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A DESAFIADORA HERANÇA DO SÉCULO XX

Por Ana Paula Fernandes

Revista Rumos - jun/99

Disponibilizado na Leitura Recomendada em: 04/ago/99

Longo na visão do sócio-economista Giovanni Arrighi, e breve na ótica do historiador Eric Hobsbawn, o século
XX está no fim, deixando uma incomparável herança de conquistas técnico-científicas capazes de tornar a vida
melhor do que nunca. Só que esse progresso ficou restrito a pequenos espaços e a poucas mãos. O desafio do novo
milênio será o de mudar esse quadro de profunda injustiça, usando as elevadas conquistas do conhecimento para
produzir maior felicidade individual e coletiva, deixando para trás a fome, a violência, o analfabetismo, a
mortalidade infantil, os desequilíbrios ambientais e muitas outras misérias que, paradoxalmente, povoaram o
século do progresso.

O físico britânico Lord Kelvin (1824- 1907) - que, entre outras coisas, contribuiu para o estabelecimento de uma
escala teórica das temperaturas - afirmou, certa vez, ser impossível a construção de uma máquina voadora mais
pesada do que o ar. Bem próximo dele, no tempo e no espaço, um brasileiro, Alberto Santos Dumont, provou que
ele estava errado. Em 1906, ele voou pela primeira vez, em Paris. O cientista inglês errou porque viveu a maior da
sua vida num século, o XIX, de limitado progresso técnico e de precárias comunicações. Nada demais que, embora
sendo um cientista, não pudesse antever algo tão revolucionário como o avião, que mudou o conceito de distância,
no século XX.

Nos tempos atuais - quando o desenvolvimento científico e tecnológico chegou a níveis impensáveis para um
homem do século XIX, a não ser no delírio da ficção científica -, poucos estudiosos arriscariam afirmações tão
categóricas quanto a de Lord Kelvin, até mesmo dentro das áreas de conhecimento em que estejam envolvidos.
Não há mais limites; tudo é possível. A história do século XX está marcada por um exercício constante, e em
tempo cada vez mais recorde, de rompimento de antigos paradigmas, o que intimida qualquer um que pretenda
fechar questões sobre o futuro.

Vale lembrar que, entre o fim do século passado e o início deste, Einstein começou a pensar a Teoria da
Relatividade, que balançou os alicerces da física newtoniana - até então tida como a mais firme, coerente e
metodologicamente correta das ciências. Foi uma revolução no pensamento científico. Percebeu-se, com a
descoberta e com outras posteriores, que não existe verdade absoluta em ciência, como até então se acreditava, e,
portanto, todos os conceitos e teorias são limitados e aproximados. Isso é uma marca do século XX.

Civilização e solidão - De fato, as aquisições trazidas pelo progresso técnico-científico mudaram o panorama da
vida. O homem aprendeu a voar, a transportar as riquezas rapidamente, a manipular a genética animal e vegetal, a
curar doenças, a comunicar-se a longas distâncias. O século XX é um tempo de glória da ciência e da técnica, que
trouxeram tantas possibilidades, que se chegou a imaginar que o homem conseguiria resolver todos os seus
problemas. Apesar disso, este século também foi marcado pela destruição produzida sobretudo por duas grandes
guerras, pelo perigo atômico, pela guerra fria, por conflitos étnicos e religiosos, por desequilíbrios econômicos e
sociais em várias partes do mundo, e também por um crescente individualismo.
Segundo o cientista social René Dreifuss, professor da Coppe/UFRJ, este século é palco de uma série de
genialidades, mas também de muitos horrores. Apesar dos inegáveis avanços, "O homem ainda não conseguiu
responder questões elementares, uma das maiores delas como ser feliz no curto tempo de vida que passa na Terra".
Dreifuss é taxativo: "É um século de paradoxos". A pouco mais de um ano para desembarcar num novo milênio, o
desafio é tentar destrinçar os principais desses paradoxos: de que forma o homem vai conseguir usar o alto
desenvolvimento científico e tecnológico disponível para encontrar a felicidade individual e coletiva.

Um novo mundo - A odisséia humana no século XX transformou a vida, o mundo e o conhecimento que deles se
tinha. Os especialistas afirmam que, em termos de avanços científicos e tecnológicos, caminhamos mais nos
últimos cem anos - especialmente na sua segunda metade - do que em toda a história anterior da humanidade.
Graças ao progresso nas comunicações e nos transportes, por exemplo, pela primeira vez o homem teve noção da
totalidade do planeta que habita, das diversas culturas, religiões e etnias que encerra. Para Dênis de Moraes,
professor do Departamento de Comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autor do
livro O planeta mídia: tendências da comunicação na era global, "esse nível de integração está reconfigurando os
processos culturais de maneira geral". Moraes acha que "as pessoas têm cada vez maior capacidade de estabelecer
intercâmbios".

Dentro dos laboratórios e centros de pesquisa, foram travadas árduas batalhas nas quais, muitas vezes,
experiências de saberes diversos se imbricaram para dar origem às invenções e descobertas. Não é possível
enumerar todas, porque, além de muitas, não se sucederam de forma contínua dentro de um processo único. "Os
avanços são produto de uma série enorme de conhecimentos acumulados que, de repente, dão uma aplicação
espetacular", diz o presidente da Academia Brasileira de Ciências, o médico Eduardo Moacyr Krieger. Algumas
descobertas e invenções merecem, no entanto, ser consideradas.

Nas ciências médicas e biológicas, o avanço pode ser medido pelo aumento da expectativa de vida, que passou de
48 anos, em 1896, para 120 anos, no caso de quem nasce hoje. Em 1928, a descoberta da penicilina, droga
precursora dos antibióticos modernos, foi das mais importantes contribuições no campo da Medicina. Os estudos
sobre rejeição e imunologia abriram caminho para os transplantes de órgãos. A descoberta do DNA, em 1953 -
marco na história da Biologia e da Medicina -, revolucionou a genética, nascida no século passado com o botânico
Mendel. Experiências transgênicas, tanto no âmbito animal quanto vegetal, manipulação de genes, o nascimento
dos primeiros bebês de proveta, o avanço na identificação de doenças hereditárias e, finalmente, a clonagem - que
causou um misto de espanto e temor no mundo inteiro, ao ser anunciada, em fevereiro de 1997, são algumas das
conseqüências do progresso da genética. Segundo os especialistas, já estamos perto da cura para o câncer e, ainda
que não se possa falar o mesmo sobre a AIDS, o coquetel de remédios disponível, hoje, pode diminuir em até
99% a quantidade de vírus no organismo.

Algumas das transformações dos avanços mais impactantes foram possíveis por meio das descobertas da Física. A
invenção do transistor, na primeira metade do século, possibilitou enorme avanço, inclusive no âmbito das
comunicações. A criação substituiu as antigas válvulas eletrônicas - que ocupavam grandes espaços e queimavam
com facilidade - no funcionamento de Tvs, no controle de aparelhos eletrônicos e na execução de cálculos e
operações lógicas de computadores. A descoberta da radioatividade também foi um marco.

Em 1948, começou a funcionar o Mark I, considerado o primeiro dos computadores modernos, por operar por
meio de um programa, e, em 1956, surgia o primeiro computador a utilizar transistores. Com oschips, circuitos
integrados contendo milhões de transistores em menos de uma polegada quadrada, muitos sistemas puderam ser
miniaturados. As antes onerosas e enormes máquinas de armazenar e processar informações converteram-se em
computadores pessoais. E hoje é possível, sem sair de casa, conectar-se com qualquer pessoa no outro extremo do
planeta pela Internet.
A constante modernização dos processos informáticos e eletrônicos permite, por exemplo, que se façam
investimentos nos mercados financeiros mundiais, com o simples apertar de botões. Enfim, a Terra é hoje uma
"aldeia global", termo cunhado na década de 60 pelo filósofo da comunicação, Marshall McLuhan. O professor
Francisco Falcon, coordenador da pós-graduação em História Social da Cultura da PUC-Rio, lembra que essa
rapidez dos processos de comunicação acelerou brutalmente o ritmo de vida das pessoas: "Antes, as coisas
aconteciam e delas se tomava conhecimento em doses homeopáticas, sendo que de alguns eventos nem se tinham
notícia".

O homem, neste século, não se limitou a expandir os horizontes apenas dentro da Terra. Era pouco para ele.
Montado no fantástico arsenal que lhe propiciou a ciência e tecnologia, começou a sonhar com infinitos espaços
do universo e reeditando, numa dimensão muito maior e mais emocionante, o que fizeram os navegadores, no
século XVI, partiu para a conquista do espaço, um dos capítulos mais emocionantes da história deste século.
Quando o homem chegou à lua, em 1969, não fosse a possibilidade de ver com os próprios olhos, por meio dos
aparelhos de TV conectados via satélite, muitas pessoas talvez não tivessem acreditado, tal era o inusitado do
empreendimento.

Os paradoxos - Este foi, também, um século de significativas mudanças no âmbito social. Entre elas, destaca-se a
crescente e irreversível urbanização do mundo - somente os continentes africanos e asiáticos têm população rural
ainda superior à urbana - e o aumento do nível educacional da população mundial. Com todas essas
transformações, o nível médio de vida da população mundial, de fato, aumentou. Os progressos atingiram até
mesmo o mundo subdesenvolvido, onde, nos últimos 30 anos, o analfabetismo de adultos foi reduzido em cerca de
50%; mais de três quartos da população pode sobreviver aos 40 anos; e a mortalidade infantil caiu por volta de três
quintos, segundo o Relatório do Desenvolvimento Humano 1997 (RDH97), do Programa das Nações Unidas para
o Desenvolvimento (Pnud).

São bons sinais, sem dúvida, mas outras estatísticas mostram que, apesar da melhora, subsistem mazelas
incompatíveis com o nível de progresso alcançado pela humanidade. Krieger explica que, não obstante todos os
avanços atingidos, por exemplo, pela medicina neste século, ainda acontecem mortes por diarréia ou fome. "É um
paradoxo, porque, cientificamente, nós estamos aparelhados para não deixar isso acontecer." Em 1997, a diarréia
matou 2,5 milhões de pessoas, mais do que os 2,3 milhões vitimados pela AIDS no mesmo ano, segundo The
World Health Report 1998 (WHR-98), publicado pela Organização Mundial de Saúde (OMS). O relatório The
State of Food and Agriculture 1998, da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO),
mostra que o número de desnutridos crônicos no mundo subdesenvolvido subiu de 822 milhões no período 1990-
92 para 828 milhões em 1994-96.

E as contradições não param por aí. Numa população mundial de 5,9 bilhões de habitantes, mais de 4 bilhões
vivem nos países em desenvolvimento, dos quais 2,6 bilhões não têm acesso a saneamento básico, 2 bilhões vivem
sem eletricidade, quase 1,5 bilhão não dispõem de água potável, 1,1 bilhão não contam com moradia adequada e
880 milhões não usufruem dos serviços básicos de saúde, segundo o Relatório do Desenvolvimento Humano 1998
(RDH-98), do Pnud. E o que é inacreditável, embora seja pura verdade: 1,3 bilhão dos habitantes do planeta ainda
vivem com menos de US$ 2 por dia.

O documento do Pnud aponta que, no século XX, o consumo cresceu de uma forma sem precedentes na sua escala
e diversidade, porém mal distribuído, acumulando carências e acentuando as desigualdades. O aumento do
consumo de energia, nos últimos cinqüenta anos, quintuplicou a queima de combustíveis fósseis desde 1950; o
consumo de água potável, desde 1960, quase duplicou; a pesca quadruplicou; e o consumo de madeira, como
combustível industrial ou familiar, é atualmente 40% mais elevado do que há 25 anos.

Mas se esses números são sinais de um explosivo crescimento demográfico, do aumento do consumo de energia e
de uma definitiva urbanização - em 1955, 32% da população mundial viviam em cidades, em 1995, o percentual
chegou a 45%, e deve superar os 59% em 2025, conforme o WHR-98 -, e também indicam a necessidade de
pensar na sustentabilidade desse desenvolvimento.

As emissões de dióxido de carbono (C02), por exemplo, quadruplicaram nos últimos cinqüenta anos, acelerando o
ritmo de aquecimento do planeta; a disponibilidade de água no mundo caiu de 17 mil metros cúbicos Per capita,
em 1950, para 7 mil atualmente, e alguns países já sofrem com a escassez; as áreas de floresta caíram de 11,4 km
por mil habitantes, em 1970, para 7,3; as espécies selvagens estão desaparecendo de 50 a 100 vezes mais rápido do
que aconteceria num processo de extinção natural, ameaçando abrir grandes brechas no tecido vivo.

Um dos saldos desses desequilíbrios: cerca de 2,7 milhões de pessoas morrem, a cada ano, devido à poluição do
ar, conforme o RDH-98. Definitivamente, o arsenal de benesses trazido pela ciência e a técnica não puderam
extinguir, como se chegou a pensar no início do século, todos os problemas humanos. "É preciso entender que o
progresso científico-tecnológico não é uma categoria intrinsecamente boa, ou má: depende do uso que fazemos
dele", analisa Falcon.

A extensão da guerra - O historiador Eric Hobsbawn mostrou, no livro A Era dos Extremos, que este "foi o
século mais assassino de que temos registro, tanto na escala, freqüência e extensão da guerra que o preencheu,
como também pelo volume único de catástrofes humanas que produziu, desde as maiores fomes da história até o
genocídio sistemático". Certamente, os conflitos e as guerras não foram particularidade deste século, mas nele
tomaram proporções nunca antes vistas. Segundo Hobsbawn, os civis viram alvo estratégico certo; toda a
sociedade passa a estar envolvida; o investimento maciço em armamentos, usados em grande escala, exige desvio
das economias para a sua produção; e a vida dos países envolvidos nas guerras, a partir de então, é absolutamente
transformada.

Pela primeira vez, tivemos guerras mundiais: as duas grandes tiveram saldo de cerca de 60 milhões de mortos. A
explosão das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, no fim da II Guerra Mundial, inaugurou a era da ameaça
nuclear. Aliás, em matéria de confronto, não parece ter havido na história algo que se assemelhe à II Guerra. Além
do alcance global e do número de vítimas, ela tem uma peculiaridade que a faz singular, segundo René Dreifuss:
"Pela primeira vez, seres são condenados a não ter o direito de existir, no caso os judeus", explica. "Em outras
circunstâncias, era possível abjurar a própria crença, mudar de partido, ceder o território reivindicado. Nesta
guerra, os judeus tinham que ser aniquilados de qualquer maneira". Estima-se que cerca de cinco milhões deles
tenham morrido nesse período.

Dreifuss considera que "nunca se matou de forma tão metódica, organizada, brutal, anti-humana e anti-civilizatória
como nos últimos cem anos, com a ajuda dos mais modernos recursos de destruição em massa ou individual".
Num tempo marcado pela revolução tecnológica, o apertar de botões ou virar alavancas transformou as vítimas, de
pessoas a serem queimadas ou evisceradas, em simples alvos. Com muito mais vigor do que nos confrontos do
início do século, o conflito na região do Kosovo, atualmente, é um exemplo do que a técnica fez pela guerra. Nada
de tanques, tropas a pé e outros recursos clássicos. Os instrumentos dos chamados "ataques cirúrgicos" são mísseis
de US$ 1 milhão, disparados a centenas de quilômetros de distância, e bombas guiadas a laser. Enquanto nas
guerras na virada do século o percentual de civis mortos era de 5%, esse número sobe, nos anos 90, para 90%,
conforme o RDH-98. Neste período, os conflitos armados mataram 2 milhões de crianças, incapacitaram entre 4 e
5 milhões, deixaram 12 milhões sem casa e mais de 1 milhão órfãos ou separados dos pais. Cerca de 2 mil pessoas
são mortas ou mutiladas a cada mês por explosões de minas.

Atualmente, há uma tendência de erradicação dos conflitos internacionais. Com o fim da guerra fria, as despesas
militares diminuíram em um terço, entre 1987 e 1996, nos países da Organização do Tratado Atlântico Norte
(OTAN). Mas aumentaram 13% na Ásia do Sul e 11% em alguns países do Oriente Médio (Irã, Iraque, Israel e
Emirados Árabes). Nos maiores países do Sudeste asiático - Indonésia, Malásia, Filipinas e Tailândia - cresceram
em 35% desde 1987. Há, hoje, preocupação, manifesta inclusive pela ONU, com os conflitos dentro dos países,
por razões étnicas, religiosas, ou lutas de grupos rivais pelo poder.

O ingrediente intolerância - A razão do recrudescimento de ódios étnicos e culturais neste fim de século é ainda
uma questão sem resposta para o historiador Falcon. "Deve haver explicações históricas, sociológicas,
econômicas, políticas e até psicológicas, mas eu não sei explicar por que retroagimos a atitudes e comportamentos
que pareciam definitivamente esquecidos", lamenta. E completa: "Mas é claro que também há o ódio vinculado ao
fundamentalismo religioso, que pode representar a tentativa de um povo de afirmar sua Cultura, reagindo a algum
processo de exploração." Falcon explica que, neste caso, a religião serve como elemento de congregação do povo
que acredita estar sofrendo uma ameaça externa contra a qual precisa lutar.

Muitas vezes, no entanto, a intolerância é poderoso ingrediente desses conflitos. Mesmo tendo o direito à
identidade cultural e à diferença sido criados neste século, Dreifuss destaca que a tolerância ainda é um desafio:
"O reconhecimento da diversidade, a aceitação do diferente não é uma realidade constante". O cientista social
avalia que as disputas étnicas que vêm aflorando neste fim de século estão também relacionadas às configurações
dos Estados nacionais modernos, que enquadram, dentro de formatos artificiais, povos de diferentes identidades,
negando a parte deles o direito de representatividade, manifestação e participação dentro do próprio território.

Capitalismo e progresso - Talvez, em nenhum outro tempo, a humanidade tenha tido tantas possibilidades de
realização como neste século. Mas estas estão concentradas em algumas regiões do globo terrestre, deixando
considerável contingente à margem das mais significativas vitórias do progresso. Não por acaso, os países de
Primeiro Mundo são os maiores beneficiários, em detrimento daqueles em desenvolvimento, ainda que o impacto
das mudanças e inovações seja em âmbito planetário. Isso, no entanto, não impede que haja, nos primeiros,
pessoas que não têm condições de usufruir das novas possibilidades, nem que, nos últimos, existam "ilhas de
satisfação", como conceitua Dreifuss.

Enquanto nos países em desenvolvimento, 43% dos 40 milhões de mortos, em 1997, foram vítimas de doenças
infecciosas e parasitárias - típicas da pobreza -, nos países desenvolvidos, esse percentual foi de 1% dos 12
milhões de mortos no mesmo ano, segundo a OMS. As taxas de alfabetização de adultos, em 1995, era de 70% nos
países em desenvolvimento, comparadas com 100% nos desenvolvidos, conforme o RDH-98. Mas esses
percentuais, que são médias de resultados obtidos no conjunto dos países, escondem números ainda mais
dramáticos. Entre os subdesenvolvidos, há os que são mais subdesenvolvidos ainda. E os países africanos são
quase sempre vitoriosos nesse quesito, exibindo estatísticas que não inspiram nenhuma inveja. Em Níger, África
Subsaariana, a taxa de alfabetização, em 1995, era 14%.

A esperança de vida média ao nascer nos países subdesenvolvidos, há quatro anos, era de 62 anos; mas em
Ruanda, também na África Subsaariana, só chegava a 28 anos - bem inferior à expectativa de vida média mundial,
no início do século, e quase a terça parte da do Japão em 1995, de 79,9 anos. "Se nós vivemos num tempo marcado
por uma hiperevolução tecnológica, era de se esperar que ela trouxesse algumas soluções e desfizesse uma série de
nós que afetam a sociedade", avalia Dênis de Moraes. "Mas - continua o comunicador - ao mesmo tempo que
modifica, transforma, produz benefícios, a expansão tecnológica se dá sob o signo da concentração, que só reforça
a condição hegemônica das áreas do planeta onde há mais empregos, com maior poder aquisitivo e melhor
distribuição de renda".

Pode parecer contraditório que, num tempo em que se superaram tantos limites, ainda se morra de fome, mas para
o historiador Falcon, esse paradoxo é apenas aparente: "Não há condições hoje, dentro do sistema capitalista em
que vivemos, de dar a todos os habitantes do planeta o mesmo padrão de vida dos americanos. Se todos os países
forem consumir a energia que eles consomem, a Terra desaparece", diz. Segundo o professor, "a margem de
excluídos é necessidade do próprio sistema capitalista".
O economista Marco Aurélio Ferreira Vianna concorda que a forma como se configura, atualmente, o sistema
econômico mundial favorece a exclusão. "E a globalização tem sido um instrumento de aprofundamento do fosso
que separa os mais ricos e os mais pobres neste fim de século", diz Vianna. "Tudo isso é conseqüência de um
capitalismo monetarista, cujo único objetivo é o dinheiro", sentencia. Falcon explica que, com o neoliberalismo, se
retoma a idéia de que, organizando a economia, os outros âmbitos da vida social se arrumarão por si, ressalvando,
porém, que já se pensou assim no passado, mas se percebeu que o Estado capitalista era incapaz de resolver os
problemas criados por suas próprias contradições. Na visão do historiador, o neoliberalismo é um retrocesso: "Isso é
retomar um modelo do fim do século XVII e dos séculos XVIII e XIX, que se chamava, então, capitalismo
selvagem."

O RDH-97 alerta que o nível de marginalização dos países e das populações pobres vai aumentar, caso a
globalização não seja cuidadosamente administrada. As perdas anuais dos países em desenvolvimento devido ao
acesso desigual ao comércio, trabalho e finanças, foram estimadas em US$ 500 bilhões, dez vezes mais do que
recebem de ajuda externa. E o trabalho ainda mostra que, apesar de ter ajudado a reduzir a pobreza em algumas
das suas maiores e mais fortes economias, como a indiana, o mundo em desenvolvimento assistiu a um aumento
do hiato entre 'vencedores' e 'perdedores'. O rendimento da parcela dos 20% mais pobres da população do planeta
se reduziu de 2,3% do rendimento mundial em 1960, para 1,1%, atualmente, e continua a decrescer, segundo
mostra o documento.

O animal e o cultural - Neste século, ficou ainda mais evidente, se já não o era, a capacidade do homem para
criar, descobrir e superar limites. No entanto, ele não conseguiu ainda estabelecer uma relação de harmonia com
seu semelhante e com o planeta que habita, de modo a extinguir as mazelas que atingem a humanidade e as
ameaças que pairam sobre a sustentabilidade da vida na Terra. Vale lembrar que essa incapacidade não é privilégio
dos tempos atuais. Todas as épocas se mantêm no nível do paradoxo, ainda que cada uma produza os seus
próprios, explica a filósofa Estrela Bohadana, professora no curso de mestrado em Educação e Desenvolvimento
Humano da Universidade Estácio de Sá.

Segundo Estrela, "o homem traz em si, como condição ontológica, a dicotomia entre o seu lado animal e o
cultural. Então, a tensão entre o que nos animaliza e o que nos humaniza é geradora dos diferentes paradoxos ao
longo da história da humanidade." A administração da tensão entre estas duas facetas humanas, explica ela, vai se
dar por meio de dispositivos sociais. O professor Dreifuss concorda: "O grande esforço civilizatório dos mais
diversos povos foi justamente estabelecer algum tipo de império de lei, adotando um referencial de
comportamento." Para o religioso Dom Estevão Bittencourt, filósofo e teólogo, "antigamente, a brutalidade era
mais explícita e imediata, e, hoje, é dissimulada." Neste século, a violência toma proporções vastas porque os
meios são muito mais poderosos: há muito mais requinte na busca de satisfações à custa do outro.

Corrida de ratazanas - "Vivemos numa sociedade anti-humanista", diagnostica a artista plástica e educadora
Fayga Ostrower. Num mundo dominado pela ótica de mercado, "o homem, hoje, é visto apenas enquanto
consumidor". No mundo atual, as pessoas não se questionam sobre o sentido da vida ou o que é, de fato, a
felicidade. Para a artista, há atualmente uma superexposição da faceta animal que faz parte do homem, o que passa
a mensagem subliminar de que a agressividade, a competitividade, a qualquer custo, são fenômenos da natureza.
"De fato, são, em certa medida, mas há também o outro lado, esquecido, que nos torna humanos: valores como a
dignidade, a solidariedade, a fraternidade, o perdão, a coragem e o amor." Apesar de, neste século, termos
alcançado progressos materiais incríveis, não foi um tempo de humanismo, considera Fayga. "Essa sociedade
inventa remédios para prolongar a vida, mas, na verdade, aos 40 anos, as pessoas já estão sendo descartadas",
lamenta.

Dreifuss constrói uma metáfora sobre a vida na sociedade contemporânea: "Somos convidados a ser simpáticos
coelhinhos, no meio de outros bem alimentados, para que mordamos a orelha alheia e, ao mesmo tempo, temos
que viver como que numa corrida de ratazanas, na qual a necessidade de chegar primeiro faz pisotearmos uns aos
outros, comermos um a cauda do outro, e até passar por cima do concorrente." O cientista social explica que "não
temos apenas que trabalhar, correr e ganhar sempre mais, mas também precisamos bloquear o acesso do outro, que
representa uma ameaça".

Por trás dos problemas que afligem a humanidade neste fim de século, conforme Dreifuss, está a questão ética: "O
nosso cotidiano está construído sobre premissas que já estão furadas. Por isso tanto desequilíbrio". Para o
professor, já é tempo de pensar em alternativas para reduzir o arbítrio de uns seres humanos em relação a outros:
"É preciso estabelecer uma nova ética, repensar as condições de vida, de produção e de localização do homem
neste planeta, e não somente uma localização física, mas em termos de sentido de vida. Este talvez seja o grande
desafio agora: criar uma nova agenda de vida na Terra".

Para Dom Estevão, há uma inversão de valores que se expressa à medida que o ser humano é colocado a serviço
do progresso, e não o contrário. O teólogo acredita que esse processo fica bastante visível no uso que se tem feito
da ciência. "A ameaça de clonagem humana ou mesmo a produção de embriões em dezenas, para se aproveitar
apenas um ou dois, são violências, apesar de não parecer", considera. De fato, o rumo dado à ciência tem sido
objeto de preocupação, expressa inclusive em algumas obras de ficção científica da segunda metade do século,
como o filme Blade Runner, de Ridley Scott, ou no livroAdmirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. Em ambos, o
tema central é a clonagem, usada como técnica de criação de seres voltados para tarefas predeterminadas,
utilizados como mão-de-obra escrava. Uma visão nada otimista da condição humana e de suas perspectivas.

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