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Traços dessa filiação mágica podem ser encontrados nas tradições norte-americanas, em
que a água simboliza a luz pura do conhecimento, ligada à irradiação solar. (p. 12)
Está esboçado o retrato do xamã: mais que homem, não totalmente um deus, bebendo
na fonte do conhecimento intuitivo animal. Seu universo é um mundo simbólico, ao
qual, paradoxalmente, ele atribui mais poder que à própria realidade. Esta é sua maneira
de transcender uma situação ordinária e no mínimo dolorosa, o fato mesmo de existir.
Com efeito, como veremos mais adiante, aquele cujo destino é tornar-se xamã
experimenta de modo crítico um certo mal-estar, um certo tédio pela vida, inerentes a
uma sensibilidade mais voltada para o misticismo e para as forças do inconsciente do
que para o movimento que implica vida. Percebe-se desde então que sua vocação se
manifesta por meio de sonhos, visões, experiências do maravilhoso, que assumem a
seus olhos o valor objetivo da realidade vivida. Mas, na prática, o xamanismo é um
sacerdócio que requer não só a verdadeira mística da faculdade mágica, mas também o
envolvimento total de um ser responsável pela alma humana. Ele seria, assim, ao
mesmo tempo uma religião sem dogma e uma profissão de utilidade pública,
conciliando um conhecimento intuitivo e pessoal com a necessidade de agir. (p. 13)
A palavra xamã vem do tungue saman, aparentado com o sânscrito sramana e com o
pâli samana, que significa “homem inspirado pelos espíritos”, o que levanta a questão,
muito discutida, da própria origem do xamanismo da Ásia Central, que, segundo Mircea
Eliade, “apresenta traços evidentes de influências iranianas (mesopotâmicas), indianas e
budistas”. A ideia primitiva do mana melanésio evoca um campo de força, uma espécie
de energia sobrenatural, mas não impessoal, inerente a determinados indivíduos ou
objetos que mantêm relação com o sagrado, a certas almas de mortos, divindades ou
espíritos. O conceito do mana encontra seu equivalente na expressão wakan dos sioux,
orenda dos ioqueses, oki dos hurões, zemi dos povos antilhanos. (p. 15-16)
Ora, no início, o mana é uma energia sagrada pessoal que é exercida graças aos
Espíritos da natureza e dos ancestrais. Aliás, parece que, na consciência primitiva, a
oposição entre pessoal e impessoal, corporal e incorporal se coloca mais em termos de
realidade não-realidade, de existência não-existência. Como diz P. Radin a propósito
dos índios: “O que parece atrair sua atenção é, em primeiro lugar, a questão da
existência real; e tudo que pode ser apreendido pelos sentidos, tudo o que pode ser
pensado, vivido ou sonhado, existe”. O que equivale dizer que tudo o que é mana ou
atua ou não existe, donde as noções de fecundidade e de fertilidade que lhe são
geralmente associadas. (p. 16)
(...) o xamã tem uma característica mágica que lhe confere uma “outra” dimensão: a de
Mestre do Êxtase, inteiramente devotado à perenidade do clã e à saúde física e mental
de seus membros. Essa prova faz dele o interlocutor dos homens junto às potências
infernais e celestiais. (p. 18)
Assim, graças às suas experiências extáticas, o xamã é o único ser capaz de penetrar no
mundo subterrâneo dos espíritos errantes e dos demônios. Ali, sobrevoando em seu
cavalo-tambor um imenso e consistente nada, povoado de ossos e de cadáveres de
xamãs malogrados, ele vai zombar da morte e antecipar suas armadilhas. Para ele, cada
viagem ao inferno pode ser a última, pois, mesmo que conheça bem essas regiões
proibidas, o risco de aí perder-se permanece grande. (p. 18-19)
Como diz Mercier: “Nas relações quase cotidianas que o xamã mantém com os
espíritos, dos quais é essencialmente o manipulador e jamais o instrumento, ele fala
muito mais frequentemente como mestre do que como solicitador. No seu caso não
existe possessão, mas incorporação”. (p. 20)
A prática da arte xamãnica não muda um homem – dá-lhe a liberdade de explorar seus
talentos, sua personalidade. Entretanto, um xamã raramente abusa de seus poderes, ou,
se o faz, é por uma questão de vida ou morte, ou porque ele próprio se sente ameaçado.
Pela concentração de forças que ele traz à tona, um combate entre dois xamãs pode
assumir dimensões titânicas e burlescas. (p. 20)
Em Le chamanisme, Mircea Eliade estabelece uma distinção bem precisa referente aos
domínios da ação do “xamã branco” e do “xamã negro” entre os buriatas e os iacutes:
uns serviriam de intermediários junto aos deuses do Céu, outro junto às potências da
Terra e dos Infernos. Mas é provável que a maior parte seja constituída de “brancos-
negros”, capazes de interceder eficazmente nas duas esferas em questão. Pode-se notar,
porém, que, embora tendo no início a mesma missão filantrópica do xamã branco, o
xamã negro (feiticeiro ou mago negro entre os índios) tende antes a operar por sua
própria conta para vingar-se e semear a discórdia. Entre os altaicos, as mulheres xamãs
são sempre “negras”, pois jamais praticam a ascensão. (p. 22)
Além desses poderes de cura, exorcismo e conciliação, aos quais voltaremos, o xamã é
consultado por seus dons de clarividência e telepatia. Sabe anunciar a chuva quando a
terra se fende, afastar com o dedo as nuvens, comandar a tempestade e os quatro ventos;
a montanha é sua morada, seu lugar de retiro e de poder, os animais são seus cúmplices,
e as plantas, seus agentes secretos. O ar e a terra lhe pertencem, ele domina o fogo e faz
degelar os rios. Mas a sobrevivência de seu clã constitui sua maior preocupação e sua
principal razão de ser. “Meu corpo”, diz um xamã iacute, “assemelha-se a uma gaiola
com um pássaro dentro. O pássaro é grande e a gaiola pequena. Um dia o pássaro tenta
sair e bate as asas. É preciso, então, abrir a gaiola para que o pássaro voe e a gaiola se
quebre” (Chamanisme et chamans). Esta razão de ser, que faz abrir a gaiola, lhe é
concedida pelo clã. (p. 22-23)
Pode-se dizer que existem quatro formas de recrutamento xamânico. Os dois primeiros,
a vocação espontânea e a transmissão hereditária, são mais frequentes na Sibéria e na
Ásia. A decisão pessoal não é rara entre os esquimós e na América do Norte, assim
como entre os povos altaicos. Quanto à eleição pelo clã, ela supõe que o xamã titular
tenha falecido sem deixar sucessor ou sem ter tido tempo de formar um. Nesse caso, o
candidato deverá fazer suas provas extátivas durante uma sessão pública. Enfim, entre
os buriatas, os soiotes e os esquimós, é possível tornar-se xamã por acaso, depois de um
acontecimento extraordinário, como sucedeu com um iglulik, que se fez xamã
imediatamente após ter sido ferido por uma foca. Mas, apesar de tudo, o recrutamento
pela foca é muito pouco difundido. (p. 32)
Vocação espontânea
Transmissão hereditária
Essa transformação se paga em sofrimento, contra o qual o futuro xamã vai revoltar-se
de início, pois tudo se passa como se se tratasse de uma conjuração tramada contra ele.
(p. 35)
A decisão pessoal
Por fim, mencionemos que entre os povos altaicos, aquele que se torna xamã por
decisão pessoal é visto como inferior aos demais. Considera-se, com efeito, que ele não
foi realmente escolhido pelos deuses.
(p. 36)
A vocação acidental
O que Dom Juan chama de “loucura controlada” tende exprimir a ideia implícita de
“domínio exercido sobre o mundo”, pelo fato de o homem de conhecimento escolher e
impor à vida seu modo de ser, de ver e de agir, ao passo que o homem comum se
submete a seus caprichos. Essa ligeira defasagem em relação à realidade, que teria feito
dela apenas um místico fracassado ou um desequilibrado, converte-se então num
instrumento de poder. (p. 41)
A iniciação deve permitir ao neófito ultrapassar sua condição humana. Capturado pelos
Espíritos, ele vai encontrar-se subitamente num universo desconhecido, onde receberá
uma instrução severa, sem apelar para nenhum critério de saber interior. Ainda fraco,
terá que afrontar sozinho, isolado do mundo pelo transe, entidades mais ou menos
demoníacas, que não o pouparão. Pois, para renascer, ele terá de morrer. (p. 44)
Assim, na iniciação xamânica dos povos caçadores, não há retorno do corpo à terra, mas
ressurreição do esqueleto. Os índios americanos não enterram seus mortos: colocam-nos
sobre um estrado especial, envolvidos por uma coberta, oferecendo-os aos ventos e à
chuva até que a Natureza os receba. Essa concepção mágica opõe-se à dos povos
agricultores, para quem a Terra-mãe é fonte de toda a vida; eis por que, nos ritos
xamânicos, o corpo do candidato volta simbolicamente ao ventre da Terra para depois
renascer dela. (p. 49)
O rito de purificação pela água é essencial antes de cada intervenção xamânica e deve
ser efetuado ao menos uma vez por ano (os índios da América se purificam na cabana
de transpirar (rito do Onikaghe), cujo vapor ardente contém a água, o ar e o fogo, os
quatro Poderes do universo. Por sua construção, a própria cabana é uma reprodução
simbólica do mundo, com suas quatro partes, sua lareira redonda no centro, sua porta
aberta para o leste). (p. 55)
Finalmente, existe por vezes uma terceira maneira de chegar à vocação xamânica,
característica de um certo tipo de iniciação siberiana e americana: as plantas
alucinógenas. (p. 61)
Além da ingestão de suco de tabaco, o uso de substâncias alucinógenas que atuam como
“revelador” é muito difundido na América Central e do Sul. Trata-se quase sempre de
cogumelos tóxicos, de plantas como, por exemplo, a datura – ou erva dos feiticeiros – o
peyotl, do qual se extrai a mescalina, a ayahuasca – ou pequena morte – entre os
peruanos da Amazônia, os grãos de sebil e muitos outros. (p. 63)
No mesmo sentido, R. Christinger diz do homem que “em todos os casos ele não
encontrará senão a si mesmo no coração da droga”. Ela recria, a partir de uma outra
consciência de si, um mundo à imagem do sonhador, uma transposição visual de
lembranças, emoções etc. Portanto, pode ver o guardião como o último baluarte
razoável do eu, defendendo o acesso a uma outra realidade, que nada mais tem a ver
com a concepção comum racional que fazemos das coisas. Uma vez aberta a brecha na
ideia que de uma realidade única e exclusiva, a utilização de alucinógenos ou narcóticos
torna-se supérflua. (p. 64)
Segundo Raymond Christinger, não são os paraísos que são artificiais, mas os meios de
alcançar um outro mundo; e pode-se erguer o véu desse outro mundo sem
necessariamente recorrer a tais “reveladores”, conforme salienta, com convicção, esse
professor de conservatório (Le voyage dans l’imaginaire, R. Christinger): “Não entendo
por que o homem racional e espiritual se serve de meios artificiais para chegar à
beatitude poética, pois o entusiasmo e a vontade bastam para elevá-lo a uma existência
supranatural. Os grandes poetas, os filósofos, os profetas são seres que, pelo puro e livre
exercício da vontade, atingiram um estado onde são a um tempo causa e efeito, sujeito e
objeto, magnetizador e sonâmbulo. (p. 66)
Pode haver duas causas para a doença: ou ela é provocada pelo rapto da alma, o que
obriga à busca desta última e à sua reintegração no corpo do doente; ou não somente a
alma foi raptada, como o corpo, entregue a si mesmo, se vê possuído por Espíritos
maléficos. Nesse caso, também é necessário praticar um exorcismo. (p. 77)
Sem ele [o traje] e sem seus objetos de poder, cuidadosamente guardados quando não
estão em uso, o xamã não pode oficiar eficazmente: precisa deles para invocar seus
Espíritos auxiliares, para entrar em transe, para matar o mal e para purificar-se.
Estes sete ritos, que pouco a pouco foram revelados aos índios, vieram cristalizar suas
mais profundas aspirações religiosas: trata-se da guarda da alma, da súplica por uma
visão, do rito de purificação, da Dança do Sol, do lançamento da bola, da
paramentação e da preparação da moça para os deveres da mulher. Todas estas
celebrações, sem exceção, se desenvolviam em torno do Calumet sagrado, que se enchia
da cortiça socada do salgueiro vermelho (kinnic-kinnic ou tchacun sha sha). (p. 97)
Todos os trajes lembram a morte do xamã para seu corpo terrestre por ocasião do
período iniciático (desenhos de esqueletos, colares de ossadas) e sua nova condição de
Homem-Espírito capaz de realizar a Grande Viagem (representações de pássaros, penas,
garras). Essa ornamentação heteróclita, que faz do xamã um ser híbrido meio homem,
meio animal, dá o tom à representação sagrada que ele executa em público e assusta o
profano pela incomensurável riqueza de seus símbolos. (p. 101)
Existe uma outra dimensão na via xamânica, que se confunde com as grandes intuições
universais, e que se pode denominar o caminho do guerreiro. (p. 104)
A figura ao lado mostra os oito “pontos” a serem dominados, segundo Castañeda, para
se atingir o estado de ente luminoso. Os dois últimos, o tonal e o nagual,
esquematizados por duas zonas de um lado e de outro do plano, podem ser
compreendidos como o revelado e o oculto, a mesa e o espaço em volta da mesa, o
consciente e o inconsciente etc., conquanto os termos mais apropriados sejam a intuição
de estar no mundo e a intuição de ser o mundo. (p. 104-106)
O universo do xamã só pode ser concebido pela cumplicidade que o une à natureza. Ela
lhe é dada como um lugar de poder. (p. 108)
Atento, extremamente prudente frente aos sobressaltos de um meio rebelde (um xamã
nada empreende se não houver recebido sinais favoráveis), o primitivo deseja antes de
mais nada manter uma adesão perfeita ao ritmo natural do mundo. Pois, mais que
ninguém, ele tem consciência de que sua alma não possui individualidade em si, fora da
alma universal, de que ele participa. (p. 108-109)
O que Dom Juan chama de “apagar a própria história”, “perder a própria importância”,
“ser inacessível”, “quebrar as rotinas da vida” etc., são as primeiras etapas imperativas
do caminho do guerreiro. Ser novo, estar nu, é tornar-se acessível ao poder. Toda
iniciação xamânica, como vimos, contribui simbolicamente para o despojamento do
candidato. E, assim como o xamanismo tradicional subentende por iniciação
renascimento para um novo modo de ser, a filosofia de Dom Juan faz intervir, na
realização iniciática, a revelação do poder da vontade. Afinal, que é essa vontade? “Não
é um pensamento, nem um objeto, nem um desejo”, diz Dom Juan. “A vontade é aquilo
que te permite vencer ainda que teus pensamentos te declarem vencido. A vontade é
aquilo que te torna invulnerável”. (p. 112)
Sua vitória é a de não se afastar da linha de conduta que traçou para si, tenham sido suas
ações boas ou más. (p. 114)
Controlando a insensatez de sua vida, ele se aplica sem indulgência às regras do jogo
estabelecido, se vem que para ele perder ou ganhar não tenham o menor sentido. A
única coisa que importa é que sua vontade seja “impecável” e que o caminho escolhido,
o caminho do coração, seja percorrido com um prazer imenso e seja uno com ele
mesmo. (p. 115)
Segundo Dom Juan, existem três tipos de “seres”, ou antes, de Espíritos, que um dia
podem aparecer no caminho do guerreiro. Os que passam como sombras e que nada dão
porque nada possuem; os que perseguem o homem com o único intuito de assustá-lo e o
fazem às vezes passar por verdadeiras temporadas no inferno; e, enfim, os aliados
verdadeiros, que o guerreiro deve buscar em lugares isolados, quase inacessíveis. Lá, o
aliado se lhe manifesta adotando amiúde as aparências mais horríveis (iniciação); o
guerreiro só triunfará sobre ele num combate encarniçado, ao cabo do qual o aliado,
mantido no chão, deverá ceder-lhe se poder. (p. 117-118)
Pode-se dizer da mentalidade xamânica que toda ela está voltada para a descoberta
desse aliado de poder, presente em cada homem e agindo sem que ele o saiba. Quer o
chamemos de “espírito tutelar ou protetor”, como na Sibéria, “nagual” no México e na
Guatemala, “aliado totem”, na Austrália, em toda parte ele é considerado como o
companheiro de estrada daquele que age em plena consciência. Cada xamã possui pelo
menos um. (p. 120)
O símbolo não é uma explicação, mas uma sugestão, uma incitação a ascender, de um
golpe, a outro plano de apreensão do real, que não teme o equívoco. (p. 121-122)
Pelo aspecto de seus chifres, o cervo tem sido frequentemente assimilado à Árvore da
Vida. É ele, segundo Eliade, “uma imagem arcaica da renovação cíclica”. (p. 123)
Ensinando a Castañeda a arte de romper com seus hábitos, Dom Juan utiliza a metáfora
do caçador-caçado: um caçador experiente não apanha sua caça porque conhece sua
rotina, os lugares onde ela se aninha e se alimenta, mas sim porque ele mesmo não tem
hábitos. É imprevisível, e por isso jamais será uma presa para quem quer que seja. (p.
124)
“Eu posso caminhar nas águas profundas.” (Tchal-Kuiruk, cavalo de Er-Töshtük) (p.
125)
Nas narrativas cosmogônicas dos índios americanos, o coiote é responsáve por todos os
males do universo, pela morte e pelos invernos. Maléfico e astuto, ele é de certa forma o
irmão negativo da raposa prateada, grande heroína mitológica criadora. (p. 126)
Velho, velho negro, mestre da floresta, avô, o tio-avô... são vários os nomes familiares
para designar o urso, o ancestral do homem, símbolo lunar relacionado com a potência
do instinto e as trevas do inconsciente. (p. 127)
De igual modo, não-fazer não é nem introspecção nem transcendência, mas presença no
mundo. (p. 137)
É o “ponto crucial da feitiçaria”, abrindo ao xamã uma via de acesso aos três níveis
cósmicos. É desfazer o mundo. (p. 137)
Vimos que, para o homem de conhecimento, o corpo humano se apresentava como uma
rede de fibras, de camadas luminosas sobrepostas, formando um ovo. Analogamente,
cada espécie natural possui em torno de si um halo de luz particular: assim, a dos
rochedos, velhos e possantes, é mais esverdeada; a das plantas, branca; a dos seres
vivos, amarela; a do fogo e da fumaça, preta; a das sombras, brilhante etc. Enfim, os
lugares benéficos de poder aparecem amarelados, enquanto os locais a evitar têm um
verde intenso. (p. 139)
Toda iniciação xamânica tende a abolir as fronteiras que costumamos criar entre o
mundo consciente, controlável, e o mundo inconsciente, imprevisível e relativamente
pérfido. (p. 142)
O que ressalta desse princípio comum a todo xamanismo (não o de procurar suas mãos
em sonho, que é ideia juanista, mas o de desencadear o sonho e evoluir livremente) é a
possibilidade de utilizar o mundo onírico como uma porta aberta para a vida diurna, e
vice-versa. A arte de sonhar no sono é indissociável da de ver no estado de vigília, e
ambos se revestem de igual importância para o homem de conhecimento. (p. 145)
“Um duplo é o próprio feiticeiro revelado através de seu sonho”, diz Dom Juan,
sugerindo com isso que seu poder existe à margem do poder do sonhador. (p. 146)
As fontes etimológicas relativas à palavra tonal são mais ricas. O tonalpualli asteca
fixava, por um mecanismo bastante elaborado de números e signos – muitos dos quais
eram animais – o destino particular de cada indivíduo em função do dia do seu
nascimento. Era a “conta dos dias”, ou “conta dos destinos”, conforme o duplo sentido
da palavra tonalli, que podia significar igualmente calor do sol, verão, vitalidade. Os
períodos favoráveis ou nefastos eram previstos pelos “contadores de destino”
(tonalpanh-qui), que para isso consultavam o “livro dos destinos” (tonalamatl).
O tonal é tudo aquilo que podemos nomear. Não somente o que é manifesto – o mundo
do nosso ego, seu ambiente e cultura – porém, mais genericamente, tudo o que, de um
modo ou de outro, podemos conceber. Em suma, o tonal delimita tudo o que pertence à
primeira atenção, tudo o que nos é conhecido, incluindo a consciência que temos do
desconhecido. (p. 152-153)
A dança xamânica faz rebentar os vínculos da razão e do corpo. É uma dança de poder
que organiza o espaço e o ritma o tempo de modo que a alma, após o corpo, se ponha
em movimento.
Dizer da dança sagrada que ela induz a uma alteração do estado de consciência implica
uma evidência inexplicável. Quer se pense nos dervixes sufis, na dança de Xiva dos
iogues, no Tchöd tibetano, na ghost dance religion dos sioux e mesmo no delírio
dionisíaco das bacantes da Grécia Antiga, todas constituem a expressão de uma
sublimação. No pensamento arcaico, os movimentos rítmicos, o caminhar em círculo, a
dança de roda eram uma réplica da abóbada circular do céu e do ciclo das existências. A
dança assinalou a comunhão sagrada do homem com os demiurgos, a marcha para o
ponto onde se juntam céu e terra. (p. 155)