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Niilismo e o que vem


Peter Pelbart
 
 
O  niIlismo,  em  sua  ac​epção  mais  imediata,  poderia  ser  definido  como  a  desvalorização  de  todos  os 
valores  “supremos”,  o desmoronamento de um edifício moral, religioso e civilizatório; de modo tal que 
aquilo  que  valia  deixa  de  valer  e  o  que  era  respeitável  se  banaliza.  Nietzsche  detecta  esta  situação  de 
crise  como  necessária,  e,  ao  invés  de  lamentar-se,  mostra  até  que  ponto  esses  valores  supremos  (o 
“bem”,  a  “verdade”,  a  “justiça”,  o  “divino”  e  etc)  ​estavan  fundados  sobre  o  nada​.  Mas  ao  mesmo 
tempo,  percebe  que  esse  momento  em  que  o  nada  de  fundamentos  aparece  como  culminação  do 
proceso  é  muito  complicado.  ​O  fato  de  que  esses  critérios  morais  tenham  dado  sentido  e  direção  à 
vida  é  causa  de  que  a  vida  mesma  acabe  depreciando-se​.  Nietzsche  denuncia  toda  dependência  da 
vida,  toda  sujeição  em relação a algo extrínseco a si mesma. Esses valores que  davam sentido à vida ao 
mesmo  tempo  a  esvaziam  de  seu  sentido  intrínseco.  ​Se  a  vida  depende  de  outra  coisa,  é  porque  está 
esvaziada​.  Por  isso,  quando  se  revela  que  os  atributos  que davam valor perderam sua validade, a vida 
perde  todo  o  sentido  e  fica  nua,  revelando  sua  falta  de  sentido  intrínseco.  Bem,  se  trata  de  um 
acontecimento  necessário.  Não  é  um  sucesso histórico, mas é a história em sí mesma que pode ser vista 
como  um  proceso  de  desvalorização  dos  valores.  Esse  momento  em  que  descobrimos  que  os  valores 
não  valem  mais  é  o  mais  perigoso,  porque  estamos na beira de afimar que nada vale a pena e que tudo 
é  igual.  Há  uma  ​tonalidade  afetiva  que  expressa  esse  momento  agônico  do  niilismo:  “tudo  é  vão,  nada 
vale  a  pena,  tudo  se  equivale”. Nós  podemos muito fácilmente reconhecer no sujeito pos-moderno um 
exemplo  desta  ​tonalidade​.  E  poderíamos  adotar  uma  posição  extrínseca  e  crítica,  a  maneira  de  um juiz. 
Mas  não  é  o  caso  de  Nietzsche,  que  acompanha  esse  processo  até  seu  término,  sua  consumação,  vai 
inclusive  estimulá-lo,  dizendo  que  não  temos  que  freiá-lo  nem  interrompê-lo:  Não  tem  sentido 
recompor  o  que  está  se  quebrando,  corrompendo-se,  voltando  a  colar  os  pedacinhos  soltos.  Não  só 
temos  que  deixar  que  se  quebre  aquilo  que  está  se  desfazendo,  e  mais  ainda  convem  intensificar  a 
decomposição.  Achamos  aqui  a  ambigüidade  de  Nietzsche:  Está  diagnosticando  alguma  coisa  que 
condena  ou  ele  mesmo  se  tornou  niilista?  Eu  creio  que  são  as  duas  coisas,  pois  nos  fala  de  uma 
destruição  que  avança  e  que  sem  dúvida  há  quem  queira  freiá-la  antepondo valores sustitutivos. Por 
exemplo:  Deus  está  morto,  mas  seu  lugar é ocupado pela ciência, a razão, o progresso, e, inclusive pelo 
homem.  Todos  esses  herdeiros  dos  valores  supremos,  que  pretendem  sustitui-los,  ​aspiram  deter  a 
desagregação​.  Mas Nietzsche recorda que se Deus está morto é porque também caducou “o homem” que 
projetou  sobre  Deus  suas  pretenções  (é  o  anti-humanismo  que  logo  retomaram  também  Foucault  e 
Deleuze).  Todas  e  cada  uma  das  figuras  substitutivas  colaboran  em  impedir  a  possibilidade  de  uma 
passagem.  E  esse  é  o  sentido  da  ambigüidade,  pois  Nietzsche  propõe  assumir  a  necesidade  da 
destruição,  para  que  outra  coisa  seja  possivel,  para  que  novas  forças  reinventem  a  vida.  Nietzsche  se 

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​Trecho de uma Entrevista ​com ​Peter Pál Pelbart. Colectivo Situaciones Impasse : dilemas políticos del presente / coordinado por Colectivo Situaciones. - 1a ed.
- Buenos Aires : Tinta Limón, 2009.
encarrega  de  distinguir  entre  uma  destruição  que  provem do arrependimento, da sede de vingança e o 
odio,  e  outro  tipo  de  destruição que se origina de um enfático SIM. Essas figuras nos permitem realizar 
um  diagnóstico  diferencial  dos  niilismos,  nos  permiten  interrogar  que  tipo  de forças estão lutando por 
existir:  Que  forças  estão  pressionando  para  passar?  São  forças  ativas  ou  reativas?  É  um  movimento 
afirmativo  ou  negativo?  Estamos  ante  um  processo  de  superabundância  vital  ou  pendendo  a  uma 
pauperizacão  da  existencia?  Gostaria  de  ficar  com a imagem deste momento delicadísimo do niilismo, 
a  uma  só  tempo  ambiguo  e  privilegiado  em  que  está  em  jogo  a  passagem  de  forças  incipientes,  que 
aparecen  enredadas  em  formas,  que,  ainda  que  quebradas,  partidas  e  claudicantes,  operan  como 
prisões.  Perceber  esse  ponto  de  viragem  das  forças  é  o  mais difícil, pois não sabemos- e precisaríamos 
ver  em  cada  caso-  se  estamos  em  um  proceso  que  tende  à  morte  ou  se  estamos  em pleno nascimento. 
Pode  ser  uma  pessoa,  uma  cultura,  um  acontecimento,  dá  no  mesmo.  Há  um  instante  em  que  não 
sabemos  ao certo se tudo está em vías de cansar-se (mortalmente) e sucumbir ou se está ocorrendo uma 
reinvención.  Há  quem  desenvolva  um  olfato  extremamente  agudo  nestas  situacões.  Nietzsche,  por 
exemplo,  sente  com  muita  nitidez  o  cheiro  da  decadência  e  acompanha  quase  com  prazer  de 
anatomista  o  que  está  apodrecendo,  pois  ao  mesmo  tempo  ele  percebe aquilo que vai se liberando. Me 
pergunto  se  o  nosso  desafio  hoje  não  tem  ha  ver  com  essa  operação  quase  esquizofrénica,  que  passa 
por  apreender  o  que  está  morrendo  e  descobrir  o  que  vai  nascer,  quem  sabe  ao  mesmo  tempo  e,  às 
vezes,  nos  mesmos  fenômenos.  Se  for  assim  devemos  ter  em  conta  algo  que  poderíamos  chamar  a 
“tonalidade  afetiva”,  que  para  mim  define  a  natureza  de  qualquer  filosofía.  É  a  capacidade,  por  um 
lado,  de  enterrar  o  que  está  morrendo.  Goethe  fala  de  um  direito  das  coisas  que  se  consumaram  de 
serem  enterradas.  E  simultâneamente  há  outro  direito,  que  não  é  só  o  que  tem  as  vidas  que  estão 
constituidas.  Precisamos  pensar  também  no  direito  daquilo  que  ainda  não  nasceu,  o  que  como  disse 
Nietzsche, está por vir. Enterrar o que está morto para que possa germinar o que está vindo e que ainda 
não  sabemos  o  qué  é,  porque  ainda  não  tem  nome  nem  forma  reconhecível.  Nietzsche  menciona  uma 
figura  um  pouco  dramática  para  referir-se  ao  que  vem  além do homem. O“super-homem” que não é o 
homem  elevado  a  enésima  potência,  mas  a  dissolução  da  forma-homem  enquanto  tal,  da  moral  e  da 
razão,  do  corpo  adestrado,  domesticado,  racionalizado.  Mas  o  que  importa  não  é  tanto  a  definição  do 
que  vem,  se  não  a  ideia  de  que  aquela  destruição  é  a  condição  de  uma  travessia,  a  abertura  de  uma 
posibilidade.  Esta  sensibilidade  habilita  a  alguns  a  atravessar  a  catástrofe  com  alegría e até com alívio. 
Em  qualquer  caso,  sem  catastrofismo.  Zero  de  nostalgia  e  de  melancolia,  mas  também  sem 
ingenuidade.  Porque  o  novo  é  absolutamente  indeterminado,  é  imponderável  e  não  há  nenhuma 
necessidade (progresso) histórica para que aquilo que vem seja melhor do que foi. Não há garantias.

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