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A Questão Criminal No Brasil Contemporâneo
A Questão Criminal No Brasil Contemporâneo
(*)
Professora Adjunta de Criminologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Secretária-Geral do
Instituto Carioca de Criminologia. Diretora da Revista Discursos Sediciosos: Crime, Direito e
Sociedade.
(**)
Comunicação apresentada no 2º Fórum Nacional de Alternativas Penais: “Audiências de Custódia e a
Desconstrução da Cultura do Encarceramento em Massa”, realizado entre os dias 24 e 27 de fevereiro
de 2016 – Salvador/BA.
1
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. El curso de la Criminologia. In: Revista de Derecho Penal y
Criminología, n. 69. Madrid: UNED, 2002.
2
2
MENEGAT, Marildo. Depois do fim do mundo: a crise da modernidade e a barbárie. Rio de Janeiro:
Faperj/Relume Dumará, 2003.
3
RUSCHE, Georg; KIRCHHEIMER, Otto. Punição e Estrutura Social. 2. ed. Rio de Janeiro: Instituto
Carioca de Criminologia/Revan, 2004.
4
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1977.
3
penal esconde a sua principal função: realizar o controle diferencial e seletivo das
ilegalidades populares, neutralizar as resistências a uma nova ordem que se impunha
contra o novo sujeito político do século XVIII, a multidão.
Cabe a nós, que pensamos a questão criminal contemporânea, entender as novas
funções da prisão e do poder punitivo no neoliberalismo, ou capitalismo de barbárie. A
esse respeito, Loïc Wacquant propõe a idéia do paradigma norte-americano de
incremento do Estado Penal em contraposição à dissolução do Estado Previdenciário: a
nova gestão da miséria se daria pela criminalização da pobreza, nos discursos e nas
práticas.5 A hegemonia deste modelo produziu o que Wacquant denominou de onda
punitiva, produzindo um processo de encarceramento em larga escala nunca visto na
história da humanidade, hoje já questionado pela esquerda e até pela direita
estadunidense.
Trabalhando a história ideológica do controle social no Brasil de hoje, Neder
aponta o arbítrio das fantasias absolutistas de controle social policial absoluto no
imaginário brasileiro, a partir das suas matrizes (no sentido de uma permanência
cultural) ibéricas.
A partir da reforma pombalina da segunda metade do século XVIII em Portugal,
instaura-se um processo de modernização que conjuga a incorporação de novos
pressupostos teóricos e ideológicos cuidando de que a base de sustentação da
hierarquização não fosse afetada. Esta ambigüidade revela-se no desdobramento deste
processo para o Brasil. A discussão em torno da redação do código penal de 1830
articulava o liberalismo de Beccaria com as formas de controle e punição da escravidão.
No Rio de Janeiro do século XIX, o chefe de polícia Eusébio de Queiroz
apontava a escravidão como limite à adoção de políticas mais modernas de policiamento
urbano. Propõe então o confinamento dos escravos nas fazendas e o rígido controle de
seus deslocamentos6. Para Neder, nem o fim da escravidão e nem a República
romperam com o legado da fantasia absolutista do controle social, da obediência
cadavérica. A atuação da polícia nas favelas brasileiras nos dias de hoje é a prova viva
deste legado.
5
WACQUANT, Loïc. Punir os Pobres: a nova gestão da miséria nos Estados Unidos. Rio de Janeiro:
Instituto Carioca de Criminologia/Revan, 2003.
6
Cf. NEDER, Gizlene. Absolutismo e punição. In: Discursos Sediciosos - Crime, Direito e Sociedade,
ano 1, n.º 1. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1996, p. 132.
4
7
Robert Schwarz analisando Machado de Assis trabalha o liberalismo no Brasil como as “idéias fora do
lugar”.
8
NEDER, Gizlene. Iluminismo jurídico-penal luso-brasileiro: obediência e submissão. Rio de Janeiro:
Instituto Carioca de Criminologia/Freitas Bastos, 2000.
9
BATISTA, Nilo. Os sistemas penais brasileiros. Aula inaugural dos cursos da Universidade Candido
Mendes, proferida em 12 de março de 2001, Rio de Janeiro.
10
BATISTA, Nilo. Matrizes ibéricas do sistema penal brasileiro - vol. I. Rio de Janeiro: Instituto Carioca
de Criminologia/Freitas Bastos, 2000.
5
virtuosa e o caos infracional; a matriz do combate ao crime é feita como cruzada, com o
extermínio como método contra o injusto que ameaça; é produzido um direito penal de
intervenção moral baseado na confissão e no dogma da pena. Essa ordem jurídica
intolerante e autoritária não suporta limites, transforma-se num sistema penal sem
fronteiras, com a tortura como princípio, o elogio da delação e a execução como
espetáculo.
No processo que intitulam de história da programação criminalizante no
Brasil, Batista e Zaffaroni mostram como os usos punitivos do mercantilismo praticados
no corpo do suspeito ou condenado no âmbito privado vão dando sinais de anacronismo
depois da independência e na constituição do capitalismo no Brasil. As permanências,
no entanto, são muitas: “a alçada criminal abrangia a pena de morte natural inclusive em
escravos, gentios e peões homens livres, sem apelação nem agravo, salvo quanto às
pessoas de mor qualidade, quando se restringiria a degredo por dez anos e multa até
cem cruzados”11.
Do ponto de vista jurídico, do império das leis, as Ordenações Filipinas, que
constituíram o eixo da programação criminalizante do Brasil-colônia, regeram o direito
penal até a promulgação do código criminal de 1830. É importante frisar que no direito
privado várias disposições das Ordenações Filipinas regeram até 1917!12
As demandas por ferocidade penal, a seletividade da clientela do sistema penal
são permanências históricas. Mas, a partir das contradições que surgem entre o sistema
colonial-mercantilista e o capitalismo industrial que se configurava já na segunda
metade do século XVIII, vai-se esboçando uma outra conjuntura. No bojo da
Independência, a Constituição de 1824 produz algumas rupturas, ma non troppo, que
fazem parte do universo liberal no conjunto das idéias fora do lugar da modernização à
brasileira. Surgem as garantias individuais: “liberdade de manifestação do pensamento,
proscrição de perseguições religiosas, liberdade de locomoção, inviolabilidade do
domicílio e da correspondência, as formalidades exigidas para a prisão, a reserva legal,
o devido processo, a abolição das penas cruéis e da tortura, a intransmissibilidade das
penas, o direito de petição, a abolição de privilégios e foro privilegiado” 13. É lógico que
11
Cf. BATISTA, Nilo e ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Direito Penal Brasileiro - I. Rio de Janeiro: Revan,
2003.
12
Cf. BATISTA, Nilo e ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Op. cit.
13
BATISTA, Nilo e ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Op. cit. p. 39.
6
tudo isto não poderia colidir com o “direito de propriedade em toda a sua plenitude”
que, mantendo a escravidão sem uma só letra da lei, instituiria a cilada da cidadania no
Brasil, digamos a ciladania, que pontua até hoje os discursos do liberalismo no Brasil.
Como assinalou Machado Neto a cidadania no Brasil nasce restrita aos homens brancos
e proprietários.14
Essa nossa história faz com que nosso sistema penal e nossa maneira de pensar e
sentir a questão criminal sejam marcados por práticas de extermínio, aniquilação e
desqualificação jurídica do povo brasileiro advindas da predação colonial contra os
povos originários e os afrodescendentes.
Pensando então, na longa duração do autoritarismo no Brasil, nos demos conta
de que a "democracia" é um intervalo da nossa história; na verdade, essa maneira de
pensar e sentir a questão criminal é a grande permanência que atravessa o sentido do
nosso sistema jurídico-penal. Para pensarmos nossa "torturante contemporaneidade" nos
remetemos ao momento de transição da ditadura civil-militar quando estava
disseminada uma resistência às práticas do Estado de exceção. Foi naquele momento
histórico que os meios de comunicação começaram a esculpir cotidianamente o novo
inimigo público, aquele que vai ensejar desejos de extermínio: o traficante. Quero dizer
com isso que a política criminal de drogas que nos é imposta no auge da ditadura pelos
estadunidenses seria o grande vetor de extermínio e encarceramento no período
democrático.
Na geopolítica das drogas a América Latina foi transformada em campo de
batalha. Produtora de maconha e cocaína, abalada por uma crise econômica que
produziu, nos oitenta e nos noventa, multidões de camponeses sem terra e trabalhadores
urbanos informais ou desempregados, nossa parte da América inscreveu-se duplamente
no mundo: através de nossa inserção na divisão internacional do trabalho e no
estereótipo pejorativo que acompanha a expressão “traficante”.
Para enfrentar esta política criminal em forma de guerra, temos que desconstruí-
la e para isso devemos romper com o discurso moral. Como disse Massimo Pavarini,
mais moralidade como mais penalidade é o trágico equívoco de todas as campanhas
14
MACHADO NETO, Zahidé. Direito Penal e Estrutura Social: comentário sociológico ao Código
Criminal de 1830. São Paulo: Edusp/Saraiva, 1977.
7
15
PAVARINI, Massimo. O instrutivo caso italiano. In: Revista Discursos Sediciosos: crime, direito e
sociedade, nº 2. Rio de Janeiro: ICC, 1996. pp. 67-76.
16
CARVALHO, Salo de. A Política Criminal de Drogas no Brasil. Rio de Janeiro. Ed. Luam, 1996, p.
10.
17
Op. cit., p. 27.
8
18
Cf. BATISTA, Vera Malaguti. Adesão Subjetiva à barbárie. In: Loïc Wacquant e a questão penal no
capitalismo neoliberal. Rio de Janeiro: Revan, 2012.
19
VASCONCELLOS, Gilberto Felisberto. O Príncipe da Moeda. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1997;
e As Ruínas do Pós-Real. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1995.
9
controle dos conflitos privados vai demandar juristas e demais especialistas para se
tornar o centro da vida política.
As estratégias de mediação e restauração aparecem como alternativas à pena na
conjuntura dos anos setenta e oitenta. Seu maior risco é, ao invés de desjudicializar os
procedimentos, expandir a mentalidade judicial para os “novos operadores”.
Observemos o caso do júri, dispositivo jurídico nascido historicamente da pretensão
política de ser o sujeito julgado por seus pares, por seus iguais. Na tradição brasileira, as
sentenças populares costumavam ser mais generosas do que aquelas geradas pelo saber
dogmático penal. Hoje dá-se o contrário: o senso comum criminológico punitivo
inculcado pela grande mídia produziu uma ferocidade crescente na mentalidade dos
jurados brasileiros. A tradição garantista do pensamento jurídico, antes considerada
conservadora, vai ser lembrada saudosamente e vai tornar-se vanguarda se comparada à
sanha punitiva alimentada pelas coberturas midiáticas espetaculares. Pensemos também
em alguns fatos noticiados, nos quais os Conselhos Tutelares, concebidos para
democratizar a justiça dirigida a crianças e adolescentes, transformam-se em
dispositivos policialescos, prontos a penalizar e criminalizar as relações familiares,
principalmente as dos pobres.
O principal poder decantado desse conjunto de movimentos punitivos vai ser a
legitimação da intervenção moral, da invasividade do Estado penal nas relações
familiares e de vizinhança. Quanto maior a conflitividade social decorrente da
devastação promovida pelo capital, maior deve ser a legitimidade da pena. O que vai
articular essa nova economia política é a constituição de uma cultura punitiva. A
indústria cultural e a grande mídia vão tratar de inculcar diariamente o dogma da pena e
o respectivo modelão penal já decadente nos Estados Unidos: das bugigangas
eletrônicas à prisão supermax privatizada. O importante é punir mais, melhor e por
muito tempo: o negócio dos cárceres precisa de muitos hóspedes e de longas estadias...
É aquele processo que Wacquant chama de remasculinização do Estado, que produz um
giro do social para o penal e que terá efeitos tanto nos orçamentos públicos como na
prioridade discursiva, colonizando a assistência social pela “lógica punitiva e panóptica
característica da burocracia penal pósreabilitação”.20
20
WACQUANT, Loïc. Loïc Wacquant e a questão penal no capitalismo neoliberal. Vera
Malaguti Batista (organizadora). Rio de Janeiro: Revan, 2012.
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21
ANDRADE, Vera Regina Pereira de. A ilusão da segurança jurídica: do controle da violência
à violência do controle penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.
11
22
Correa, Mariza. (1998). As Ilusões da Liberdade. Bragança Paulista: Edusf, p. 224.
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