; a turma do
Cebrap já traria uma certa “negatividade”
para o debate sobre a formação, e por aí
vai). O problema de Nobre é que sua
discussão sobre o período pós-crise dos
anos 80 se limita, por um lado, à
constatação do maremoto neoliberal que
se abateu sobre o debate (houve isso,
quem viveu na época lembra); e, por
outro lado, aos frutos “tardios” da
discussão paulista: Paulo Arantes, Chico
de Oliveira, Rodrigo Naves e Luis Felipe
de Alencastro, todos muito bons. Mas
Nobre deixa de fora da conversa duas das
principais discussões dos anos 90/00 sobre
o Brasil: o resgate do weberianismo
brasileiro, com sua crítica do Estado
patrimonial, e a discussão sobre
globalização.

Duas discussões, aliás, sem as quais não é


possível entender os textos de FHC
produzidos dos anos noventa em diante e
incluídos em Pensadores que Inventaram o
Brasil. FHC, não sei se vocês lembram,
viveu os anos noventa intensamente.

4.
É fácil, e plausível, ver nos textos sobre
Nabuco a reflexão do FHC sobre
Fernando Henrique Cardoso, Presidente
da República. Vejam lá a discussão sobre o
conflito, em Nabuco, entre o pendor
intelectual e o jogo prático da política; ou
os dois momentos de elogio da política e
do realismo político: no prefácio a
Balmaceda, por exemplo, temos a
afirmação de que os presidentes deveriam
ser julgados pelo contraste entre o país
que receberam e o país que entregaram; e
no texto apresentado na ABL, a lembrança
de que Nabuco era um defensor da
política, que acreditava que a abolição
viria pelo parlamento.

Se for verdade que os textos sobre Nabuco


são uma reflexão sobre o próprio FHC, o
mais interessante é perceber que o aspecto
que mais parece interessar a FHC é o
cosmopolitismo de Nabuco. FHC
aproxima, por exemplo, a defesa de
Nabuco da apreensão de navios negreiros
pela Inglaterra (contra os que
consideravam a apreensão violação pura e
simples de soberania; para Nabuco, os
piratas do tráfico nos haviam sequestrado
a bandeira) da ideia moderna de
intervenção humanitária. A ideia tem uma
atualidade evidente, seja na defesa de um
ataque à Síria, seja no apelo a cortes
internacionais contra crimes ambientais
praticados pelo Brasil. Em ambos os casos
será impossível dissociar inteiramente a
dimensão moral do jogo político, mas, até
aí, quando é fácil?

A propósito, se o seguinte trecho (escrito


em 1999) não é debate sobre formação,
nada é:

Mário [de Andrade] costumava


contrapor seu nacionalismo ao
cosmopolitismo de Nabuco.
Empenhado em “abrasileirar o
Brasil”, o modernista, em
reiteradas ocasiões, ironizou a
falta que Nabuco sentia dos cais
do Sena em plena Quinta da Boa
Vista. As raízes do Brasil não
estariam no “mal de Nabuco”
senão no foco da infecção
mazomba, dizia Mário.

Parece-me que os novos tempos


favorecem mais Joaquim
Nabuco do que Mário de
Andrade.

FHC prossegue argumentando que, em


tempos de globalização, o diálogo entre as
culturas favoreceria a visão de Nabuco
sobre a “dupla ausência” que caracterizaria
nossa identidade nacional. Mas, em nosso
diálogo com o mundo,

(…) Contribuímos não somente


com os valores da cordialidade,
mas com tudo aquilo que
soubemos tomar e processar
com a força do nosso talento, o
que Mário de Andrade,
antropofágico, certamente
corroboraria, com o aplauso de
Nabuco.

Ou seja, o plano é se abrir para o mundo


utilizando nossa identidade meio aberta
como vantagem comparativa (até a
cordialidade entrou nessa, vejam só).
Concorde-se ou não, o que é fácil é
perceber que a globalização, longe de não
lhes abrir espaço, exige novos debates
sobre nacionalidade. Em sua
reflexão/projeção sobre um modelo
clássico de estadista brasileiro, FHC
escolheu enfatizar justamente a questão de
nossa abertura para o mundo, um tema
que ele mesmo, enquanto estadista, teve
que enfrentar, para o bem ou para o mal.

5.
Não me parece plausível que FHC tenha
feito uma grande autocrítica com relação a
Gilberto Freyre, como faz crer o posfácio
de José Murilo de Carvalho. O tom dos
textos de FHC sobre Freyre nos anos 90 é
mais moderado, mas a essência da crítica
da Escola da USP ao Freyre (ele romantiza
a sociedade patriarcal e escravocrata)
permanece, e ainda bem que permanece,
porque é na mosca. O reconhecimento de
que Freyre, independente de qualquer
coisa (e já ninguém mais discordando que
era um gigante, que, aliás, só escrevia pior
do que quantos dos nossos romancistas?
Quinze? Cinco?), teve a força do mito, a
projeção do que o Brasil gostaria de ser, e
que nisso permaneceria atual, já estava no
artiguinho da Senhor Vogue, de 1978.

A novidade talvez seja a ideia de que


Freyre produz um ideal de miscigenação
que pode fertilizar a identidade nacional
brasileira em seu diálogo com o mundo.
Não é uma autocrítica, é uma proposta de
utilização de Freyre dentro do
cosmopolitismo de FHC, semelhante ao
que ele faz no final do texto sobre Nabuco
com Mário de Andrade. A globalização,
novamente, pode ser um bom momento
para aproveitar o fato de que nossa
discussão sobre nacionalidade sempre deu
como resposta mestiçagens, hibridismos,
antropofagias, aberturas, incompletudes,
rascunhos e outras confusões variadas, e
transformar a necessidade em virtude.

Nessa hora é bem tentador jogar de volta


o argumento para cima de FHC, e dizer
que esse ideal de inserção global a partir
de nossa flexibilidade é muito mais o que
gostaríamos de ser do que o que
efetivamente somos (embora sempre haja
alguma verdade na narrativa, como, aliás,
havia no Freyre). Na falta de superego
digno do nome, cedo à tentação e sugiro
que é isso aí, é assim mesmo.

Agora, vocês vão se perguntar: eu fui ler o


livro do ex-marxista FHC e só ganhei
essas interpretaçõezinhas sobre cultura? O
cara pulou o “Grande Indústria e Favela” e
foi direto para “Roberto Campos e
Tropicália”? Não tem nada sobre
economia, dependência, aquele papo
bacana?

Bom, no mínimo tem “BNDES” e, sei lá,


“Camelódromo”.

6.
Ninguém discute que Os Donos do Poder,
de Raymundo Faoro, merece estar em
uma lista de livros fundamentais para a
compreensão do Brasil. É um livro de
leitura bem difícil, o que torna o trabalho
de apresentação de FHC especialmente
louvável. A tese central, que Faoro às vezes
força sobre os fatos (e FHC o corrige com
competência), é que há um estamento
burocrático que controla a sociedade
brasileira desde a colônia. O estamento
burocrático tem uma relação complexa
com o poder econômico, o que dá
margem a, pelo menos, duas
interpretações possíveis: a primeira é que
o problema do Brasil sempre foi excesso
de Estado (inclusive em períodos e locais
em que isso é bastante implausível, como
na economia escravista e na Velha
República). A segunda é que o poder
econômico no Brasil sempre se utilizou do
Estado (o que me parece mais plausível,
mas, enfim, é só o que eu acho). Uma
interpretação enfatizaria o peso da
burocracia, a outra a falta de participação
popular (e, portanto, a captura do Estado
por interesses particulares) que
caracterizou grande parte da história
brasileira. O texto de FHC se equilibra
entre as duas tendências: o artigo se
chama “Um Crítico do Estado”, mas ele
reconhece, e até enfatiza, as relações que o
Estado brasileiro sempre teve com o poder
econômico.

Durante a ditadura, FHC já enfatizava a


formação dos “anéis burocráticos”, um
antecessor interessante da análise das redes
que se formam nas fronteiras entre setor
público e setor privado. Uma versão
empiricamente sofisticada dessa discussão
é o livro recente de Sergio Lazzarini,
Capitalismo de Laços (um dos trabalhos
mais importantes produzidos no Brasil
recentemente), bastante influenciado por
Raymundo Faoro e onde Dependência e
Desenvolvimento na América Latina é
referenciado como inspiração teórica
central, ao mesmo tempo em que o
governo FHC (como também o de Lula,
não se apressem em partidarizar o
negócio) aparece sob uma luz interessante:
a privatização com participação do
BNDES e dos fundos de pensão resultou
em um arranjo público/privado diferente,
mas não obviamente fora do esquema
tradicional de interação Estado/Sociedade
que os weberianos sempre enxergaram na
sociedade brasileira.

Não há dúvida de que o governo FHC


teve entre seus defensores representantes
de prestígio entre os weberianos
brasileiros, como Simon Schwartzman, e
não há dúvida de que a tese do
patrimonialismo se encaixa bem com
propostas de redução do tamanho do
Estado. Aliás, é difícil negar que esse
weberianismo liberal tem certa razão: o
Estado desenvolvimentista brasileiro foi
grande demais durante os anos 70 e talvez
tenha ensaiado se tornar grande demais
depois da crise de 2008 (nos dois casos,
havia também bons argumentos, tanto em
defesa dos grandes projetos da ditadura,
quanto em defesa da política anti-crise
Lula/Dilma).

Mas o que torna o debate sobre o


weberianismo brasileiro politicamente
interessante é que Faoro passou os anos 90
inteiros criticando o governo FHC e suas
medidas de desestatização em sua coluna
na Carta Capital. Para além da discussão
levantada com competência pelo livro do
Lazzarini, seria difícil negar que FHC
governou (como Lula também) em aliança
com políticos que teriam todo o direito de
serem identificados como “donos do
poder”, embora alguns estivessem mais
para “Casa Grande e Senzala”. Para não
ficar só nisso, o outro grande weberiano
brasileiro, Sérgio Buarque de Holanda, foi
membro fundador do PT, provavelmente
porque, como bem nota FHC no seu
curto texto sobre SBH, ele não via a
alternativa ao estatismo no liberalismo
papo furado da Velha República, mas em
um movimento de inclusão de cidadãos
vindo de baixo (algo na linha do que se
depreende dos comentários sobre o PT em
Porque as Nações Fracassam, de
Acemoglu e Robinson).

Ou seja: a interpretação weberiana tem


muito a contribuir para nossa
compreensão de nós mesmos, já foi
utilizada por diferentes perspectivas
políticas, nos anos pós-crise dos anos 80
ganhou uma vida nova, e, em um
determinado momento, cruzou com a
corrente marxista quando o capitalismo
brasileiro se tornou especialmente estatal.

Enter the Florestan.

7.
FHC certamente é um dos sujeitos que
mais entendem de Florestan Fernandes, de
quem foi aluno, orientando, colega,
vizinho, companheiro de viagem quando
Florestan deu uma banana para o Council
of the Americas (p. 184), e herdeiro
intelectual. José Murilo de Carvalho deve
estar certo quando sugere que Florestan,
com sua abertura para diversos métodos e
teorias (o que já lhe rendeu a
caracterização de “ecletismo”), foi
importante para evitar que FHC se
tornasse um marxista ortodoxo.

A leitura de FHC para A Revolução


Burguesa no Brasil destaca o fato de que
cada metade do livro foi escrita em uma
chave teórica diferente: o começo é
weberiano, o final é marxista. E os trechos
destacados por FHC justamente enfatizam
os pontos de contato entre as
interpretações marxista e weberiana. Por
exemplo, em seu estudo sobre a
constituição da “ordem social
competitiva”, diz Florestan, citado por
FHC: “O que ocorreu com o Estado
nacional independente é que ele era liberal
somente em seus fundamentos formais.
Na prática, ele era instrumento da
dominação patrimonialista”. E: “A
autonomização política e a burocratização
da dominação patrimonialista
imprimiriam à produção e à exportação as
funções de processos sociais de
acumulação estamental de capital”. E diz
FHC: “Para Florestan o liberalismo –
ontem como hoje bête noire dos ideólogos
de esquerda – ‘concorreu para
revolucionar o horizonte cultural das elites
nativas’ e deu substância aos processos de
modernização”. Quando, nos capítulos
finais, Florestan vira para o marxismo,
FHC enfatiza que a análise destaca as
peculiaridades do capitalismo cujo
impulso dinâmico vem de fora, um
capitalismo dependente, como o descrito
por quem, por quem? Por FHC.

Seria fácil dizer que FHC dá uma boa


Efeagacizada no Florestan, e há algo disso
aí, mas, tanto quanto eu entendo de
Florestan, a interpretação é pertinente: os
dois autores têm mesmo muito em
comum (ao menos na reflexão sobre o
capitalismo brasileiro; Florestan discutiu
muitos outros temas), embora
politicamente tenham divergido (Florestan
continuou socialista até o fim) e tivessem
estilos acadêmicos bem diversos. Não é
fora de propósito associar uma certa
nostalgia por uma revolução burguesa
digna do nome (nostalgia que, aliás, Marx
teve com relação à Alemanha por muito
tempo) com o capitalismo dependente e,
naturalmente, com a discussão sobre o
patrimonialismo. A leitura que FHC faz
de Florestan não é a única possível, mas é
certamente uma das possíveis.

A propósito, nos anos 70, quando,


provavelmente não por acaso (deve haver
alguma correlação entre ter controle
absoluto do Estado e apoiar o controle
estatal da economia, não?), a ditadura
militar que começou economicamente
liberal se torna estatista, essa convergência
de agendas teóricas pareceu especialmente
plausível. Em Autoritarismo e
Democratização, de 1975 (talvez o melhor
livro de FHC, em que pese o caráter
datado de algumas discussões), ele nota
que Faoro voltava à moda porque o
capitalismo brasileiro se tornava
fortemente estatista. Se tiverem tempo,
antes de ler o Lazzarini, leiam os últimos
capítulos desse livro. A teoria da
dependência versão FHC (tem várias) foi,
em parte, um encontro de Caio
Prado/Futado com SBH/Faoro na hora
em que o governo militar montava o
desenvolvimento em cima de capital
estrangeiro mais investimento estatal.

A crítica possível é que FHC pode, nos


textos mais recentes, ter super-corrigido o
modelo marxista na direção weberiana, em
prejuízo dos temas classicamente marxistas
(que, naturalmente, poderiam ser
trabalhados de outras perspectivas) da
inserção no capitalismo internacional e das
alianças de classe. Mesmo nos anos 70,
FHC já fazia aos weberianos a crítica —
hoje apresentada, por exemplo, por Jessé
de Souza — de que não dá pra discutir a
herança patrimonialista sem lembrar que o
fato central de nossa história (Nabuco de
novo) foi a escravidão e sua obra. A graça
seria desmontar o patrimonialismo sem
tirar do Estado a capacidade de inserir os
pobres na sociedade moderna nem de
mediar nossa inserção na economia global.
O FHC dos anos 70 talvez tivesse mais a
dizer sobre isso. Por outro lado, nos anos
70 a participação de FHC no debate sobre
o patrimonialismo foi só escrever livros.
Talvez tenha parecido à geração de FHC
que o país já estava formado, mas a
globalização coloca para as novas gerações
tarefas que implicam em desformar e
reformar. O debate sobre a formação
continua. E, se você acha que no Brasil
não há debates interessantes, deveria ler
livros mais difíceis.

_____
PS
PS: A resenha ficou longa. Pelo plano
inicial, teria pelo menos o dobro do
tamanho.
PSTU
PSTU: Eu queria ter colocado como
epígrafe da resenha a frase “Se quiser ser
um rei-filósofo, comece como rei”, de
Nassim Taleb. No final achei que não
cabia, e, aliás, não sei se é verdade.
PSTUdoB
PSTUdoB: Não deixem de consultar o
site do Instituto FHC. Digitalizaram tudo,
livro, artigo, entrevista, verdadeiras
preciosidades.

::: Pensadores que Inventaram o Brasil :::


::: Fernando Henrique Cardoso :::
::: Companhia das Letras
Letras, 2013
2013, 304
páginas :::

Celso Barros
Mestre em Sociologia pela
Unicamp e doutor por Oxford.
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© 2019 Amálgama

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