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R E S E N H A
A DOMINAÇÃO MASCULINA
O
DE PIERRE BOURDIEU
antemão polêmico, A dominação masculina. Rio de Janeiro: divisão dos sexos que parece
convocando o leitor Bertrand Brasil, 1999,60 p. estar na ordem das coisas, está
a mergulhar no uni- na realidade, incorporada ao
POR IRLYS ALENCAR FIRMO BARREIRA
verso das práticas cotidia- Doutora e Professora Titular do Departamento mundo social através do babitus
nas que sedimentam e de Ciências Sociais e Filosofia da UFC. dos agentes, funcionando como
atualizam a chamada "do- sistema de percepção, pensa-
minação masculina". As reflexões de Bourdieu mento e ação. A naturalidade de que se reveste
partem, inicialmente, da discussão sobre os prin- a dominação masculina evidencia-se, de fato, pela
cípios e valores subjacentes ao senso comum, dispensa de justificação. Impõe-se como neutra.
indutores por excelência de preconceitos e clas- Desde os primórdios a ordem masculina
sificações naturalizados da vida social. Indaga se inscreve nos corpos através de injunções e
o autor: por que a ordem do mundo, com suas rituais de exclusão das mulheres. Os ritos de
relações de dominação, perpetua-se tão facil- instituição do masculino efetivam-se através de
mente, tornando as condições de vida aceitá- operações de diferenciação: a separação do
veis? Essa é uma questão que percorre parte mundo materno. A virilização é a negação da
significativa de sua produção acadêmica, volta- parte feminina no masculino, sendo a circun-
da para entender a objetividade do mundo so- cisão o coroamento da construção do masculi-
cial, não só com base nas estruturas, mas na no. Existe assim, um trabalho de desfeminização
introjeção de valores e esquemas mentais de contrário ao trabalho exercido sobre as
pensamento historicamente construídos. Nessa mulheres, onde o ensino das boas maneiras é
direção, a dominação masculina é abordada carregado de uma ética, uma política, uma
como parte de um contexto mais abrangente da cosmologia. Encontramos em Bourdieu a
ordem social, que é o local de onde brotam assertiva já explicitada por Simone de Beauvoir
formas outras de dominação. de que a mulher não nasce mulher, torna-se
O enfoque sobre a dominação masculi- mulher. A construção da diferença entre o mas-
na, através de uma abordagem ampla que ultra- culino e o feminino está, portanto, circunscrita
passa as convencionais relações de gênero, a um trabalho de classificação, separação e,
constitui a dimensão original do livro que al- sobretudo, ocultação dos mecanismos básicos
meja contribuir para o conhecimento das estru- de diferenciação.
turas cognitivas e estruturas objetivas de uma Se a dominação masculina adequa-se à
sociedade "androcêntrica". ordem simbólica do mundo social, seus meca-
Outros referentes conceituais servem de nismos efetivos de atuação ocorrem através de
subsídio às argumentações construídas por uma submissão paradoxal, resultante do que o
Bourdieu para explicar a dominação masculi- autor denomina de violência simbólica, isto é,
na: o poder simbólico, que se exerce nas pala- a violência suave, insensível, invisível às suas
vras, gestos e expressões rituais e as estratégias próprias vítimas e exercida pelas vias mais sutis
de reprodução do mundo social, que se fundam de dominação. A perspectiva de desvelamento
no plano simbólico, mas se centralizam através e denúncia dessa questão partiria, nesse senti-
de diferentes instituições como o Estado, a fa- do, da devolução à doxa de seu caráter parado-
A elucidação dos pilares que instituem as estudos de gênero, caracterizados muitas vezes
formas de dominação masculina não levam por apelos emocionais ou ressentimentos. Al-
Bourdieu à constatação da impossibilidade de guns pontos polêmicos do argumento de
reversão desse quadro. Se a complexidade da Bourdieu podem ser discutidos.
questão remonta à busca de dominação nos A percepção do lugar de dominação como
espaços menos visíveis, emerge a tarefa de re- estando na esfera mais ampla da ordem social
construir a "história do trabalho histórico de des- objetiva e subjetiva, se, por um lado, aprofunda a
historização", ou seja, a própria gênese das explicação sobre a sociedade androcêntrica, por
estruturas objetivas e subjetivas da dominação outro, remete ao risco do ciclo permanente da
masculina. Nesse campo de investimento, fato- reprodução de valores. Um olhar sobre as práticas
res de mudança estão em curso, evidenciando relacionais entre os sexos poderia apontar confli-
transformações em diferentes esferas. Trata-se tos ou paradoxos existentes entre submissão e
do fato de que a dominação masculina já se ruptura. Ressalta-se, assim, a necessidade de se
coloca como objeto público de discussão, des- observar a dominação masculina menos como urna
tacando-se também o aumento objetivo do acesso postulação teórica a priori, do que como hipótese
de mulheres à instrução, os novos modelos de a ser repensada no plano concreto de diferentes
sexualidade encontrados nos homossexuais, o contextos. A forte percepção etnográfica de
aumento de mulheres em postos intelectuais e Bourdieu certamente concordará com a idéia de
funções caracterizadas pela venda de serviços que as formas de dominação são contraditórias e
simbólicos (jornalismo, televisão, cinema). variáveis. Os supostos gerais são, assim, guias de
No curso de tais mudanças o livro de reflexão e não afirmação de um invariante
Bourdieu representa uma contribuição relevan- comportamental. Aliás, uma das mensagens fun-
te ao desvendamento das formas cotidianas de damentais do livro é a indicação da importãncia
dominação. Sua escrita a partir de um ponto de de se refletir sobre os processos históricos que
vista feminino quebra a tradição corporativa dos sedimentam as diferentes formas de dominação.