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REVISTA IHU ON-LINE

Nº 503 | Ano XVII | 24/4/2017

A “uberização” e 1

as encruzilhadas
do mundo
do trabalho

Entrevistados
Andrea Fumagalli
Leia também Jamie Woodcock
■ Moysés Pinto Neto Ludmila Costhek Abílio
■ Frei Carlos Josaphat Ricardo Antunes
■ Kathrin Rosenfield José Dari Krein
■ Guido Liguori Josué Pereira da Silva
EDIÇÃO 503
EDITORIAL

A ‘uberização’ e as encruzilhadas do
mundo do trabalho

A
Revolução 4.0, a internet das coisas, a necessária. “A renda básica universal, enquanto
inteligência artificial e a impressão 3D política social, pode beneficiar principalmente a
já impactam e cada vez mais abalarão população em condições de pobreza, mas pode
os fundamentos da organização do mundo do beneficiar também os trabalhadores que apa-
trabalho na contemporaneidade. Esta grande rentemente não precisam de uma renda desse
mutação significará um avanço civilizatório ou tipo”, pondera.
radicalizará a barbárie? Um exemplo dramático da barbárie brasileira é a
A revista IHU On-Line, por ocasião do 1º de situação de marginalização, exclusão e morte a que
Maio, Dia dos Trabalhadores e das Tra- são submetidos os povos indígenas. Não por nada,
balhadoras, debate o tema no contexto das Martírio é o título do importante e imprescindível
discussões que o Instituto Humanitas Uni- documentário de Vincent Carelli que precisa ser
sinos – IHU tem promovido constantemente visto e ampla e exaustivamente debatido. Fernan-
na sua página eletrônica, nas suas publicações, do Del Corona, crítico de cinema, comenta o fil-
nos seus eventos, no curso EAD que iniciará me nesta edição.
proximamente e no ObservaSinos. O debate as-
Por ocasião dos 50 anos da encíclica Populorum
sume maior urgência e densidade no momento
Progressio, de Paulo VI, de amplo impacto, espe-
em que o Brasil vive um momento de regressão
cialmente na América Latina, republicamos a en-
civilizatória claramente delineada na proposta
trevista com Carlos Josaphat, frade dominicano,
governamental da reforma previdenciária e da
sob o sugestivo título Encíclica da Ressurreição.
reforma trabalhista, tendo como palavras de or-
2 dem flexibilização, precarização e terceirização, Também podem ser conferidas as entrevistas
que objetivam devastar o campo dos direitos com Moysés Pinto Neto, mestre em Direito e
dos trabalhadores e das trabalhadoras. doutor em Filosofia, propondo transformar “os
muros do condomínio esquerdista em pontes de
Contribuem com o debate Andrea Fuma-
diálogo pragmático com a maioria inconformada
galli, economista, professor e pesquisador da
com o mundo como está”, com Kathrin Rosen-
Universidade de Pavia, na Itália, que explica
field, professora e pesquisadora na Universida-
como a vida, em sua totalidade, transformou-
de Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, que
-se em uma usina de produção ininterrupta de
descreve a importância e o legado da literatura
mais-valia. Jamie Woodcock, doutor em So-
de Guimarães Rosa, com Guido Liguori, autor
ciologia pela Universidade de Londres, aborda
do recém publicado Dicionário Gramsciano, e o
as possibilidades de se pensar um tipo de fle-
artigo A guerra e o uso do poder militar no sub-
xibilização que beneficie os trabalhadores. Lu-
complexo de segurança do Levante no Pós-11 de
dmila Costhek Abílio, doutora em Ciências
setembro, de Carla A. R. Holand Mello.
Sociais pela Unicamp e pesquisadora do Centro
de Estudos Sindicais e de Economia do Traba- A todas e a todos, uma boa leitura e uma exce-
lho – Cesit, analisa as relações entre trabalho, lente semana.
tecnologia e precarização. O professor Ricar-
do Antunes, doutor em Ciências Sociais pela
Universidade de São Paulo – USP, analisa como
o trabalho se subordinou ao capital financei-
ro, criando uma morfologia totalmente nova e
marcada pelo retrocesso. José Dari Krein,
doutor em Economia Social e do Trabalho pela
Unicamp, onde atualmente é professor no Cesit,
analisa uma das principais questões em jogo no
Brasil atual: as terceirizações.
Josué Pereira da Silva, doutor em Socio-
logia pela New School for Social Research, de
Nova York, e professor na Unicamp, discute Foto: Jenn Calder
como as transformações do mundo do trabalho Flickr Creative Commons
tornaram a renda básica universal uma política

24 DE ABRIL | 2017
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Sumário
4 ■ Temas em destaque
6 ■ Agenda
8 ■ Tema de Capa | Andrea Fumagalli: A nova relação capital-trabalho ainda mais submersa
na subjetividade
16 ■ Tema de Capa | Jamie Woodcock: Contra o eufemismo reducionista, a luta por uma
flexibilização justa
20 ■ Tema de Capa | Ludmila Costhek Abílio: Uberização traz ao debate a relação entre preca-
rização do trabalho e tecnologia
28 ■ Tema de Capa | Ricardo Antunes: O desejo de retorno do mundo do trabalho à escravidão
33 ■ Tema de Capa | José Dari Krein: A predominância do trabalho como labor, não como
opus, na era da terceirização
40 ■ Tema de Capa | Josué Pereira da Silva: Uma renda básica como política social para
melhorar a vida de todos
46 ■ Moysés Pinto Neto: Muros do condomínio esquerdista transformados em pontes de
diálogo pragmático
54 ■ Frei Carlos Josaphat: Populorum progressio, a Encíclica da Ressurreição
59 ■ Cinema | Fernando del Corona: Um martírio brasileiro
62 ■ Kathrin Rosenfield: Leitura de Guimarães Rosa ensina a viver sentindo e dando sentido
à vida 3
70 ■ Guido Liguori: Uma volta a Gramsci para pensar na política de nosso tempo
73 ■ Crítica Internacional | Carla A. R. Holand Mello: A guerra e o uso do poder militar no
subcomplexo de segurança do Levante no Pós-11 de setembro
76 ■ Publicações | Vinícius Nicastro Honesko: Reflexões sobre os espaços urbanos
contemporâneos: Quais as nossas cidades?
77 ■ Publicações | Amos Yong: Renovação do espaço público: pentecostalismo e missão em
perspectiva política
79 ■ Outras edições

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conteúdo da IHU On-Line é copyleft. Editoração Gerente Administrativo: Jacinto Schneider
Gustavo Guedes Weber (jacintos@unisinos.br)

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TEMAS EM DESTAQUE

Entrevistas completas em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias

Política brasileira está na contramão


do antropoceno
“Recentemente, no governo Dilma, a implantação de um modelo de de-
senvolvimento baseado na expansão do mercado interno e no consumo de
massas, demonstrou a opção pelo modelo hegemônico adotado nos países
mais avançados, com todos os seus problemas ambientais e sociais”.
Liz-Rejane Issberner, economista e pesquisadora do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência
e Tecnologia – IBICT

A ascensão do pentecostalismo: da religião


à política
“O pentecostalismo cresce ao mesmo tempo na base social e em espaços
de poder, como mídia e cargos eletivos nacionais, estaduais e municipais.
Sendo assim, ganham muita visibilidade, embora, em termos percentuais,
sejam minoritários em relação aos católicos”.
Christina Vital Cunha, professora do Programa de Pós-graduação em Cultura e Territorialidades da
Universidade Federal Fluminense.

4
Valores da periferia estão mais próximos do
anarquismo do que do liberalismo
“Não está muito claro que os valores identificados se associam, necessa-
riamente, ao liberalismo. Eles podem, inclusive, ser uma nova forma de
manifestação do anarquismo, que foi importante, por exemplo, no Brasil,
no final do século XIX e no início do século XX”.
Marcio Pochmann, economista e doutor em Ciência Econômica.

A perda de capilaridade social e a desafeição


dos católicos. Desafios da Igreja no Brasil em
tempos de Papa Francisco
“Nos dois primeiros anos do pontificado de Francisco, a maior parte da
Igreja (pelo menos no Brasil) apenas fez de conta que estava em sintonia
com ele, porque sua linha pastoral continuou a mesma de outros tempos”.
Pedro Ribeiro de Oliveira, doutor em Sociologia.

A esquerda pós-PT: “Chega uma hora em


que a realidade precisa vencer o medo”.
“A esquerda ‘pós-PT’, num sentido fundamental, não expressa um desejo
ou projeto – apenas descreve um fato futuro que tende a se realizar. A
questão, claro, é que forma isto terá e até onde será capaz de chegar”.
Rodrigo Guimarães Nunes, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro -
PUC-Rio.

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Textos na íntegra em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias

Quando a esquerda é o O Ocidente, já sem Reforma trabalhista: a


problema religião, gera bombas formiga virou elefante

“A esquerda realmente exis- Ainda há religião? A irrele- A reforma trabalhista está


tente se converteu em um vância social da fé nos países na agenda do Congresso Na-
obstáculo para que as maio- com os mais altos padrões de cional a partir de proposta
rias se tornem responsáveis vida é também uma questão encaminhada, em dezembro
por suas vidas. A polarização civil? Assim responde Vito de 2016, pelo governo do
direita-esquerda é falsa, não Mancuso, teólogo: “Esta tar- presidente Michel Temer. A
explica quase nada do que de [na Sexta-Feira Santa], às proposta do governo promo-
vem acontecendo no mundo. três horas, comemora-se a ve a desregulação do traba-
Mas, o pior é que a esquerda morte de Cristo. Antigamen- lho, com a oferta de amparo
se tornou proporcional à di- te, tocavam-se os sinos, des- legal a inúmeras práticas
reita em um ponto chave: a piam-se os altares. É o dia do empresariais hoje proibidas
obsessão pelo poder”. jejum. Hoje, você sente uma na lei, impedidas pela inter-
O artigo é do jornalista e analista políti- mudança na vida cotidiana? pretação da justiça ou difi-
co uruguaio Raúl Zibechi, publicado Tudo é como sempre”. cultadas pela ação sindical.
por Rebelión, 17-4-2017, e reproduzido
Entrevista com o teólogo Vito Mancu- Clemente Ganz Lúcio, sociólogo,
no sítio do IHU.
so, publicada por Il Fatto Quotidiano, diretor técnico do Dieese, em artigo
15-4-2017, e reproduzida no sítio do publicado por Brasil Debate, reprodu- 5
IHU. zido no sítio IHU.

Temer tenta minimizar Lula, marionete, fetiche Por uma Previdência


efeitos de carta de e quixote da Odebrecht Social justa e ética
papa Francisco

O presidente Temer e alia- Causa um certo desconfor- A PEC 287 vai na direção
dos tentaram minimizar os to observar como o império oposta à necessária reto-
efeitos da carta que o papa Odebrecht usou Lula com mada do crescimento eco-
Francisco enviou a Brasília sua auréola de ex-presidente nômico e da geração de em-
negando um convite de vi- mítico para convertê-lo em pregos, na medida em que
sitar o Brasil e pedindo que um logotipo de suas obras. agrava a desigualdade so-
o governo dê mais atenção Dá melancolia conhecer hoje cial e provoca forte impacto
“aos pobres”. Fontes do Pa- a farsa das conferências que negativo nas economias dos
lácio do Planalto negaram o grupo organizava para milhares de pequenos muni-
que a recusa do pontífice ao Lula pelo mundo para que cípios do Brasil. É necessário
convite seja um sinal de de- lhes conseguisse obras e fi- que a sociedade brasileira
saprovação ao governo bra- nanciamento fáceis. esteja atenta às ameaças de
sileiro e garantiram que já Comentário é de Juan Arias, jornalista, retrocesso.
tinham sido informados de publicado por El País, reproduzido no CNBB, OAB e COFECON, em nota
que o Papa não viria ao país sítio IHU. publicada, reproduzida no sítio IHU.
em outubro.
A informação foi publicada por O
Povo, reproduzida no sítio IHU.

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AGENDA

Programação completa em ihu.unisinos.br/eventos

A desidentificação EAD – Ciclo de Impactos da


da esquerda como estudos Os Biomas reestruturação
possibilidades na Brasileiros e a produtiva no contexto
política brasileira Teia da Vida pós-industrial. Limites
contemporânea e possibilidades

24/abr 24/abr a 5/mai 27/abr


Horário Horário Horário
19h30min às 22h 19h30min às 22h 17h30min às 19h
Palestrante Semana 1 de 7 Palestrante
Prof. Dr. Moyses Pinto Bioma Pampa Prof. Dr. Cesar Sanson –
Neto – ULBRA UFRN
Semana 2 de 7
Local Bioma Pantanal Local
Sala Ignacio Ellacuría e Sala Ignacio Ellacuría e
Companheiros – IHU Companheiros – IHU
Campus Unisinos Campus Unisinos
São Leopoldo São Leopoldo

6
A escalada da EAD – A crise da As sociabilidades
violência diante dos sociedade salarial: virtuais glocalizadas
avanços econômico- que trabalho para que na Metrópole.
sociais na (re)produção sociedade Experiências da
das metrópoles periferia de Recife

27/abr 1/mai a 2/jun 3/mai


Horário Mais informações em Horário
19h30min às 22h http://bit.ly/2pXcGNe 19h30min às 22h
Palestrante Palestrante
Prof. Dr. Luis Flávio Sapori Prof. Dr. Breno Augusto
– PUC-Minas Souto Maior Fontes – UFPE
Local Local
Sala Ignacio Ellacuría e Sala Ignacio Ellacuría e
Companheiros – IHU Companheiros – IHU
Campus Unisinos Campus Unisinos
São Leopoldo São Leopoldo

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Videoconferência: O cerrado brasileiro: Saúde e as políticas


Amazônia – interações berço das águas e públicas para
entre as florestas celeiro do mundo adolescência
e atmosfera e sua
importância para o clima

4/mai 8/mai 9/mai


Horário Horário Horário
19h30min às 22h 19h30min às 22h 14h às 17h
Palestrante Palestrante Palestrante
Prof. Dr. Carlos Afonso Prof. Dr. José Felipe Ribei- Profa. Dra. Rosângela Bar-
Nobre – INPE ro – UnB biani – UNISINOS
Local Local Local
Sala Ignacio Ellacuría e Sala Ignacio Ellacuría e Sala Ignacio Ellacuría e
Companheiros – IHU Companheiros – IHU Companheiros – IHU
Campus Unisinos Campus Unisinos Campus Unisinos
São Leopoldo São Leopoldo São Leopoldo

EDIÇÃO 503
TEMA DE CAPA

A nova relação capital-trabalho ainda


mais submersa na subjetividade

Ricardo Machado | Tradução: Moisés Sbardelotto

P
ara Andrea Fumagalli, as trans- as implicações de sua simbiose. “Tais
formações no mundo do traba- dinâmicas levam a reconsiderar o con-
lho levam à reformulação das ceito de recomposição técnica do traba-
formas de remuneração, em que o salá- lho, sobretudo dentro de um processo
rio perde eficácia que se move na direção da superação da
Na encruzilhada do tempo presen- dicotomia humano-máquina”, sustenta
te, o mundo do trabalho encontra um Fumagalli. “Tal tendência significa que
dos seus grandes desafios justamente desaparece a relação capital-trabalho?
quando a forma trabalho-salário pa- Somos de uma opinião totalmente di-
rece chegar ao seu limite. “A crise do ferente. O que está acontecendo, como
trabalho assalariado, contudo, não abre sempre acontece ao longo da mudança
perspectivas de superação da condi- do paradigma tecnológico dominante, é
ção laboral; ao contrário, fragmenta-a uma nova configuração de tal relação,
8 em que o elemento material e, conse-
e deprime-a ainda mais. É sintomáti-
co, a esse respeito, a atual tendência à quentemente, a sua medida em termos
anulação da remuneração monetária de de remuneração monetária perdem efi-
um número crescente de desempenhos cácia em benefício de uma nova relação
laborais diretamente produtivos e não capital-trabalho, ainda mais embebido
assimiláveis ao arquipélago do traba- de elementos subjetivos do que ante-
lho voluntário e ‘livre’ (free)”, pondera riormente”, explica.
o economista, professor e pesquisador Andrea Fumagalli é doutor em
Andrea Fumagalli, em entrevista por Economia Política pela Università Boc-
e-mail à IHU On-Line. “A difusão do coni e Università Cattolica di Milano,
trabalho não pago (unpaid) não impli- Milão, graduado em Economia e Ciên-
ca que não exista mais remuneração ou cias Sociais pela mesma instituição e
que haja um furto de salário (um salá- posteriormente desenvolveu atividades
rio roubado), mas sim uma nova forma de pesquisa em parceria com École des
de remuneração que não é definida pela Hautes Études en Sciences Sociales,
forma ‘salário’. Assistimos, assim, a no- em Paris, e na New School for Social
vas modalidades de remuneração do Research (Nova York). Professor no
trabalho, caracterizadas por elementos Departamento de Economia Política e
cada vez mais simbólicos, relacionais e Método Quantitativo da Faculdade de
imateriais”, complementa. Economia e Comércio da Università di
No fundo, o que está em jogo não é a Pavia, Itália.
oposição entre humano e máquina, mas Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais foram as Andrea Fumagalli – Um dos de estrutural do novo capitalismo,
principais mudanças no capita- efeitos da crise que surgiu dos sub- entre financeirização e globalização.
lismo após o movimento de glo- primes1 foi evidenciar a instabilida- Não que essa instabilidade não fos-
balização e como ele reorgani-
zou os modos de produção em 1 Subprime (do inglês subprime loan ou subpri-
me mortgage): é um crédito de risco, concedido a para se beneficiar da taxa de juros mais vantajosa
escala global? um tomador que não oferece garantias suficientes (prime rate). (Nota da IHU On-Line)

24 DE ABRIL | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

“A crise do trabalho assalariado,


contudo, não abre perspectivas
de superação da condição
laboral, ao contrário, fragmenta-a
e deprime-a ainda mais”

se conhecida por alguns estudiosos, exploração (precarização elevada, devia, de algum modo, compensar
especialmente alheios ao âmbito redução dos direitos anteriormente a possível crise de realização devi-
do mainstream econômico e bur- adquiridos no apogeu das lutas na da ao incremento da concentração
guês, mas pelo menos esse divisor fase alta do fordismo, decomposição das rendas, como resultado de um
de águas tornou evidente e genera- do trabalho, incapacidade e muitas processo de exploração do trabalho
lizada tal consciência. No entanto, o vezes conivência dos sindicatos), tal que tinha chegado a limites não
que ainda devia ser investigado era base de extração da mais-valia não mais superáveis.
em que direção ou direções tal insta- era mais suficiente diante da exten-
A crise financeira do capitalismo
bilidade levaria nos anos seguintes. são da concorrência global e da re-
cognitivo abre o caminho para o
A esse respeito, podemos identificar definição da estrutura geoeconômica
capitalismo biocognitivo4. O prefi-
três linhas de tendência. em escala mundial, com a emergên-
xo bio, nesse caso, é resolutivo. Ele
cia de novas potências econômicas
O primeiro ponto diz respeito à indica que a acumulação capitalis-
capitalistas. A valorização capitalista
natureza do processo de acumu- ta atual sempre se identifica com a 9
necessitava, assim, de novas fontes.
lação e a consequente valorização exploração da vida na sua essência,
A financeirização, de um lado, e a
que se seguiu, depois do colapso indo além da exploração do traba-
aceleração da mercantilização do
financeiro e dos Produtos Internos lho produtivo certificado como tal
território e da natureza e a privatiza-
Brutos – PIBs no biênio 2008- e, portanto, remunerado. O valor-
ção dos seus bens, de outro, podiam
2009. A crise dos subprimes2 pode -trabalho deixa cada vez mais espaço
fornecer uma resposta adequada,
ser lida como o resultado de um para o valor-vida5. Trata-se de um
que se revelou, porém, insuficiente.
descolamento entre um processo de processo, ao mesmo tempo, extensi-
exploração de uma atividade labo- Daí a exigência de inserir no pro- vo e intensivo.
ral ainda interna a uma governança cesso de financeirização, de modo
Extensivo, porque a vida inteira,
do mercado de trabalho (que previa cada vez mais difuso, a vida dos
nas suas singularidades, torna-se
a existência de uma remuneração indivíduos mediante o devir-renda
objeto de exploração, até mesmo
cada vez mais precária e compri- de porções crescentes do salário
na sua simples cotidianidade. No-
mida) e um processo de valoriza- (principalmente o diferido, graças
vas produções ganham vida. A re/
ção financeira de uma estrutura de ao desmantelamento do sistema de
produção social6, desde sempre
propriedade privada que se queria welfare na Europa ou a sua exten-
operante na história da humanida-
cada vez mais difundida, embora são em termos financeiros, como
de, torna-se diretamente produtiva,
cada vez mais empobrecida. ocorreu com a reforma da saúde
mas apenas parcialmente assalaria-
de Obama3 nos Estados Unidos
Os lucros das grandes empresas da [salarizzata]; a gênese da vida (a
e como está acontecendo hoje na
multinacionais apenas em parte de- procriação) transforma-se em bu-
América Latina).
rivam diretamente da exploração siness; o tempo livre é encaixotado,
direta do trabalho e, se isso ocorria, A cartolarização financeira das assim como as relações de amizade e
tratava-se da exploração de algumas condições de vida mediante o de-
partes de todo o ciclo de subforneci- senvolvimento dos derivados (das
4 Andrea Fumagalli, “Twenty Theses on Contem-
mento e de produção, em particular casas aos direitos de propriedade porary Capitalism (Bio-Cognitive Capitalism)”,
os nós não diretamente envolvidos intelectual, aos seguros de saúde, Angelaki, vol. 16, 2011, p. 7-17. (Nota do entrev-
istado)
no core produtivo e tecnológico. Ape- de previdência, de educação etc.) 5 Andrea Fumagalli, Cristina Morini, “Life put to
work: towards a theory of life-value”, Ephemera,
sar do aumento da intensidade de tal vol. 10, p. 234-252. (Nota do entrevistado)
6 Cristina Morini, “Social re production as a para-
3 Barack Obama [Barack Hussein Obama II] digm of the common Reproduction antagonism,
2 Crise do subprime: crise financeira desenca- (1961): advogado e político estadunidense. Foi production crisis”, in García Agustín Óscar, Ydesen
deada a partir de 2006, em decorrência da que- o 44º presidente dos Estados Unidos, tendo go- Christian (eds.), Post-Crisis Perspectives: The Com-
bra de instituições de crédito dos Estados Unidos. vernado o país entre 2009 e 2017. (Nota da IHU mon and its Powers, Peter Lang, New York, pp. 83-
(Nota da IHU On-Line) On-Line) 98. (Nota do entrevistado)

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TEMA DE CAPA

sentimentais, dentro de trilhos e de nio Negri), pois é fruto do agir dos trato e trabalho concreto sofre uma
dispositivos que, graças às tecnolo- processos históricos. Certamente, é torção11, mas também a relação en-
gias algorítmicas, permitem a extra- plausível afirmar que os seres huma- tre capital constante e capital variá-
ção de mais-valia (valor de rede); os nos vivem em “bando”, ou seja, em vel, entre trabalho morto e trabalho
processos de aprendizagem e de for- comunidade, e não individualmente, vivo tende a se modificar cada vez
mação são inseridos nas estratégias e que, portanto, o desenvolvimento mais até uma nova metamorfose en-
de marketing e de valorização do de relações sociais é intrínseco ao tre capital e trabalho. Tal dinâmica
capital; o corpo humano, nos seus agir humano. levanta uma série de nós teóricos e
componentes físicos assim como empíricos relevantes.
O segundo ponto diz respeito à
cerebrais, torna-se a matéria-prima
constatação de que o capitalismo O terceiro ponto diz respeito à in-
para a produção e a programação da
biocognitivo é acompanhado por vestigação da nova composição so-
saúde e do prolongamento da vida,
uma aceleração do progresso tec- cial do trabalho que derivou daí.
graças às novas técnicas biomédicas.
nológico. É ainda prematuro para Assistimos ao crescimento de uma
Intensivo, porque tais processos afirmar se um novo paradigma tec- subjetividade do trabalho plural e
são acompanhados por novas moda- nológico está às portas, mas esta- diferenciada que torna impossível,
lidades técnicas e organizacionais. A mos assistindo a alguns sinais que de fato, no estado atual dos fatos, a
vida posta em produção e, portanto, podem confirmar essa hipótese. O identificação de uma composição so-
em valor se manifesta, em primeiro que emerge é um progredir de hi- cial classe homogênea. A coexistên-
lugar, como empreendimento de re- bridação entre máquina e humano cia de formas não salariais, de for-
lações humanas e sociais. A coopera- em uma direção que vê, ao mesmo mas de trabalho não pago, de formas
ção social, entendida como conjunto tempo, experimentações de formas de semiescravidão, de formas de
de relações humanas mais ou menos de automação completa voltada à envolvimento emotivo-cerebral, de
hierárquicas, torna-se a base da acu- substituição do ser humano em al- formas heterodirigidas, de formas de
mulação capitalista. gumas das suas funções relevantes, trabalho autônomo de terceira gera-
por um lado, e enxertos maquínicos ção, de formas de autorrealização
O debate recente, especialmente
no corpo humano, por outro. Os se- e de autoempreendedorismo (por
no âmbito do marxismo autônomo,
10 tores da inteligência artificial, as bio- exemplo, os makers) tornam difi-
identificou no comum o novo méto-
tecnologias, as nanotecnologias, a cilmente codificável tanto a compo-
do de produção7. Trata-se de um as-
construção de tecidos humanos com sição técnica quanto política do tra-
pecto relevante para entender tanto
a experimentação genética, as neu- balho, admitindo-se que essas duas
as formas da organização da produ-
rociências, a indústria da elaboração expressões ainda tenham sentido.
ção e da empresa quanto do traba-
de massas de dados cada vez mais
lho. Aqui nos limitamos a enfatizar A crise do trabalho assalariado,
complexos e individualizados (big
como é importante não confundir o contudo, não abre perspectivas de
data) mostram-nos um caminho no
conceito de comum com o dos bens superação da condição laboral, ao
qual o devir-humano da máquina se
comuns. E como a produção do co- contrário, fragmenta-a e deprime-
conjuga com o devir-maquínico do
mum (expressão de Antonio Negri8) -a ainda mais. É sintomático, a
humano. Além da dinâmica futura
representa uma nova modalidade esse respeito, a atual tendência à
que tais trajetórias vão tomar, mes-
do processo de subsunção, que defi- anulação da remuneração mone-
mo assim rumo à construção de um
nimos como vital e que vai além da tária de um número crescente de
pós-humano910, o que nos interessa
tradicional dicotomia entre subsun- desempenhos laborais diretamente
observar é como a separação entre
ção formal e real, de memória mar- produtivos e não assimiláveis ao ar-
homem e maquínico desaparece.
xiana. O comum como método de quipélago do trabalho voluntário e
Não só a relação entre trabalho abs-
produção, como forma de produção, “livre” (free). A difusão do trabalho
não pode ser ontologicamente dado não pago (unpaid) não implica que
(como, ao contrário, defende Anto- 9 O debate sobre o pós-humano já iniciou há al- não exista mais remuneração ou que
gumas décadas. Inicialmente, ele analisou a evolu- haja um furto de salário (um salário
ção da relação ser humano, natureza e tecnologia
(ver Robert Pepperell, The Posthuman Condition: roubado), mas sim uma nova forma
7 Antonio Negri, Il comune come modo di pro- Consciousness Beyond The Brain, Intellect Books,
duzione, http://www.euronomade. info/?p=7331, Portland, Usa, 1995; e Robert Pepperell, Michael de remuneração que não é definida
junho 2016. (Nota do entrevistado) Punt, The Postdigital Membrane: Imagination, Te- pela forma “salário”. Assistimos, as-
8 Antonio Negri (1933): filósofo político e moral chnology and Desire, Intellect Books, Prtland, Usa,
italiano. Durante a adolescência, foi militante da 2003); depois, de modo mais direto, sobre o pro- sim, a novas modalidades de remu-
Juventude Italiana de Ação Católica, como Um- cesso de transformação do ser humano (ver Rosi
berto Eco e outros intelectuais italianos. Em 2000 Braidotti, Il Postumano. La vita oltre l’individuo, ol- neração do trabalho, caracterizadas
publicou o livro-manifesto Império (5ª ed. Rio de tre la specie, oltre la morte, Derive Approdi, Roma,
Janeiro: Record, 2003), com Michael Hardt. Em se- 2014). (Nota do entrevistado)
guida, publicou Multidão. Guerra e democracia na 10 Pós-humano: sobre o tema, confira a edição 11 Andrea Fumagalli, Bioeconomia e capitalsmo
era do império (Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 200 da Revista IHU On-Line, intitulada O pós-hu- cognitivo. Verso un nuovo paradigma di accumula-
2005), também com Michael Hardt – sobre esta mano. Limites e possibilidades do pós-humanismo, zione, Carocci, Roma, 2007; em particular o parág-
obra, publicamos um artigo de Marco Bascetta publicada em 16-10-2006, disponível em http:// rafo 8.3.2 “Il nesso tra lavoro astratto e lavoro
na 125ª edição da IHU On-Line, de 29-11-2004. bit.ly/rLMs4u. Confira, ainda, a obra Uma socie- concreto, ovvero l’alienazione cerebrale”, pp. 193-
O último livro da “trilogia” entre os dois autores, dade pós-humana. Possibilidades e limites das 196 [trad. espanhola: Bioeconomìa y capitalismo
Commonwealth (USA: First Harvard University nanotecnologias (São Leopoldo: Unisinos, 2009), cognitivo. Hacia un nuevo paradigma de acumula-
Press paperback, 2011), ainda não foi publicado organizada por Inácio Neutzling e Paulo Fernan- ción, Traficantes de Suenos, Madrid, 2010]. (Nota
em português. (Nota da IHU On-Line) do Carneiro de Andrade. (Nota da IHU On-Line) do entrevistado)

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por elementos cada vez mais simbó- trabalho: a cognitiva. Há uma interdependência funcio-
licos, relacionais e imateriais. nal entre esses três níveis. O conhe-
Em segundo lugar, como resultado
cimento sistêmico coloca-se em um
Tais dinâmicas levam a reconsi- das mudanças tecnológicas, a or- nível superior, e, por ele, entende-se
derar o conceito de recomposição ganização do trabalho se modifica. uma capacidade de abstração capaz
técnica do trabalho, sobretudo den- A partir de uma estrutura vertical, de gerar uma visão, justamente, sis-
tro de um processo que se move na tende a se transformar em estrutura têmica, não codificável em procedi-
direção da superação da dicotomia horizontal, rizomática, sem que, no mentos-padrão. O que entendemos
humano-máquina. Tal tendência entanto, desapareça o papel do co- por conhecimento sistêmico é es-
significa que desaparece a relação mando do capital sobre o trabalho. sencialmente conhecimento tácito,
capital-trabalho? Somos de uma opi- As capacidades relacionais desempe- ou seja, conhecimento que é fruto
nião totalmente diferente. O que está nham o papel nevrálgico de pôr em de um processo de aprendizagem e
acontecendo, como sempre acontece circulação o conhecimento dentro de aculturação pessoal e social, não
ao longo da mudança do paradigma de uma estrutura hierárquica que se separável nem expropriável de quem
tecnológico dominante, é uma nova apoia em novos dispositivos de con- o possui. O saber é entendido, nes-
configuração de tal relação, em que trole não mais diretos e disciplinares, sa acepção, como forma de conhe-
o elemento material e, consequen- mas cada vez mais indiretos e sociais. cimento mais especializado, a meio
temente, a sua medida em termos A cooperação social necessária à ex- caminho entre aprendizagem opera-
de remuneração monetária perdem ploração do conhecimento, assim, cional, transmissível via linguagem
eficácia em benefício de uma nova deve se conjugar com o individua- mediante procedimentos codifica-
relação capital-trabalho, ainda mais lismo e a fragmentação do trabalho dos, e desenvolvimento de noções
embebido de elementos subjetivos para permitir a sua expropriação. comportamentais que se origina de
do que anteriormente. condutas sociais de tipo imitativo
O conhecimento é uma mercadoria (aprendizagem mimética). A infor-
A atual valorização capitalista se que pode assumir diversos papéis,
fundamenta cada vez mais na pro- mação, em vez disso, coloca-se no
de acordo como é definido. A esse nível inferior: é expressão de um sa-
dução de subjetividade. O capital respeito, podemos distinguir, em
fixo se hibrida com o capital variá- ber que não tem valor em si mesmo,
vel, o trabalho morto com o vivo, e
princípio, três graus (níveis) de co- mas que é necessário para se chegar 11
nhecimento, sobre os quais se baseia a uma forma de saber codificado.
vice-versa. O desafio que temos pela a atual divisão cognitiva do trabalho:
frente não é apenas a reapropriação
do próprio capital fixo, mas tam- 1. a informação, ou seja,
bém, e talvez acima de tudo, a ca-
pacidade de autogestão do próprio
a produção de dados
formatados e estrutu-
“A crise finan-
capital variável. rados capazes de serem ceira do capi-
duplicados mecânica e
serialmente; talismo cog-
IHU On-Line – Como o “co-
nhecimento” se tornou um ob- 2. o saber, ou seja, a pos- nitivo abre o
jeto central para a produção de
caminho para
sibilidade de produzir
mais valia? aprendizagem, tanto
Andrea Fumagalli – O conhe-
cimento, em sentido lato, torna-se
em termos operacio-
nais (“saber-fazer”) o capitalismo
fonte direta de produção de mais-
-valia, essencialmente como resul-
quanto de capacidades
de enfrentar problemas
biocognitivo”
tado de dois processos que mar- específicos. Ele é tam-
cam a saída da crise do paradigma bém uma atitude a “sa-
ber ser”, “saber viver” IHU On-Line – A partir des-
fordista no início dos anos 1970. O
etc. (know-how); se fenômeno, como se carac-
primeiro tem a ver com a passagem
terizam as novas escalas eco-
das tecnologias tayloristas – rígidas,
3. o conhecimento sistê- nômicas de crescimento de
mecânicas, repetitivas, estáticas –
mico (bioconhecimen- produtividade divididas em
às tecnologias linguístico-digitais –
to), ou seja, a compre- economias aprendentes e eco-
flexíveis, comunicativas, com uma
ensão em nível sistêmi- nomias em rede?
elevada taxa de cumulatividade, di-
nâmicas. O ingresso da linguagem co, produtora de uma Andrea Fumagalli – As econo-
na produção necessita de uma for- capacidade cognitiva mias de aprendizagem (learning
ça de trabalho dotada de saberes e que permite gerar no- economies) e as economias de rede
competências (know-how), dando vos conhecimentos (network economies) representam
vida, assim, a uma nova divisão do (know-that). os dois principais fatores de cresci-

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TEMA DE CAPA

mento da produtividade e, portanto, sua cotidianidade e na sua plenitude, modalidades de subalternidade do


definem as novas formas da explo- que é fonte de valorização. Isso pode trabalho ao capital. Portanto, é pro-
ração no capitalismo cognitivo e, acontecer de modo direto ou indireto pedêutico à análise das formas de
hoje, biocognitivo. As economias de e com intensidade diferente. A ativi- exploração do trabalho. Tal relação
aprendizagem geram conhecimento, dade laboral, especialmente quando de exploração capitalista é descrita
via cumulatividade, a partir de co- a produção é tendencialmente ima- por Marx com duas formas de sub-
nhecimentos tácitos a conhecimen- terial, caracteriza-se por um aumento sunção diferentes: “formal” e “real”,
tos codificados. As economias de da intensidade, graças ao desenvol- resultado da evolução histórica do
rede os difundem através da replica- vimento e à difusão das tecnologias capitalismo e da metamorfose contí-
bilidade. Se a capacidade cumulativa digitais que reduzem o tempo de nua da relação capital-trabalho. Es-
dos processos de aprendizagem das trabalho para a coleta e a elaboração sas duas subsunções remetem a dois
tecnologias linguístico-comunicati- de dados e das capacidades relacio- conceitos diferentes de mais-valia:
vas é um elemento nevrálgico e es- nais. As práticas de aprendizagem absoluta e relativa. De acordo com
tratégico, é sobre a sua difusão que e de relação tendem a ser cada vez Marx, à fase da subsunção formal
se definem hoje as hierarquias pro- mais organizadas como “adestra- do trabalho ao capital, corresponde
prietárias. Aprendizagem e rede, de mento” heterodirigido com o fim de a mais-valia absoluta. À subsunção
fato, estão em contradição entre si. incrementar a sua produtividade. Si- real, corresponde, em vez disso, a
Quanto maior é a capacidade de di- multaneamente, a acumulação capi- mais-valia relativa.
fusão tecnológica, maior é o húmus a talista estende o seu raio de ação até
A fase histórica da subsunção for-
partir do qual, em nível sistêmico, o englobar aquelas atividades da vida
mal corresponde àquele período de
general intellect pode obter sua sei- (do consumo à arte, ao cuidado, à re/
capitalismo pré-industrial que chega
va. Mas, em uma realidade capitalis- produção social, ao tempo livre), que,
até o limiar da revolução industrial
ta privada, o conhecimento, embora até pouco tempo atrás, eram con-
e o primeiro capitalismo artesanal,
seja, por definição, uma mercadoria sideradas improdutivas, criando as
nos quais a exploração do trabalho
não escassa, mas abundante (quan- premissas para uma nova forma de
e a sua submissão ao capital imple-
to mais se troca, de fato, mais se di- acumulação primitiva.
mentam-se “com base em um pro-
funde), é submetido a enclousures cesso laboral a ele pré-existente”13.
12 (cercas) que limitam tal difusão (os
direitos de propriedade intelectual) “O valor-tra- Em tal contexto, a mais-valia deriva
da extensificação do trabalho atra-
para poder permitir que os proprie-
tários lucrem a máxima mais-valia. balho deixa vés do, mas não só, contínuo prolon-
gamento do horário de trabalho.
cada vez mais
Mas, quanto mais o conhecimento é
cercado por patentes e pelos copyri- Com a passagem para a subsunção

espaço para
ghts, menor é a sua capacidade de real, o processo de exploração e de
gerar cumulativamente novo conhe- extração da mais-valia passa da fase
cimento. Aqui está a contradição e a
crise do capitalismo cognitivo, que o valor-vida” de extensificação para a da inten-
sificação do processo laboral. Tal
incide negativamente sobre a má- passagem ocorre mediante a suces-
xima exploração das economias de são de três tipos de organização. A
aprendizagem e de rede. “cooperação simples” inicial, típica
IHU On-Line – Como a ideia
da primeira fase da subsunção for-
de “subsunção” ajuda a expli-
mal do pré-capitalismo, abre espa-
IHU On-Line – Em seus estu- car o mundo do trabalho no
ço para o sistema da “manufatura”
dos o senhor afirma que o capi- capitalismo contemporâneo?
do fim do século XVIII, na qual o
talismo biocognitivo é a expres- As distinções entre labor (tra-
trabalho ainda tem um conteúdo, e
são que define o capitalismo balho produtivo), opus (traba-
o operário utiliza um instrumento
contemporâneo. De que forma lho artístico e cultural) e otium
próprio, embora de modo cada vez
podemos caracterizá-lo? (atividades de lazer) ainda fa-
mais exclusivo e em áreas restritas.
zem sentido?
Andrea Fumagalli – Por capita-
Andrea Fumagalli – O conceito On-Line, de 20-10-2008, intitulada A financeiriza-
lismo biocognitivo, entende-se aque- ção do mundo e sua crise. Uma leitura a partir de
le sistema de acumulação de tipo de subsunção em Marx12 indica as Marx, disponível em http://bit.ly/ihuon278. Leia,
igualmente, a entrevista Marx: os homens não são
capitalista (ou seja, fundamentado o que pensam e desejam, mas o que fazem, con-
12 Karl Marx (Karl Heinrich Marx, 1818-1883): fi- cedida por Pedro de Alcântara Figueira à edição
na propriedade privada e na relação lósofo, cientista social, economista, historiador e 327 da IHU On-Line, de 03-05-2010, disponível
de exploração capital-trabalho), cuja revolucionário alemão, um dos pensadores que em http://bit.ly/ihuon327. A IHU On-Line pre-
exerceram maior influência sobre o pensamen- parou uma edição especial sobre desigualdade
fonte de valor não se baseia mais to social e sobre os destinos da humanidade no inspirada no livro de Thomas Piketty O Capital no
século XX. Leia a edição número 41 dos Cader- Século XXI, que retoma o argumento central da
apenas no tempo de trabalho certifi- nos IHU ideias, de autoria de Leda Maria Paulani, obra de Marx O Capital, disponível em http://bit.
cado como produtivo, mas em todo que tem como título A (anti)filosofia de Karl Marx, ly/IHUOn449. (Nota da IHU On-Line)
disponível em http://bit.ly/173lFhO. Também so- 13 K. Marx, Il Capitale, Livro I, capítulo VI inédito,
o tempo de vida. É a vida mesma, na bre o autor, confira a edição número 278 da IHU p. 53. (Nota do entrevistado)

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É a fase descrita por Adam Smith14, cessos de aprendizagem que o tra- sidade do desempenho laboral me-
quando a “cooperação simples” balhador individual detém com base diante a exploração das economias
muda de configuração e se trans- na sua experiência de vida, isto é, de escala de dimensão, passa-se
forma em divisão do trabalho com amadurecidos em um período ante- a tecnologias dinâmicas como as
o objetivo de decompor a atividade rior ao momento da sua utilização de aprendizagem e de rede, capa-
artesanal em operações diferentes e para os fins da produção de valor de zes de conjugar simultaneamente
heterogêneas, cada uma das quais troca. A aprendizagem e a relação atividades manuais e atividades
é atribuída de modo permanente nascem como valor de uso na fon- cérebro-relacionais, favorecendo
a operários individuais. A fase or- te e, assim como os utensílios e as uma nova organização mais flexí-
ganizacional da “manufatura”, em competências manuais dos artesãos vel do trabalho, na qual a fase de
meados do século XIX, se transfor- do primeiro período capitalista, são, concepção e a fase de execução não
ma, depois, no terceiro modelo or- depois, “salarizados”, obtorto collo, são mais perfeitamente separáveis,
ganizacional, que Marx denomina e formalmente subsumidos na pro- mas cada vez mais interdependen-
de “fábrica”, onde desaparece toda dução de valor de troca. tes e complementares. A separação
especialização, e o operário é força- entre produção manufatureira e
O processo de valorização, de fato,
do pela “máquina” a desempenhar produção terciária também se tor-
ocorre explorando as capacidades de
operações monótonas durante todo na cada vez mais difícil de captar.
aprendizagem, de relação e de (re)
o arco do dia de trabalho. O operário Elas são cada vez mais indissolú-
produção dos seres humanos que se
torna-se, assim, totalmente servo da veis dentro da cadeia de produção.
formam a montante, antes da utili-
máquina, reduzindo-se, ele mesmo, Do lado da produção material, a
zação direta na produção. Trata-se,
a máquina que age sem ter que pen- introdução de novos sistemas in-
para todos os efeitos, de uma espé-
sar. E é nessa última transformação formatizados de produção, como
cie de acumulação primitiva capaz
que se implementa a passagem para o CAD-CAM16 e o CAE17, tornam
de pôr ao trabalho e em valor aque-
a subsunção real do trabalho ao ca- necessário um profissionalismo de
las atividades que, no paradigma
pital. A extração de mais-valia (ago- competências e de saberes que tor-
fordista-taylorista, eram improdu-
ra relativa) é, assim, determinada nam a relação entre homem e má-
tivas. A subsunção formal no capi-
pelo incremento da intensificação quina cada vez mais inseparável, a
talismo biocognitivo, portanto, tem 13
dos ritmos, ditados pela velocidade tal ponto que é o trabalho vivo que
como efeito o alargamento da base
da máquina. Tal intensificação (que domina o trabalho morto maquíni-
de acumulação, pondo ao trabalho a
os economistas chamam de “produ- co. Do lado da produção dos servi-
atividade de formação, de cuidado,
tividade do trabalho”) é destinada a ços (financeirização, R&D, comu-
de reprodução, de consumo, de re-
abreviar o tempo de trabalho social- nicação, brand, comercialização),
lação social e de tempo livre. Muda
mente requerido para a produção de assiste-se a uma predominância da
o conceito de trabalho: a distinção
uma mercadoria, de modo a permitir valorização a jusante da produção
entre trabalho diretamente pro-
que, no mesmo tempo de trabalho, o material apenas.
dutivo (labor), trabalho artístico e
volume de output seja maior.
cultural (opus), atividades de lazer
Com a passagem para o paradigma (jogo e leisure) desaparece e tende IHU On-Line – De que manei-
do capitalismo biocognitivo, entra- a confluir em tempo de trabalho di- ra os modelos de organização
mos em uma nova fase da subsunção reta e indiretamente produtivo15. De laboral no século 21 desembo-
do trabalho ao capital, em que, ao fato, assistimos a uma convergência cam na subsunção da vida?
mesmo tempo, subsunção formal e dos diversos tempos de vida (tempo
subsunção real tendem a se fundir e do labor, tempo do opus, tempo do Andrea Fumagalli – No capita-
a se alimentar reciprocamente. otium, tempo do jogo) ao labor, tor- lismo biocognitivo, subsunção real e
nando, assim, vã a diferença entre subsunção formal são dois lados da
Falamos de subsunção formal do mesma moeda e se alimentam mu-
esses termos. A vida humana inteira
trabalho ao capital no momento em tuamente. Eles, conjuntamente, dão
torna-se produtiva.
que o desempenho laboral se refere origem a uma nova forma de sub-
à capacidade relacional e aos pro- Paralelamente, no capitalismo sunção, que podemos definir como
biocognitivo, a subsunção real se vital ou subsunção do general in-
14 Adam Smith (1723-1790): considerado o fun- modifica em comparação com o
dador da ciência econômica tradicional. A Riqueza
das Nações, sua obra principal, de 1776, lançou taylorismo, depois da passagem
as bases para o entendimento das relações eco- das tecnologias mecânico-repetiti- 16 Os termos se referem às expressões em inglês
nômicas da sociedade sob a perspectiva liberal, computer-aided design – CAD, em tradução livre,
superando os paradigmas do mercantilismo. So- vas para as linguístico-relacionais. desenho assistido por computador, e computer
bre Adam Smith, veja a entrevista concedida pela -aided manufacturing – CAM, em tradução livre,
professora Ana Maria Bianchi, da Universidade de Das tecnologias estáticas que au- manufatura assistida por computador. (Nota da
São Paulo - USP, à IHU On-Line nº 133, de 21- mentam a produtividade e a inten- IHU On-Line)
03-2005, disponível em http://bit.ly/ihuon133, e a 17 O termo se refere à expressão computer-Aided
edição 35 dos Cadernos IHU ideias, de 21-07- engineering, em tradução livre, enenharia assis-
2005, intitulada Adam Smith: filósofo e economis- tida por computador. Diz respeito ao amplo uso
ta, escrita por Ana Maria Bianchi e Antônio Tiago 15 Para aprofundar, A. Fumagalli, Lavoro male co- de programas de computador para auxiliar nas
Loureiro Araújo dos Santos, disponível em http:// mune, B. Mondadori, Milano, 2013, especialmente tarefas de análise de engenharia. (Nota da IHU
bit.ly/ihuid35. (Nota da IHU On-Line) o cap. I. (Nota do entrevistado) On-Line)

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tellect. Tal nova forma de acumula- se torna máquina, ou seja, “capital go. Trata-se somente de gerir a
ção capitalista moderna evidencia fixo e capital variável ao mesmo sua agonia e de manter as pes-
alguns aspectos que estão na base tempo”, a intensificação do de- soas ocupadas até a instalação
de novas forças que estão às
da crise do capitalismo industrial. sempenho laboral atinge o seu má-
portas. Essas são as sociedades
Trata-se de analisar as novas fon- ximo: assim, estamos na presença do controle que estão prestes
tes da riqueza (e dos rendimentos da subsunção real e da extração de a substituir as sociedades dis-
crescentes) no capitalismo biocog- mais-valia relativa. ciplinares. ‘Controle’ é o nome
nitivo. Tais fontes derivam da crise que Burroughs propôs para de-
Tal combinação das duas formas signar esse novo monstro e que
do modelo de divisão técnica e so-
de subsunção – que podemos defi- Foucault reconhece como nosso
cial gerado pela primeira revolução
nir como subsunção vital – precisa futuro próximo.”24
industrial e levado às suas conse-
de um novo sistema de regulação
quências extremas pelo taylorismo
social e de governança política.
e são alimentados pelo papel e pela A sociedade do controle dota-se
difusão do saber que obedece “a de um número de instrumentos.
uma racionalidade social coopera- IHU On-Line – Como esses Aqui, queremos nos deter sobre
tiva que foge da concepção restri- novos conceitos convergem às três. O primeiro é representado
tiva do capital humano”18. Segue-se sociedades de controle e como pela governança dos comporta-
daí que é posto em causa o tempo elas se caracterizam? mentos individuais através da “dí-
de trabalho imediato como princi- vida”, hoje não mais apenas um
pal e único tempo produtivo, com Andrea Fumagalli – O conceito conceito contábil e econômico, mas
o efeito de que o tempo efetivo e de sociedade de controle foi cunha- também dispositivo indiretamente
certificação de trabalho não é mais do por Gilles Deleuze22 em continui- disciplinar (e, portanto, de contro-
a única medida da produtividade e dade e em parcial substituição do le social) da psicologia individual,
a única garantia de acesso à renda. conceito de controle disciplinar de até desenvolver sentimentos de
Assim, implementa-se uma torção Michel Foucault23:
culpa e de autocontrole25.
na tradicional teoria do valor-tra-
balho rumo a uma nova teoria do O segundo processo de controle
14 valor, em que o conceito de traba- “Encontramo-nos em uma crise social é representado pela evolução
lho é cada vez mais caracterizado generalizada de todos os am- das tipologias contratuais do tra-
bientes de reclusão, prisão, hos- balho rumo a uma condição estru-
pelo “saber” e é permeado pelo
pital, fábrica, escola e família. A tural, existencial e generalizada de
tempo de vida. Podemos chamar família é um ‘interior’ em crise,
essa passagem como a transição precariedade. A condição precária
assim como todos os outros in-
para uma teoria do valor-saber19 teriores, escolares, profissionais hoje é sinônimo de incerteza, insta-
ou teoria do valor-vida20, quan- etc. Os ministros competentes bilidade, nomadismo, chantagem e
do saber e vida tendem a se au- não param de anunciar refor- subalternidade, psicológica ou não,
toalimentarem reciprocamente e mas consideradas necessárias. dos meios de sobrevivência. É con-
Reformar a escola, reformar a dição de dependência que não se
quando o capital fixo principal é o
indústria, o hospital, o exército, manifesta no mesmo momento em
homem “em cujo cérebro reside o o cárcere: mas todos sabem que
saber acumulado pela sociedade”21. que se define formalmente uma re-
essas instituições são finitas, em
um prazo mais ou menos lon- lação de trabalho, mas está a mon-
Quando a vida se torna força de tante e a jusante dele. É condição
trabalho, o tempo de trabalho não existencial total que impõe formas
é mais mensurável em unidades 22 Gilles Deleuze (1925-1995): filósofo francês. de autocontrole e de autorrepres-
Assim como Foucault, foi um dos estudiosos de
de medida padrão (horas, dias). A Kant, mas tem em Bérgson, Nietzsche e Espinosa, são, com resultados ainda mais
jornada de trabalho não tem mais poderosas interseções. Professor da Universidade
fortes do que o disciplinamento
de Paris VIII, Vincennes, Deleuze atualizou ideias
limites, senão os naturais. Esta- como as de devir, acontecimentos e singularida- direto da fábrica. A condição pre-
mos na presença da subsunção des. (Nota da IHU On-Line)
23 Michel Foucault (1926-1984): filósofo francês. cária indica uma antropologia e
formal e da extração de mais-valia Suas obras, desde a História da Loucura até a His- uma psicologia comportamental
tória da sexualidade (a qual não pôde completar
absoluta. Quando a vida se torna devido a sua morte) situam-se dentro de uma que é tanto mais forte quanto mais
força de trabalho porque o cérebro filosofia do conhecimento. Foucault trata princi-
palmente do tema do poder, rompendo com as o trabalho se torna cognitivo e re-
concepções clássicas do termo. Em várias edições, lacional26.
a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Fou-
cault: edição 119, de 18-10-2004, disponível em
18 Herrera R., Vercellone C. (2002), « Transforma- http://bit.ly/ihuon119; edição 203, de 6-11-2006,
tions de la division du travail et endogénéisation disponível em http://bit.ly/ihuon203; edição 364,
du progrès technique », Economie Appliquée, vol. de 6-6-2011, intitulada ‘História da loucura’ e o 24 G. Deleuze, “L’autre journal”, n. 1, maggio 1990,
55, nº 1, pp. 63-78. (Nota do entrevistado) discurso racional em debate, disponível em http:// ora in G. Deleuze, Pourparlers (1972-1990), Minuit,
19 Expressão usada em C. Vercellone e R. Herrera, bit.ly/ihuon364; edição 343, O (des)governo biopo- Paris 1990, pp. 240-247: http://www.ecn.org/filiar-
ibidem. (Nota do entrevistado) lítico da vida humana, de 13-9-2010, disponível monici/Deleuze.html. (Nota do entrevistado)
20 A. Fumagalli, C. Morini, “La vita messa a lavoro: em http://bit.ly/ihuon343, e edição 344, Biopolíti- 25 M. Lazzarato, La fabbrica dell’uomo indebitato,
verso una teoria del valore-vita. Il caso del valore ca, estado de exceção e vida nua. Um debate, dis- Derive Approdi, Roma, 2012. Note-se que, em ale-
affetto”, Sociologia del lavoro, vol. 115, 2009, p. 94- ponível em http://bit.ly/ihuon344. Confira ainda a mão, dívida traduz-se como “schulde”, que tam-
117. (Nota do entrevistado) edição nº 13 dos Cadernos IHU em formação, bém significa culpa. (Nota do entrevistado)
21 K. Marx, Grundrisse, vol. II, 1977, p. 725. (Nota disponível em http://bit.ly/ihuem13, Michel Fou- 26 A. Fumagalli, Lavoro male comune, op.cit. (Nota
do entrevistado) cault. (Nota da IHU On-Line) do entrevistado)

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Dívida, por um lado, precarieda- processos de formação do saber e despoja constantemente qualquer
de, por outro, são, assim, as duas a criação de imaginários individu- elemento de análise crítica e de
arquitraves principais que permi- alistas ad hoc. No momento mes- filosofia social. A especialização
tem que a atual subsunção vital do mo em que o saber, o general in- técnica cria, assim, “ignorância”,
capitalismo biocognitivo opere. tellect, torna-se estratégico, a base no sentido etimológico do termo,
do processo de acumulação e valo- ou seja, “não conhecimento”. Por
A fim de induzir comportamen- rização biocapitalista, é necessário outro lado, soma-se a isso o dis-
tos subjetivos alinhados com o controlá-lo, mas também dirigi-lo. positivo do mérito e do prêmio
processo de exploração da vida Tal processo pode ocorrer ao lon- seletivo individual, mantra já es-
que subjaz à subsunção vital, é ne- go de duas diretivas complemen- tabelecido nos processos de refor-
cessário, no entanto, que sejam in- tares entre si, finalizado à admi- ma das instituições formativas (da
troduzidos outros dispositivos de nistração das “coisas” (a primeira) creche à universidade), capaz de
controle, finalizados à governança e ao governo das “pessoas” (a se- transformar as diversas individu-
das subjetividades dos indivíduos. gunda). Por um lado, assiste-se ao alidades postas ao trabalho e em
Aqui se insere a terceira tendência desenvolvimento de uma gover- valor em subjetividades individu-
do controle social, que se move nança da técnica (techné) como alistas, perenemente em luta entre
em uma via dupla: o controle dos um dispositivo de formação que si e, portanto, autoanuladoras. ■

Leia mais
- O conceito de subsunção do trabalho ao capital: rumo à subsunção da vida no capita-
lismo biocognitivo. Artigo de Andrea Fumagalli publicado no Cadernos IHU Ideias, edição
256, disponível em http://bit.ly/2pIsosC;
15
- A morte da democracia e a farsa neoliberal da neutralidade da moeda. Entrevista es-
pecial com Andrea Fumagalli publicada na revista IHU On-Line, nº 473, de 28-9-2015, dispo-
nível em http://bit.ly/2pIsiRR;
- Do Welfare State para o Workfare e a necessidade de novos sistemas financeiros
autônomos. Entrevista especial com Andrea Fumagalli publicada nas Notícias do Dia, de
2-10-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em goo.gl/66zAjE;
- O biopoder e os mercados financeiros. Entrevista especial com Andrea Fumagalli pu-
blicada na revista IHU On-Line, nº 418, de 13-5-2013, disponível em http://bit.ly/2ovWqhm;
- Os impactos da financeirização sobre o sujeito. Entrevista especial com Andrea Fu-
magalli publicada na revista IHU On-Line, nº 343, de 13-9-2010, disponível em http://bit.
ly/2pXm7Zn;
- As finanças no comando bioeconômico do trabalho vivo. Entrevista especial com An-
drea Fumagalli publicada na revista IHU On-Line, nº 327, de 3-5-2010, disponível em http://
bit.ly/2pktb68;
- “Os mercados financeiros são o coração pulsante do capitalismo cognitivo”. Entrevista
especial com Andrea Fumagalli publicada na revista IHU On-Line, nº 302, de 3-8-2009, dis-
ponível em http://bit.ly/2pJ3dZO.

EDIÇÃO 503
TEMA DE CAPA

Contra o eufemismo reducionista,


a luta por uma flexibilização justa
Jamie Woodcock analisa como as ocupações mediadas
por dispositivos digitais transformaram o que seria a liberdade
dos trabalhadores em escravidão ao sistema financeiro.
Ricardo Machado | Tradução: Walter O. Schlupp

N
a disputa narrativa sobre as está em jogo é a subsunção do trabalho
transformações do mundo do ao capital especulativo. “Essa tercei-
trabalho, o termo “flexibiliza- rização é feita mediante classificação
ção” tornou-se um eufemismo quase errônea, alegando que os trabalhadores
sempre invocado, mas nem por isso na verdade seriam empreiteiros autô-
menos poderoso. A questão, porém, é nomos e independentes. Isso torna as
que esta palavra tende a ter a própria empresas mais atraentes para os inves-
complexidade reduzida. “Muitos de tidores potenciais, pois mantém os tra-
nós queremos uma relação de empre- balhadores fora dos livros da empresa e
go mais flexível, que se adapte a nossas permite que a empresa transfira o ris-
vidas e a outros compromissos. No en- co da demanda para os trabalhadores,
tanto, muitas vezes essa flexibilidade é ao invés de arcar com esse risco. Não
oferecida via marketing, mas a realida- é inovador, exceto no sentido de en-
de é que se trata de flexibilidade apenas contrar uma nova forma de lucrar com
16 mão de obra e trabalho alheios”, critica.
nos termos do capital, criando trabalho
flexível que assume os riscos do traba- “A ascensão dessas empresas tem sido
lho”, analisa Jamie Woodcock, em apoiada por um excesso de dinheiro
entrevista por e-mail à IHU On-Line. disponível para investimento, o qual
“É possível lutar contra a precariedade precisa ser aplicado, e a ‘economia do
sem perder a flexibilidade, mas isso exi- biscate’ tornou-se um local para inves-
ge criatividade para pensar sobre que tir, embora a maioria das plataformas
tipos de demandas podem ser conquis- ainda esteja por apresentar lucro ou re-
torno sério”, explica.
tadas”, complementa.
Ao analisar o cenário da precariza- Jamie Woodcock é doutor em So-
ção do trabalho na Inglaterra, Jamie ciologia pela Universidade de Londres
Woodcock destaca que as novas formas e tem suas pesquisas voltadas à eco-
de ocupação mediadas por dispositivos nomia digital e às transformações no
digitais geram subempregos, com falta mundo do trabalho.
de garantias e salários baixos. O que Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual o atual ce- tos de trabalho da indústria por manais de trabalho) e a chamada
nário do mundo do trabalho na serviços de baixa remuneração. “economia do biscate [gig]”, em
Inglaterra atualmente? Isto implicou uma relação de tra- que o trabalho é organizado atra-
Jamie Woodcock – O estado balho cada vez mais precária, com vés de plataformas on-line sem
atual do mundo do trabalho na aumento do trabalho temporário proteção tradicional do emprego.
Inglaterra caracteriza-se por uma e de tempo parcial. Em particu- Esta precariedade está alcançan-
série de tendências no longo pra- lar, isto envolveu o aumento dos do cada vez mais categorias de
zo. A primeira é a desindustria- contratos de zero hora (em que os emprego, tanto no setor privado
lização na década de 1970/1980, trabalhadores não têm garantia de como no público. A segunda ten-
que levou à substituição dos pos- determinado número de horas se- dência importante é o declínio das

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REVISTA IHU ON-LINE

“Mantém os trabalhadores
fora dos livros da empresa
e permite que a empresa
transfira o risco da demanda
para os trabalhadores”

formas tradicionais de sindica- IHU On-Line – Quais as ques- significativamente abaixo do salá-
lismo. Os sindicatos restam con- tões de fundo, referentes ao rio mínimo.
centrados no setor público, com mundo do trabalho, por trás do
perfil etário avançado. Não foram marketing discursivo das star-
capazes de se organizar com êxito tups da moda? Trata-se de uma IHU On-Line – No cenário
em novos setores, embora haja su- cortina de fumaça à precariza- atual, como se dão as mobiliza-
cessos emergentes como o IWGB ção dos trabalhadores? ções dos trabalhadores?
[Sindicato Independente dos Tra- Jamie Woodcock – A mobili-
Jamie Woodcock – Flexibilida-
balhadores da Grã-Bretanha] a zação dos trabalhadores está ocor-
de é um termo poderoso. Muitos de
se articular com trabalhadores da rendo de maneiras novas e antigas.
Deliveroo [serviço de entrega de nós queremos uma relação de em-
prego mais flexível, que se adapte Por exemplo, os motoristas da Deli-
refeições, via aplicativo]. veroo se reúnem regularmente nas
a nossas vidas e a outros compro-
estradas e perto de restaurantes
missos. No entanto, muitas vezes
movimentados, trocando informa- 17
IHU On-Line – Como as star- essa flexibilidade é oferecida via
ções de contato e se comunicando
tups estão transformando o marketing, mas a realidade é que
em mídias sociais. As greves do ano
mundo do trabalho? se trata de flexibilidade apenas nos
passado foram feitas em resposta
termos do capital, criando trabalho
Jamie Woodcock – As startups a uma mudança no contrato que a
flexível que assume os riscos do
estão buscando aplicar o modelo empresa estava tentando forçar, fo-
trabalho. É possível lutar contra a
“Uber para X” para descompor se- ram enfrentadas com uma recusa de
precariedade sem perder a flexibi-
tores e indústrias existentes, apli- mão de obra e um protesto fora da
lidade, mas isso exige criatividade
cando o modelo de plataforma que sede. Não se deve esquecer que os
para pensar sobre que tipos de de- trabalhadores nessas plataformas
a Uber usou com sucesso para com-
mandas podem ser conquistadas. compartilham uma localização geo-
petir com as empresas de táxi exis-
tentes. Isso envolve um truque con- gráfica e permanecem capazes de se
tratual, classificando erroneamente comunicar e organizar. Esses tipos
IHU On-Line – Como estas es-
os motoristas como autônomos con- de mobilização ocorrem quase que
tratégias de criar empregos por
tratados independentes, eximindo a inteiramente fora das estruturas sin-
demanda implicam, por exem-
empresa de suas obrigações, como dicais tradicionais do Reino Unido e
plo, que existam trabalhadores
salário mínimo, pagamento de fé- estão passando por novos modos de
que não recebem nem mesmo o
rias e subsídio de doença [sick pay, organização, que se adaptam a seus
salário mínimo?
pago pelo empregador]. Este tipo próprios esquemas de trabalho.
de trabalho pode continuar flexível Jamie Woodcock – A “criação”
para os trabalhadores [mesmo fora de postos de trabalho por demanda
das plataformas digitais], uma vez não está satisfazendo as necessida- IHU On-Line – Como os novos
que no Reino Unido existe uma ca- des de muitos trabalhadores desde dispositivos digitais reorgani-
tegoria de emprego para “trabalha- a crise econômica de 2008. Trata- zam a forma de mobilização
dores” diferente de “empregado”, -se, em grande parte, de subem- dos trabalhadores em torno de
que mantém mais direitos do que o prego, com os trabalhadores assu- melhores condições de traba-
estatuto de trabalhador autônomo. mindo vários “biscates” [gigs] para lho? De que forma isso ocorre?
O estatuto jurídico em voga cria satisfazer as suas necessidades. O Jamie Woodcock – O uso gene-
condições precárias e difíceis, im- aumento desses tipos de empre- ralizado de dispositivos digitais para
plica perda de impostos para o go- go tem sido a premissa de baixos organizar os trabalhadores também
verno e conduz a piores condições salários e falta de segurança, com fornece um novo canal de comunica-
no mundo do trabalho. muitos trabalhadores ganhando ção para os próprios trabalhadores

EDIÇÃO 503
TEMA DE CAPA

se mobilizarem. Os portões tradi- dicatos de hoje, com taxas de adesão inauguram um novo tipo de
cionais das fábricas mudaram e se decrescentes e concentrados em se- economia formal, a gig eco-
dispersaram, mas o capital ainda tores e indústrias tradicionais. Assim nomy? No fundo, de que trata
exige que os trabalhadores se co- sendo, não é muito surpreendente essa ideia de gig economy?
muniquem e cooperem, com novos que os sindicatos não se arrisquem
Jamie Woodcock – A “gig eco-
pontos de encontro e possibilidades a organizar-se nessas novas áreas de
nomy” [economia do bico ou biscate],
de organização. Muitos desses são trabalho. Mas é preciso tentar com-
como tem sido chamada, é uma nova
experimentos e terão êxitos e fracas- binar as melhores tradições do sin-
maneira de gerir as empresas pela efi-
sos, mas há um processo de recom- dicalismo com as novas experiências
caz terceirização da mão de obra neces-
posição à medida que os trabalhado- de trabalho, procurando métodos
sária para o trabalho. Essa terceirização
res aprendem a se organizar nesses de organização adequados. A IWGB
é feita mediante classificação errônea,
novos contextos. está começando a fazer isso, porém
alegando que os trabalhadores na ver-
mais experimentos são necessários.
dade seriam empreiteiros autônomos e

“É possível lu-
independentes. Isso torna as empresas
IHU On-Line – Qual impacto mais atraentes para os investidores po-

tar contra a trouxe à Grã-Bretanha a deci-


são do Tribunal do Trabalho da
tenciais, pois mantém os trabalhadores
fora dos livros da empresa e permite

precariedade Inglaterra, ao admitir que um


trabalhador do Uber não é autô-
que a empresa transfira o risco da de-
manda para os trabalhadores, ao invés

sem perder a nomo, mas tem vínculo empre-


gatício? Que tipos de mudanças
de arcar com esse risco. Não é inova-
dor, exceto no sentido de encontrar
flexibilidade” podem ocorrer nas relações en-
tre prestadores de serviço e as
uma nova forma de lucrar com mão
de obra e trabalho alheios. A ascensão
startups? Quais podem ser os dessas empresas tem sido apoiada por
efeitos em nível global? um excesso de dinheiro disponível para
IHU On-Line – De que forma investimento, o qual precisa ser aplica-
estas mobilizações vão contami- Jamie Woodcock – As ações ju- do, e a “economia do biscate” tornou-se
18 diciais que têm acontecido no Reino
nando diferentes tipos de servi- um local para investir, embora a maio-
ços baseados em aplicativos? Unido são importantes, especial- ria das plataformas ainda esteja por
mente por causa da errônea classifi- apresentar lucro ou retorno sério.
Jamie Woodcock – A campa- cação dos trabalhadores como autô-
nha na Deliveroo foi amplamente nomos contratados independentes.
compartilhada através das mídias No entanto, há também o risco de IHU On-Line – Dada a atual
sociais, atingindo trabalhadores em as campanhas acabarem desmobi- conjuntura, quais são os limi-
diferentes plataformas e amplo le- lizadas em função de as pessoas se tes e as possibilidades para
que de outras pessoas. Esse tipo de fiarem no direito do trabalho, em novas organizações no mundo
visibilidade aumentada pode ajudar vez de fazerem a iniciativa coletiva do trabalho?
a ganhar ímpeto e solidariedade, conquistar mudanças. Os exemplos
espalhando a informação sobre ini- Jamie Woodcock – A organização
mais marcantes foram aqueles que
ciativas muito mais rápido do que dos trabalhadores enfrenta uma série
combinaram a auto-organização
acontecia anteriormente. de novos desafios no trabalho. O traba-
dos trabalhadores com as ações ju-
lho foi transformado, os trabalhadores
diciais, em vez de os trabalhadores
se encontram em situações mudadas,
ficarem apenas esperando por deci-
IHU On-Line – Qual a relevân- às vezes sem locais físicos de trabalho.
sões. Isso enfraquece a base do mo-
cia dos sindicatos tradicionais No entanto, existe o risco de exagerar
delo de negócios que essas empresas
dentro desta nova organização a novidade. O trabalho tem sido con-
começaram a usar, fiando-se em
do trabalho e dos trabalhado- tinuamente transformado ao longo da
baixo pagamento dos trabalhadores
res? De que maneira a forma história, sua composição técnica muda
e deixando-os a arcar com os custos
tradicional de mobilização se em função de novos processos de tra-
acessórios. Para que isso evolua para
tornou obsoleta? balho, uso de tecnologia e técnicas de
além dos países localmente é preciso
gestão. Isso também acarretou novas
Jamie Woodcock – Como sin- envidar maiores esforços para de-
composições políticas dos trabalhado-
dicalista, acredito que é crucial os fender padrões mínimos e deman-
res ao resistirem e se organizarem de
trabalhadores se organizarem. No das conjuntas a fim de melhorar as
novas maneiras. A tarefa da pesquisa
entanto, muitos sindicatos estão condições dos trabalhadores.
não é fornecer soluções para os novos
desconectados das novas condições
desafios de organização, mas explorar
de trabalho e não são capazes de se
IHU On-Line – Como as star- como os trabalhadores já estão expe-
organizar dentro delas. Em parte,
tups de serviço autônomo rimentando novas formas e contribuir
isso é um reflexo do estado dos sin-
para a generalização dos sucessos. ■

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TEMA DE CAPA

Uberização traz ao debate a relação entre


precarização do trabalho e tecnologia
Para Ludmila Costhek Abílio, a lógica do Uber expõe algo
obscurecido: as novas tecnologias atualizam uma deterioração
das relações trabalhistas iniciada há tempos
Ricardo Machado | Edição: João Vitor Santos

H
avia expectativa de que a revo- deixa muito evidente uma relação fa-
lução tecnológica traria mais cilmente obscurecida, entre desenvol-
tempo e liberdade ao trabalha- vimento tecnológico e precarização do
dor. De fato, hoje, há quem acredite que trabalho”, completa, na entrevista con-
isso ocorre. Entretanto, a cientista so- cedida por e-mail à IHU On-Line. “O
cial Ludmila Costhek Abílio alerta que que é fundamental para a compreensão
é uma ilusão, vide a lógica do trabalho da uberização, é tirar um olho da ino-
no Uber. A realidade é que esses usos vação tecnológica para olhar o que há
das tecnologias vêm precarizando as de mais precário e socialmente invisível
relações de trabalho através da sedução no mundo do trabalho”, aponta.
de, por exemplo, uma ilusória ideia de Ludmila Costhek Abílio é doutora
liberdade por não ter patrão. “Ao mes- em Ciências Sociais pela Universida-
mo tempo em que se livra do vínculo de Estadual de Campinas –Unicamp.
20 empregatício, a uberização mantém, de Possui graduação em Ciências Sociais
formas um tanto evidentes, o controle, pela Universidade de São Paulo – USP
gerenciamento e fiscalização sobre o tra- e mestrado em Sociologia pela mes-
balho”, adverte. Para ela, a perspectiva ma instituição. Fez seu Pós-doutorado
é ainda inteiramente aliada com a ideia (USP) sobre a constituição dos dis-
de empreendedorismo de si. “Trata-se cursos sobre a chamada “nova classe
então da consolidação da transformação média” brasileira, tratando da relação
do trabalhador em um nanoempreende- entre exploração do trabalho e acumu-
dor de si próprio”, pontua. lação capitalista, com estudo sobre o
A pesquisadora salienta que a preca- trabalho dos motofretistas na cidade de
rização do trabalho não é novidade. A São Paulo. Atualmente é pesquisadora
lógica do capital globalizado não com- do Centro de Estudos Sindicais e de
bina com direitos e vínculos emprega- Economia do Trabalho – Cesit, na Fa-
tícios sólidos. Daí as tentativas de reor- culdade de Economia da Unicamp. En-
ganização dessa relação, de modo que tre suas publicações, destacamos Sem
o grande favorecido seja o empregador maquiagem: o trabalho de um milhão
capitalista. Para Ludmila, o que há de de revendedoras de cosméticos (São
novo é o uso das novas tecnologias Paulo: Boitempo, 2014).
a serviço dessa lógica. “A uberização Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como a senho- ela ajuda a entender o mundo uma série de transformações do tra-
ra compreende a ideia de “ube- do trabalho na atualidade? balho, que em realidade estão em
rização do trabalho”1? Como curso há décadas. A empresa Uber
Ludmila Costhek Abílio – A
deu visibilidade a uma nova forma
uberização do trabalho se refere a
1 Uberização: Termo derivado da expressão Uber,
de organização, controle e geren-
que é o nome de uma empresa norte-americana ciamento do trabalho, que está as-
de serviço de transporte que os consumidores
acionam através de um aplicativo de smartphone. celulares. Esse tipo de modalidade de negociação sentada nestes processos. É preciso
Nesse sentido, uberização significa o oferecimen- pode ser incluído na categoria dos serviços “on compreender a economia digital
to de serviços ou de produtos através do aciona- demand” (oferecidos de acordo com a demanda).
mento de plataformas disponíveis em telefones (Nota do IHU On-Line) como um campo poderoso de reor-

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“O mundo do trabalho
vai sendo tecido por uma
série de atividades que
não têm um estatuto de
trabalho bem definido”

ganização do trabalho, mas não per- deu visibilidade aos elementos cen- jogo. A empresa aparece e se legiti-
der de vista que ela realiza uma atu- trais desse processo e de como ope- ma como uma mediadora que forne-
alização de elementos que estão em ram agora de forma extremamente ce a infraestrutura para a realização
curso no mundo do trabalho, e que, bem articulada, além de deixar evi- do trabalho.
sim, estão fortemente ligados com o dente que ele ocorre de forma global.
Há muito tempo o trabalhador foi,
desenvolvimento tecnológico, mas
no discurso do mercado, transfor-
não só isso. Trata-se da relação das Uberização: conceitos e re-
mado em “colaborador”. A uberiza-
reconfigurações do papel do Estado flexos
ção parece consolidar esta perspec-
– seja na eliminação de direitos do
Podemos então começar destacan- tiva, que, em realidade, é mais uma
trabalho, seja na eliminação das bar-
do os principais elementos que te- forma de obscurecer a exploração e
reiras ao fluxo do capital, trata-se do
cem a uberização e fazem dela uma tornar ainda mais precária a condi-
desemprego e de uma perda de for-
definição relevante. Primeiramente, ção do trabalhador. Empresas como
mas do trabalho, além de mudanças
na subjetividade do trabalhador. a questão da eliminação do vínculo a Uber se afirmam como mediadoras 21
empregatício. O trabalhador é um entre consumidores e estes trabalha-
Além disso, a uberização está rela- nanoempreendedor, e a empresa dores que se tornam ofertadores de
cionada com a crescente imbricação não é uma empregadora, mas uma serviços. Só falta lembrar que nesta
da esfera do consumo na esfera do parceira, não há qualquer tipo de mediação elas definem os ganhos
trabalho, assim como com o encon- contrato de trabalho, nem mesmo do trabalhador, definem e detêm os
tro contemporâneo entre vigilância, de prestação de serviços. Este tra- instrumentos de avaliação sobre o
coleta de dados, gerenciamento e balhador passa a ser definido como seu trabalho, criam regras e formas
exploração do trabalho, e a esfera um microempreendedor, que tem li- de estímulo ao trabalho que se con-
do consumo. Por fim, a uberização berdade sobre seu próprio trabalho, fundem e operam como controles
deixa muito evidente uma relação que não tem patrão, que administra da produtividade do trabalhador.
facilmente obscurecida, entre de- sua própria vida para sobreviver. Ao mesmo tempo em que se livra do
senvolvimento tecnológico e preca- Um trabalhador que arca ele pró- vínculo empregatício, a uberização
rização do trabalho, e nos possibilita prio com os riscos, com uma série de mantém, de formas um tanto evi-
hoje ver como elementos recorrente- custos, e não conta com os direitos dentes, o controle, gerenciamento e
mente considerados periféricos, de- que vinham associados à exploração fiscalização sobre o trabalho. Trata-
simportantes, por vezes até mesmo de seu trabalho. O professor Ricar- -se então da consolidação da trans-
definidos como “pré-capitalistas” do Antunes3 refere-se à sociedade da formação do trabalhador em um
em pleno século XXI, estão hoje no terceirização total, é isto que está em nanoempreendedor de si próprio. E
centro desta forma de exploração. da empresa como uma simples pro-
Centro em duplo sentido, pois o que 3 Ricardo Antunes: graduado em Administração vedora dos meios de trabalho.
Pública, mestre e doutor em Ciências Sociais, é
a uberização deixa explícito é que professor titular de Sociologia no Instituto de Fi-
losofia e Ciências Humanas da Unicamp. É autor Em segundo, esta transformação
os países do “centro” já sabem bem de Adeus ao trabalho? Ensaio sobre as metamorfo-
ses e a centralidade do mundo do trabalho. 3ª ed. não é meramente discursiva. É como
o que é viração, o que é trabalho in-
São Paulo: Cortez, 1995 e Os sentidos do trabalho. se a flexibilização finalmente che-
formal, o que é trabalho amador, sob Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho.
6ª ed., São Paulo: Boitempo Editorial, 2003, entre gasse ao resultado almejado que está
o nome “globalizado” para isso (ou outros. O IHU realizou uma série de entrevistas
com o professor. Entre elas A crítica e subversão em processo há décadas: o de trans-
seja, cunhado no centro), a Gig eco-
de Gorz ao capital, publicada na IHU On-Line nú- formar o trabalhador em trabalha-
nomy.2 Portanto, a empresa Uber mero 238, de 1-10-2007, disponível em http://bit.
ly/2pgWYfP; e “O governo Lula foi uma surpresa dor just-in-time, ou seja, um traba-
muito bem-sucedida para os grandes capitais”. En-
2 Gig economy: o termo se refere ao que no Bra- trevista especial com Ricardo Antunes, publicada lhador disponível ao trabalho e que
sil costumou-se chamar de “bicos”, isto é trabalho nas Notícias do Dia de 26-4-2014, no sítio do IHU, pode ser utilizado na exata medida
informais sob todos os pontos de vista e de curto disponível em http://bit.ly/2osU2b7. Confira mais
prazo. (Nota da IHU On-Line) em ihu.unisinos.br. (Nota da IHU On-Line) das demandas do capital. A empresa

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TEMA DE CAPA

Uber deu visibilidade a este padrão, isto não é uma novidade – é esta uti- diz que só precisa de você por 50. (A
mas, como diz o professor Marcio lização – agora de forma organizada solução? Recorrer a outro aplicati-
Pochmann4, é possível pensar que e racionalizada pelo capital, isso sim vo). Já estavam então na condição
seja generalizável por todos os seto- uma novidade – da capacidade do de just-in-time, mas ela pode piorar.
res econômicos. O capital conta com trabalhador de gerenciar seu próprio A Deliveroo queria fazer algo muito
a disponibilidade do trabalhador, e trabalho, intensificar seu trabalho, simples, transformar o pagamento
não paga por ela. A eliminação de estender seu tempo de trabalho. Até por hora em pagamento por entre-
vínculos também quer dizer então isto é passível de terceirização, uma ga, eliminando assim os custos sobre
que o tempo de não trabalho já não constatação que em realidade está tempo de não trabalho. É um cabo
entra na conta do capital. Este nano- no cerne do que convencionamos de guerra.
empreendedor torna-se responsável chamar de flexibilização do trabalho.
Em terceiro, temos que entender
pelo gerenciamento de si próprio Autogerenciamento e transformação
por que essa subordinação se reali-
nesta disponibilização cambian- do trabalhador em trabalhador just-
za por uma nova forma de gerencia-
te e instável de seu trabalho. Além -in-time andam juntos.
mento do trabalho. As terceirizações,
de estar disponível para o trabalho
Mas não podemos esquecer que o empreendedorismo, os elementos
quando demandado, ele tem de esta-
isto envolve uma enorme disputa em da flexibilização do trabalho vêm há
belecer suas próprias estratégias que
torno das determinações do traba- tempos envolvendo esse esfacela-
garantam sua reprodução no tempo
lho, envolve o Estado em diferentes mento de vínculos que dão garantias
em que não é necessário, afinal ele
frentes, envolve os movimentos or- e algum tipo de segurança e proteção
está vivo independentemente das
ganizados e novos movimentos que já ao trabalhador. Já sabemos há tem-
demandas do capital...
começam a tomar forma. Por exem- pos que a flexibilização do trabalho
O que estamos vendo em ato é a plo, recentemente a justiça de Belo foi um veículo poderoso para a in-
demanda pela capacidade do tra- Horizonte assim como a da Inglaterra tensificação do trabalho, para a ex-
balhador em administrar a própria reconheceram o vínculo empregatício tensão do tempo de trabalho, assim
vida sem as redes de proteção míni- dos motoristas com a empresa. como para formas contemporâneas
mas – e que, é bom sempre lembrar, de engajamento do trabalhador. A
Esta luta é permanente, e com ela
22 nunca se consolidaram de forma ge-
germinam novas formas de resis-
novidade da uberização reside na for-
neralizada em países como o Brasil. ma como tudo isso opera. Temos um
Trata-se do savoir-faire5 que permi- tência e organização. Recentemente, novo gerenciamento do trabalho, que
ta ser um motofretista que trabalha na Inglaterra, trabalhadores – mo- muitas vezes passa a ser executado
para uma empresa e dois aplicativos toboys e ciclistas – do aplicativo de na esfera do consumo. Se a avaliação
ao mesmo tempo, ser um engenheiro entrega de comidas Deliveroo, or- é um elemento chave no mundo do
e motorista Uber, ser uma secretária ganizaram-se e enfrentaram a com- trabalho neoliberal, agora a sua exe-
e revender produtos da Natura. O panhia. A organização se deu por cução pode ser terceirizada para uma
que está em jogo na uberização – e meio das redes sociais, dos grupos multidão de consumidores ativos e
novamente é preciso salientar que de whatsapp. O meio de resistência confiantes no seu papel certificador.
foi a greve. Qual greve? Os nano- O motorista se sabe permanentemen-
4 Marcio Pochmann (1962): economista e polí- empreendedores evidenciam a sua te avaliado, é disto que depende seu
tico brasileiro. Foi pesquisador visitante em uni- condição de trabalhadores, e para-
versidades da França, Itália e Inglaterra, com pós- acesso às “tarefas” oferecidas; o con-
doutorado nos temas de relações de trabalho e lisam a distribuição. Como? Desli- sumidor, ao mesmo tempo em que
políticas para juventude. Também atuou como
consultor no Serviço Brasileiro de Apoio às Mi- gando o aplicativo. Durante um dia avalia, também se fia na avaliação
cro e Pequenas Empresas (Sebrae), na Federação inteiro, centenas de trabalhadores
das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e da multidão de consumidores. Isto é
no Dieese. Foi também presidente do Instituto de recusaram-se a fazer entregas. Con- muito interessante, porque a certifi-
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), em Brasília.
O IHU vem publicando uma série de entrevistas centrados em frente a empresa, o cação sobre o trabalho sai da mão do
com o professor. Entre elas, Valores da periferia diretor desce para conversar com os
estão mais próximos do anarquismo do que do Estado e de procedimentos publica-
liberalismo. Entrevista especial com Marcio Po- grevistas. Ele diz: “quero falar com mente estabelecidos e passa a se dar
chmann, publicada nas Notícias do Dia de 17-4-
2017, disponível em http://bit.ly/2o4IH5F. Acesse vocês individualmente, nós vamos na relação entre gerenciamento da
mais em ihu.unisinos.br. (Nota da IHU On-Line) ouvir a demanda de cada um”. Mas
5 Savoir-faire: é um termo franco utilizado am- multidão de consumidores e o cultivo
plamente em vários segmentos para designar o os trabalhadores já compreenderam da força da marca.
conhecimento específico na realização de uma
tarefa prática ou na solução de um problema prá- ali seu poder enquanto movimento.
tico. Pode ser utilizado tanto para pessoas como Não teve jeito, a empresa teve de
para instituições e empresas. Savoir-faire também Iludidos pelo capital
é a habilidade de relacionar-se com outras pes- ceder, ao menos em parte. Qual era
soas, isto é, a capacidade de cativar através da
comunicação, entendendo e respeitando o posi- o mote do protesto? Trabalhadores Entretanto, a multidão de consu-
cionamento do outro, ao mesmo tempo defen- da Deliveroo ganham por hora, e as midores apenas executa o gerencia-
dendo a própria individualidade; é equivalente ao
termo Competência social, mas difere do termo horas não são fixas (algo que não é mento. O poder de estabelecer as
‘Physique du Rôle’, que significa algo como ‘Sabe
se comportar para a ocasião’, que é empregado novo na legislação inglesa). Esta regras, as formas de controle sobre o
nas situações em que é uma característica inata semana a empresa diz que você vai trabalho, além dos ganhos do nano-
da pessoa, enquanto o Savoir-faire pode ou não
ser inato à pessoa. (Nota da IHU On-Line) trabalhar 70 horas, chega o verão ela empreendedor, seguem nas mãos do

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REVISTA IHU ON-LINE

capital, ou seja, da empresa que é a balho do consumidor) tem enquanto permeados pelos “serviçais pré-ca-
“mediadora” da relação entre oferta força explicativa é essa ideia de que o pitalistas”.
e procura. Estas mãos estão plena- mundo do trabalho vai sendo tecido
A uberização é um processo novo,
mente automatizadas nos softwares por uma série de atividades que não
entretanto os seus elementos cen-
e algoritmos que são propriedade têm um estatuto de trabalho bem
trais são uma espécie de atualização
destas empresas. Ou seja, a intangi- definido, e isto lhes confere uma
de características constitutivas do
bilidade deste controle e da relação enorme maleabilidade. Esta male-
mercado de trabalho brasileiro, por
de subordinação é desafiadora: a abilidade na prática se traduz em
exemplo. E características centrais à
empresa é um aplicativo, o trabalha- mais exploração para o trabalhador.
acumulação capitalista, mas que são
dor é um parceiro, o gerenciamento Em qual sentido? No sentido de que
facilmente invisibilizadas. A viração
é programado por um software, o ge- são atividades que se combinam com
é um termo muito expressivo e que
rente é uma multidão. outras ocupações, que permitem for-
poderia ser mais utilizado para com-
mas informais de extensão do tempo
Mas essa imaterialidade ao mesmo preendermos o mundo do trabalho
de trabalho e de intensificação do
tempo que é central, também é frá- brasileiro. Na década de 1990 foi uti-
trabalho. O que é muito importante
gil, ela pode se desfazer rapidamen- lizado pela professora Maria Filome-
reter é que esta perda da forma tra-
te, quando os trabalhadores utilizam na Gregori7 para analisar a trajetória
balho pode ser extremamente lucra-
os instrumentos da uberização para de meninos de rua e suas formas de
tiva e utilizada de maneira produtiva
sua própria organização, como no sobrevivência, assim como pela pro-
pelo capital. Em realidade, está sen-
caso dos trabalhadores do Deliveroo. fessora Vera Telles8, para definir a
do utilizada de forma racionalizada e
Quando os trabalhadores paralisam trajetória entre trabalho formal e
centralizada pelo capital.
seu trabalho, usam as suas redes para informal, atividades lícitas e ilícitas,
se organizar, e demonstram que são empregos, bicos, trabalhos sem for-
centenas, milhares, enfrentando uma IHU On-Line –A uberização do ma trabalho que constituem a sobre-
empresa, aí toda aquela intangibili- trabalho é resultado de um pro- vivência na periferia.
dade cai por terra. Fica evidente que cesso da economia digital ou de A economia digital deu visibilidade
são trabalhadores, fica evidente que a uma complexidade maior das e, podemos dizer, subsumiu de for-
empresa não é meramente uma me- dinâmicas de trabalho? Do que 23
ma organizada, racionalizada e pro-
diadora, mas uma companhia que se trata essa complexidade? dutiva, a viração. O que isso quer
controla e explora o trabalho, e que
Ludmila Costhek Abílio – Esta dizer? Primeiramente que o trabalho
os trabalhadores têm poder de se or-
pergunta é muito boa para pensar- sem lastro, o trabalho que se realiza
ganizar dentro dessa lógica.
mos dialeticamente na uberização, sem a forma socialmente estabeleci-
Por fim, outro elemento central: a e então nos interrogarmos por uma da – que passa por regulamentações
uberização expressa uma crescente perspectiva “dos debaixo” sobre a do Estado, que confere uma identi-
adesão ao trabalho que vai perdendo novidade de todos esses elementos dade profissional, que oferecia uma
suas formas socialmente reguladas que apresentei. Trata-se de nos des- estabilidade que tem também di-
e estabelecidas que lhe conferem a fazermos de uma perspectiva recor- mensões subjetivas (como dizia Cas-
concretude de ser trabalho. Temos rente, que segue invisibilizando uma tel9, a “possibilidade de planejar o
aí de recorrer à categoria de traba- série de processos e contradições
lho amador, ou seja, um trabalho históricas ao jogar uma luz excessiva 7 Maria Filomena Gregori: professora Livre-Do-
que é trabalho, mas que não confere e ofuscante no desenvolvimento tec- cente do Departamento de Antropologia da Uni-
camp, possui graduação em Ciências Sociais pela
identidade profissional, que não tem nológico. O subsolo da uberização mesma instituição, mestrado em Ciência Política e
alguns dos elementos socialmente doutorado em Antropologia Social pela Universi-
está em processos que estão em jogo dade de São Paulo – USP, estudos de pós-douto-
estabelecidos que envolvem as regu- há décadas, mas além disso, realiza rado no Departament of Anthropology (UNIVER-
SITY OF CALIFORNIA, Berkeley, 2001) e programa
lações do Estado, que envolvem ele- uma espécie de globalização de ele- de visiting scholar na Columbia University (Nova
mentos que estruturam a identidade Iorque, 2016). (Nota da IHU On-Line)
mentos constitutivos de mercados 8 Vera Telles: professora livre-docente do Depar-
do trabalhador enquanto tal. O mo- de trabalho recorrentemente defini- tamento de Sociologia da Universidade de São
Paulo - USP e vice-coordenadora do Laboratório
torista de táxi é um motorista profis- dos como “periféricos”, “semiestru- de Pesquisa Social (LAPS/USP). No Programa de
sional, já o motorista Uber tem uma turados”, de baixa produtividade, Pós-Graduação em Sociologia (PPGS-USP), coor-
dena a linha de pesquisa Cidade e trabalho: nas
identidade flexível. Ele pode ser um interfaces entre a sociologia urbana e a sociologia
desempregado fazendo um bico, ele do trabalho, são desenvolvidas pesquisas sobre
e membro do Laboratoire de Changement Social trajetórias sociais e formas de mobilidade urba-
pode ser um trabalhador que com- et Politique (LCSP). Sua pesquisa se concentra na; sobre as mediações urbanas do trabalho, suas
sobre o quadro social da atividade humana. Suas formas de regulação e modos de territorialização,
plementa a renda, são milhares de investigações clínicas, qualitativas e quantitativas, bem como as relações entre o informal, o ilegal,
exemplos. O que a categoria de tra- se dão em grandes organizações privadas e públi- por vezes o ilícito, na produção dos espaços ur-
cas, observando a transformação de prescritores banos e territórios produtivos. (Nota da IHU On
balhador amador (utilizada por Ma- de trabalho (gerentes e executivos), os dispositi- -Line)
vos de ‘gestão’ que produzem e divulgam (gestão 9 Robert Castel (1933-2013): intelectual francês,
rie Anne Dujarier6 ao pensar no tra- por números, avaliação, processos de qualidade, filósofo e sociólogo, diretor de Estudos na École
cliente de coprodução etc.) e como os trabalha- des Hautes Etudes en Sciences Sociales. Partici-
dores e os consumidores estão experimentando pou junto com Foucault e com Bourdieu da cria-
6 Marie Anne Dujarier: socióloga do trabalho, as transformações nas relações no mundo atual. ção da carreira de Sociologia em Paris. Pensador
professora da Universidade Paris 7 Denis Diderot (Nota da IHU On-Line) central da sociologia francesa atual, interessou-

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TEMA DE CAPA

futuro”) – agora torna-se uma fonte bre eles e extrai lucro desta relação, Zara10. A exploração do trabalho nas
evidente da exploração do trabalho não é assim tão nova. Por exemplo, o últimas décadas do século 20 e no
que conta com alto desenvolvimento exército de 1,4 milhão de revendedo- século 21 se realiza nesse encontro
tecnológico, uma atuação predatória ras de cosméticos da empresa Natura, produtivo entre precarização do tra-
sobre o mercado da mobilidade ur- mulheres que combinam as revendas balho e desenvolvimento tecnológi-
bana no caso do Uber, e de dimen- com diversas outras ocupações e ati- co, o que, como já dito, em realidade
sões globais. vidades, que gerenciam seu próprio está no cerne do desenvolvimento
trabalho, em um trabalho que nem capitalista. Mas temos uma empre-
As dualidades entre trabalho for- mesmo tem a forma trabalho bem de- sa que já nem sabemos bem dizer o
mal e informal, entre trabalho pro- finida. Para o lado de dentro da fábri- que produz. Roupas? Onde estão as
dutivo e improdutivo, e outras linhas ca, o trabalho desta multidão é muito fábricas da Zara? Não existem en-
divisórias que acabam desembocan- bem administrado, informalidade se quanto tais. Ela é responsável pela
do na separação entre os que estão torna informação, em uma fábrica concepção – a qual provavelmente
dentro e os que estão fora dos cir- que praticamente tem sua produção também deve contar com seu exér-
cuitos da acumulação acabam por sob encomenda – feita por esta mul- cito de trabalhadores de alta quali-
obscurecer o papel que diversos tra- tidão de trabalhadoras. ficação transformados em pessoas
balhos têm no ciclo global do capital, jurídicas, ela conta com os setores
sua importância, seja como fonte de Economia digital e som- responsáveis pelo cultivo da marca,
trabalho produtivo não pago, seja bras de desemprego e do su- conta com a organização da logística
como fonte de eliminação de custos bemprego – e para tudo isso teríamos que pes-
e riscos para o capital. O que é fun- quisar até onde vai sua terceirização.
damental para a compreensão da Em realidade, quando pensamos Sua produção está assentada nos
uberização, e até mesmo para consi- em Economia digital, temos de pen- sweatshops, no trabalho escravo, nas
derá-la uma definição cabível ou re- sar no seu solo, do exército de traba- redes que organizam a exploração do
levante, é tirar um olho da inovação lhadores que vivem entre a ameaça trabalho imigrante, nas zonas de li-
tecnológica para olhar o que há de do desemprego, o rebaixamento do vre processamento que fomentam
mais precário e socialmente invisível valor da força de trabalho, os bicos, as piores e mais horríveis formas de
24 no mundo do trabalho. Em realida- as duplas jornadas de trabalho. Tudo exploração do trabalho. Sua atuação
de, a combinação entre precarização isso também é parte do campo da é global e difícil de mapear.
e desenvolvimento tecnológico está economia digital, mas vai para além
dele, e em realidade o precede. A exploração do trabalho humano
no cerne do desenvolvimento capi-
hoje está assentada numa enorme
talista, é isto que a uberização deixa Um bom exemplo, quando o go- mobilidade do capital. Esta mobili-
evidente. verno de Michel Temer aprovou em dade conta com a desregulamentação
Entretanto, a novidade de ter uma outubro de 2016 a invisibilizada lei de fluxos financeiros e de investimen-
multidão de trabalhadores “prestan- “salão parceiro-profissional parcei- tos, conta com formas extremamente
do serviços” para uma única empre- ro”, deixou evidente que a uberiza- eficazes de espraiar cadeias produti-
ção vai para muito além do campo da vas sem perder o controle sobre elas,
sa, a qual terceiriza o controle e ge-
economia digital. Pode estar lá, na- conta com essa combinação perversa
renciamento do trabalho ao mesmo
queles desimportantes (para muitas entre desenvolvimento econômico
tempo que detém a propriedade so-
abordagens) centros de trabalho e (obviamente teríamos de nos inter-
se, inicialmente, pela psiquiatria. Publicou A or- consumo feminino, que são os salões rogar sobre qual desenvolvimento)
dem psiquiátrica. Rio de Janeiro: Graal, 1978; e de beleza. Tornar o salão um prove- e progressiva eliminação de direitos
O psicanalismo. Rio de Janeiro: Graal, 1978. Hoje
orienta seus estudos para a crise do Estado do dor de infraestrutura para que suas e proteções do trabalho. O trabalha-
bem-estar. Um clássico seu é o livro As metamor- “parceiras” trabalhem, nada mais é
foses da questão social. Petrópolis: Vozes. 1998. dor hoje pode ter vários estatutos,
Dele publicamos uma entrevista na 115ª edição, do que apresentar e legalizar o mo-
de 13-9-2004. Robert Castel esteve na Unisinos
proferindo a conferência “O futuro da autonomia delo que tem muito potencial para se 10 Zara: rede de lojas espanhola de roupa, cal-
e a construção de uma sociedade de indivíduos”, generalizar pelo mundo do trabalho çado e acessórios para o público feminino, mas-
no dia 23-05-2007, durante o Simpósio Interna- culino e infantil. Fundada por Amancio Ortega e
cional O futuro da autonomia. Uma sociedade de (mesmo que nos interroguemos so- Rosalía Mera. Pertence ao Grupo Inditex, que tam-
indivíduos?, promovido pelo Instituto Humanitas bém detém outras marcas tais como: Massimo
Unisinos – IHU naquele ano. Da palestra, resultou bre os limites dessa generalização). Dutti, Pull and Bear, Oysho, Bershka, Stradivarius,
o artigo “O futuro da autonomia. Uma sociedade Uterque, Kiddy’s Class além da Zara Home (pre-
de indivíduos?”, publicado em no livro O futuro da sente em alguns países). Recentemente, a marca
autonomia e a construção de uma sociedade de foi avaliada em 25.221 milhões de dólares pelo
indivíduos: uma leitura sociológica (São Leopol- IHU On-Line – Que configura- ranking BrandZ, sendo considerada a segunda
do: Unisinos, 2009, 132 páginas). No sítio do IHU, marca de roupas mais valiosa do mundo. A loja
há inúmeros textos sobre sua obra. Entres eles ções a exploração do trabalho vem sendo denunciada por ter trabalhadores de
“As pessoas não são autônomas por natureza, por suas empresas em situações análogas ao trabalho
essência”, entrevista com Robert Castel, publicada humano assumiu no século 21? escravo. Na seções Notícias do Dia, no sítio do
na IHU On-Line número 220, de 21-5-2007, dis- IHU, é possível acessar uma série de notícias so-
ponível em http://bit.ly/2pW8E4S; e Um mundo Ludmila Costhek Abílio – Essa bre essa questão, entre elas Grife Zara é autuada
sem proteção. A morte de Robert Castel , artigo de por não cumprir acordo para acabar com trabalho
Jorge Barcellos, doutor em Educação pela UFRGS, pergunta dá pano para muita man- escravo, reproduzida nas Notícias do Dia de 13-5-
reproduzido nas Notícias do Dia de 7-4-2013, no ga. Falando em manga, podemos 2015, disponível em http://bit.ly/2oMgGyE. Aces-
sítio do IHU, disponível em http://bit.ly/2oDBaXc. se mais em ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias.
(Nota da IHU On-Line) começar por uma empresa como a (Nota da IHU On-Line)

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REVISTA IHU ON-LINE

além da permanência e crescimento de si próprio, cada vez mais respon- mas de controle e expropriação
do trabalho escravo, o de trabalhador sável em gerenciar seu trabalho, mas do trabalho com a uberização
formal, o de trabalhador informal, o um gerenciamento que não deixa de são, ao mesmo tempo, eviden-
de pessoa jurídica, o de micro e na- ser subordinado, permeado por no- tes, mas por outro lado, difíceis
noempreendedor. Ficou difícil ma- vas formas de promoção da intensifi- de mensurar?
pear os nós das cadeias produtivas, cação do trabalho, por novas formas
Ludmila Costhek Abílio – As
reconhecer as relações de trabalho. de eliminação de garantias, de direi-
formas de controle e expropriação
A situação toda se complica frente tos, permeado por diversos mecanis-
de empresas como a Uber, a Loggi, a
às ameaças do desemprego, que se mos que garantem a transferência de
Amazon Mechanical Turk ou mesmo
tornam um vetor da banalização das riscos e custos ao trabalhador, é algo
das revendedoras Natura, são evi-
formas de exploração, afinal, salve-se que atravessa o mercado de trabalho
dentes, mas ao mesmo tempo é di-
quem estiver empregado ou se tor- de cima a baixo.
fícil localizá-las, mapear sua fonte e
nando um proprietário de si próprio Além disso, é preciso olhar para as delimitar a forma como operam. Em
na “parceria” com as empresas. Con- transformações do mundo do traba- realidade, elas estão assentadas no
quistas históricas vão se tornando lho na sua relação com a dominân- informal. E informal aí quer dizer de
coisa do passado. cia financeira da valorização, ou seja, fato uma perda de formas socialmen-
como bem nos mostram François te estabelecidas e predeterminadas,
Novos proletários Chesnais13 e Leda Paulani14, para olhar o que em outras palavras quer dizer,
para o mundo do trabalho na contem- de regulações que em alguma medi-
Vemos também uma imensa prole-
poraneidade é preciso olhar para as da são publicamente constituídas.
tarização de trabalhadores intelectu-
transformações da acumulação capi- Esta perda de formas é tanto do lado
ais e de alta qualificação. Basta olhar
talista. A precarização do trabalho está do trabalho como do lado do contro-
para as lógicas que regem o trabalho
intimamente ligada às pressões da va- le, se é que podemos de fato pensá-
nas universidades, para os médicos
lorização financeira. -los separadamente. Transformar o
que têm de atender seis pacientes
Por fim, vale ainda lembrar, como trabalhador em nanoempreendedor
por hora para cumprir as metas do
bem nos mostra Cristophe Dejours15, quer dizer que as mediações que re-
convênio, para os trabalhadores Pes-
soa Jurídica - PJ de Tecnologia da que depressão, suicídios e uma série gulam seu trabalho não terão mais 25
de adoecimentos psíquicos também essa dimensão pública que podem
Informação - TI, como demonstrou a
são parte das configurações que a ex- – ou não – estabelecer alguns freios
professora Bárbara Castro11, que não
ploração do trabalho tem no século 21. à exploração. No cabo de guerra do
tiram férias, não podem ficar doen-
capital-trabalho, este é um elemen-
tes, têm jornadas extensas.
to em permanente disputa. Quando
Esta conversa é longa, e teríamos IHU On-Line – Como compre- se diz que o “acordado estará acima
também de adentrar os debates so- ender o paradoxo de que as for- do legislado”, por exemplo, estamos
bre o trabalho imaterial e sobre as vendo esta disputa em ato (e para
formas de exploração e gerencia- 13 François Chesnais: é professor francês de que lado a balança da desigualdade
economia internacional na Universidade de Paris
mento sobre a subjetividade do tra- XIII. É um grande crítico do neoliberalismo, sen- vai despencando seu peso).
do seu livro A mundialização do capital, publi-
balhador que ficaram evidentes com cado no Brasil em 1996, uma de suas obras de
maior repercussão no Brasil. Em 2005, a Editora
Esta perda de formas do trabalho
o Toyotismo12. A transformação do
Boitempo publicou outro importante trabalho confere uma maleabilidade, uma
trabalhador em um empreendedor organizado por Chesnais sobre a financeirização
da economia: A finança mundializada. (Nota da flexibilidade, uma potencialidade
IHU On-Line) de adaptação surpreendentes. Veja
11 Bárbara Geraldo de Castro: professora do De- 14 Leda Paulani (1954): é economista brasileira
partamento de Sociologia da Universidade Esta- e professora da Faculdade de Economia e Ad- bem, isso não quer dizer que o tra-
dual de Campinas - Unicamp, é mestra em Ciência ministração da Universidade de São Paulo - USP.
Política e doutora em Ciências Sociais pela Uni- Concluiu o bacharelado em economia em 1976 balhador não reconhece o seu tra-
camp, com estágio Doutoral no Departamento de na USP. Em 1981, graduou-se em Comunicação balho como trabalho, ele sabe muito
Sociologia da The Open University (Milton Key- Social com especialização em Jornalismo, pela Es-
nes, Reino Unido). Tem se dedicado à pesquisa cola de Comunicações e Artes da mesma universi- bem do que se trata. Mas o trabalho
na área de sociologia do trabalho e estudos de dade. Obteve seu doutorado no Instituto de Pes-
gênero, em especial à organização flexível do tra- quisas Econômicas da Universidade de São Paulo que ele desempenha está mais para
balho (tempo, espaço e contratos atípicos), e aos (IPE/USP) em 1992, e o título de livre docente em um trabalho amador. Ser motorista
seus impactos na subjetividade dos trabalhadores 2004. A professora já contribuiu no Cadernos IHU
e trabalhadoras. (Nota da IHU On-Line) ideias número 41, sob o título A (anti) filosofia de uber, ser revendedora natura, ser um
12 Toyotismo: modelo japonês de produção, Karl Marx, disponível em http://bit.ly/2oMaaYO.
criado pelo japonês Taiichi Ohno e implantado Além disso, concedeu entrevista ao IHU, publica- cientista amador do site Innocenti-
nas fábricas de automóveis Toyota, após o fim da da nas Notícias do Dia. Acesse em ihu.unisinos.br. ve, só é possível porque este trabalho
Segunda Guerra Mundial. Na década de 70, em (Nota da IHU On-Line)
meio a uma crise de capital, o modelo Toyotis- 15 Christophe Dejours: psicanalista e psiquiatra, é trabalho sem um estatuto estável e
ta espalhou-se pelo mundo. A ideia principal era professor de psicologia no Conservatoire national
produzir somente o necessário, reduzindo os es- des arts et métiers. Ele é autor de diversos livros, publicamente estabelecido. Nesta
toques (flexibilização da produção), produzindo dos quais destacamos Souffrance en France: la ba- perda de formas fica difícil definir o
em pequenos lotes, com a máxima qualidade, nalisation de l’injustice sociale (Paris: Seuil, 1998);
trocando a padronização pela diversificação e Travail, usure mental. Essay de psycopathologie du controle sobre o trabalho. Você não
produtividade. As relações de trabalho também travail (Paris: Bayard, 2000). De Christophe De-
foram modificadas, pois agora o trabalhador de- jours publicamos uma entrevista sobre esse livro, passa propriamente por uma sele-
veria ser mais qualificado, participativo e poliva- na 15ª edição da IHU On-Line, de 29 de abril de ção – adere quem quer, cumprindo
lente, ou seja, deveria estar apto a trabalhar em 2002, disponível em http://bit.ly/2oQ9GPQ. (Nota
mais de uma função. (Nota da IHU On-Line) da IHU On-Line) critérios mínimos; você trabalha

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TEMA DE CAPA

quando quer, você para de trabalhar rio uberizado?”. Temos de lidar com mais do que isto, passam a ser ele-
quando quiser, você estabelece sua a perspectiva sobre possíveis trans- mentos importantes em uma forma
própria forma de trabalhar; se parar formações qualitativas que vêm por de expropriação do trabalho que se
de trabalhar, é um número desativa- aí, quando o desenvolvimento da apropria deles de forma racionaliza-
do em um cadastro, entre centenas inteligência artificial já deixa claro a da e centralizada. É neste sentido que
que virão. possibilidade de realmente eliminar faço a provocação, de que a uberização
massivamente uma série de postos de realiza a subsunção real da viração.
Onde está o controle, quando parece
trabalho e profissões.
que não se exige nada do trabalhador?
Gig economy
Bom, mas este trabalhador é avaliado O que, de saída, está claro é que a
pelos consumidores, ele é ranqueado uberização, ao mesmo tempo em que Quando vemos o termo gig eco-
permanentemente, e sabe da compe- é uma novidade, em realidade confere nomy, entendemos: ah sim, agora a
tição que só tende a aumentar. Mas materialidade a processos em cursos viração tem visibilidade social. Por
ele não tem certeza sobre como esse nos mais diversos setores do mundo quê? Porque ela ultrapassou as fron-
ranqueamento opera, as regras não do trabalho há um bom tempo. In- teiras dos países “periféricos”, porque
são claras, ainda que permanente- tuitivamente faz sentido rapidamen- ela já não é mais “pré-capitalista”,
mente operantes. A competição é um te pensar em professores, médicos, porque ela chegou ao “centro”. En-
elemento permanente como forma de profissionais de limpeza, segurança, fim, são relações de poder que hie-
controle sobre o trabalho. Não se tra- engenheiros, advogados, uberizados. rarquizam e definem a nossa própria
ta da tensão entre ser empregado ou A uberização subsume de forma mais compreensão sobre nossa realidade
ser parte de um exército de reserva, clara o trabalho de profissionais li- e nosso lugar no mundo. É difícil se
se trata da tensão permanente em ter berais, transforma empregados em desvencilhar dessa engrenagem, e
acesso às tarefas em um universo cada nanoempreendedores, transforma das dualidades que organizam pen-
vez mais concorrido. No caso dos apli- fazedores de bico em trabalhadores samentos dominantes e obscurecem
cativos, o trabalhador também pode amadores bem subordinados. Em re- uma série de relações que em reali-
receber um “log off” da empresa. sumo, é disto que se trata. dade estão no cerne do desenvolvi-
O controle opera permanentemen- Mas também poderíamos comple- mento capitalista. Então é bom não
26 te, e a sua falta de clareza é o que lhe xificar mais ainda o debate. Se olhar- perder de vista essas hierarquizações
confere ainda mais eficácia. Já a ex- mos para o Brasil, alcançamos a “era quando pensamos em uma espécie
propriação é mais reconhecível. De do trabalho salarial” de fato para po- de globalização da viração. Podemos
saída, são aqueles 20 ou 25% que a dermos dizer que ela chegará ao fim? sim falar em globalização, contanto
empresa abocanha a cada tarefa por São questões difíceis que nos desafiam que isso não signifique reafirmar uma
fazer a “mediação” entre consumi- a pensar nos nossos horizontes, nas perspectiva que pensa em um movi-
dor e trabalhador. nossas referências, nas nossa persis- mento como o que vai das “margens”
tentes invisibilizações. O que está mais para o “centro”. O que está em jogo,
Mas, como disse antes, toda esta talvez pensando mais simplesmente,
do que claro é que os freios postos ao
imaterialidade se desfaz quando a é que os freios à exploração do traba-
capital em determinados países com
resistência vem à tona. lho que aqui pouco se consolidaram,
mais clareza e efetividade, durante um
período bem determinado do século agora também estão sendo postos à
XX, estes freios estão em jogo, e o que baila nos países do... “centro”.
IHU On-Line – Estamos dian-
te do fim da era do trabalho sa- vemos é uma luta em dimensões glo-
bais pela eliminação destes limites. Caminhos e perspectivas
larial? E agora, para onde va-
mos? O futuro do trabalho é o A flexibilização do trabalho, o neo- Para onde vamos? Não tenho ideia,
da gig economy ou ainda temos liberalismo e a globalização, por essa mas não me parece uma perspectiva
alternativas? perspectiva, têm de ser compreen- muito animadora. Pelo simples fato
Ludmila Costhek Abílio – Essa é didos nesta chave. Direitos sociais de que as forças do trabalho são ata-
uma questão complexa, e que, em re- se tornam custos sociais, mediações cadas em dimensões cada vez piores.
alidade, interroga quais são os limites publicamente constituídas na relação Entretanto, o capital está cada vez
da uberização. É possível pensar em capital-trabalho são postas em xeque, mais centralizado, e os mesmos meios
trabalhadores uberizados em todos a tendência a tornar o trabalhador um que hoje possibilitam a dominação e a
os setores? Ela é mais típica e pos- trabalhador-empreendedor just-in- exploração também são os meios que
sível no setor de serviços? Estas são -time é evidente e já está em ato. No propiciam formas de resistência que
questões que não estão respondidas, caso brasileiro, os elementos que em ainda estão por vir.
e que talvez nem devam ser ainda, te- realidade são constitutivos da vida de
Por exemplo, quando olho para os
mos de aventar sobre as tendências e grande parte da classe trabalhadora,
aplicativos, eu me lembro do profes-
possibilidades. Para complicar mais a em outras palavras, que são estrutu-
sor Paul Singer16. Logo teremos figu-
questão, ao mesmo tempo temos de rais em nosso mercado de trabalho,
nos perguntar: “é possível um operá- agora passam a ter visibilidade. Mas 16 Paul Singer (1932): austríaco, de Viena, mora

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REVISTA IHU ON-LINE

ras high tech que atualizarão pers- te caso está assentada justamente no O que nos mostra o fato de que em-
pectivas sobre a economia solidária, fato da multidão operar como mul- presas que hoje dominam o mercado
movimentos em busca de formas de tidão. A esfera do consumo também como a Procter e Gamble tenham
organização que resistam e rompam é parte disto, quando a multidão de estendido seus departamentos de
com a exploração e a desigualdade no consumidores se torna executora do pesquisa e desenvolvimento para os
campo da Economia digital. Claro que gerenciamento sobre o trabalho. Tudo laboratórios caseiros da multidão de
com elas virão os limites, as capturas está misturado, e não dá para separar cientistas amadores?
etc. O fato é que as contradições estão sem enfraquecer a análise. A multidão
muito evidentes, e às vezes parecem é feita de nanoempreendedores ca- Podemos ver o engajamento do
beirar o insuportável. O que virá daí, dastrados, que concorrem entre si de trabalhador em formas informais
felizmente, é o imponderável. forma ilocalizável, que se sabem parte de intensificação de seu trabalho,
de uma multidão. Motoristas Uber se em extensão do tempo de trabalho.
enfileiram em um terreno ao lado do Podemos ver que o trabalhador tem
IHU On-Line – Afinal de con- aeroporto de Guarulhos, e aguardam o savoir faire para trabalhar cada
tas, a Multidão se tornou um na fila, “você é o número 200 na lista vez mais, e temos de nos interrogar
bom negócio? De que forma? de espera”, em busca da corrida mais sobre suas motivações, as quais são
Ludmila Costhek Abílio – Sem lucrativa (e estar na fila não lhe garan- também muito pouco compreendi-
dúvida que sim. Já temos nome para te em realidade nada). das. Trata-se apenas de complemen-
isso. O crowdsourcing17. Sobre tudo tar renda? Sabemos que os sentidos
O crowdsourcing é algo novo, e que
que já conversamos, me parece que do mundo do trabalho, do lado do
desafia nossa compreensão. Borra
é importante salientar que a explo- trabalhador, vão para muito além de
as fronteiras entre consumo e traba-
ração do trabalho hoje dá conta de lho. Borrar as fronteiras entre o que garantir sua própria reprodução.
transferir trabalho, riscos, custos para é trabalho e o que não é. O que é a
uma multidão, sem perder o controle multidão ativa e engajada de usuá-
sobre o trabalho. E a exploração nes- IHU On-Line – Deseja acres-
rios do Facebook? Como a atividade
centar algo?
dessa multidão é fonte de valorização
no Brasil desde 1940. É formado em Economia
e Administração, doutor em Sociologia, além de para a empresa? Podemos colocar os Ludmila Costhek Abílio – Ape- 27
outras formações. Tem 23 obras publicadas. Le- usuários do Facebook e os cientistas
cionou na Faculdade de Economia, Administração nas acrescentaria esta dimensão
e Contabilidade da USP. (Nota da IHU On-Line) do site Innocentive sob uma mesma de que em realidade tenho pouco a
17 Crowdsourcing (em português, contribuição
colaborativa ou colaboração coletiva): expressão categoria de análise? Não tenho isto dizer, e isto é um problema. Quan-
em língua inglesa, composta de crowd (multi- claro. Mas o que está claro é que as
dão) e outsourcing (terceirização). O termo foi do entrevisto um motoboy, ele me
cunhado em 2005 e é definido pelo Dicionário empresas entenderam que podem diz da liberdade de passar 14 horas
Merriam-Webster como o processo de obtenção
de serviços, ideias ou conteúdo mediante a soli- agir como mediadoras entre a mul- por dia sobre uma moto e não ter
citação de contribuições de um grande grupo de tidão de trabalhadores e outras em-
pessoas e, especialmente, de uma comunidade patrão. Ele conta da satisfação em
on-line, em vez de usar fornecedores tradicionais presas, entre a multidão de trabalha- decidir que entrega fazer ou não, se
ou uma equipe de empregados. Trata-se de um
recurso frequentemente utilizado para dividir tra- dores e a multidão de consumidores. quer trabalhar 7 dias por semana ou
balhos tediosos, tais como aplicar questionários Só que esta mediação é também uma
de pesquisa, levantar fundos para empresas ini- apenas 5. A uberização está direta-
ciantes ou para instituições de caridade, e já era forma de subordinação dos trabalha- mente ligada ao empreendedorismo,
usado off-line, antes da era digital. Por definição,
o crowdsourcing combina os esforços de voluntá- dores, e reorganiza consideravelmen- à flexibilização do trabalho. Isto já
rios identificados ou de trabalhadores em tempo
parcial, num ambiente onde cada colaborador, te o mundo do trabalho. compreendemos bem, mas será que
por sua própria iniciativa, adiciona uma pequena
parte para gerar um resultado maior. O “crowd- Por fim, o que nos mostra a multi- compreendemos de fato o engaja-
sourcing” distingue-se de terceirização pelo fato
de o trabalho ser feito por um público indefinido, dão de motoristas Uber (quantos são mento produtivo do trabalhador?
em vez de ser encomendado ou atribuído a um pelo mundo?)? O que nos mostra a Suas motivações? Para além das
grupo especificamente designado para realizá-lo.
(Nota da IHU On-Line) multidão de revendedoras Natura? ameaças do desemprego?■

Leia mais
- A racionalidade taylorista e sua atualização no século XXI. Entrevista especial com Lu-
dmila Abílio, publicada nas Notícias do Dia, de 16-10-2014, no sítio do Instituto Humanitas
Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2o4UXmR;
- Uberização do trabalho: subsunção real da viração. Artigo de Ludmila Abílio, reproduzi-
do nas Notícias do Dia, de 1-3-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponí-
vel em http://bit.ly/2osDaBs.

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TEMA DE CAPA

O desejo de retorno do mundo


do trabalho à escravidão
Ricardo Antunes, ao analisar a atual morfologia dos trabalhadores
brasileiros, debate a maneira pela qual as reformas pretendidas
mergulham o país em um retrocesso de cem anos
Ricardo Machado

A
o analisar o atual mundo do tra- ponta produtiva do capital financeiro,
balho no Brasil em perspectiva uma vez que ele não pode prescindir do
com os movimentos políticos trabalho, quer que ele funcione sob sua
que tentam redirecionar, por meio das forma mais aviltada, mais vilipendiada,
reformas trabalhista e previdenciária, que é pelos modos da informalidade,
as conquistas sociais dos trabalhadores da precarização, da flexibilidade e da
brasileiros, Ricardo Antunes não usa devastação de todas as conquistas do
meios-termos para definir a atual con- mundo do trabalho”, avalia.
juntura. “Veja que na proposta deste go-
Ricardo Antunes é Professor Titular
verno frankstein do PMDB, que tenho
de Sociologia do Trabalho na Univer-
classificado como um governo terceiri-
sidade Estadual de Campinas – UNI-
zado, contratado para destruir os direi-
CAMP. Autor, entre outros livros, de
tos do trabalho, ele faz uma proposta
28 de previdência para que só depois de 49 Os Sentidos do Trabalho (Boitempo,
anos de trabalho com salario integral, publicado também na Itália, Inglaterra/
sem nenhum dia de desemprego, os Holanda, EUA, Portugal, Índia e Argen-
trabalhadores e trabalhadoras possam tina); Adeus ao Trabalho? (Ed. Cortez,
se aposentar. É um processo, em ver- publicado também na Itália, Espanha,
dade, criminoso. Então este é o sentido Argentina, Colômbia e Venezuela) e
essencial do governo Temer”, critica o Riqueza e Miséria do Trabalho no Bra-
professor e pesquisador da Universida- sil (organizador, Boitempo), Vol. I, II
de Estadual de Campinas - Unicamp, em e II. Coordena as Coleções Mundo do
entrevista por telefone à IHU On-Line. Trabalho, pela Boitempo e Trabalho e
“A ampliação da terceirização é outro Emancipação, pela Expressão Popu-
sentido forte deste governo. É um retor- lar. Coordena as Coleções Mundo do
no à escravidão”, complementa. Trabalho, pela Boitempo e Trabalho e
Emancipação, pela Expressão Popular e
Na sua avaliação, um dos fatores pre-
atualmente é professor visitante na Uni-
ponderantes dessa nova organização do
trabalho é sua subordinação ao capital versidade Ca’Foscari em Veneza, Itália.
especulativo. “Isso significa dizer que a Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como pode- como contrarrevolução preventiva, cia Michel Temer3, um golpe parla-
mos caracterizar o atual cená- que se gestou a partir do golpe que
rio sobre o mundo do trabalho depôs Dilma2 e colocou na presidên- impeachment foi amplamente debatido nas No-
tícias do Dia no sítio do IHU, como, por exemplo,
no Brasil? a Entrevista do Dia com Rudá Ricci intitulada Os
On-Line) pacotes do Temer alimentarão a esquerda brasilei-
Ricardo Antunes – O Brasil ca- 2 Dilma Rousseff (1947): economista e política ra e ela voltará ao poder, disponível em http://bit.
brasileira, filiada ao Partido dos Trabalhadores-PT, ly/2bLPiHK. Durante o governo do ex-presiden-
minha sob o comando do que Flores- presidente do Brasil de 2011 (primeiro manda- te Luiz Inácio Lula da Silva, assumiu a chefia do
tan Fernandes1 certa vez denominou to) até 31 de agosto de 2016 (segundo ano de Ministério de Minas e Energia e posteriormente
seu segundo mandato). Em 12 de maio de 2016, da Casa Civil. Em 2010, foi escolhida pelo PT para
foi afastada de seu cargo durante o processo de concorrer à eleição presidencial. (Nota da IHU
impeachment movido contra ela. No dia 31 de On-Line)
1 Florestan Fernandes (1920-1995): sociólogo e agosto, o Senado Federal, por votação de 61 vo- 3 Michel Temer [Michel Miguel Elias Temer Lu-
político brasileiro. Foi duas vezes deputado fede- tos favoráveis ao impeachment contra 20, afastou lia](1940): político e advogado brasileiro, ex-pre-
ral pelo Partido dos Trabalhadores. (Nota da IHU Dilma definitivamente do cargo. O episódio do sidente do Partido do Movimento Democrático

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REVISTA IHU ON-LINE

“Qual o objetivo da reforma


previdenciária? O primeiro deles
é demolir a previdência pública; o
segundo, incentivar os trabalhadores a
migrarem para a previdência privada”

mentar e com fortes ressonâncias zia que a privatização da previdência impedi-la e evitar que esse desmo-
judiciais, além de um enorme apoio seria algo positivo, mas qual o resul- ronamento se consolide.
da mídia. Esta contrarrevolução tem tado? O Chile tem um enorme movi-
IHU On-Line – De que forma
como objetivo precípuo destruir to- mento popular contra a previdência
podemos definir a atual morfo-
das as conquistas do mundo do tra- privada porque as pessoas chegam
logia do trabalho no Brasil?
balho e da classe trabalhadora, cons- no tempo de se aposentar e não con-
truídas desde o início do século 20 no seguem. Veja que na proposta deste Ricardo Antunes – A constru-
Brasil. A jornada de trabalho de oito governo frankstein do PMDB, que ção da ideia de morfologia do tra-
horas, o descanso semanal, o salário tenho classificado como um governo balho tenta dar conta da heteroge-
igual para trabalho igual, o pagamen- terceirizado, contratado para destruir neidade do trabalho em nosso país,
to de horas extras, tudo aquilo que, os direitos do trabalho, ele faz uma como, aliás, ocorre em toda parte do
de algum modo, foi consolidado na proposta de previdência para que só mundo. Estou trabalhando na Itália,
legislação do trabalho em 1943, com depois de 49 anos de trabalho, sem como professor visitante na cidade
a Consolidação das Leis do Trabalho nenhum dia de desemprego, os tra- de Veneza, e posso ver isso em uma 29
- CLT, está sendo demolido pelo atual balhadores e trabalhadoras possam cidade onde também ocorre o dese-
governo e pelo grupo que se apoderou se aposentar com salário integral. É nho multifacetado do trabalho. Aqui
do aparelho de Estado comandado um processo, em verdade, criminoso. encontra-se um proletariado de
por Temer e um grupo de deputados Então este é o sentido essencial do serviços enorme e um proletariado
a mando do capital, sob hegemonia governo Temer. imigrante que também cresce, rela-
do núcleo financeiro. O objetivo, por- cionado ao turismo, sobretudo em
A ampliação da terceirização é ou-
tanto, é destroçar a legislação social hotéis e restaurantes; são os pobres
tro sentido forte deste governo. É
protetora do trabalho. que trabalham em Veneza e moram
um retorno à escravidão. Trabalha-
nas ilhas circunvizinhas.
E quanto à reforma previdenciária, dores e trabalhadoras poderão ser
qual seu objetivo? O primeiro deles contratados de modo intermitente. Mas o que é a morfologia do tra-
é demolir a previdência pública; o No Reino Unido, especialmente na balho no Brasil? Trata-se de um
segundo, incentivar os trabalhado- Inglaterra, tem uma modalidade de núcleo compósito e heterogêneo,
res a migrarem para a previdência emprego que se chama zero hour para recordar novamente Florestan
privada; e, por fim, a consequência contract (Contrato de zero hora), Fernandes, que configura a classe
disso é destruir a previdência pública em que médicos, advogados, pro- trabalhadora operária e industrial,
no Brasil. Vale um parêntese sobre o fissionais liberais, trabalhadores na com núcleos como São Paulo, Rio
Chile, que privatizou sua previdência área de serviços, eletricistas, cuida- de Janeiro, Minas Gerais, algumas
pública durante a ditadura militar do dores, etc. são chamados e prestam capitais do Nordeste. Além disso,
Pinochet4 e naquele contexto se di- serviços pontuais. Se tem trabalho há a presença de um proletariado
são chamados, se não tem não re- rural que acentua muito sua hetero-
Brasileiro (PMDB). É o atual presidente do Brasil, cebem. Este é o verdadeiro quadro geneidade com o agronegócio, uma
após a deposição por impeachment da presiden-
te Dilma Rousseff naquilo que inúmeros setores que se pretende instaurar no Brasil. mescla de agricultura e indústria,
nacionais e internacionais denunciam como golpe Em síntese, em uma era digital, in- que trabalha na indústria da soja, do
parlamentar. Foi deputado federal por seis legisla-
turas e presidente da Câmara dos Deputados por formacional e computacional, o go- etanol e até a indústria de alimen-
duas vezes. (Nota da IHU On-Line)
4 Augusto Pinochet (1915-2006): general do verno Temer quer legitimar a nova tos como carnes, suínos e aves para
exército chileno, governante do Chile após chegar escravidão, também digital, no exportação, que é muito intensa.
ao poder em 11 de setembro de 1973, pelo De-
creto Lei nº 806 editado pela junta militar (Conse- Brasil, e só as lutas sociais poderão Há ainda um novo proletariado de
lho do Chile), que foi estabelecida para governar
o Chile após a deposição e suicídio de Salvador serviços que tem um papel cada vez
Allende, e posteriormente tornado senador vita- Governou o Chile entre 1973 e 1990, depois de mais crescente no processo de cria-
lício de seu país, cargo que foi criado exclusiva- liderar a junta militar que derrubou o governo de
mente para ele, por ter sido um ex-governante. Salvador Allende. (Nota da IHU On-Line) ção e participação no valor. Quem é

EDIÇÃO 503
TEMA DE CAPA

esse novo proletariado de serviços? nanceiro é o mais destrutivo de da ao desastre. O mundo do trabalho
Os trabalhadores e trabalhadoras todos os capitais, ele sabe que não sob a hegemonia financeira sempre se
de call center, telermarketing, hi- pode prescindir do trabalho por- apresenta como um desastre.
permercados, indústrias de hotéis, que a ponta primeira do capital
motoboys, ou seja, uma miríade de financeiro é o mundo produtivo.
trabalhadores e trabalhadoras que Nesse sentido, o capital financeiro IHU On-Line – A política de
compreendem esse grupo de traba- não é a negação do mundo produ- terceirizações nos governos
lhadores que se expandem exponen- tivo, mas uma forma superior em Lula e Dilma fez os postos de
cialmente no mundo urbano. relação ao capital produtivo, ain- trabalho terceirizados passa-
da que o primeiro não exista sem rem de 4 milhões para 12,7 mi-
Menos que uma sociedade pós-
o segundo. lhões de empregados. Há algo
-industrial, conceito que nunca usei
pois considero equivocado, temos Isso significa dizer que a pon- de novo no projeto atual, levado
que compreender a classe-que-vive- ta produtiva do capital financeiro a cabo por Michel Temer, de in-
-do-trabalho na indústria, agricultu- (uma vez que ele não pode pres- tensificação das terceirizações?
ra, nos serviços, na agroindústria e na cindir do trabalho), quer que ele Ricardo Antunes – Há, sim,
indústria de serviços como o contin- funcione sob sua forma mais avil- diferenças e é importante enten-
gente que compõe a classe trabalha- tada, mais vilipendiada, que é pe- dê-las. Eu fui um crítico duro dos
dora no Brasil. Isto é, aquela que ven- los modos da informalidade, da governos Lula 6 e Dilma, pelos inú-
de sua força de trabalho em troca de precarização, da flexibilidade e da meros limites que eles significa-
salário para sobreviver. Essa é a nova devastação de todas as conquistas
ram em relação ao que poderia ter
morfologia do trabalho no Brasil. do mundo do trabalho, que foram
sido feito para o mundo do traba-
construídas ao longo de décadas e
lho no Brasil. Ambos os governos
mesmo séculos de lutas. O capital
ficaram aquém do que se poderia
“Isso signifi- financeiro desafia o mundo o tra-
balho à medida que ele exige um
ter realizado em termos de refor-
mas estruturais importantes. Não

30
ca dizer que a mundo do trabalho aviltado, de
modo que a luta do trabalho deve
houve reforma agrária, não houve

ponta produ- ser uma luta contra a sociedade do


capital, incluindo aí todas as fra-
reforma financeira, não houve re-
forma urbana, ao contrário, foi um

tiva do capital ções da burguesia. Há um segundo


elemento: apesar da burguesia ser
governo de expansão econômica,
grandes benefícios para os capi-
financeiro quer composta por várias frações, é o
capital financeiro tem o comando
tais, transnacionalização da bur-
guesia brasileira, abertura do Bra-
que ele [o tra- geral de maneira que a parte do ca-
sil ao capital externo, incremento
no capital interno e uma pequena
pital produtivo que é propriedade
balho] funcione do capital financeiro, faz com que o valorização do salário mínimo.
Além disso, um Bolsa Família de
sob sua forma primeiro vá a reboque do segundo.
Com isso qualquer ilusão de uma
perfil assistencialista, importante,
mas profundamente limitada, que
mais aviltada” burguesia democrática e progressista,
com o mito lulista da conciliação de
no máximo diminuiu um pouco
os bolsões de miséria nos lugares
classes e do apoio à burguesia indus- mais empobrecidos.
trial brasileira, mostrou-se, mais uma
vez, como se não bastasse 19645, fada- 6 Luiz Inácio Lula da Silva [Lula] (1945): Trigési-
IHU On-Line – Em um con- mo quinto presidente da República Federativa do
texto macroeconômico que Brasil, cargo que exerceu de 2003 a 1º de janeiro
5 Golpe Civil-Militar: movimento deflagrado em de 2011. É cofundador e presidente de honra do
privilegia o capital especulati- 1º de abril de 1964. Os militares brasileiros, apoia- Partido dos Trabalhadores (PT). Em 1990, foi um
dos pela pressão internacional anticomunista li- dos fundadores e organizadores do Foro de São
vo em relação ao capital pro- derada e financiada pelos EUA, desencadearam a Paulo, que congrega parte dos movimentos polí-
dutivo, de que ordem são os Operação Brother Sam, que garantiu a execução ticos de esquerda da América Latina e do Caribe.
do Golpe, que destituiu do poder o presidente Foi candidato a presidente cinco vezes: em 1989
desafios ao mundo do trabalho João Goulart, o Jango. Em seu lugar os militares (perdeu para Fernando Collor de Mello), em 1994
assumem o poder e se mantêm governando o (perdeu para Fernando Henrique Cardoso) e em
no cenário brasileiro? país entre os anos de 1964 e 1985. Sobre a dita- 1998 (novamente perdeu para Fernando Henrique
dura de 1964 e o regime militar o IHU publicou Cardoso), e ganhou as eleições de 2002 (derrotan-
Ricardo Antunes – É o capital o 4º número dos Cadernos IHU em formação, do José Serra) e de 2006 (derrotando Geraldo Al-
intitulado Ditadura 1964. A memória do regime ckmin). Lula bateu um recorde histórico de popu-
financeiro, esta simbiose entre ca- militar. Confira, também, as edições nº 96 da IHU laridade durante seu mandato, conforme medido
On-Line, intitulada O regime militar: a economia, pelo Datafolha. Programas sociais como o Bolsa
pital industrial e bancário, e que a igreja, a imprensa e o imaginário, de 12 de abril Família e Fome Zero são marcas de seu governo,
se desdobrou da ponta produtiva de 2004; nº 95, de 5 de abril de 2005, 1964 – 2004: programa este que teve seu reconhecimento por
hora de passar o Brasil a limpo. 1964; nº 437, de 13 parte da Organização das Nações Unidas como
ao fictício e que desenha o atual de março de 2014, Um golpe civil-militar. Impac- um país que saiu do mapa da fome. Lula teve um
tos, (des)caminhos, processos; e nº 439, de 31 de papel de destaque na evolução recente das rela-
mundo do trabalho à sua imagem março de 2014, Brasil, a construção interrompida - ções internacionais, incluindo o programa nuclear
e semelhança. Como o capital fi- Impactos e consequências do golpe de 1964. (Nota do Irã e do aquecimento global. É investigado na
da IHU On-Line) operação Lava Jato. (Nota da IHU On-Line)

24 DE ABRIL | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

Isso não significa que não haja Temer e, por isso, ele precisa ser a formatação política brasileira.
diferenças entre os governos Lula derrotado. Com esse parlamento, este Sena-
e Dilma e o atual governo Temer. do, este executivo e este judiciário
Houve expansão dos terceirizados não é possível avançar. O judiciá-
nos governos do Partido dos Tra- IHU On-Line – Tendo em con- rio também é um exemplo disso, e
balhadores – PT por que ocorreu ta os projetos em tramitação de vivemos um processo dúplice em
um significativo crescimento eco- reformas Trabalhista e Previ- que há a judicialização da política
nômico. Nós sabemos que um dos denciária, qual o rumo do tra- (em que o judiciário se arvora em
traços que Lula cita como sendo balho no Brasil? Há formas de atuar sobre tudo) e a politização
mérito de seu governo é o cresci- retomar uma condição mais fa- da justiça, de modo que alguns
mento econômico, que ocorreu no vorável aos trabalhadores? membros proeminentes do judi-
final do primeiro mandato e no se- ciário estão na batalha política da
gundo mandato de seu governo e, Ricardo Antunes – Só a luta conservação e da contrarrevolu-
também, no primeiro período do dos trabalhadores e trabalhadoras, ção. A relação incestuosa de mi-
primeiro governo Dilma, governos dos sem teto, dos sem-terra, das nistros do Supremo com o governo
que elevaram a taxa de emprego periferias, das comunidades indí- Temer, com os atuais ministros,
genas, dos brancos, dos negros, da
em 22 milhões de postos. E os ca- com núcleos empresariais mostra
juventude, só por meio desta luta
pitais ampliaram muito esses em- que há um processo de contamina-
ampliada que poderemos retomar
pregos no setor terceirizado. Isso ção do Executivo, do Legislativo e
uma condição melhor à classe tra-
foi feito por meio de uma brecha na do Judiciário em que a população
balhadora. Este avanço, ampliação
legislação que permitia a terceiri- está muito perto de dizer que não
e radicalização das lutas sociais têm
zação nas atividades meio. suporta mais.
como segundo objetivo precípuo
O projeto Temer é profundamente eliminar, extinguir, mudar comple- Isto significa que a forma de re-
destrutivo, é uma concessão cabal tamente este parlamento brasileiro. tomar uma condição mais favorá-
e completa ao mais destrutivo dos O atual congresso é o pior de toda a vel às classes trabalhadoras é pen-
capitais, porque permite uma ter- história republicana brasileira. sar, é refletir em profundidade,
ceirização em todas atividades, em pontos e questões que são centrais 31
Nunca houve em nossa histó-
todos os ramos, inclusive no setor na vida cotidiana. Não é possível
ria um parlamento tão servil, tão
público. Significa uma devastação que a reforma da previdência leve
pantanoso, e a coisa é tão violenta,
das condições do trabalho no Brasil à morte o trabalhador brasileiro
que mesmo estando na Itália, li,
e uma regressão muito maior, por- antes de ele poder descansar um
na Folha de São Paulo, que uma
que volta-se atrás em uma legisla- pouco. Não é possível que se re-
grande parte dos deputados envol-
ção – que já era ruim pois permitia torne à escravidão do trabalho no
vidos na Operação Lava Jato7 au-
a vigência e que permitia a tercei- Brasil. Em outro plano, é preci-
mentaram muito suas riquezas no
rização somente da atividade meio. so repensar uma ação política de
último período. Estamos diante do
Agora é ainda muito pior. substância e de radicalidade que
parlamento do roubo ampliado e
redesenhe toda a institucionalida-
Sempre fui contra a terceirização generalizado, com as exceções que
de brasileira. Os desafios que te-
e defendi que a classe trabalhadora sabemos que existem formadas
mos pela frente não são pequenos,
deve ser contra, porque a terceiri- por aqueles que não aparecem no
mas são vitais.
zação avilta ainda mais o trabalho. Caixa 2, nos esquemas de corrup-
Já esse novo projeto é um flagelo ção, nas relações incestuosas com O quadro atual de uma política
total. Caso esse projeto não sofra as empresas. destrutiva e de um governo cuja
derrota em algum momento, inclu- decomposição avança a cada dia
Será preciso, então, uma ação
sive com a greve geral do dia 28 de apresenta um imprevisível cená-
política radical que reconfigure
abril, que será muito importante rio. Em 2017 e 2018, vamos ter
para mostrar a capacidade de luta 7 Operação Lava Jato: investigação em anda- muitos embates, de tal modo que é
que a classe trabalhadora está si- mento pela Polícia Federal do Brasil, que defla- significativa a mobilização para o
grou sua fase ostensiva em 17 de março de 2014,
nalizando, será um retorno à escra- cumprindo mais de cem mandados de busca e próximo dia 28 de abril. Essa gre-
apreensão, prisão temporária, prisão preventiva e
vidão no Brasil. Esse projeto pre- condução coercitiva, visando apurar um esquema ve geral tem que ser um momento
tende instaurar no Brasil o modelo de lavagem de dinheiro suspeito de movimentar muito importante para dizer ao
mais de R$ 10 bilhões, podendo ser superior a
indiano, com condições brutais de R$ 40 bilhões, dos quais R$ 10 bilhões em pro- Executivo, ao Senado e à Câma-
pinas. De acordo com investigações e delações
miséria exponencialmente mais recebidas pela força-tarefa da Lava Jato, estão ra e ao Judiciário que tudo o que
amplas que as atuais e uma classe envolvidos os maiores partidos do Brasil, como foi conquistado pela classe traba-
PP, PT, PMDB e PSDB, além de empresários e
burguesa riquíssima enfeixada em políticos de diversos partidos. A secção Notícias lhadora brasileira nos últimos 70
do Dia, do sítio do IHU, vem publicando textos e
seus condomínios fechados, ten- análises sobre os movimentos realizados em cada anos não pode ser destruído no
do sua segurança garantida por uma das fases da Operação, que ainda segue em pior momento político brasileiro,
andamento. Confira em ihu.unisinos.br/noticias.
polícias privadas. Este é o projeto (Nota da IHU On-Line) que é o atual. ■

EDIÇÃO 503
TEMA DE CAPA

Leia mais
- “O governo Lula foi uma surpresa muito bem-sucedida para os grandes capitais”.
Entrevista especial com Ricardo Antunes publicada na revista IHU On-Line, nº 441, de
28-4-2014, disponível em http://bit.ly/2pqoLKH;
- As manifestações e a luta por outro modelo de democracia. Entrevista especial com
Ricardo Antunes publicada na revista IHU On-Line, nº 434, de 9-12-2013, disponível em
http://bit.ly/1ikpd3v;
- “Não é a classe trabalhadora que irá pagar por uma crise cuja responsabilidade
não é sua”. Entrevista especial com Ricardo Antunes publicada no sítio do Instituto Hu-
manitas Unisinos – IHU, em 11-3-2009, disponível em http://bit.ly/19lqDBC;
- “Um 1º de maio getulista em plena era lulista”. Entrevista especial com Ricardo
Antunes publicada nas Notícias do Dia, de 27-4-2008, no sítio do Instituto Humanitas
Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/18HVgqt;
- “Sindicalismo nunca dependeu tanto do Estado”. Entrevista especial com Ricardo
Antunes publicada nas Notícias do Dia, de 2-5-2008, no sítio do Instituto Humanitas Uni-
sinos – IHU, disponível em http://bit.ly/1bqAiXt;
- Um crítico da economia política. Entrevista especial com Ricardo Antunes publicada
na revista IHU On-Line, nº 400, de 27-8-2012, disponível em http://bit.ly/RAn270812;
- Fenomenologia do lulismo. Artigo de Ricardo Antunes publicado nas Notícias do Dia,
de 3-1-2007, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.
ly/1hHNcZA;
- O migrante e os usineiros. Artigo de Ricardo Antunes publicado nas Notícias do Dia,
32 de 12-4-2007, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/
ILEkCR;
- O reencontro tardio de Lula com Getúlio. Artigo de Ricardo Antunes publicado nas
Notícias do Dia, de 3-8-2007, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível
em http://bit.ly/ILDXs0.

24 DE ABRIL | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

A predominância do trabalho como labor,


não como opus, na era da terceirização
José Dari Krein avalia que o projeto de reforma trabalhista, além de transferir
os riscos aos trabalhadores, não contribui em nada para um projeto de nação
Patricia Fachin | Edição: Ricardo Machado

A
marcha da reforma trabalhista aprofundar ainda mais as desigualda-
em direção à terceirização ca- des e retirar direitos dos trabalhadores.
minha a passos largos no Con- “É uma flexibilidade para baixo, para
gresso, levando em sua bagagem um retirar direitos. É uma inversão nas hie-
histórico que alia trabalho análogo à rarquias das regras em que o particular
escravidão com serviços terceirizados (empresa ou categoria) se sobreponha
em 80% dos casos, conforme pesquisa ao geral (a sociedade)”, complementa.
realizada entre 2013 e 2016. “Em pou- O trabalho na era da terceirização
cas palavras, a questão é: que reforma esvazia-se ainda mais de sentido à me-
trabalhista realizar? A que está sen- dida que prevalece a noção de labor,
do proposta pelo governo federal tem termo que designa um trabalho árduo
como finalidade atender os reclamos e pesado, à de opus, mais relacionado
empresariais de reduzir custos e au- à criação de algo socialmente e cultu-
mentar a flexibilidade das relações de 33
ralmente relevante. “Grande parte das
trabalho, o que tende a produzir efei- ocupações criadas nos anos recentes
tos devastadores sobre o tecido social são desprovidas de conteúdo que dê
brasileiro”, aponta José Dari Krein, sentido à vida”, avalia Krein.
em entrevista por e-mail à IHU On-
-Line. O professor e pesquisador ain- José Dari Krein é graduado em
da ressalta que a medida, justificada Filosofia pela Pontifícia Universida-
de Católica do Paraná - PUC-PR, tem
sob a égide do aumento dos postos de
mestrado e doutorado em Economia
trabalho, é insustentável.
Social e do Trabalho pela Universida-
“A reforma em discussão no Congres- de Estadual de Campinas - Unicamp,
so retira direitos e não cria empregos. onde atualmente é professor no Centro
Por motivos humanos e civilizatórios, de Estudos Sindicais e de Economia do
a proposta de reforma do governo fe- Trabalho - Cesit.
deral precisa ser combatida. Ela serve
para desenvolver negócios privados, A entrevista foi publicada nas Notícias
um mercado, mas mata a perspectiva do Dia de 18-4-2017, no sítio do Institu-
to Humanitas Unisinos – IHU, disponí-
de construir uma nação”, pondera. A
cortina de fumaça que ganha densidade vel em http://bit.ly/2oXX8aD.
com a recessão econômica serve para Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais as conse- processo de produção ou realização 1. Os estudos mostram que o
quências de se aprovar a tercei- da atividade econômica. A terceiriza- terceirizado (que está pro-
rização na atividade fim? ção é uma forma de contratação mais tegido pela mesma lei geral
vantajosa e barata para as empresas, dos demais trabalhadores)
José Dari Krein – Na prática mas deixa os trabalhadores em situa- apresenta condições de
significa que não haverá mais travas ção de maior precariedade e insegu- trabalho piores, os salários
para as empresas utilizarem a ter- rança. Os possíveis impactos com a são menores, a jornada é
ceirização em qualquer etapa do seu generalização da terceirização são: mais longa, as perspectivas

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TEMA DE CAPA

de trajetória profissional da seguridade social, pois produção de bens foram utilizados


ficam limitadas e as expec- as terceirizadas podem ser para criar um ambiente de maior
tativas de conseguir tempo pulverizadas em micro e pressão sobre os trabalhadores
de contribuições para apo- pequenas empresas, en- para aceitar, em geral, um padrão
sentadoria se tornam mais quadradas no Simples, com de regulação do trabalho mais
complicadas. Ou seja, as uma carga tributária menor flexível, instável e precário. Por
condições de vida e de tra- e, principalmente, estimu- exemplo, a redução da jornada do
balho dos terceirizados são lar a contratação da em- ponto de vista formal não se alte-
afetadas negativamente; presa como pessoa jurídica, rou, mas na realidade, nos países
em que o valor dos tributos, em que houve avanços, houve um
2. É um mecanismo que facili- especialmente com Micro- aumento dos contratos parciais
ta o avanço da fraude, pois empreendedor Individual e temporários que reduziu horas
é mais difícil de fiscalizar, – MEI, é muito baixo. Ou de trabalho, e ao mesmo tempo
uma vez que as atividades seja, é uma medida con- avançou a parcela das pessoas que
são pulverizadas em milha- traproducente em relação trabalham além da jornada legal.
res de pequenas empresas. ao que o governo pretende Ou seja, há uma tendência de com-
Inclusive, há comprovação na reforma previdenciária. patibilizar as relações de trabalho
de que o trabalho análogo Pois além da possibilidade com as características do capita-
ao de escravo combina com de a terceirizada pagar me- lismo contemporâneo, com uma
terceirização em pratica- nos encargos sociais e im- economia mais desregulamenta-
mente 80% dos casos inspe- postos, ela tende a estabele- da, financeirizada, uma produção
cionados entre 2013 e 2016; cer contratos mais sazonais, de bens e serviços mais interna-
que vão ser rompidos com cionalizados, que apresenta maior
3. Contribui para desestrutu- mais intensidade, o que afe- instabilidade, em que as empresas
rar um mercado de traba- ta a arrecadação, mas, prin- tenham liberdade de ajustar a re-
lho historicamente pouco cipalmente, a possibilidade lação de emprego às suas neces-
organizado e marcado por de o trabalhador conseguir sidades, tendo como referência o
34 baixos salários, alta infor- tempo de contribuição para padrão de custos do trabalho exis-
malidade, desigualdade e um dia se aposentar; tente nos países asiáticos.
alta rotatividade;
7. Deixa o trabalhador em Em poucas palavras, a questão é:
4. Fragiliza a capacidade de uma condição mais vulne- que reforma trabalhista realizar?
ação coletiva, pois o avan- rável, insegura, o que pode A que está sendo proposta pelo go-
ço da terceirização retira ter efeitos negativos sobre verno federal tem como finalidade
trabalhadores de categorias as condições de saúde e de atender os reclamos empresariais de
com históricos de conquis- vida das pessoas. reduzir custos e aumentar a flexibili-
tas e os coloca em outra dade das relações de trabalho, o que
categoria, sem tradição sin- Portanto, é uma regulamentação tende a produzir efeitos devastado-
dical, além de dividir ainda que afeta a vida e as condições de res sobre o tecido social brasileiro,
mais os trabalhadores em trabalho das pessoas e ainda coloca sem, no entanto, trazer os resultados
vários sindicatos. Ou seja, dificuldades adicionais para pensar esperados de melhorar as condições
enfraquece os grandes sin- qualquer processo de construção da de competitividade e produtividade
dicatos e divide ainda mais nação ou de modelo de desenvolvi- da economia, com efeitos sobre a ge-
os trabalhadores; mento com inclusão social e valori- ração de emprego.
zação do trabalho.
5. Também esvazia a negocia- A referência para analisar as pro-
ção coletiva, pois sempre posições em curso não podem ser a
estará colocada a ameaça de funcionalidade econômica, mas a na-
IHU On-Line – Afinal de con- tureza histórica da regulação, que é
a empresa subcontratar se-
tas, a reforma trabalhista é ne- garantir uma condição de dignidade a
tores que apresentam maior
cessária? Que questões urgen- quem precisa se assalariar para poder
mobilização ou que conse-
tes deveriam entrar na pauta? manter a si e sua família. Portanto, a
guiram conquistas traba-
lhistas via greve. Ou seja, José Dari Krein – A realida- análise das medidas é feita utilizando
pode tornar a greve um ins- de do trabalho está em constante como critérios se elas contribuem para
trumento sem eficácia; mudança, pelo progresso técnico ampliar a proteção social e redistri-
e pela criação de novas atividades buir a riqueza gerada ou para alargar
6. Fragiliza as contas públicas econômicas e ocupações. O pro- a liberdade da empresa na determina-
e inclusive compromete as blema é que, nos últimos 30 anos, ção das condições de contratação, uso
fontes de financiamento o avanço técnico e a capacidade de e remuneração do trabalho.

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As regras foram criadas para colo- bilidade para cima. O que se pre- IHU On-Line – Caminhamos
car limites ao empregador na utili- tende é que as tratativas possam para o fim da sociedade fordis-
zação do trabalho na perspectiva de negociar restringindo ou até der- ta, de garantia no emprego e re-
haver uma sociedade civilizada e a rogando o que está inscrito na le- lações contratuais estáveis?
pessoa humana ter sua condição de gislação. É uma flexibilidade para
José Dari Krein – Estamos em
dignidade assegurada. Como lem- baixo, para retirar direitos. É uma uma sociedade de profundas mu-
brou Polanyi1, a sociedade não pode inversão nas hierarquias das regras danças, em que as bases do que é de-
aceitar que o trabalho não pode ser em que o particular (empresa ou nominado de fordismo foi descons-
uma mercadoria transacionada no categoria) se sobreponha ao geral truído nos anos recentes. Ou seja,
mercado, pois ela envolve uma vida (a sociedade). uma das principais mudanças foi a
humana. A reforma em discussão no
A prevalência do negociado sobre pressão para desconstituir direitos e
Congresso retira direitos e não cria
o legislado não fortalece os sin- diminuir a proteção social em todos
empregos. Por motivos humanos e
dicatos, pois com ela estão vindo os países mais avançados. Um pro-
civilizatórios, a proposta de refor-
outras propostas que fragilizam os cesso que ocorreu por mudanças no
ma do governo federal precisa ser
sindicatos, tais como a regulamen- marco legal ou por esvaziamento das
combatida. Ela serve para desenvol-
tação da representação no local de negociações coletivas ou diminuição
ver negócios privados, um mercado,
trabalho, que é independente do da sua abrangência. Por exemplo,
mas mata a perspectiva de construir
sindicato e pode exercer o papel nos Estados Unidos, como nunca
uma nação.
negocial dos sindicatos e resolver houve grande proteção a partir do
conflitos trabalhistas (suprimindo Estado e a seguridade construída

“Grande parte o papel da Justiça do Trabalho),


os estrangulamentos do financia-
estava na negociação coletiva, houve
uma brutal redução da cobertura e

das ocupações mento sindical e a fragmentação da


categoria com a terceirização. Tudo
hoje somente 7% dos trabalhadores
privados estão cobertos por contra-
criadas nos isso em um contexto de crise eco- tos coletivos de trabalho.
nômica e de alto desemprego, em
anos recentes
Os estudos mostram que parte
que o movimento sindical tende a importante dos trabalhadores está 35

são despro- ter, no âmbito da categoria, uma


postura defensiva, pois a priorida-
submetida a condições de trabalho
muito ruins. O aumento da produ-

vidas de con- de é negociar com a expectativa de


manter o emprego, e não de asse-
tividade não se reverteu em favor
dos salários e houve forte aumento
teúdo que dê gurar direitos. da desigualdade. O mundo da ins-
tabilidade e insegurança a que os
sentido à vida”
A experiência mostra que muitos
trabalhadores estão submetidos, em
sindicatos assinaram acordos bas-
um contexto de globalização e des-
tante lesivos aos trabalhadores. locamento produtivo para regiões
Por exemplo, acordos prevendo com menores custos, possibilitados
IHU On-Line – Quais são os uma jornada de 12 horas diárias pelas inovações tecnológicas, é o
riscos ou as implicações de se de segunda a sábado. Outro caso que impera. Assim, avançou-se na
sobrepor as negociações traba- é o sindicato excluir uma parte desproteção, sem, no entanto, alte-
lhistas à legislação? Por outro dos trabalhadores do adicional rar a condição básica da relação de
lado, em que medida isso já faz de periculosidade. Exemplos não emprego, que é o assalariamento;
parte da rotina dos trabalhado- faltam. Alguns são revertidos na ou seja, o assalariamento continua
res hoje? Justiça do Trabalho, quando esta sendo a relação predominante, mas
é acionada. expressando, do ponto vista jurídico,
José Dari Krein – Hoje é per-
mitido aos atores sindicais estabe- Boas negociações pressupõem a diferentes modalidades de contrata-
lecer autonomamente regras para existência de sindicatos represen- ção, mais temporária, sazonal, sem
reger as relações de emprego desde tativos, o que é um problema, pois proteção, terceirizada. Assim como
que acrescente direitos ao patamar parte significativa das entidades se avançou na flexibilização da jor-
inscrito na legislação. É uma flexi- sindicais brasileiras são cartoriais. nada e na remuneração variável.
Combinado com contexto econô- A questão fundamental é que as
1 Karl Polanyi (1886-1964): economista austríaco.
Sua obra principal é A Grande Transformação - as mico, político e ideológico desfavo- travas regulatórias perderam forças
origens de nossa época (Rio de Janeiro: Campus, rável ao trabalho e à ação coletiva, e caminha-se para ajustar as rela-
2000), escrita nos Estados Unidos de 1940 a 1943.
Sobre o economista, a IHU On-Line 147, de 27- a instituição da prevalência do ne- ções de emprego ao que é bom para
6-2005, dedicou o tema de capa A grande trans-
formação. As origens da nossa época. Os 60 anos gociado pode ter um efeito devas- os negócios. Neste sentido, é um pe-
da obra clássica de Karl Polanyi, disponível para tador sobre a estruturação do mer- ríodo de vingança do capital sobre
download em http://bit.ly/ihuon147. (Nota da
IHU On-Line) cado de trabalho e o tecido social. o trabalho, pois foram erodidas as

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bases para a constituição de uma fragilizados. Houve uma efetiva re- produtividade sejam re-
sociedade com inclusão e distribui- configuração da classe trabalhadora, partidos com os traba-
ção mais equitativa da riqueza gera- criando dificuldades adicionais para lhadores e a sociedade;
da, inclusive alterando a concepção ação coletiva. Mais, essas alterações
dos indivíduos sobre a sua perspec- precisam ser entendidas em um con- 2. proposição de refor-
tiva de vida no trabalho, como nos texto mais amplo – político, econô- mas que ampliam a
mostram Laval2 e Dardot3 – Nova mico e ideológico – em que se via- proteção social, den-
Razão do Mundo (São Paulo: Boi- biliza a acumulação capitalista, em tro das características
tempo, 2016) –, em que estamos que os ganhos de produtividade ten- do trabalho contem-
numa sociedade da concorrência dem a eliminar postos de trabalho e porâneo. Por exemplo,
permanente e de fragilização das a criar outras atividades, em que os regular para não per-
instituições que historicamente se indivíduos continuam vulneráveis e mitir que o mercado
contrapuseram à lógica de organi- inseguros. As manifestações de pre- de trabalho se torne
zação do trabalho em uma socieda- cariedade, possivelmente, não mais “uberizado”;
de de mercado. É um mundo do tra- se refletem nas taxas de desemprego,
balho mais fragmentado, instável e pois parte das pessoas simplesmente 3. defesa da redução da
flexível, com uma reconfiguração da não está mais buscando se inserir ou jornada de trabalho,
classe trabalhadora, em que as ocu- aceitando qualquer atividade para combinada não so-
pações estão fortemente localizadas ter acesso a políticas de transferên- mente com a distribui-
nos serviços, que é mais pulveriza- cia de renda ou simplesmente por ção do trabalho útil,
do e com menor tradição sindical. não ter opção. mas com uma nova
Não é uma construção decorrente perspectiva de as pes-
simplesmente do processo de orga- Grande parte das atividades ofe- soas viverem a vida em
nização da produção e do trabalho, recidas são pouco edificantes, e a todas as suas dimen-
mas resultante da lógica de como se crescente desocupação aumenta sões, inclusive com re-
organiza o processo de acumulação a perda de significado do traba- definição do padrão de
no capitalismo contemporâneo. lho como realização pessoal. É um consumo e preservação
36 mero meio para conseguir uma da vida natural;
renda. Grande parte das ocupa-
ções criadas nos anos recentes são 4. assegurar mecanis-
IHU On-Line – Como pensar
desprovidas de conteúdo que dê mos de proteção so-
uma sociedade da inclusão so-
sentido à vida. Como é crescente cial da sociedade, em
cial via emprego se o mesmo
a ausência de emprego, há, espe- que os avanços tecno-
está em crise? Quais são as al-
cialmente nos jovens, a tendência lógicos de redução do
ternativas?
de avançar o desalento. Ao mesmo trabalho necessário
José Dari Krein – Não existe um tempo, avança-se na lógica de in- sejam revertidos à co-
determinismo tecnológico e inexorá- cutir nos trabalhadores a visão de letividade, inclusive
vel na produção de bens e da estru- empreendedorismo e empregabili- com a garantia de uma
tura social. Infelizmente, continua- dade como saída para um mercado renda mínima que
-se em uma sociedade capitalista, de trabalho hostil e escasso, o que seja suficiente para
em que o emprego (ou outra forma constitui um grande problema para assegurar a condição
disfarçada de subordinação) conti- construção de identidade coletiva. de vida das pessoas
nua sendo a forma predominante Ou seja, as características do capi- independentemente
de grande parte das pessoas obte- talismo contemporâneo são abso- do trabalho;
rem renda para sobreviver. O que se lutamente desfavoráveis ao traba-
reduziu foram as proteções para os lho e à ação coletiva. 5. criar formas de ativida-
que trabalham e os sindicatos foram des coletivas, voltadas
Neste contexto, as alternativas que
para o bem-estar cole-
2 Christian Laval: é pesquisador e professor de se pode apontar são:
Sociologia da Universidade Paris-Ouest Nanter- tivo e de preservação
re-La Défense. É autor de L’Homme économique: 1. a resistência contra a do meio ambiente;
Essai sur les racines du néoliberalisme (Gallimard,
2007) e também de um volume de História da So- desconstrução dos di-
ciologia, L’ambition sociologique (Gallimard, 2012). reitos sociais, pois a sua 6. abertura para criação
Publicou no Brasil, juntamente com Pierre Dardot,
o livro A nova razão do mundo (Boitempo, 2016). eliminação tem conse- e fortalecimento de or-
(Nota da IHU On-Line)
3 Pierre Dardot: é filósofo e pesquisador da Uni- quências sobre o tecido ganizações sociais que
versidade Paris-Ouest Nanterre-La Défense, espe- social e as possibilidades sejam capazes de voca-
cialista no pensamento de Marx e Hegel. Desde
2004, com Christian Laval, coordena o grupo de de lutar no futuro para lizar as aspirações dos
estudos e pesquisa Question Marx, que procura
contribuir com a renovação do pensamento críti- qualquer projeto com jovens e de todos que
co. Publicou no Brasil, juntamente com Christian inclusão social, e que, precisam trabalhar
Laval, o livro A nova razão do mundo (Boitempo,
2016). (Nota da IHU On-Line) ao menos, os ganhos de para viver. É muito

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difícil ter democracia sociedade, algo que tinha perdido da compra e oferta. Por exemplo, a
sem entidades repre- nas duas últimas décadas. As ações proposição, entre as 100 mudanças
sentativas que possam de defesa dos direitos sociais e con- anunciadas, de legalizar contratos
fazer o contraponto. tra as reformas estão mostrando em que as pessoas ficam à dispo-
uma possibilidade de recuperação sição das empresas, mas somente
de terreno na confiança na socieda- recebem na hora que efetivamente
de. No entanto, a sua capacidade de trabalharem ou por produto realiza-
IHU On-Line – Muitos fize- mobilização, com algumas exceções, do. A pessoa pode ficar o dia todo no
ram críticas ao movimento ainda se mostra pequena. local de trabalho, à disposição, mas
sindical nos últimos anos, por se, por qualquer problema da em-
considerarem que ele foi co- Por enquanto, o peso do sindi-
presa, não realizar o trabalho, fica
optado nos governos Lula e calismo é maior mais pela sua es-
sem receber. É um exemplo, entre
Dilma. Qual é a relevância dos trutura do que pela capacidade de
vários outros sacos de maldades que
sindicatos para o trabalhador mobilização. Ou seja, a resistência
a proposta contém.
nos dias de hoje e de que modo às reformas é uma oportunidade
os trabalhadores têm se rela- aberta para o sindicalismo se reco- Tudo isso é feito sob argumentos
cionado com os sindicatos? nectar com a sociedade, e existem falsos ou que não encontram evidên-
sinais desta perspectiva, como a cia empírica na realidade, tais como:
José Dari Krein – Os sindica- mobilização de 15 de março pas-
tos foram instituições criadas para 1. há inúmeros estudos
sado, que foi a maior paralisação
defender os trabalhadores das con- que mostram que a fle-
trabalhista desde 1989. A oportu-
dições perversas do trabalho assa- xibilização não é capaz
nidade pode se constituir em uma
lariado, na perspectiva de assegurar de gerar emprego;
forma de movimento sindical de
condições de vida e de trabalho, de se desburocratizar e se aproximar
repartir os resultados da riqueza ge- 2. a produtividade não de-
tanto dos trabalhadores quanto dos corre da flexibilização,
rada e de fomentar movimentos de outros movimentos sociais, pois
questionamento da sociedade para mas de inúmeros outros
o momento exige uma capacidade fatores, tende sempre
construção de novas formas de or- de ação mais geral na sociedade na
ganização social, assim como são ser pró-cíclica, crescen- 37
perspectiva de assegurar direitos do no momento que a
instituições fundamentais para a e de combater os desmontes que
efetivação da democracia. Sem dú- economia incrementa;
estão em curso pelo governo, Con-
vida há uma difusão de novas orga- gresso e judiciário.
nizações e movimentos sociais, que 3. a segurança jurídica al-
são bem-vindas em um contexto em mejada pelas empresas é
que novas questões são vocalizadas para fazerem o que é bom
e são fundamentais para construção IHU On-Line – Qual é a sua para os seus negócios,
de uma sociedade de inclusão e de avaliação da reforma trabalhis- transferindo a inseguran-
respeito da diversidade. No entan- ta, a partir do relatório da Co- ça aos trabalhadores;
to, ainda considero, apesar de seu missão especial?
4. o ataque à Justiça do
desgaste e burocratização, que os José Dari Krein – O parecer do Trabalho pelo número
sindicatos são muito importantes, Relator, Rogério Marinho, de sua expressivo de processos
pois estamos vivendo uma sociedade proposta de reforma trabalhista ao trabalhistas é outra falá-
capitalista em que permanecem as país, foi apresentado na primeira cia, pois a Justiça Fede-
classes sociais. quinzena de abril4. A sinalização é ral, mesmo tendo menos
propor uma reforma bastante am- capilaridade, tem um
O sindicalismo nos anos 2000
pla que sepulta a Consolidação das número de processos
apresenta movimentos contraditó-
Leis do Trabalho – CLT e cria um maior. Ou seja, é o ata-
rios. Por um lado, se fortaleceu no
novo código do trabalho muito me- que às instituições que
âmbito da categoria profissional, ao
nos protetivo aos trabalhadores. Ou possam colocar freios à
obter resultados positivos nas nego-
seja, significa um imenso retrocesso liberdade do emprega-
ciações salariais entre 2004 e 2014,
social, pois reconstitui, ressalvadas dor de fazer o quiser com
aumentando o número de greves e
as devidas diferenças históricas, as os seus assalariados;
ampliando o número de sindicali-
bases para submeter o trabalhador
zados em 4,5 milhões. Nos anos de
aos desígnios do mercado, transfor- 5. gera uma competitivi-
2014 e 2015 (últimos com dados dis-
mando a vida das pessoas ao leilão dade espúria, em que a
poníveis), houve um crescimento de
1,5 milhão de novos sindicalizados redução de custos recai
no Brasil. Por um lado, somente nas 4 O relatório pode ser lido em http://bit.ly/2oOG- somente sobre a condi-
3jE. A votação de reforma, no entanto, deve ocor-
mobilizações recentes de 2017 con- rer somente depois do dia 25 de abril de 2017, ção de vida dos trabalha-
seguiu um certo protagonismo na dado que alguns deputados pediram vistas. (Nota dores, reforçando uma
da IHU On-Line)

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tendência de maior re- esgarçar o tecido social A proposta em discussão tem um


baixamento dos salários; e aprofundarmos uma efeito desestruturador da socieda-
sociedade marcada pela de e comprometedor do nosso fu-
6. fragiliza imensamente desigualdade, violência turo mais intenso do que a reforma
as fontes de financia- e exclusão social. É a da previdência. As possibilidades
mento da seguridade morte dos direitos tra- de a reforma passar são grandes,
social e das políticas balhistas. Não tem como pois não exige quórum qualificado
sociais. Enfim, é uma não ficar indignado com no Congresso e as centrais sindi-
reforma que atende os a monstruosidade que se cais se encontram divididas na ma-
pleitos dos empresários quer promover no Brasil téria, o que fica nítido nas escassas
para reduzir custos, mas com a reforma trabalhis- e confusas manifestações públicas
com imenso potencial de ta apresentada. de algumas delas. ■

Leia mais
- A crise como pretexto para reeditar velhos ataques. Entrevista com José Dari Krein, publi-
cada na revista IHU On-Line número 484, de 2-5-2016, disponível em http://bit.ly/2oFDNeo;
- PL 4330: Submissão absoluta dos trabalhadores aos desígnios do capital. Entrevista
com José Dari Krein, publicada nas Notícias do Dia de 29-4-2015, no sítio do Instituto Hu-
manitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2pIswaM;
- Formalização e flexibilização – avanços e retrocessos no mundo do trabalho. Entrevis-
ta com José Dari Krein, publicada na revista IHU On-Line número 441, de 28-4-2014, dispo-
nível em http://bit.ly/2ppG4ex;
38
- O esgotamento de um modelo de desenvolvimento e da globalização neoliberal. En-
trevista com José Dari Krein, publicada na revista IHU On-Line número 291, de 4-5-2009,
disponível em http://bit.ly/2oDrvRQ;
- Sindicatos: “um movimento com sinais trocados”. Entrevista com José Dari Krein, publi-
cada na revista IHU On-Line número 390, de 30-4-2012, disponível em http://bit.ly/2oDAItD;
- “Classe média, renda e crédito são sinônimos do capitalismo”. Entrevista com José Dari
Krein, publicada na revista IHU On-Line número 352, de 29-11-2010, disponível em http://bit.
ly/2omBhG9.

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Uma renda básica como política


social para melhorar a vida de todos
Josué Pereira da Silva defende remuneração mínima para
população pobre, mas destaca que ela também precisa ser
vista como forma de beneficiar os trabalhadores
Ricardo Machado | Edição: João Vitor Santos

D
iscutir a necessidade de uma pleta. Mas é difícil falar disso hoje. “E
renda básica universal até mes- essa dificuldade decorre, a meu ver,
mo numa roda de amigos não é da hegemonia dos valores capitalistas
tarefa fácil. Inevitavelmente, vão surgir dominantes, inclusive entre setores da
as variações do argumento: “isso é para esquerda”, aponta. Para ele, uma saída
alimentar quem não quer trabalhar. pode ser esclarecer movimentos sociais
Quem vai bancar?”. Um contra-argu- acerca do tema. “O problema não é pro-
mento que pode refutar esse, de lugar priamente a falta de recursos, mas a
comum, é a necessidade de compre- falta de um projeto político que priorize
ender de qual renda mínima de fato se a cidadania em vez de satisfazer-se ape-
está falando. “A renda básica universal nas em agradar ao mercado”, aponta.
enquanto política social pode beneficiar
Josué Pereira da Silva é bacharel
principalmente a população em condi-
40 ções de pobreza, mas pode beneficiar
em Ciências Econômicas pela Univer-
sidade de São Paulo – USP, mestre em
também os trabalhadores que aparen- História pela Universidade Estadual
temente não precisam de uma renda de Campinas – Unicamp e doutor em
desse tipo”, esclarece o professor Josué Sociologia pela New School for Social
Pereira da Silva, um dos estudiosos do Research, Nova Iorque, Estados Uni-
tema no país. dos. Atua como professor na Unicamp.
Na entrevista, concedida por e-mail à Desde 2011 coordena, junto com Sílvio
IHU On-Line, Josué explica que, no Camargo, o grupo de pesquisa Teoria
caso de pessoas que vivem na pobre- Crítica e Sociologia. De sua produção
za, essa pode ser a chance de mudar bibliográfica, destacamos André Gorz.
de situação. “Pode-se argumentar que Trabalho e política (São Paulo: Anna-
a renda básica garantida contribuiria blume/Fapesp, 2002); André Gorz e
para aumentar o poder de barganha seus críticos (São Paulo: Annablume,
dos trabalhadores, reduzindo os efei- 2006); e Por uma sociologia do século
tos de expectativas de desemprego nos XX (São Paulo: Annablume, 2007).
momentos de negociação de melhores
salários e condições de trabalho”, com- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como as questões ta Esping-Andersen1 como “social dania social), em seu livro Politics
relacionadas a trabalho e renda citizenship state” (Estado de cida- Against Markets. The Social Demo-
confluem para as discussões so- cratic Road to Power2. A despeito
bre a renda básica universal? das muitas críticas – burocratização,
1 Gosta Esping-Andersen (1947): sociólogo centralização, androcentrismo – que
Josué Pereira da Silva – A pri- dinamarquês cujo foco principal é o estado de
bem-estar e seu lugar nas economias capitalis- esse modelo de Estado social recebia
meira chave para pensar essa rela- tas. Esping-Andersen é professor da Universidade
Pompeu Fabra em Barcelona (Espanha) e membro de diversos quadrantes, ele tinha a
ção entre trabalho e renda está na do Comitê Científico do Instituto Juan March e do
chamada crise do Estado de bem- Conselho de Curadores e do Conselho Científico
do IMDEA Instituto de Ciências Sociais, em Madri 2 Princeton University Press, 1985. (Nota do en-
-estar social, bem definido por Gos- (Espanha). (Nota da IHU On-Line) trevistado)

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“Não vejo a renda básica como


panaceia para todos os problemas.
Mas acho que ela poderia facilitar
bastante o combate à pobreza
extrema e à desigualdade social”

virtuosidade de combinar crescimento js4, de 1986 (Theory and Society, volu- plementar políticas de renda
econômico com o pleno emprego da me 15, número 5). básica universal em dois mo-
força de trabalho. Era a partir da admi- mentos históricos distintos, na
Mas esse tipo de explicação diz respei-
nistração desse equilíbrio entre cresci- década de 1980 e, depois, nos
to principalmente aos países centrais
mento econômico e pleno emprego que anos 1990. O que estava em jogo
do capitalismo. Em países da periferia
o Estado de bem-estar social geria, pela nesses diferentes períodos?
garantia de direitos sociais (educação, do capitalismo como o Brasil, além dos
problemas apontados acima, temos Josué Pereira da Silva – De fato,
saúde e renda), uma aceitável distribui-
também como agravantes a pobreza os textos que André Gorz escreveu so-
ção da riqueza socialmente produzida,
extrema que atinge significativos seto- bre o assunto permitem que se distinga
apaziguando com isso o conflito entre
res da população e uma mais acentuada uma mudança em sua abordagem da
os principais atores envolvidos. Para
desigualdade social. Assim, se nos paí- renda básica, ou alocação universal –
além das diferenças entre os diversos
ses centrais a adoção da renda básica de termo mais utilizado na França para
modelos de Estado de bem-estar –
anglo-americano, central-europeu e cidadania pode significar um caminho falar de renda básica. Antes de 1997, 41
para reconstruir o Estado de bem-estar, Gorz defendia a desvinculação entre
nórdico-europeu –, esse era seu dese-
em países como Brasil ela pode oferecer renda e tempo de trabalho, mas insistia
nho predominante.
as condições materiais necessárias para na necessidade de manter o vínculo en-
Com a crise fiscal, inicialmente, e a tirarmos parte da população da condi- tre trabalho e renda porque acreditava
revolução tecnológica, num segundo ção de subcidadania, garantindo-lhe no “direito ao trabalho”, ainda que em
momento, o equilíbrio da equação de mais autonomia e dignidade, condições duração reduzida, como “direito polí-
crescimento econômico e pleno empre- fundamentais para a construção de tico” de participar da produção social.
go se desfez. O crescente desemprego uma cidadania plena entre nós. Para ele, era a manutenção do vínculo
estrutural e tecnológico daí decorrente entre trabalho e renda que caracteriza-
contribuiu, de um lado, para reduzir a va o que ele considerava a “posição de
base fiscal arrecadadora de impostos esquerda”, enquanto associava a trans-
do Estado e, de outro, para aumentar IHU On-Line – André Gorz5 ferência incondicional de renda ao que
a demanda por direitos sociais. Grosso pensou a necessidade de se im- denominava “posição de direita”.
modo, é do contexto de desemprego da
4 Philippe Van Parijs (1951): economista e filós- Sua mudança de posição a respei-
década de 1980, portanto, que emergiu ofo belga. Estudou economia, direitos, sociologia
e linguística e obteve um doutorado na Universi- to a partir de 1997 decorre, segun-
o debate contemporâneo sobre transfe- dade de Oxford. Ele é professor na Universidade
de Louvain-la-Neuve e Harvard. (Nota da IHU
do ele próprio, de uma reavaliação
rência direta de renda, que tem como
On-Line) do contexto histórico, caracterizado
marco principal o texto “A Capitalist 5 André Gorz (1923-2007): filósofo austríaco.
Escreveu inúmeros livros, vários deles traduzidos principalmente pela emergência do
Road to Communism” (um caminho para o português, entre eles Adeus ao proletaria-
do (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982), “imaterial”, que em sua avaliação im-
capitalista para o comunismo), de Ro-
Metamorfoses do trabalho. Crítica da razão econô- possibilitava a aplicação de critérios
bert van der Veen3 e Philippe Van Pari- mica (São Paulo: Annablume, 2003) e Misérias do
Presente, Riqueza do Possível (São Paulo: Annablu- de equivalência no cálculo das con-
me, 2004). Realizamos uma entrevista com André
3 Robert Jan van der Veen (1943): teórico políti- Gorz, publicada parcialmente na 129ª edição da tribuições individuais e, portanto, na
co holandês, atualmente é professor assistente de revista IHU On-Line, de 2-1-2005, e na íntegra no atribuição das remunerações na for-
ciência política na Universidade de Amsterdam. número 31 dos Cadernos IHU ideias, com o título
Antes disso, estava no Instituto Holandês de Estu- A crise e o êxodo da sociedade salarial, disponível ma de salário. Há outras razões alega-
dos Avançados de Trabalho (entre 1977 e 1978) na para download em http://migre.me/BizH. Sobre
Universidade de Groningen, onde se graduou em André Gorz também pode ser lido o texto Pelo das para a mudança de posição, como
1991, no Departamento de Economia da Univer- êxodo da sociedade salarial. A evolução do concei- a globalização; mas é certamente a
sidade de Rotterdam Erasmus e da Universidade to de trabalho em André Gorz, de autoria de André
de Warwick. Van der Veen tem um fundo em mar- Langer. O texto está publicado nos Cadernos crescente importância da dimensão
xista teoria política e economia política. Como tal, IHU nº 5, de 2004, disponível para download em
ele foi envolvido na década de 80 com o marxis- http://migre.me/BiAI. O sítio do Instituto Humani- do imaterial no mundo da produção o
mo analítico. Ele tem se especializado no período tas Unisinos – IHU deu ampla repercussão à morte principal fator por trás de sua mudan-
final na relação entre o comportamento racional de Gorz. Para acessar o material, acesse as No-
e ambiental e renda básica. (Nota IHU On-Line) tícias do Dia 26-9-2007. (Nota da IHU On-Line) ça de posição. Em meu livro Por que

EDIÇÃO 503
TEMA DE CAPA

renda básica?6, eu trato mais detalha- A despeito de tudo isso, o grande pregos, aparecem como os dois lados
damente deste tema. problema de “construir uma agenda de uma mesma moeda.
em torno da renda básica universal” é
a dificuldade em sensibilizar os diver-
IHU On-Line – Que transforma- sos movimentos sociais para sua im- IHU On-Line – Como os proje-
ções no mundo do trabalho torna- portância. E essa dificuldade decorre, tos de lei de reformas trabalhista
ram o debate sobre a renda básica a meu ver, da hegemonia dos valores e previdenciária propostos pelo
universal extremamente atual? capitalistas dominantes, inclusive en- atual governo acentuam ainda
tre setores da esquerda. Quanto aos re- mais as desigualdades sociais?
Josué Pereira da Silva – Creio que cursos, creio que é uma falsa questão.
as respostas às duas questões anterio- O problema não é propriamente a falta Josué Pereira da Silva – Antes de
res já contemplam esta questão. Mas, de recursos, mas a falta de um projeto tudo, é preciso dizer que as duas me pa-
de forma resumida, podemos dizer que político que priorize a cidadania em vez recem mais contrarreformas que visam
desemprego estrutural e tecnológico, de satisfazer-se apenas em agradar ao desconstruir importantes conquistas
pobreza e desigualdade social extre- mercado. A propósito, basta comparar, históricas da precária cidadania brasi-
mas, crescente relevância da produção a título de exemplo, o montante de re- leira do que reformas no sentido clás-
imaterial, a globalização da economia e cursos destinados anualmente ao Pro- sico que sempre estiveram vinculadas
seus efeitos perversos sobre as vidas das grama Bolsa Família (R$ 29,7 bilhões), a melhorias nas condições de vida da
pessoas em diversas partes do mundo, que não chega a 0,5% do Produto In- população. Por outro lado, não há dis-
tudo isso torna mais vulnerável a segu- terno Bruto – PIB, com os recursos cussão séria e profunda sobre o alegado
rança material de importantes setores destinados ao que recentemente ficou déficit da previdência e tampouco sobre
da população mundial. Em tal contexto, conhecido, no noticiário da grande im- a seguridade social num sentido amplo,
a renda básica pode ser uma importante prensa, como “Bolsa Empresário”, cujo que não deve ser tratada apenas em ter-
proteção contra as incertezas; daí a atu- montante estimado para este ano (R$ mos atuariais. Além do mais, elas são
alidade do debate. 224 bilhões) alcança 3,4% do PIB (Cf. levadas a efeito por um governo, cujo
Folha de S. Paulo, 16/10/2016). poder herdado não resulta de um pro-
grama eleito para esse fim.
42 IHU On-Line – No Brasil, dado Por tudo isso, fica-se com a impres-
o conservadorismo político do IHU On-Line – Quando se discu- são de que se trata de um desdobra-
atual Congresso, como se pode- te o mundo do trabalho em pers- mento tardio daquilo que na década
ria construir uma agenda em tor- pectiva com a economia, muitas de 1990 ficou conhecido como “work-
no da renda básica universal? De vezes se recorre ao argumento fare”, cujo principal objetivo é criar
onde viriam os recursos? do crescimento do PIB. De onde um ambiente favorável aos interessa-
vem esta obsessão pelo cresci- dos no enfraquecimento da legislação
Josué Pereira da Silva – A renda mento do PIB? Este crescimento trabalhista e na expansão da previ-
básica universal enquanto política so- tem mais a ver com as dinâmicas dência privada. Ou seja, sua lógica é
cial pode beneficiar principalmente a do capital ou com a geração de expandir a fronteira da privatização.
população em condições de pobreza, postos de trabalho?
mas pode beneficiar também os tra-
balhadores que aparentemente não Josué Pereira da Silva – O cresci- IHU On-Line – Como a imple-
precisam de uma renda desse tipo. Se mento econômico em si não é um pro- mentação da renda básica univer-
no primeiro caso parece indiscutível blema; mas é problemática a obsessão sal atualiza a ideia de trabalho a
sua pertinência, no segundo pode-se pelo crescimento, sobretudo quando partir de noções como labor (tra-
argumentar que a renda básica ga- não há preocupação com seus efeitos balho produtivo) e opus (trabalho
rantida contribuiria para aumentar o negativos de longo prazo sobre o am- artístico e cultural)?
poder de barganha dos trabalhadores, biente natural. É difícil imaginar capi-
talismo sem crescimento econômico, Josué Pereira da Silva – Como já
reduzindo os efeitos de expectativas
mas há uma excessiva valorização do escrevi antes, não vejo a renda básica de
de desemprego nos momentos de ne-
produtivismo como se fosse o único cidadania como panaceia para resolver
gociação de melhores salários e con-
caminho possível para se alcançar o todos os problemas da humanidade.
dições de trabalho. Ademais, a renda
bem-estar da população. É essa lógi- Mas acho que ela poderia facilitar bas-
básica, enquanto tal, não se contrapõe
ca produtivista hegemônica, da qual tante o combate à pobreza extrema e à
a nenhuma das reivindicações dos dife-
a esquerda tradicional não consegue desigualdade social, acentuada pela cri-
rentes movimentos sociais. Por isso, ao
escapar, que explica a obsessão pelo se dos sistemas de proteção social e pela
contrário, ela pode até contribuir para
crescimento, seja quando vista pela globalização da economia. Não sei se a
unificar suas ações em torno de uma
dinâmica do capital, seja pela imagi- renda básica atualiza a ideia de trabalho
pauta comum.
nada geração de postos de trabalho em qualquer dos dois sentidos mencio-
6 Annablume, 2014, páginas 63-83. (Nota do en-
que dele se espera. Nesse caso, ambas, nados, mas ao garantir às pessoas uma
trevistado) dinâmica do capital e geração de em- renda desvinculada do assalariamento,

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ela cria condições para que as pessoas balho assalariado. Mas caso sua implementação se dê
possam desenvolver suas potencialida- com sólido apoio social e a partir de
des sem a pressão da luta pela sobrevi- um montante suficiente para garan-
IHU On-Line – Em uma econo-
vência material. tir condições materiais que permita a
mia do conhecimento, em que o
cada pessoa viver com dignidade sem
Isso daria mais autonomia para as pes- trabalho intelectual (no sentido
precisar necessariamente vender sua
soas decidirem onde preferem empregar de circulação de informações)
força de trabalho no mercado, ela tam-
suas energias, inclusive dedicando-se, prepondera sobre o trabalho
bém pode se transformar naquilo que
por exemplo, a atividades socialmente material, de que ordem são os
André Gorz denomina “reforma revo-
importantes – artísticas, culturais, arte- desafios à geração de renda?
lucionária”, contribuindo, assim, para
sanais etc. – mas sem valor de mercado. “desmercadorizar” parcialmente a for-
Josué Pereira da Silva – No
O amplo desenvolvimento desse tipo de ça de trabalho e para desafiar com isso
contexto da economia de conheci-
atividade poderia implicar mudanças na um importante pilar do capitalismo.
mento, a criação de riqueza num
percepção e na relação das pessoas com o sentido amplo (e não apenas geração
trabalho assalariado. de renda) assenta-se mais na inte-
ração e na criatividade social, cuja IHU On-Line – Deseja acres-
contribuição individual não é passí- centar algo?
IHU On-Line – Chegamos à vel de medição, do que na relação de
fronteira do trabalho assalaria- Josué Pereira da Silva – Primei-
equivalência direta típica das trocas
do ou esse modelo ainda tem fô- ro, que já temos desde janeiro de 2004
no mercado. Se a chamada economia
lego? Quais devem ser os rumos do conhecimento se apropria dessa uma lei, sancionada pelo então presi-
do trabalho no século 21? riqueza socialmente produzida, en- dente Lula, que previa a instituição da
tão o problema principal não é mais renda básica de cidadania no Brasil a
Josué Pereira da Silva – O peso partir de 2005, mas que ainda não saiu
do trabalho assalariado como norma o da geração de riqueza, mas o de
sua distribuição. Daí a pertinência do papel. Por outro lado, embora não
no mundo contemporâneo é inegá- ignore que o contexto atual brasileiro e
da renda básica universal.
vel. E tudo indica que assim conti- mundial é bastante adverso, continuo
nuará ainda por muito tempo. Mas achando que não dá para perder a espe- 43
vejo duas tendências mais ou menos rança e deixar de acreditar num futuro
claras: a sensação de que tudo virou IHU On-Line – Não seria a ren-
melhor. Mas, para tanto, precisamos
trabalho e a expansão da lógica da da básica universal uma forma
também de uma esquerda diferente
mercadoria para os mais recônditos de “salvar” o capitalismo?
daquela até aqui dominante. Uma es-
domínios da vida social. Em tal situa- Josué Pereira da Silva – Difícil querda que tenha de fato apreço pela
ção, a luta principal, a meu ver, deve saber. A resposta será afirmativa se a democracia e pela ética, que realmente
ser contra a tendência de se trans- renda básica universal se limitar a um se oponha à expansão desenfreada do
formar tudo em mercadoria; con- patamar tão reduzido que não seja su- capitalismo neoliberal e que também
sequentemente, embora o trabalho ficiente para garantir condições de vida não seja cega às consequências negati-
assalariado seja o padrão normativo digna às pessoas, de forma que elas vas dessa expansão capitalista para as
dominante, não podemos aceitar que continuem precisando se submeter às vidas das populações mais vulneráveis
toda atividade se transforme em tra- exigências do capitalismo neoliberal. e para o ambiente natural.■

Leia mais
– Renda Básica fortalece a autonomia. Entrevista com Josué Pereira da Silva, publicada na
revista IHU On-Line número 333, de 14-6-2010, disponível em http://bit.ly/2ppQ6wg;
– Renda básica: alternativa para a diminuição das desigualdades sociais. Entrevista com
Josué Pereira da Silva, publicada na revista IHU On-Line número 373, de 12-9-2011, disponível
em http://bit.ly/2oP22r0;
– Renda básica: uma proposta que permite desfrutar da igualdade. Entrevista especial com
Josué Pereira da Silva, publicada nas Notícias do dia de 5-6-2014, no sítio do Instituto Humani-
tas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2pII2Ua;
– Uma nova luz sobre o pensamento da esquerda. Entrevista com Josué Pereira da Silva, pu-
blicada na revista IHU On-Line número 238, de 1-10-2007, disponível em http://bit.ly/2nUPzml;
– Cidadania, autonomia e renda básica. Artigo de Josué Pereira da Silva, publicado no Cader-
nos IHU ideias número 149, disponível em http://bit.ly/2nUNWVH.

EDIÇÃO 503
TEMA DE CAPA

Publicações da revista IHU On-Line sobre o tema do trabalho


- 1º de maio: trabalho e memória. Revista IHU On-Line, número 57, de 24-4-2003, disponí-
vel http://bit.ly/2pa0tSm;
- Economia Solidária e a crise do mundo do trabalho. Revista IHU On-Line, número 66, de
30-6-2003, disponível em http://bit.ly/2pdxRK9;
- A crise da sociedade do trabalho. Revista IHU On-Line, número 98, de 28-4-2004, dispo-
nível em http://bit.ly/2p9ZXUH;
- As obras coleitvas e seus impactos no mundo do trabalho. Revista IHU On-Line, número
161, de 24-10-2005, disponível em http://bit.ly/2pdlrlq;
- Trabalho. As mundaças depois de 120 anos do 1º de maio. Revista IHU On-Line, número
177, de 24-4-2006, disponível em http://bit.ly/2pY2jJ1;
- Mais inovação tecnológica e... piores condições de trabalho. Um paradoxo! Revista
IHU On-Line, número 188, de 10-7-2006, disponível em http://bit.ly/2q7ogSk;
- O trabalho no capitalismo contemporâneo. A nova grande transformação e a muta-
ção do trabalho. Revista IHU On-Line, número 216, de 23-4-2007, disponível em http://bit.
ly/2oE0uw5;
- O mundo do trabalho no Brasil de hoje. Mudanças e novos desafios. Revista IHU On-
-Line, número 256, de 28-4-2008, disponível em http://bit.ly/2oDZS9R;

44 - O mundo do trabalho e a crise sistêmica do capitalismo globalizado. Revista IHU On-


-Line, número 291, de 4-5-2009, disponível em http://bit.ly/2q77sLc;
- Biocapitalismo e trabalho. Novas formas de exploração e novas possibilidades de
emancipação. Revista IHU On-Line, número 327, de 3-5-2010, disponível em http://bit.
ly/2oY8M5g;
- As mutações do mundo do trabalho. Desafios e perspectivas. Revista IHU On-Line, nú-
mero 390, de 30-4-2012, disponível em http://bit.ly/2onSRyx;
- A organização do mundo do trabalho e a modelagem de novas subjetividades. Revista
IHU On-Line, número 416, de 29-4-2013, disponível em http://bit.ly/2pWORlE;
- Governos Lula e Dilma e o mundo do trabalho doze anos depois. Revista IHU On-Line,
número 441, de 28-4-2014, disponível em http://bit.ly/2oDQSBC;
- A volta da barbárie? Desemprego, terceirização, precariedade e flexibilidade dos con-
tratos e da jornada de trabalho. Revista IHU On-Line, número 484, de 2-5-2016, disponível
em http://bit.ly/2oDS0VI.

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45

EDIÇÃO 503
ENTREVISTA

Muros do condomínio esquerdista


transformados em pontes de
diálogo pragmático
Para Moysés Pinto Neto, a consciência de que todo o sistema político
brasileiro foi atingido pelas recentes delações dos executivos da
Odebrecht “só não é compartilhada pelos mais fanáticos”
Patrícia Fachin

N
a entrevista a seguir, concedida cia de organização”.
por e-mail, Pinto Neto comenta Contrapondo-se à esquerda ins-
a atual conjuntura política e a titucional, que está “desidratada”, e
atuação da esquerda nesse cenário. Para à esquerda identitária, que é “exces-
ele, embora a esquerda tenha passado sivamente apaixonada pelas próprias
pela “maior crise desde o começo da ideias”, Moysés Pinto Neto propõe e de-
Nova República”, de outro lado, emer-
fende um “pragmatismo radical”, que
giram “compostos de movimentos so-
“envolve a possibilidade de traduzir
ciais ligados às políticas identitárias”, os
pautas radicais para além dos emble-
quais, em sua maioria, convergiam com
mas identitários, reaprendendo a de-
a esquerda institucional. Entretanto, as-
senvolver tática e estratégia capazes de
46 sinala, “ao tomar a frente enquanto van-
articular em termos do senso comum
guarda da esquerda, a esquerda cultural
tais demandas”.
involuntariamente provoca um proble-
ma diante do senso comum: a esquerda Moysés Pinto Neto é graduado
é quase sempre identificada com intelec- em Ciências Jurídicas pela Universida-
tuais, artistas, estudantes, professores e de Federal do Rio Grande do Sul - UFR-
sindicalistas. Assim, a figura correspon- GS, mestre em Ciências Criminais pela
de, em termos de estilo, a um fragmento Pontifícia Universidade Católica do Rio
muito localizado da sociedade, sem co- Grande do Sul - PUCRS e doutor em Fi-
municação com a maioria”. Isso signi- losofia nessa mesma instituição. Lecio-
fica, explica, que “as forças da esquerda na no curso de Direito da Universidade
estão divididas entre o reformismo e o Luterana do Brasil - Ulbra Canoas.
identitarismo” e, de outro lado, as forças
A entrevista foi publicada nas No-
de direita estão divididas entre “o libe-
tícias do Dia de 24-4-2017, no sítio do
ralismo e o fascismo”. Contudo, adverte,
Instituto Humanitas Unisinos – IHU,
“há – por baixo de todos os retratos ofi-
ciais da esfera pública – forças anárqui- disponível em http://bit.ly/2pcY8YQ.
cas ganhando cada vez maior experiên- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que avaliação tante tempo. Nas últimas entrevis- práticas da sociedade brasileira, da-
faz do atual momento político? tas ao IHU, vinha insistindo que a das como usuais.
Que implicações a lista do mi- indignação contra o sistema político
A delação é arrasadora e a cons-
nistro Fachin pode gerar para a não era apenas seletiva, embora boa ciência de que atinge o sistema po-
política neste momento, consi- parte das manifestações entre 2015- lítico como um todo só não é com-
derando as delações dos execu- 2016 tenham sido banhadas de an- partilhada pelos mais fanáticos dos
tivos da Odebrecht? tipetismo visceral. A indignação, dois lados da polarização pós-2014.
Moysés Pinto Neto – Estamos contudo, tem seu berço no aconte- A Operação Lava Jato é reflexo da
vivendo o momento de desconstru- cimento de 2013 e na ruptura que se aliança bem-sucedida traçada entre
ção que alguns já anteviam há bas- estabeleceu a partir dali com certas segmentos mais próximos da clas-

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“Uma crítica sistêmica da


corrupção não remete apenas
à necessidade de reforma
política, mas à própria natureza
da democracia em jogo”

se média e da direita e o complexo sibilidade de os cidadãos decidirem na aposta cega em qualquer car-
Polícia Federal/Ministério Público/ com autonomia acerca do seu pró- ta fora do baralho na medida em
Poder Judiciário em 2013. Lembro prio destino. Ela captura a disputa que o conjunto está viciado e não
que, entre as principais pautas dos política para o interior de negocia- dá alternativas por dentro. Ou se
movimentos, estava a autonomia ções opacas e blinda um sistema ex- aceita a condição de democracia-
investigatória do Ministério Público cessivamente profissionalizado para -em-suicídio, com o governo tec-
em relação aos políticos. O que não equilibrar interesses parciais para nocrático alheio à indignação dos
impede, por óbvio, as críticas aos ex- além do que seria recomendado em de baixo, ou se aposta numa carta
cessos e abusos contra direitos e ga- termos comuns. Com isso, a corrup- totalmente imprevisível que pode,
rantias individuais praticados, que ção captura a própria democracia, no mínimo, ressuscitar a sensação
sempre serão contra-majoritários, impedindo a deliberação pública. da potência democrática.
Etiquetar a crítica desse processo 47
mas tampouco podem vir desacom- Uma crítica sistêmica da corrupção
panhados da realidade material so- como mero moralismo, alegando ser
não remete apenas à necessidade de
bre a qual incidem. a corrupção inerente ao sistema, é
reforma política, mas à própria na-
partir para uma posição de cinismo
Posições como as que têm sido de- que produz justamente o desengaja- tureza da democracia em jogo.
fendidas pelo economista Bresser- mento dos sujeitos políticos. O jogo aqui é de dupla dimensão:
-Pereira, por exemplo, mostram o ao mesmo tempo em que o grande
conservadorismo e a fragilidade das Política reduzida à negociação bloco político tecnocrático afirma
forças que resistem às mudanças ra- sua inevitabilidade, apela à consci-
dicais exigidas pelas ruas. O despre- Sob esse prisma, a frequente acu- ência política e à responsabilidade
zo pela pauta contra a corrupção sob sação de “antipolítica” que cai so- no voto; o outsider, ao contrário,
a alegação de moralismo é um erro bre as manifestações contra a cor- afirma apenas sua própria condição
tático da esquerda. A corrupção é um rupção acaba reduzindo a política a de fora da tecnocracia, aproximan-
significante aglutinador que pode uma esfera das negociações opacas do-se do populismo, e invoca um
operar no vazio. Se é verdade que e produzindo, como efeito reflexo, o cinismo caricato como afeto capaz
existe uma longa tradição de crítica tipo de cinismo que elege populistas de promover mudanças. De certa
oportunista da direita em relação à reacionários como Donald Trump, forma, o gesto antipolítico é exata-
corrupção, é também verdade que catalisador da desilusão em relação mente aquele que reivindica para si
existe uma dimensão da corrupção ao espetáculo que encobre tudo e a política contra a tecnocracia, en-
que não se reduz ao mero funciona- figura como sagrado intangível. Ao
frentando o establishment na mes-
mento azeitado da máquina pública. fazer o voto no impossível, o eleitor
ma medida em que desafia a ima-
Uma crítica sistêmica da corrupção reconecta-se com a possibilidade de
gem de futuro pré-concebido como
não remete apenas à necessidade de fazer diferente e com isso pode sen-
único pela democracia espetacular.
reforma política, mas à própria na- tir-se novamente capaz de decidir
os rumos da democracia. No entan- Porém, em termos de programa, as
tureza da democracia em jogo.
to, o faz numa atitude cínica, pois a ideias de futuro foram sequestradas
Um regime político cujo principal ideia de programa para o futuro foi por uma narrativa única que perpas-
motor é o dinheiro, como se sabe sequestrada pelo bloco unidimensio- sa todo espectro “razoável” da polí-
desde os gregos, é uma plutocracia, nal que disputa o poder nos termos tica, deixando apenas como opção
não democracia. Os arranjos traça- da tecnocracia (de direita ou de es- uma indignação vazia que lembra
dos desde o alto da pirâmide, por- querda). A impotência de transfor- muito a revolta do consumidor con-
tanto, enfraquecem a própria pos- mar o jogo corrupto transforma-se tra um serviço mal prestado. Isso

EDIÇÃO 503
ENTREVISTA

abre espaço para o crescimento Moysés Pinto Neto – 2013 é o citado desde a época por Bruno
do populismo reacionário contra a acontecimento que encerra a his- Cava). Essa ortopedia não apenas
construção de um futuro pensado a tória, ou ao menos a primeira fase, reconstitui uma fratura desorga-
partir das redes de inteligência co- da Nova República. Ele representa nizada pelos cortes transversais
letiva que poderiam emergir pelas a irrupção da indignação popular de 2013 - pedir mais saúde e edu-
novas tecnologias. Em vez disso, o em torno da sobrevivência de cer- cação é de direita ou de esquerda?
espaço é reduzido à dimensão mais tas práticas políticas que passam a Lutar contra a corrupção é de direi-
estúpida, carregando apenas uma ser consideradas inadmissíveis. Seja ta? Mas e o pedido de demonstra-
indignação vazia, uma revolta de- pelo viés mais à esquerda, com a de- ção das planilhas das empresas de
sorganizada contra o bloco mono- manda por mais direitos sociais e transporte que gerou as ocupações
lítico do poder. Não por acaso as diminuição do lucro das oligarquias de Câmaras Municipais por mani-
teorias da conspiração tornam-se no controle dos serviços públicos, festantes de esquerda? Estar contra
tão populares. seja mais à direita, pela crítica da os partidos é anarquista ou fascista?
corrupção sistêmica, há ali um ponto -, como refaz a estrutura sob uma
A corrupção e a cultura do de clivagem que, apesar dos lamen- forma mais pesada e polarizada.
saque tos da classe política, nos conduziu
a um ponto sem retorno. A multidão O PT e a identidade de es-
Afora essa brecha pela qual penetra que sai às ruas em 2013 é uma com- querda
o populismo, a corrupção represen- posição tão híbrida, heterogênea e
ta, no Brasil, uma cultura de saque A entrada de Marina Silva por aci-
múltipla quanto o próprio lulismo,
das elites que permanece desde a dente na disputa em 2014 trazia o
com forças políticas sendo cortadas
Colônia e é extremamente difundi- risco de uma força política conse-
transversalmente em relação à di-
da na sociedade. O próprio conceito guir traduzir essa síntese ambígua e
visão que havia se estabelecido até
de patrimonialismo, que equivo- monstruosa que se formou em 2013,
então. Esse turbilhão sem forma
cadamente se gostaria de apagar, inclusive nas suas contradições, in-
irá desestabilizar as forças políticas
demonstra isso. O centro político constâncias e ambivalências. Isso
institucionais, que reagirão com a
percebe esse saque como imanente- precisou ser neutralizado para ga-
demanda por ordem, o aprofunda-
48 mente negativo e visualiza que tudo rantir a vitória eleitoral, dobrando
mento dos aparelhos de controle e a
isso enfraquece os laços de solidarie- então a aposta à esquerda do go-
chantagem de que a Realpolitik era o
dade social, numa perspectiva mais verno Dilma por meio da agressiva
único caminho possível. campanha eleitoral e da posição sec-
comunitária, ou a força da lei, numa
perspectiva mais liberal, produzindo 2014 é o momento em que o cho- tária de intelectuais como Boaven-
um contexto anômico em que geral- que é absorvido e metabolizado tura de Souza Santos e Frei Betto,
mente prevalece a lei do mais forte. pelo sistema político. A desconstru- etiquetando em Marina “a nova cara
Os altos índices de criminalidade são ção em parte é estancada a partir da direita” ou “um novo Collor”. Pela
o saque sob o foco invertido: como de uma nova estrutura muito mais campanha extremamente agressiva
a elite é baseada no saque, também polarizada que a anterior. De 2002 levada a cabo pelo PT e pelo PSDB,
posso saquear – quase como “legí- a 2013, as divisões normalmente se além dos seus próprios equívocos,
tima defesa”. Nenhum projeto co- estabeleciam entre conservadores Marina termina despencando entre
letivo pode sobreviver ou prosperar e progressistas, figurando a maior as escolhas. Mas o modus operandi
sob essa batuta. A montagem an- parte do campo político institucio- fica como legado da eleição. É aqui
ticorrupção, portanto, não carrega nal (comandado por PT e PSDB) e que se gestará não apenas a polari-
apenas um moralista/negativo, mas da classe média na condição de pro- zação política, mas a transformação
contém também um aspecto cons- gressista. Em 2013, teria sido esse de campos de forças em identidades
trutivo, um desejo de superar uma campo – identificado por Marcos ossificadas. Para diferenciar-se de
cultura organizada pelo saque em Nobre como “antipeemedebista” – Marina, o PT teve que pagar o preço
direção, por exemplo, a um futuro que, numa confluência imprevisível de dobrar a identidade de esquerda,
mais cooperativo que possa envolver e improvável, teria ocupado as ruas traçando uma linha rígida que o se-
um projeto comum. a fim de protestar contra a velha para do centro.
casta política. Nenhum projeto coletivo pode so-
O mesmo setor progressista que breviver ou prosperar sob essa batuta
IHU On-Line – De que modo
a política se reorganizou entre aprovara Lula com estratosféricos O segundo turno de 2014 é o ponto
2014 e 2017? As manifestações oitenta por cento saía às ruas para de viragem em que a polarização irá
de 2013 tiveram alguma influ- protestar por diversas pautas, do explodir. Com uma população mais
ência nessa reorganização? De próprio direito de protestar até a envolvida com a política a partir da
que modo essa reorganização corrupção sistêmica. É esse híbrido sensação de potência despertada em
política se manifesta no atual que se desfaz numa grande opera- 2013, cada lado arma-se com suas
cenário político? ção ortopédica (para citar Foucault armas mais pesadas para vencer o

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embate. Grande parte do campo de representante do Bradesco Joaquim progressista. A esquerda retroali-
esquerda que havia sido crítico ao Lévy como ministro da Fazenda e, mentou essa polarização ao reforçar
governo Dilma, recua diante da pos- em seguida, as medidas de austeri- táticas que funcionavam até 2013
sibilidade de eleição de Aécio Ne- dade que haviam sido tratadas como – como etiquetar a ignorância e a
ves. Forma-se então, em expressão “esvaziar o prato de comida do bra- tolice no adversário ou acusar o mo-
cunhada por deputados conhecidos sileiro” na sua propaganda política. ralismo seletivo em quem atacava
nas redes sociais – Marcelo Freixo e Com o fim do congelamento artifi- a corrupção – mas ia perdendo es-
Jean Willys, do PSOL – o “apoio crí- cial do preço dos combustíveis, a paço à medida que ficava claro que
tico”, no qual o militante declara seu inflação dispara e o mercado passa ela tampouco tinha resposta para os
voto à Dilma, reafirmando críticas às a boicotar o governo. O impacto foi grandes problemas que mobilizam
políticas do primeiro mandato e es- tão grande que consolidou o termo as pessoas.
perando uma “guinada à esquerda” “estelionato eleitoral”.
O surgimento da expressão “isen-
no segundo. tão” para definir aqueles que recusa-
A partir de então, organizações vir-
Ao mesmo tempo, boa parte do tuais como o MBL, #Vemprarua e a vam se reduzir a um dos dois polos
campo que havia saído às ruas em página Revoltados Online passam a – “petralhas” e “coxinhas” – é sinto-
2013 na segunda leva passa ao lado capitanear passeatas contra o gover- mática no sentido de que a estrutura
de Aécio, entendendo que a mu- no. Utilizando de estratégias norte- se solidificou e funciona por meio
dança no governo era essencial e -americanas para disseminar ideias do feedback contínuo entre as duas
começando a formar um caldo mais liberais e/ou conservadoras, esses identidades, dissolvendo o ecossis-
liberal e/ou neoconservador de com- movimentos conseguem ampliar tema híbrido que foi base tanto do
preensão da sociedade. A eleição é sua base social alimentando a ideia lulismo quanto de 2013. O bloco
decidida por uma fresta mínima de de que a crise brasileira era resul- social que era base do PT no come-
votos. No final, o recuo do segmento tado da visão política da esquerda. ço do processo – sobretudo a classe
tradicional de esquerda que havia, Ao mesmo tempo, a Operação Lava média universitária, o sindicalismo e
em escalas diferentes, adotado posi- Jato começava a dar seus primeiros o funcionalismo público – volta a ser
ção crítica ao PT (por motivos iguais frutos. A imagem de uma gestão in- a protagonista no processo de “re-
ou diferentes que vão desde a “Carta competente, politicamente desorga- sistência ao golpe”. A falta do apoio 49
aos Brasileiros” até o #naovaiterco- nizada e visceralmente corrupta pro- popular é sentida pela significativa
pa) acaba sendo o fiel da balança. lifera viralmente. diferença que se estabelecia entre as
Mas a conta será paga como? passeatas dos verde-amarelos, inspi-
Essa é a vantagem que a direita ad- rados pelo condomínio da direita, e
quiriu sobre a esquerda com a vitória os vermelhos, inspirados pelo con-
de Dilma em 2014: enquanto o mili- domínio da esquerda. A esquerda
IHU On-Line – De que manei-
tante de direita é ninguém, no senti- era reduzida ao pequeno segmento
ra essa reorganização política
do de que não está preocupado em dos indivíduos e grupos que se iden-
impactou a esquerda?
manter uma linha coerente de atua- tificavam como esquerda.
Moysés Pinto Neto – Contra- ção e nem se vê como pertencendo
riando aquilo que era esperado por necessariamente a um campo fecha-
aqueles que a elegeram, Dilma reas- do, o militante de esquerda passou IHU On-Line – Você tem fala-
sume o governo e nomeia um minis- a ser cada vez mais uma identidade, do sobre o nascimento de uma
tério altamente conservador – ainda comportando uma linha fechada e “esquerda cultural” no Brasil a
mais que o primeiro. Tirando seu coerente de crenças e sendo obriga- partir de 2014. Quais as carac-
núcleo duro desenvolvimentista (do do a sustentar o fardo da defesa de terísticas dessa esquerda cultu-
qual a latifundiária Katia Abreu, por um governo indefensável aos seus ral e em que ela se diferencia da
exemplo, fazia parte), os nomes são próprios olhos. O campo difuso do esquerda que atuava até então?
vinculados a bancadas fisiológicas progressismo – que era dominante
e reacionárias. Além disso, numa Moysés Pinto Neto – Ao mesmo
na Nova República sob a hegemonia
manobra duplamente desastrada, tempo em que a esquerda passava
de petistas e tucanos – passa a ser
Dilma apoia a formação de partidos pela sua maior crise desde o começo
fraturado entre direita e esquerda
fisiológicos para tentar enfraquecer da Nova República, emergia outro
de modo identitário, formando dois
o PMDB e na eleição para Presiden- campo – em boa parte, convergente
grandes condomínios.
com a esquerda institucional – com-
te da Câmara dos Deputados lança o
Pela sua posição de oposição e o posto de movimentos sociais ligados
petista Arlindo Chinaglia, que perde
descrédito do governo, o condomí- às políticas identitárias. Eles foram
para o representante do baixo clero
nio da direita conseguiu arrastar produto da reorganização política
Eduardo Cunha.
para sua borda o centro, formando gestada em 2013 enquanto uma li-
Totalmente sem base na política uma ampla maioria que desestabi- nha de força do período que se soli-
institucional, Dilma ainda decep- lizou - utilizando estratégias tam- dificou. O feminismo e o movimento
ciona seus eleitores ao anunciar o bém gestadas em 2013 -, o campo negro, e cabe o destaque ao feminis-

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ENTREVISTA

mo negro, ocupam então um espaço lutas políticas de esquerda. A partir Enquanto o neoconservadorismo e
político de embate cultural no mo- de 2014, os principais focos de resis- o fascismo aproveitam da sobrecar-
mento em que a esquerda institucio- tência – ao lado de organizações bas- ga moral que perpassa o discurso da
nal está sendo engolida pelos funda- tante ligadas ao PT (CUT e MST, por esquerda cultural criando os anti-
mentalistas do Congresso Nacional. exemplo) – são as escolas públicas e -heróis do “politicamente incorre-
Esses movimentos são amplos e universidades. A consequência disso to”, o centro permanece simpático
heterogêneos, compostos de multi- é a adoção de uma certa linha teórica às causas defendidas pelos ativistas
plicidades de pontos de vista e não específica que embasa a ação desses (feminismo, antirracismo, anti-ho-
raro contêm pautas diametralmente movimentos, em especial ocupações. mofobia etc.), mas percebe a lupa
opostas entre si, como é o caso, por da problematização como uma ação
exemplo, do debate em torno da re- excessivamente estilizada e pra-
gulação da prostituição ou da crimi- IHU On-Line – Você afirma ticamente inviabilizadora de uma
nalização da homofobia. que a esquerda tem sido “inca- convivência fluida entre as pessoas.
paz de fornecer modelos que A identidade de esquerda torna-se
O filósofo Richard Rorty tem sido escapam à estilização identi- uma seita envolvida com proble-
muito lembrado recentemente por tária”. Nesse sentido, como a mas que não existem para a maioria
ter especulado em torno das rela- esquerda tem se manifestado e das pessoas, e esse tipo de contato
ções entre a esquerda cultural e o se apresentado desde 2013? Em perde-se na medida em que as prio-
voto popular numa direção muito que consistiria um modelo que ridades da política parecem afasta-
parecida com a que acabou permi- a desvincularia da sua “estiliza- das dos assuntos que deveriam ser
tindo a eleição de Donald Trump ção identitária”? prioritários. Isso é potencializado
nos Estados Unidos. Rorty atribui
Moysés Pinto Neto – Ao tomar pela era da hiperconectividade, que
a essa Nova Esquerda – formada a
a frente enquanto vanguarda da torna a vigilância ininterrupta em
partir da fissura na classe trabalha-
esquerda, a esquerda cultural invo- torno de pontos fracos que podem
dora e estudantes durante a Guerra
luntariamente provoca um proble- estar patentes ou latentes nas diver-
do Vietnã – a diminuição do sadis-
ma diante do senso comum: a es- sas manifestações que percorrem o
mo na sociedade. “A adoção”, diz
50 querda é quase sempre identificada cotidiano virtual.
ele, “de atitudes das quais a Direita
zomba como sendo ‘politicamen- com intelectuais, artistas, estudan- Na medida em que desaparece o
te corretas’ tornou a América uma tes, professores e sindicalistas. espaço privado com a exposição da
sociedade muito mais civilizada do Assim, a figura corresponde, em intimidade nas redes, alarga-se um
que era trinta anos atrás”, dizia. Seu termos de estilo, a um fragmento policiamento integral sobre ditos e
habitat, no entanto, está restrito às muito localizado da sociedade, sem não-ditos, tornando a convivência
universidades, sem conseguir dialo- comunicação com a maioria. Per- mediada por uma sobrecarga judica-
de-se com isso a possibilidade de tiva cuja exigência converte as redes
gar com a esquerda reformista anti-
identificação com outros agentes sociais em verdadeiros tribunais in-
gamente composta pelos sindicatos,
que constroem valor, reservando-
partidos e outras forças favoráveis quisitórios. Com isso, fragmenta-se
-se à esquerda apenas a crítica da
aos trabalhadores. o fragmento num processo infinito
sociedade - sem lugar para diver-
diante do qual nenhum ser humano,
No Brasil, também a esquerda cul- sas outras atividades que percor-
na sua ambivalência, fragilidade e
tural é reflexo do enclave universi- rem a vida diária. A possibilidade
errância, é capaz de ser absolvido.
tário. Uma das muitas políticas so- de alianças e composições diferen-
ciais bem-sucedidas do lulismo foi tes é perdida em nome da pureza, Em outros termos, a concentração
a inclusão universitária. Abastecida não raro terminando em infinitas da esquerda sobre aportes teóricos
pela criação de novas universidades disputas em torno de quem é a ver- extremamente densos e posições po-
públicas, aumento das vagas (REU- dadeira esquerda e em verdadeiros líticas que exigem um amplo cabedal
NI), financiamento (FIES), troca linchamentos morais. Ora, nada “metanarrativo” acaba afastando-
de dívidas públicas por vagas em mais distante do senso comum que -a da “gente comum” e tornando-a
universidades privadas (PROUNI), uma posição tão exigente. O senso uma identidade marginal, uma bo-
ampliação da utilização do ENEM comum é mais pragmático e, como lha artificial. Com isso, não quero
como critério nacional de seleção e tal, disposto a tolerar erros em afirmar que é ruim ser uma identi-
adoção do sistema de cotas para es- nome de uma noção bastante di- dade marginal – a maioria das uto-
tudantes de escola pública, negros, fusa de falibilismo. Toda vez que a pias passa mesmo por essas margi-
pardos e indígenas, a política gerou composição e organização perdem nalidades – mas é negativo que uma
uma mudança significativa no per- espaço para a demanda por pureza, força no campo político torne-se um
fil econômico-social dos estudantes o centro fica cada vez mais distante estilo identificado com uma minoria
universitários. Desde 2013, esse seg- e as batalhas travam-se no interior populacional extremamente focal e
mento tem assumido com cada vez da bolha identitária, fragmentando que muitas vezes acaba se tornando
maior intensidade a vanguarda das um ecossistema autorreferente. um enclave insular sem contato com

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o resto. É a questão colocada desde Moysés Pinto Neto – As “cul- tornando os polos cada vez menos
Lênin até o Podemos. tural wars”, para as quais tem cha- comunicantes, aumentando o fos-
mado atenção Pablo Ortellado, são o so na medida em que a estratégia
Embora não seja mais que uma
reflexo das disputas entre a esquerda chauvinista vai funcionando.
hipótese que colho do ativista de
cultural e o neoconservadorismo e/
direitos humanos Raphael Tsavkko O politicamente correto (PC), ao
ou neofascismo que foram trazidas
Garcia, não é difícil especular que o eliminar a interpretação fora do
dos EUA para o Brasil recentemente.
processo de insularização da esquer- campo do literal, é o alvo perfeito
Elas deslocam o palco principal da
da nas universidades e em torno da para o crescimento reativo desse fas-
política das instituições para o cam-
vigilância microscópica dos com- cismo: ao ser caricato, este joga no
po comportamental. O problema é
portamentos identifique-se com o nível “meta” da linguagem que torna
que essa disputa entre os trolls e o
momento de impotência na política indecidível se o dito é realmente ob-
“politicamente correto” se retroali-
institucional. Se compararmos Bra- jeto ou não de crença pelo emissor.
menta. Não há dúvida que os movi- O obsceno, assim, não se situa no
sil e Estados Unidos, onde nasce a
mentos sociais, em geral, têm razão nível do ocultamento, daquilo que
esquerda cultural, parece que o en-
nas suas diversas pautas que envol- ninguém sabe (e precisa ser desmas-
clave universitário se situa mais ou vem a defesa dos direitos das mino-
menos na mesma posição: diante de carado), mas na capacidade de criar
rias e uma cultura menos violenta. uma performatividade indecidível
uma esquerda partidária desidra- Mas a composição de feebacks hoje
tada e incapacidade de organização diante de um constativo escandalo-
é tão uniformizada, dada a repetição so – jogando no nível que o politica-
política, sobram as depurações in- intermitente dessas polêmicas na es-
ternas por meio do policiamento de mente correto não alcança pelo seu
fera pública, que todo mundo já sabe literalismo moralista. Assim, dentro
deslizes linguísticos ou erros indivi- quais serão os polos da disputa e o
duais, reafirmando-se com isso uma desse arranjo, só resta ao PC o papel
que irão dizer. de polícia moral.
composição: esquerda partidária
desidratada + esquerda cultural + Em um texto ainda não publicado Não nos enganemos, contudo,
incapacidade de organizar o descon- sobre o episódio The Waldo Mo- quanto à natureza política da per-
tentamento + política do medo da ment, da série Black Mirror, busco versão: ela é conservadora porque,
direita + conservadorismo político + compreender como funciona essa ao jogar no indecidível o performati- 51
progressismo social. estrutura que se alimenta de um ci- vo entre sério e jocoso, deixa de lado
nismo brutal do estilo que elegeu o conteúdo do enunciado – que, no
No Brasil, essa equação pode ser Trump e hoje criou os “bolsomi- fim das contas, é apenas uma repro-
vista na acusação verdadeira, mas nions” no Brasil. O problema é como dução banal da violência do status
que não explica o acontecimento, de responder a eles. Não porque seja di- quo. Ao querer tocar o real por meio
que “o golpe é misógino”, como se fícil realmente contrapor afirmações do obsceno, destruindo a positivida-
a explicação para a queda de Dilma absurdas ou refutar seus erros, mas de do espetáculo com uma pseudo-
Rousseff fosse a inegável misoginia exatamente porque sobre essa res- crítica, a atitude reacionária apenas
de grande parte dos parlamentares posta mesma cai o papel moral do reafirma numa duplicação irônica
que votaram favoravelmente ao im- superego numa era em que a perver- aquilo contra a qual supostamente
peachment. Com isso, desloca-se o são corre solta. ela estaria revoltada. Só que a estra-
fenômeno da organização política
Está-se, assim, em um duplo jogo tégia PC apenas retroalimenta esse
(incapacidade de Dilma articular um
que é uma armadilha: de um lado, mecanismo, gerando o feedback es-
projeto de governo desde o primeiro
a parte sacerdotal, a “lição de mo- perado pelo reacionário – recolocan-
dia e fragilização pela oposição for-
ral” triste fica na conta daqueles do-o na posição de outsider a partir
te combinada à perda da base social
que querem contraditar o discurso do policiamento da seriedade.
pelo estelionato eleitoral) para uma
situação de violência simbólica (a do humor brutalizado (chamada O reacionário, falando uma estu-
misoginia contra a mulher Dilma então por isso de “politicamente pidez, parece inteligente, enquanto
Rousseff praticada com frequência correto”); de outro, os próprios cí- o PC, policiando o conteúdo com
pela mídia e outros atores sociais), nicos, na medida em que falam sem uma constatação inteligente, pare-
como se a explicação para todo pro- precisar de um chão de coerência (a ce estúpido porque “não entendeu
blema pudesse ser reduzida à equa- validade normativa é menos impor- a piada” (ironia). Inverte-se, numa
ção relação assimétrica de poder = tante que a performance na super- simetria de duas diagonais, a rela-
violência = opressão. fície), tomam para si a condição de ção inteligência/estupidez e burrice/
vítima, de censurados e de patru- inteligência. Uma estrutura em que
lhados, aproveitando muitas vezes a ambos veem o outro lado como es-
IHU On-Line – Quais são hoje atitude de superioridade moral que túpido porque pensam que sabem
os principais pontos de disputa o outro polo coloca sobre si. Tem- algo que o outro não sabe. Essa es-
da “cultural wars”, e como ela -se, assim, um não-diálogo que vai trutura de sinais invertidos não tem
se manifesta no Brasil? contaminando a esfera pública e data para terminar, porque um polo

EDIÇÃO 503
ENTREVISTA

se alimenta do outro. Na minha opi- como possibilidade desde o lulismo. em rede, que utilizem os recursos de
nião, só construindo linhas de fuga Ambos são bons representantes da viralização hoje disponíveis.
que desconstruam – aqui num ou- tensão que, desde 2010, se instaurou
tro sentido que o que tem sido usa- na esquerda brasileira e, para além
do para a palavra – a polarização é de questões tático/organizacionais IHU On-Line – Que alternati-
possível escapar da sua repetição (que existem), mostra um diferen- vas vislumbra para a atual crise
em loop. do talvez inconciliável que impede brasileira?
uma simples unidade. Lula, com Moysés Pinto Neto – No meu
sua típica ambivalência, conseguiu texto procuro defender – em con-
IHU On-Line – Que possibi- “equilibrar o antagonismo” no perí- traponto à esquerda desidratada
lidades vislumbra à esquerda odo 2002-2008, mas a partir de um hoje francamente derrotada no
para a eleição presidencial de certo ponto a cisão se estabeleceu. mundo (Hillary, Hollande, Dil-
2018? Por enquanto surgem
Além disso, tanto Ciro quanto Ma- ma, Kirchner etc.) e à esquerda
nomes como o de Ciro Gomes,
rina estão desligados das planilhas identitária (não aos movimentos
Lula e possivelmente Marina.
da Odebrecht e de todo complexo de identitários, mas à identidade de
Qual é o significado dessas pos-
corrupção que se estabeleceu no sis- esquerda), excessivamente apai-
síveis alternativas?
tema político brasileiro. Podem ser xonada pelas próprias ideias – o
Moysés Pinto Neto - As eleições vistos como outsiders - posição que, que chamo de pragmatismo radi-
são, mais uma vez, um obstáculo a meu ver, a esquerda deveria en- cal. Procuro especular hipóteses
para a reorganização, tal como ocor- campar na próxima eleição. A direita sobre como ele poderia reconquis-
reu em 2014. A urgência do discurso já percebeu o fato e por isso Doria tar o centro a partir da consciên-
do “complexo de Katechon”, para começa a despontar em relação a Al- cia das suas incompatibilidades e
usar a expressão de meu amigo Ro- ckmin por estar ainda mais distante definição de novas estratégias de
drigo Nunes, acaba colocando as desse núcleo do poder. organização e diálogo.
questões no nível do “menos pior”.
Não acredito que Jair Bolsonaro A esquerda reformista reivindica
Assim, a candidatura de Lula, que
possa ser competitivo em um siste- para si o “realismo”, afirmando um
seria lida até 2014 como um inegá-
52 vel retrocesso por grande parte da ma eleitoral de voto obrigatório. O pragmatismo que negocia com o po-
fascismo também é excessivamen- der em torno a concessões e abertu-
esquerda, pois a maioria esperaria
te identitário e afasta o eleitor de ras. Mas é possível imaginar outro
renovação constante (por exemplo,
centro. Além disso, pesa a falta de tipo de pragmatismo. Ele envolve
Haddad), é sintomática. Ao mesmo
apoio do sistema político e o pró- a possibilidade de traduzir pautas
tempo, é inegável que Lula tem uma
prio vazio que aparecerá em relação radicais para além dos emblemas
grande vantagem e uma grande des-
às propostas do candidato. Assim identitários, reaprendendo a desen-
vantagem competitiva: em contraste
como Lula, Bolsonaro se beneficia volver tática e estratégia capazes de
com as reformas impopulares do go-
no momento de um eleitorado que articular em termos do senso co-
verno ilegítimo Temer, Lula apare-
mum tais demandas. Em contrapon-
cerá para muitos como a lembrança já decidiu em quem irá votar, que
to à primeira [esquerda reformista],
de um tempo de bons ventos; por tem convicções fortes em política.
essa estratégia não rema para o
outro lado, sua rejeição é altíssima, Isso, no entanto, é minoria do ponto
centro, mas procura trazer o centro
já que ele consegue sintetizar o que de vista quantitativo.
para o seu lado. Em contraponto
o eleitor antipetista mais detesta. A
Mas o que assusta na esquerda à segunda [esquerda identitária],
possibilidade de Lula se eleger tam-
é não se perceber o erro de 2014, não pretende que o centro passe a
bém pode ser vista como conserva-
que foi ter abandonado totalmente residir no condomínio esquerdista,
dora ou até, mais que isso, restaura-
as eleições parlamentares. Se hoje mas procura formar composições
dora: conservadora, porque mantém
Temer tem poder e ameaça refor- contingentes a partir de circunstân-
as polarizações acesas nos mesmos
mas draconianas, é porque o mes- cias aleatórias – isto é, variáveis no
termos identitários que se firmaram
mo Congresso antes dominado por caso-a-caso – que impulsionem seu
no período 2014-2017; restauradora,
Eduardo Cunha o sustenta. Em vez programa. Para tanto, é necessário
porque vem com a promessa do sal-
dessa concentração no Executivo, arrancar o status quo da tendência
vamento do sistema como um todo.
poderia se estar pensando em estra- de moralização da política que ca-
Já as alternativas Ciro e Marina tégias eleitorais para ocupação das racteriza o politicamente correto,
me parecem mais interessantes, Casas Legislativas, fazendo confluir maquinando quais são as confluên-
porque refletem a cisão de conteú- as contribuições dos movimentos cias possíveis para criar interstícios
do que hoje atravessa a esquerda. identitários (com, por exemplo, pro- tradutórios – pontes, e não policia-
Ciro é ainda mais desenvolvimen- tagonismo jovem, negro, indígena e mentos – com o senso comum de
tista que Dilma, e Marina, por ou- feminino) e táticas organizacionais acordo com os materiais disponíveis
tro lado, representa uma alternati- abertas e dialogais, inspiradas na li- e tendo em vista a produção de re-
va ambientalista que ficou latente derança distribuída e agenciamento sultados concretos.

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A insatisfação com o modelo estratégias que as “cultural wars”, As ocupações são outra experi-
atual está à beira da explosão como aconteceu com a eleição das ência que permite visualizar a po-
prefeitas de Madrid e Barcelona a tência dessas forças anárquicas.
Essa saída pode parecer simplista partir do municipalismo espanhol Elas são verdadeiros experimen-
e demasiadamente idealista, mas ou da confluência dos movimentos tos coletivos de um outro espaço-
não é. Em primeiro lugar, porque urbanos no feminismo negro nas -tempo, outra economia, outra
– como já dito – a insatisfação com Muitas de Belo Horizonte. forma de habitar o mundo. E não
o modelo atual está à beira da ex- se prendem apenas ao aspecto da
plosão. Além disso, se encontramos Há um substantivo consenso não-
revolta, sendo caracterizadas pelo
atualmente um cenário político em -conservador em torno de vários te-
cuidado, pela organização e pela
que as forças da esquerda estão di- mas cruciais ainda sem comunicação
ação coletiva. Conseguindo livrar-
vididas entre o reformismo e o iden- com o meio político, como ecologia,
-se da ameaça sectária que sempre
titarismo e as forças de direita entre respeito à diversidade e qualidade de
as rondará como um fantasma, po-
o liberalismo e o fascismo, há – por vida em contraponto ao crescimen-
dem ser o embrião de novos mo-
baixo de todos os retratos oficiais da tismo, ao consumismo e às negocia-
dos de organização e distribuição
esfera pública – forças anárquicas ções sujas que costumam pautar o
do tempo/espaço.
ganhando cada vez maior experiên- sistema político. Todo esse comple-
cia de organização. Os movimentos xo que atravessa países e forma um É se conectando com essas experi-
sociais que envolvem, por exemplo, verdadeiro circuito alterglobal – ma- ências anárquicas que o campo en-
o direito à cidade e as mais diversas nifestado no ciclo de manifestações volvido com a transformação social
questões urbanas têm amplo po- 2011-2013 – ainda não encontrou pode encontrar uma saída para os
tencial de crescimento, como 2013 plena voz institucional. Essa força dilemas atuais, transformando os
mostrou exemplarmente a partir da ainda está por se revelar, mas preci- muros do condomínio esquerdista
pauta do transporte público. Eles sa encontrar outras linguagens que em pontes de diálogo pragmático
podem se conectar aos movimen- não apenas a esquerdista para se co- com a maioria inconformada com o
tos identitários por meio de outras municar com a maioria. mundo como está.■
53

Leia mais
- Uma saída pragmática, sem vestir vermelho, poderá promover grandes mudanças para a
crise brasileira. Entrevista especial com Moysés Pinto Neto, publicada nas Notícias do Dia
de 11-9-2016, disponível em http://bit.ly/2oY4drT.
- Esquecer o neoliberalismo: aceleracionismo como terceiro espírito do capitalismo. Arti-
go de Moysés Pinto Neto, publicado no Cadernos IHU ideias, número 245, disponível em
http://bit.ly/2p9yqT4.
- Da incompreensão das ruas à judicialização da política brasileira. Entrevista especial com
Moysés Pinto Neto, publicada nas Notícias do Dia de 16-3-2016, disponível em http://bit.
ly/2q6Yz4h.
- A política brasileira com as vísceras expostas. Entrevista especial com Moysés Pinto Neto,
publicada nas Notícias do Dia de 12-12-2015, disponível em http://bit.ly/1ROaQkp.

EDIÇÃO 503
ENTREVISTA

Populorum progressio,
a Encíclica da Ressurreição
Carlos Josaphat considera que o documento apostólico assinado por
Paulo VI coroou “o progresso crescente da consciência social da Igreja”
Patrícia Fachin

P
opulorum progressio foi publica- junto da população pacificada pela ide-
da há 50 anos, durante o pontifi- ologia da necessária concentração da
cado do Papa Paulo VI. Reconhe- riqueza e do poder”. Nos dias de hoje,
cida por ter chamado a atenção para o sugere, a Populorum progressio pode
desenvolvimento dos povos, a Populo- ser vista como a “encíclica da ressur-
rum progressio proclamou a “necessi- reição”, justamente porque ela “calha
dade” de que o desenvolvimento fosse bem mesmo nesta nossa revolução na
“um desenvolvimento integral de todo Páscoa de 2017”.
o ser humano, e um desenvolvimento Frei Carlos Josaphat, mineiro, é
universal, para todos os seres huma- teólogo dominicano, professor emérito
nos, para todas as pessoas, as famílias, da Universidade de Friburgo, Suíça, e
as profissões, as classes e instâncias Dr. Honoris Causa pela Pontifícia Uni-
54 sociais. O destaque é dado aos pobres, versidade Católica de São Paulo – PUC-
aos marginalizados entre os indivíduos -SP. Estudioso da obra de Tomás de
e categorias sociais”, explica Frei Car- Aquino, comentou as questões sobre
los Josaphat. Além disso, esclarece, a a Justiça da Suma Teológica e, ao lon-
“encíclica proclamava a urgente neces- go dos seus 95 anos, publicou diversas
sidade da teologia, da pastoral, da ação obras, entre elas Vaticano II, a Igreja
plena e universalmente libertadoras”. aposta no amor universal (com a co-
Na avaliação de Frei Josaphat, em laboração de Lilian Contreira. Ed. Pau-
entrevista concedida por e-mail à IHU linas. São Paulo. 2013), Evangelho e
On-Line, a Populorum progressio é Revolução Social (São Paulo: Livraria
ainda “mais atual hoje, dado que o colo- Duas Cidades, 1962); Tomás de Aqui-
nialismo escravocrata se universalizou no e Paulo Freire. Pioneiros da inteli-
sobre no plano internacional”. O que gência, mestres geniais da educação
ela denunciou no sistema geral do de- nas viradas da história (São Paulo:
senvolvimento, avalia, “se agravou com Paulus, 2016).
o acúmulo das injustiças e opressões A entrevista foi publicada nas Notícias
institucionalizadas: na comunicação, do Dia de 17-4-2017, no sítio do Institu-
na educação, inserindo a mentalidade to Humanitas Unisinos – IHU, disponí-
da vantagem do maior enriquecimento vel em http://bit.ly/2oDJvK8.
dos poderosos e a aceitação das migas
que caem das mesas deles para o con- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que con- -lhe o direcionamento que foi marcado, sobretudo, pelo Concílio
texto histórico e da trajetória dado?
Vaticano II, que o Papa orientou de
da Igreja foi elaborada e publi-
cada a Populorum progressio, Frei Carlos Josaphat – O pon-
de 1963 até 1978, ano de sua morte. Sucedeu ao
pelo papa Paulo VI, e qual foi a tificado de Paulo VI (1963-1978)1 é Papa João XXIII, que convocou o Concílio Vaticano
II, e decidiu continuar os trabalhos do predeces-
novidade dessa encíclica para a sor. Promoveu melhorias nas relações ecumênicas
sua época? Por que ele decidiu 1 Papa Paulo VI: nascido Giovanni Battista Enrico com os Ortodoxos, Anglicanos e Protestantes, o
Antonio Maria Montini, Paulo VI foi o Sumo Pon- que resultou em diversos encontros e acordos his-
escrever essa encíclica e dar- tífice da Igreja Católica Apostólica de 21 de junho tóricos. (Nota da IHU On-Line)

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REVISTA IHU ON-LINE

“O pontificado de Paulo VI (1963-


1978) é marcado, sobretudo, pelo
Concílio Vaticano II, que o Papa
orientou e maneira discreta, jeitosa,
mas muito inteligente e eficaz”

maneira discreta, jeitosa, mas mui- conduzir à prática, em contraste es- promulga a encíclica, encarando,
to inteligente e eficaz. Três grandes timulante com os textos redigidos esclarecendo e orientando o “pro-
documentos sociais nos vieram de sem olhar para o povo. gresso dos Povos”.
Paulo VI. Dois pessoais: o primeiro
Promulgada um ano e três meses
é a encíclica Populorum progres-
após o fim do Concílio, a encícli- IHU On-Line – E qual foi a re-
sio, “Sobre o desenvolvimento dos
ca coroa o progresso crescente de cepção dessa encíclica na Igre-
povos” (1967), na qual colaborou o
consciência social da Igreja, que o ja em geral e especialmente na
padre Lebret2, e que é o documento,
Vaticano II recebeu de João XXIII Igreja brasileira? O senhor ain-
vindo de Roma, mais voltado para os
e da ação de Paulo VI. Nos últimos da estava no Brasil à época ou
problemas do terceiro mundo. O se-
meses da elaboração da Constitui- já estava no exterior? Que me-
gundo documento é a Carta Apostó-
ção Pastoral Gaudium et Spes4, a mórias têm acerca da repercus-
lica Octogesima adveniens, que co-
maioria dos padres conciliares mos- são da encíclica tanto na Igreja
memora o 80º aniversário da Rerum 55
travam-se desejosos de produzir brasileira quanto nas Igrejas
novarum (1971)3. É o texto do Ma-
textos mais práticos visando os con- no exterior?
gistério que insiste sobre o caráter
tinentes menos desenvolvidos e em
operacional da doutrina social. Dá Frei Carlos Josaphat – Quase se
parte ainda (mal) colonizados. Pau-
à iniciativa e ao discernimento das diria que foi acolhida como o melhor
lo VI acolheu os desejos e mesmo
comunidades e dos fiéis o seu ver- do Sumo Pontífice, prolongando o
as queixas dos bispos mais abertos
dadeiro lugar, isto é: o primeiro. O melhor do Concílio. Foi bem aceita
ao social, sobretudo dos bispos da
terceiro documento, no mesmo ano no Brasil e na América Latina, ins-
América Latina. Prometeu vir e veio
de 1971, emanava do Sínodo dos Bis- pirando os encontros e documentos
à Conferência episcopal da América
pos, sobre a “Justiça no mundo.” Era dos Pastores. Estimulou as ativida-
Latina (de Medellín)5. E antes disso,
publicado imediatamente sem reto- des das associações renovadoras tais
ques por parte da Cúria Romana. É 4 Gaudium et Spes: Igreja no mundo atual. Cons- como as Campanhas da Fraternida-
uma mensagem calorosa, visando tituição pastoral, a 4ª das Constituições do Con-
de, que já datavam de 1964.
cílio do Vaticano II. Trata fundamentalmente das
relações entre a igreja e o mundo onde ela está e
2 Louis Joseph Lebret (1897-1966): padre Lebret, atua. Trata-se de um documento importante, pois Desde finais de 1963, os preparado-
domênico francês, é considerado um pioneiro significou e marcou uma virada da Igreja Católica
do movimento teórico do desenvolvimento eco- “de dentro” (debruçada sobre si mesma), “para res do golpe de 64 me “convidaram”
nômico que surgiu depois da Segunda Guerra fora” (voltando-se para as realidades econômicas, a deixar o Brasil, pois eu trabalha-
Mundial. Sua visão humanista da economia segue políticas e sociais das pessoas no seu contexto).
tendo grande atualidade até os dias de hoje. Foi Inicialmente, ela constituía o famoso “esquema va para impedir o envolvimento da
capelão de pescadores e promotor de uma eco- 13”, assim chamado por ser esse o lugar que ocu-
nomia cooperativa na busca de melhorias para o pava na lista dos documentos estabelecida em Igreja nesse carnaval militar. Passei
mundo dos marinheiros. Em 1941 fundou o movi- 1964. Sofreu várias redações e muitas emendas, a ter uma orientação direta do padre
mento Economia e Humanismo, a partir do qual, acabando por ser votada apenas na quarta e últi-
em companhia de François Perroux, construiu e ma sessão do Concílio. O Papa Paulo VI, no dia 7 Chenu6 e acompanhei com imensa
ilustrou a problemática e a prática da Economia de dezembro de 1965, promulgou esta Constitui-
Humana, preocupada, fundamentalmente, em ção. Formada por duas partes, constitui um todo
gerar uma nova aproximação dos estudiosos so- unitário. A primeira parte é mais doutrinária, e a presente na América Latina. A temática proposta
ciais à realidade, abrindo-se a uma visão global da segunda é fundamentalmente pastoral. Sobre a foi “A Igreja na presente transformação da Amé-
dinâmica das sociedades e das culturas. Em 1953 Gaudium et spes, confira o nº 124 da IHU On-Li- rica Latina à luz do Concílio Vaticano II”. A aber-
integrou-se à Organização das Nações Unidas ne, de 22-11-2004, sobre os 40 anos da Lumen tura da Conferência foi feita pelo próprio Papa
para estabelecer os Níveis de Desenvolvimento Gentium, disponível em http://bit.ly/9lFZTk, inti- que marcou a primeira visita de um pontífice à
no Mundo. Em companhia de Josué de Castro, tulada A igreja: 40 anos de Lumen Gentium. Leia América Latina. Durante os três anos de duração
Diretor da FAO, trabalhou para estabelecer uma também: A Gaudium et Spes 50 anos depois e do Concílio Vaticano II, de 1962 a 1965, os padres
ação internacional, lutar contra as desigualdades o Papa Francisco como o parteiro de uma igreja conciliares latino-americanos mantiveram várias
e promover uma nova Ética do Desenvolvimento. global. Conferência de Massimo Faggioli publica- reuniões do CELAM em Roma. Ali brotou a idéia
(Nota da IHU On-Line) da nas Notícias do Dia, de 21-05-2015, disponível de propor ao Santo Padre a realização da segunda
3 Rerum Novarum: primeira encíclica pontifícia em http://bit.ly/1JerEBX. (Nota da IHU On-Line) Conferência Geral. A Conferência foi inaugurada
que aborda os problemas sociais, publicada no 5 Segunda Conferência Geral do Episcopado por Paulo VI na catedral de Bogotá, no dia 24 de
dia 15 de maio de 1891 pelo papa Leão XIII. O Latino-americano: realizou-se em Medellín, na agosto, por ocasião do XXXIX Congresso Eucarís-
título pode ser traduzido por “Das coisas novas”. Colômbia no período de 24 de agosto a 6 de tico Internacional. (Nota da IHU On-Line)
O sub-título da encíclica é: “Sobre a condição de setembro de 1968. A Conferência foi convocada 6 Marie-Dominique Chenu (1895 - 1990): Teólo-
vida dos operários”. Disponível em http://migre. pelo Papa Paulo VI para aplicar os ensinamentos go dominicano francês, foi professor de teologia
me/4mXsP (Nota da IHU On-Line) do Concílio Vaticano II às necessidades da Igreja medieval (1920-1942) e diretor (1932-1942) da

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felicidade e bem de perto a marcha era a Populorum progressio. Fato mui- competentes e mesmo especialistas em
desse maior carisma eclesial, Vati- to raro, no início da encíclica (Populo- vários ramos, como acontecia às dife-
cano II. Em janeiro de 1966 (aliás, rum Progressio, n. 14) o Papa se refere rentes famílias religiosas.
sem poder voltar à “Pátria amada”), a Lebret como “eminente especialista”,
Aos adversários da renovação e
passei a ensinar na Universidade de e tem em Lebret o inspirador do essen-
reforma da Igreja, eles apareciam
Friburgo, aí permanecendo por 27 cial da encíclica
como perigosos inventores da
anos. Na Europa, especialmente na
“Nova Teologia”. O grande teólo-
Suíça, este documento e o conjun-
IHU On-Line – As ideias de go conservador Garrigou Lagrange
to do Vaticano II poderiam ter tido
Marie-Dominique Chenu tam- lançava o grito de alarme: “La Thé-
recepção melhor e mais pronta. Lá
bém influenciaram particular- ologie Nouvelle où va-t-elle” (Para
estavam os adversários do Concílio
mente Paulo VI na elaboração onde vai a Nova Teologia?). Em
tentando embargar a ação conciliar
da encíclica? 1967, quando a Universidade de
renovadora. É uma lição negativa,
Friburgo (Suíça) conferia o título
mas preciosa. Frei Carlos Josaphat – Não há, na de doutor honoris causa ao padre
encíclica, uma utilização direta de tex- Congar, em momento de efusão,
tos ou de doutrinas peculiares a Chenu. lançou-se o diálogo irônico:
IHU On-Line – Diz-se que um
Este Mestre faz parte da equipe de teó-
dos principais inspiradores in- “Pra onde vai a Nova Teologia?Vai
logos que prepararam e depois ajuda-
diretos da encíclica foi Louis Jo- para o Aggiornamento pentecostal lá
ram a elaborar a mensagem pré-conci-
seph Lebret. Quais pensamentos em Jerusalém.”
liar, conciliar e pós-conciliar. Como se
ou que visão de mundo tida por
dirá na resposta à questão seguinte. Congar despertava o entusiasmo
Lebret influenciaram a elabora-
ção da encíclica e a definição de das centenas de jovens estudantes.
seu conteúdo? Mas os velhos conservadores ten-
IHU On-Line – De modo geral,
tavam boicotar a festa, com alarme
Frei Carlos Josaphat – Sim. O qual foi a participação, a impor-
de bomba no recinto da conferência
querido padre Lebret participou na tância e a influência dos domini-
do Mestre, que simbolizava a reno-
redação da encíclica como tinha par- canos no processo de elaboração
56 vação teológica, pastoral, social de
ticipado na elaboração da II Parte da da encíclica?
seus irmãos dominicanos e de toda a
Constituição conciliar Gaudium et Frei Carlos Josaphat – Convém fraternidade em busca da verdadeira
Spes. Fundador do Movimento Econo- situar a questão e a resposta no con- “nova teologia”, da nova Igreja e de
mia e Humanismo, era o maior conhe- texto pentecostal que animou toda a um mundo novo.
cedor da ética social, econômica e po- Igreja nesse carisma comunitário, o
lítica. Ele foi inspirado por uma visão Concílio, dele fazendo uma Jerusalém
tomista realista e por uma capacidade universal, resultando de uma colegia- IHU On-Line – Quais são os
de consultar os mestres da tecnologia. lidade de crismas. Jesuítas, francisca- temas mais fundamentais da
Passei com ele os momentos dolorosos nos, beneditinos, dominicanos, tantas Populorum progressio e de que
de sua última enfermidade, em julho instituições universitárias, acadêmicas, modo eles ainda ecoam hoje?
de 1966. Acabrunhado de dores, orava muitíssimas comunidades de base, Frei Carlos Josaphat – Sinte-
e agradecia ao Pai pela felicidade de ter movimentos renovadores, litúrgicos, tizando ao máximo, se poderia res-
participado do Concílio e da marcha da ecumênicos, pastorais, de empenho e ponder que a encíclica destacava
Igreja. Era um cientista e um místico. lutas sociais, surgiam e marchavam, a realidade do desenvolvimento,
E em momento de delírio, na terrível sem saber, mas conduzidos pelo Espí- em marcha na história e no mun-
doença que o levou, eu o escutei agra- rito para o aggiornamento que Ele ins- do, proclamando a necessidade de
decer a Deus: “Obrigado, meu Deus. A pirava a João XXIII. Os dominicanos que ele seja um desenvolvimento
encíclica está pronta”. Quando saiu do entraram nessa caminhada de sabedo- integral de todo o ser humano, e
delírio, que tinha algo de um êxtase, ria, com eminentes teólogos, Congar7, um desenvolvimento universal,
perguntei-lhe por essa encíclica que já Chenu, Schillebeeckx8 e todos os outros para todos os seres humanos, para
estaria pronta. Ele me repreendeu e or-
todas as pessoas, as famílias, as
denou que mão falasse nisso. Uns me-
7 Yves Marie-Joseph Congar (1904:1995): teólo- profissões, as classes e instâncias
ses depois, eu reconheci que a encíclica go dominicano francês, conhecido por sua par-
ticipação no Concílio Vaticano II. Foi duramente sociais. O destaque é dado aos po-
perseguido pelo Vaticano, antes do Concílio, por bres, aos marginalizados entre os
Universidade de Le Saulchoir (Bélgica), cargo do seu trabalho teológico. A isso se refere o seu
qual foi destituído por decisão do Santo Oficio, confrade Tillard quando fala dos “exílios”. Sobre indivíduos e categorias sociais.
que incluiu no Índice sua obra Le Saulchoir, uma Congar a IHU On-Line publicou um artigo escri-
escola de teologia (1937). Em suas obras, A fé na to por Rosino Gibellini, originalmente no site da
inteligência e O Evangelho na história (1964), de- Editora Queriniana, na editoria Memória da edi-
fende a liberdade na investigação teológica e na ção 150, de 8-08-2005, lembrando os dez anos de beeckx (1914 —2009): foi um teólogo católico
ação missionária da Igreja. Aplicou o método so- sua morte, completados em 22-06-1995. Também belga. Foi membro da Ordem Dominicana. Seus
ciológico à análise eclesiástica (A doutrina social dedicamos a editoria Memória da 102ª edição da livros sobre teologia já foram traduzidos em di-
da Igreja como ideologia, 1979). Seu pensamento IHU On-Line, de 24-05- 2004, à comemoração do versas línguas e suas contribuições ao Segundo
influenciou no movimento de reforma que cul- centenário de nascimento de Congar. (Nota da Concílio do Vaticano o tornaram conhecido mun-
minou no Concilio Vaticano II, em cujas sessões IHU On-Line) dialmente. É considerado um dos teólogos mais
participou como perito. (Nota do IHU On-Line) 8 Edward Cornelis Florentius Alfonsus Schille- importantes do século XX.(Nota da IHU On-Line)

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REVISTA IHU ON-LINE

A intenção do Papa e dos Bispos IHU On-Line – Essa encíclica Frei Carlos Josaphat – Com
que solicitavam sua intervenção tem sido atualizada pelo ponti- toda simplicidade, a Igreja vive o
era fazer com que o concílio fosse ficado de Francisco? momento supremo da Verdade do
como uma onda de Misericórdia seu ser, que é a comunhão de amor
Frei Carlos Josaphat – Papa
divina e reparasse a desgraça do anunciando ao mundo a Felicidade
Francisco é a grande surpresa que
colonialismo, que desde a aurora do Amor, num clima de Esperan-
renovou e atualizou a surpresa com
do mundo moderno, com os desco- ça apocalíptica. Pois os monstros
que o Espírito Santo enriqueceu e
brimentos e assalto da cristandade frios, os sistemas sem alma e sem
alegrou a Igreja, dando-lhe o Pas-
sobre o hemisfério sul, espalhou a condescendência com mãos fortes,
tor do sorriso e da coragem, São
injustiça constitucionalizada entre com ciência e arte, com a mais efi-
João XXIII, e parece bem, insistir,
as nações. A Encíclica proclamava caz tecnologia, não estão condu-
com a maior das simplicidades. O
a urgente necessidade da teologia, zindo aquele desenvolvimento que
papa Francisco assume e intensifi-
da pastoral, da ação plena e uni- a encíclica e, mais ainda, a mensa-
ca a docilidade ao Espírito de Amor
versalmente libertadoras. Ela é gem e atitude de Francisco procla-
Universal, que leva a querer todo e
mais atual hoje, dado que o colo- mam que deve ser plena e univer-
o melhor bem para todos, mesmo
nialismo escravocrata se universa- salmente humano.
àqueles que o rigorismo inquisi-
lizou sobre o plano internacional.
torial aponta como os maus, os “Populorum progressio, encí-
adversários da Igreja hierárquica, clica da ressurreição”. As aspas
IHU On-Line – Cinquenta da Igreja da ortodoxia, ainda que indicam o título de um estudo do
anos depois da publicação da esta seja imposta à força da forca
economista francês, François Per-
Populorum progressio, em que ou da fogueira. Francisco propõe
roux, colaborador constante nos
aspectos ela ainda é atual para o melhor da melhor maneira, bus-
projetos do padre Lebret e seu as-
nossos dias? cando viver e difundir a pobreza e a
sessor principal na elaboração da
misericórdia do Evangelho. Nossa
Frei Carlos Josaphat – A encí- II Parte da Constituição conciliar
Esperança há de ser total porque a
clica é mais atual hoje por esta ra- Gaudium et Spes. Este seu artigo
Igreja se vê felizmente desafiada a
zão universal. O que ela denunciou destaca a inspiração evangélica e
ser e difundir o que ela é, o dom da
teológica da encíclica e testemu-
57
na marcha, no sistema geral do comunhão na graça e no amor da
desenvolvimento, se agravou com nha o empenho de difundir logo
Comunhão Trinitária do Amor In-
o acúmulo das injustiças e opres- finito e Universal. todo conteúdo e a nova visão con-
sões institucionalizadas: na comu- ciliar. Tal foi a atitude inteligen-
nicação, na educação, inserindo a te e corajosa das Editoras Vozes,
mentalidade da vantagem do maior IHU On-Line – Como o senhor franciscana, e Éditions du Cerf,
enriquecimento dos poderosos e a tem percebido o nosso mundo dominicana, de Paris. “Encíclica
aceitação das migalhas que caem e o Brasil em particular nos úl- da Ressurreição”, a visão de fé do
das mesas deles para o conjunto da timos anos? As orientações da economista cristão, que calejou as
população pacificada pela ideolo- Populorum progressio gera- mãos na tarefa conciliar. Ela calha
gia da necessária concentração da ram efeitos positivos ao longo bem mesmo nesta nossa revolução
riqueza e do poder. desses 50 anos? na Páscoa de 2017.■

Leia mais

- Os 800 Anos de Presença da Ordem Dominicana. Artigo de Frei Carlos Josapha, publicada
nas Notícias do Dia de 9-9-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível
em http://bit.ly/2oYb8RX.
- Veritas: a bandeira que deve guiar todo o conhecimento. Entrevista especial com Frei
Carlos Josaphat, publicada nas Notícias do Dia de 8-8-2016, no sítio do Instituto Humanitas
Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2onC0vS.
- A atualidade “incandescente” do Reino de Deus e do Reino dos Fins. Entrevista especial
com Frei Carlos Josaphat, publicada nas Notícias do Dia de 4-5-2017, no sítio do Instituto
Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2pdpGO5.

EDIÇÃO 503
Saiba mais sobre Populorum Progressio
- “Populorum progressio”: a profecia ignorada de Paulo VI. Entrevista com Gianpaolo Salvi-
ni, pulicada nas Notícias do Dia de 5-4-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU,
disponível em http://bit.ly/2oE17Wj.
- Como nasceu a Populorum progressio, segundo o cardeal Poupard, que a apresentou
à imprensa há 50 anos, reportagem publicada por Avvenire, reproduzida nas Notícias do
Dia de 29-3-2017, no sítio do Instituto Humanas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.
ly/2onHKFP.
- Populorum progressio: mais atual do que nunca. Artigo de Angelo Maffeis, publicado nas
Notícias do Dia de 29-3-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos 0 IHU, disponível
http://bit.ly/2q6Zm5e.
- Aos 50 anos, “Populorum Progressio” ganha vida nova com o Papa Francisco. Reporta-
gem publicada por Catholic News Service, reproduzida nas Notícias do Dia de 24-3-2017,
disponível em http://bit.ly/2psGJwq.
- Populorum communio. Artigo é de Luc Van Looy, reproduzida nas Notícias do Dia de 4-3-
2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível http://bit.ly/2oEmCar.
- “A Rerum novarum favoreceu o renascimento do compromisso político”. Reportagem pu-
blicada no sítio Vatican Insider, reproduzida nas Notícias do Dia de 2-5-2016, no sítio do
Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível http://bit.ly/2q7jDYA.
- “Populorum progressio”, profecia ignorada e criticada. Reportagem de Vatican Insider, re-
produzida nas Notícias do Dia de 3-12-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU,
disponível em http://bit.ly/2pWwa1z.
58 - A grandeza de Paulo VI está na sua condução da Igreja pós-Vaticano II. Artigo de Mi-
chael Sean Winters, colunista do National Catholic Reporter, reproduzido nas Notícias do
Dia de 15-12-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.
ly/2pdsAT0.
- Charles de Foucauld: no coração das massas. Artigo de Giovanni Battista Montini, futuro
Papa Paulo VI, publicado nas Notícias do Dia de 1-12-2016, no sítio do Instituto Humanitas
Unisinos – IHU, disponível http://bit.ly/2oYkuwZ.
- Paulo VI. O retorno do papa esquecido? Artigo de Massimo Faggioli, reproduzido nas No-
tícias do Dia de 12-5-2014, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível http://
bit.ly/2q7l88U.
- Paulo VI. Viva recordação do Papa do diálogo e do Concílio. Reportagem publicada por
Vatican Insider, reproduzida nas Notícias do Dia de 5-8-2011, no sítio do Instituto Humanitas
Unisinos – IHU, disponível http://bit.ly/2pdjZiY.
- Montini, o Concílio e um papa estrangeiro. Reportagem reproduzida nas Notícias do Dia de
8-8-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2oYo0Hx.
- Quando o “Papa comunista” era Montini. Artigo de Gianni Valente, publicada nas Notícias
do Dia de 28-3-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.
ly/2pa5IS6.
- L. J. Lebret, pionero de otro desarrollo. Texto de Eloy Mealla, reproduzido nas Notícias do
Dia de 27-10-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.
ly/2oEwl0h.
- Cinquenta anos da morte do padre Louis Lebret, profeta da doutrina social da Igreja. Artigo
publicado no jornal L’Osservatore Romano, reproduzido nas Notícias do Dia de 22-8-2016,
no sítios do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2oE9d19.
- Lebret. Reportagem publicada por Avvenire, reproduzida nas Notícias do Dia de 22-7-2016,
no sítios do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2pYagOn.
- “Gaudium et Spes” 50 anos depois: seu sentido para uma Igreja aprendente. Artigo de
Massimo Faggioli. Cadernos Teologia Pública, Nº. 95, disponível em http://bit.ly/2pY55hk.

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Martírio é um filme essencial para a compreensão da complexa situação dos índios


nacionais não apenas nos dias de hoje, mas historicamente

Um martírio brasileiro
Documentário de Vincent Carelli expõe chagas 59
da situação indígena no Brasil
Fernando Del Corona 1
Fernando Del Corona

U
m pequeno trecho de uma das gravações realizadas por Vincent Carelli em 1988,
na época de suas primeiras visitas às tribos guarani-kaiowá, é utilizado em dois
momentos distintos ao longo de Martírio, novo documentário do diretor. Nele,
Carelli capturou uma reunião falada completamente em guarani, em que algumas pala-
vras compartilhadas com o português escapam ou sugerem o tema geral da conversa. O
espectador, assim como o próprio Carelli na época, fica entregue a especulações sobre o
que está sendo discutido. Aproximando-se do final das longas duas horas e 40 minutos de
duração do filme, o trecho é utilizado novamente, legendado pela primeira vez desde que
fora gravado. O que eles tratam é a mesma questão que seria discutida pelos 25 anos que
separaram as filmagens das gravações de Martírio, um lembrete da precariedade imutável
da situação indígena no Brasil.
O segundo filme de uma proposta trilogia – iniciada com Corumbiara, sobre o mas-
sacre indígena em Rondônia em 1995, e a ser seguido por Adeus, Capitão –, Martírio foi
realizado parcialmente por um financiamento coletivo que juntou mais de R$ 85 mil para
a produção, que une as gravações antigas de Carelli e imagens de arquivo com novas fil-
magens realizadas em uma nova viagem do diretor em parceria com Ernesto de Carvalho e
Tita para as tribos guarani-kaiowá, 25 anos depois de o projeto iniciar. O resultado final,
ainda que uma experiência pesada e, por vezes, de ritmo lento, é um filme essencial para a
compreensão da complexa situação dos índios nacionais não apenas nos dias de hoje, mas
historicamente. O filme deve ser visto, assim, mais como um estudo antropológico e social

1 Fernando Del Corona é mestrando em Comunicação e especialista em Televisão e Convergência Digital pela Universidade do
Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, graduado em Produção Audiovisual pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul – PUCRS. Em seu artigo de conclusão da especialização, pesquisou a relação de fãs da série Game of Thrones com spoilers
no ambiente do site reddit. Em sua dissertação, em fase de desenvolvimento, investiga a presença da imagem-tempo na obra da
diretora norte-americana Sofia Coppola.

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CINEMA

aprofundado sobre uma questão central à história do Brasil – e é sobre o próprio registro
histórico que se encontra uma das maiores forças do filme.
Criando um extenso panorama da luta histórica dos guarani-kaiowá no Mato Grosso do Sul,
acompanha-se, através de uma estrutura vagamente episódica, a história de desapropriação das
terras indígenas desde a Guerra do Paraguai (1864-1870), passando pelo ciclo de plantação do
mate, pela criação do Serviço de Proteção ao Índio – SPI em 1910 e sua substituição pela Fun-
dação Nacional do Índio – Funai em 1967, assim como pelos efeitos da presença do Marechal
Rondon e do governo Vargas, até os conflitos atuais entre fazendeiros e ruralistas e os índios que
ainda lutam para habitar a terra que lhes é de direito.
Imagens e documentos históricos garimpados por Carelli reconstroem a relação conturbada do
homem branco com o índio no Brasil, as variadas tentativas de retirá-los de sua terra e de sua cultura,
as matas verdejantes antes de sua destruição – em contraste claro com as cenas contemporâneas de
plantações que se estendem até o horizonte – e até a formação, durante a ditadura militar, de uma “po-
lícia indígena”, que chega ao absurdo de apresentar, em um desfile, técnicas de tortura ensinadas aos
índios pela Polícia Militar, incluindo a absurda exibição de uma pessoa presa ao infame pau-de-arara.
A narrativa aos poucos se aproxima de um cenário moderno que encontra os guarani-kaio-
wá vivendo em barracos na beira de estradas, forçados a invadir suas próprias terras e a viver
em um constante conflito – frequentemente mortal – com os latifundiários, representados pelos
parlamentares da bancada ruralista que aparecem no filme em imagens no Congresso Nacional,
defendendo ardentemente a desapropriação das terras indígenas, mesmo que seja necessária a
violência. As imagens de um leilão rural voltado, efetivamente, para a criação de milícias a fim de
combater os índios, reforçam as histórias contadas pelos próprios guarani-kaiowá dos ataques
repetidos que sofrem. A morte está presente durante todo o filme. Líderes indígenas são as-
sassinados, e as vozes em guarani contam história após história de seus conflitos sangrentos,
repletos de atropelamentos e assassinatos. Somos apresentados a cemitérios indígenas. Não
por acaso, os índios lutam pelo direito de poder morar – e morrer – na terra onde seus mortos
60 estão enterrados.
É a voz dos índios que Carelli busca mais que todas – dando expressão àqueles que fo-
ram historicamente silenciados. Quando, no Congresso, um ruralista mostra imagens do ví-
deo de um policial sendo atacado por índios, o diretor se vira para os envolvidos que relatam
sua reação a um ataque sofrido. Uma idosa repleta de rugas conta a história de sua família,
e a vemos novamente nas imagens gravadas por Carelli 25 anos antes, sempre envolvida na
luta de seu povo. Observamos uma índia chorar a morte de seu tio e uma anciã lamentando
que deseja apenas que seus descendentes possam crescer na terra que lhes é de direito. O
afeto e a preocupação de Carelli, um dos maiores indigenistas brasileiros – e fundador do
projeto Vídeo na Aldeia, um esforço ainda maior de dar aos índios o poder de contar suas
próprias histórias – pelos guarani-kaiowá aparece no filme, no respeito com que ele apre-
senta diversos rituais, na solenidade com que acompanha o luto. Em sua narração, ele fala
da dor que sentiu ao se separar pela primeira vez da tribo, em 1988, e do medo que sentia
dos latifundiários enquanto os visitava novamente durante as novas gravações. O clima de
tensão cresce ao longo do filme, presságios de uma tragédia comum e que pode acontecer a
qualquer momento naquela situação.
Em 2012, após uma decisão judicial de despejo em Japorã, no Mato Grosso do Sul, os gua-
rani-kaiowá divulgaram uma carta anunciando que pretendiam morrer em suas terras, colo-
cando no favorecimento do agronegócio sobre suas vidas o peso de uma morte coletiva. Esse
anúncio foi compreendido como uma ameaça de sucídio coletivo e gerou um movimento de
solidariedade no Facebook, quando os usuários colocavam “guarani-kaiowá” nos seus nomes.
Em outro ato recente, o Congresso foi invadido em plena sessão por índios e defensores de seus
direitos. O que surge, ao se assistir ao filme e a essas ações, é o reflexo de um descuido histórico
da sociedade e do governo no trato com o povo indígena. Esse descuido se torna ainda mais sério
ao se perceber a quantidade de registros gerados ao longo de mais de um século dessa relação.
Nisso, Martírio consegue transmitir sua mensagem de maneira contundente. Desde os arquivos
históricos, até as transmissões pela televisão das atividades parlamentares, através de notícias
de jornais televisivos ao longo de décadas, filmes e documentários, a saga dos guarani-kaiowá
está registrada e disponível aos olhos do público – ainda que, de maneira geral, sem que eles
tivessem a chance de contar sua própria história. Carelli leva essa ideia ainda mais adiante: pre-

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vendo um ataque contra uma invasão, entrega uma câmera digital e ensina os índios a operá-la.
Sem falha, testemunhamos uma investida com armas de fogo em plena luz do dia, que os índios
enfrentam com surpreendente coragem, filmando à distância o ataque.
Martírio, enfim, é um poderoso e necessário relato de
uma realidade ainda pouco reconhecida no Brasil, de uma
luta que vai contra interesses do governo e contra uma repre-
sentação parcial na grande mídia. Ainda que cansativo em
sua duração e seu ritmo arrastado, trata-se de uma obra de
importância histórica que expõe a importância dos registros
históricos e da multiplicidade narrativa nos mesmos. Das
diversas cenas que marcam o espectador, algumas ficam na
mente. O trecho comentado anteriormente, quando o índio
– finalmente revelado pelo poder da tradução – anuncia que
“o que tá pegando a gente é o capitalismo”, é uma delas. O
discurso de Ailton Krenak em 1987 no Congresso Nacional,
pintando seu rosto enquanto entrega um poderoso e eloquen-
te discurso contra políticas anti-indígenas, é outra. Mas, con-
forme penso no filme, uma delas é a que mais vem à minha
mente – e com mais força: em um confronto tenso e armado
entre índios e fazendeiros armados em um carro, um guarani-
-kaiowá brada, de cima de seu cavalo, com o rosto pintado:
“Mata o índio para você ver! Mata!”. É um retrato do Brasil.■
Martírio (2016), de Vincent Carelli

61

Leia mais

- Guarani-Kaiowá. ‘’Uma luta que já dura um século’’. Entrevista especial com Marco An-
tônio Delfino de Almeida, publicada nas Notícias do Dia de 7-11-2012, no sítio do Instituto
Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2pamwZi.
- Guarani-kaiowá: um grito de desespero. Entrevista especial com Egon Heck, publicada
nas Notícias do Dia de 15-10-2011, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível
em http://bit.ly/2oYdgc2.
- Guarani-Kaiowá. ‘’Uma luta que já dura um século’’. Entrevista especial com Marco An-
tônio Delfino de Almeida, publicado nas Notícias do Dia de 7-11-2012, no sítio do Instituto
Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2pamwZi.
- Extermínio guarani-Kaiowa. Reportagem de O Estado de S. Paulo, reproduzida nas No-
tícias do Dia de 19-7-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em
http://bit.ly/2oEE5j9.
- Governo brasileiro não vê suicídios dos Guarani-Kaiowá como crise, diz jornal canaden-
se. Reportagem publicada por De Olho nos Ruralistas, reproduzida nas Notícias do Dia de
5-4-2017, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2q7oXev.
- Mais um capítulo sangrento da saga Guarani-Kaiowá. Reportagem de Carta Capital, re-
produzida nas Notícias do Dia de 5-9-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU,
disponível em http://bit.ly/1MIdA30.
- Genocídio Guarani Kaiowá: uma guerra de dois mundos. Reportagem produzida pelo IHU,
publicada nas Notícias do Dia de 20-11-2015, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos – IHU,
disponível em http://bit.ly/1NgnzOJ.

EDIÇÃO 503
ENTREVISTA

Leitura de Guimarães Rosa ensina a


viver sentindo e dando sentido à vida
Kathrin Rosenfield afirma que a obra rosiana é um monumento
único, quase inexplicável e incomparável na literatura brasileira
Vitor Necchi

A
ntes mesmo de aprender por- inexplicável e incomparável na litera-
tuguês, a austríaca Kathrin Ro- tura brasileira”.
senfield se fascinou pela escrita
Ao projetar o alcance da linguagem
de Guimarães Rosa. “A primeira carac-
rosiana, a pesquisadora afirma que ela
terística que me chamou atenção era a
“é uma precursora do multiculturalis-
musicalidade da obra. Ela me encantou
mo – mas de um multiculturalismo que
antes mesmo de eu falar português, ela
não se fecha, não hostiliza as outras cul-
me seduziu a continuar lendo o que
turas, nem promove uma cultura rei-
eu mal compreendia (Grande Sertão:
vindicando direitos contra as outras”.
Veredas). O segundo fator que tornou
Para ela, “ler Rosa é aprender a viver
esse encanto um fascínio durável foi a
menos mecanicamente – viver sentin-
descoberta de que esse romance pode
do e dando sentido à vida”.
ser um guia para o incauto se orien-
62 tar no Brasil, ou, pelo menos, aceitar a Kathrin Rosenfield nasceu na
desorientação que é o choque cultural Áustria e vive no Brasil desde 1984.
para o forasteiro recém-chegado”, ex- Possui graduação em Letras pela Uni-
plica a professora radicada no Brasil em versité de Paris III (Sorbonne-Nou-
entrevista concedida por e-mail à IHU velle) (1981), mestrado em Antropo-
On-Line. logia Histórica pela École des Hautes
Études en Sciences Sociales (1981) e
Kathrin é uma entusiasta de Rosa.
doutorado em Ciência da Literatura
Para a pesquisadora, ao mesmo tem-
pela Universidade de Salzburg (1984).
po em que “frisa e reelabora obras da
história da literatura e do pensamento É pesquisadora do CNPq e leciona nos
brasileiros, ele inova a língua brasilei- programas de pós-graduação em Le-
ra como ninguém antes, criando um tras e em Filosofia da UFRGS. Entre
idioma poético que nos envolve numa outros livros, publicou Desenveredan-
aura de simpatia e no encantamento do Rosa: Ensaios sobre a obra de J. G.
da beleza. Nesse sentido, a obra ro- Rosa (Rio de Janeiro, Topbooks).
siana é um monumento único, quase Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual o lugar modo poético e envolvente a gran- nesse país ignorado pelos que mo-
de Grande Sertão: Veredas na diosa cantoria de Euclides, que foi o ram nas grandes cidades do litoral.
literatura brasileira? primeiro a mostrar aos brasileiros a Euclides apresenta as realidades do
terra, o homem e a luta que se trava Brasil com a objetividade de um ob-
Kathrin Rosenfield – Rosa teve servador instruído; seu olhar é o do
– e ainda tem – o poder de revela- confrontos (1907), Peru versus Bolívia (1907), À geólogo, do antropólogo e do jorna-
ção. Retomando e modulando o títu- margem da história (1909), a conferência Castro
Alves e seu tempo (1907), proferida no Centro Aca- lista fazendo um magnífico panora-
lo do famoso ensaio de Euclides da dêmico XI de Agosto (Faculdade de Direito), de ma da riqueza geográfica e humana
São Paulo, e as obras póstumas Canudos: diário
Cunha1, Os Sertões, Rosa reiterou de de uma expedição (1939) e Caderneta de campo do Brasil, ao mesmo tempo que la-
(1975). Confira a edição 317 da IHU On-Line, de
30-11-2009, intitulada Euclides da Cunha e Cel- menta a ignorância e a indiferença
1 Euclides da Cunha (1866-1909): engenheiro, es- so Furtado. Demiurgos do Brasil, disponível para das elites morando preguiçosamente
critor e ensaísta brasileiro. Entre suas obras, além download em http://bit.ly/ihuon317. (Nota da
de Os Sertões (1902), destacam-se Contrastes e IHU On-Line) no litoral, fazendo pouco caso das

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“Ao mesmo tempo em que Rosa


frisa e reelabora obras da história
da literatura e do pensamento
brasileiros, ele inova a língua
brasileira como ninguém antes

necessidades e dos potenciais pecu- arque de Holanda3 prepararam na for- Kathrin Rosenfield – Eu era
liares do vasto interior e, em parti- ma de ensaios baseados em pesquisas medievista antes de vir ao Brasil, tra-
cular, desconhecendo o serrado e o antropológicas e sociológicas. Assim, balhava com Jacques Le Goff4, meu
sertão. Rosa interioriza essa crítica o Brasil miscigenado e interiorano, orientador no doutorado, e, portan-
da epopeia euclidiana. Suas narra- anteriormente visto como um estigma to, tinha absorvido os ensinamentos
tivas respiram não apenas o amor ou emblema do atraso, aparece pela da antropologia histórica francesa.
pelos habitantes e as paisagens do primeira vez como uma riqueza – não Autores hoje muito bem conheci-
sertão, mas mostra também um mi- mais romantizada como no indianis- dos como Michel Zink5, Jean-Claude
nucioso conhecimento e uma simpa- mo, mas afirmada e refletida em con- Schmitt6, Vernant7, Vidal-Naquet8,
tia humana que redime sua obra da junto com os inúmeros problemas nos
quais ela está enredada (exploração e 4 Jacques Le Goff (1924): medievalista francês,
acusação terrível que abre e fecha formado em história e membro da Escola dos
Os Sertões de Euclides. No ensaio injustiça social, a cordialidade, a falta Annales. Presidente, de 1972 a 1977, da VI Seção
da École des Hautes Études en Sciences Sociales
de Euclides, o leitor percorre as três de educação, entre muitos outros). Ao (EHESS), foi diretor de pesquisa no grupo de an-
partes – A Terra, O Homem e A Luta mesmo tempo em que Rosa frisa e re- tropologia histórica do Ocidente medieval dessa 63
mesma instituição. Entre outras altas distinções,
–, assistindo de fora a um drama elabora obras da história da literatura Le Goff recebeu a medalha de ouro do Centre Na-
tional de la Recherche Scientifique (CNRS), pela
com sangrento desfecho. Grande e do pensamento brasileiros, ele ino- primeira vez atribuída a um historiador. Boa parte
Sertão: Veredas adota um percurso va a língua brasileira como ninguém de sua obra está ao alcance do leitor brasileiro,
como por exemplo, Para um novo conceito de Ida-
semelhante, mas o ponto de vista é antes, criando um idioma poético que de Média: tempo, trabalho e cultura no Ocidente
(Lisboa: Estampa, 1980); Mercadores e banqueiros
deslocado para dentro da experiên- nos envolve numa aura de simpatia da Idade Média (Lisboa: Gradiva, 1982); e A civi-
cia dos sertanejos. Isso permite ao e no encantamento da beleza. Nesse lização no Ocidente Medieval (Lisboa: Estampa,
1984). Le Goff concedeu a entrevista Roma, ali-
leitor sentir como eles vivem, sen- sentido, a obra rosiana é um monu- mento e paralisia da Idade Média à edição 198
da revista IHU On-Line, de 02-10-2006, dispo-
tem e pensam essa realidade e com- mento único, quase inexplicável e in- nível em http://bit.ly/ihuon198. Entre seus livros,
preender que esse universo é tão rico comparável na literatura brasileira. destacamos O nascimento do purgatório (Lisboa:
Estampa, 1995) (Nota da IHU On-Line)
e inteligente quanto o do litoral – 5 Michel Zink (1945): medievalista e filólogo fran-
cês, especialista em literatura francesa da Idade
apenas diferente e menos conhecido. Média. Ele é o secretário permanente da Acade-
mia de Inscrições e Belles-Lettres. (Nota da IHU
Uma grande gama de figuras – o fa- IHU On-Line – Por que a se- On-Line)
nhora resolveu investigar esta 6 Jean-Claude Schmitt (1946): medievalista fran-
zendeiro e o peão, o jagunço e o agrega- cês, ex-aluno de Jacques Le Goff, associado ao tra-
do, o sertanejo e o forasteiro, o padre, obra? balho da Escola de Annales. Ele estuda os aspec-
tos socioculturais da história medieval na Europa
comerciantes, meninos, mulheres etc. Ocidental e tem feito contribuições importantes
Grande ao Sobrado. Gênese e Dissolução do Pa- no uso de métodos históricos e antropológicos
– encarnam a fascinante diversidade triarcalismo Escravista no Brasil. Algumas Conside- para interpretar a história. (Nota da IHU On-Line)
rações, disponível em http://bit.ly/cadihu06. (Nota 7 Jean-Pierre Vernant (1914-2007): foi um his-
social, política e humana do sertão. Os da IHU On-Line) toriador e antropólogo francês, especialista na
nomes dos personagens – indígenas, 3 Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982): his- Grécia Antiga, particularmente na mitologia gre-
toriador brasileiro, também crítico literário e jor- ga. Foi professor honorário do Collège de France.
portugueses e afro-brasileiros – alu- nalista. Entre outros, escreveu Raízes do Brasil, de (Nota da IHU On-Line)
1936. Obteve notoriedade através do conceito de 8 Pierre Emmanuel Vidal-Naquet (1930-2006):
dem à longa história da miscigenação, “homem cordial”, examinado nessa obra. A pro- foi um historiador e intelectual francês, de origem
dando vida às análises que ensaístas fessora Dr.ª Eliane Fleck, do PPG em História da judaica. Durante a Segunda Guerra Mundial, ain-
Unisinos, apresentou, no evento IHU ideias, de da adolescente, participou da resistência contra
como Gilberto Freyre2[2] e Sérgio Bu- 22-8-2002, o tema O homem cordial: Raízes do a ocupação nazista na França. Seus pais foram
Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda e no dia 8-5- presos pela Gestapo e assassinados no campo de
2003, a professora apresentou essa mesma obra concentração de Auschwitz. Era especialista em
2 Gilberto Freyre (1900-1987): escritor, professor, no Ciclo de Estudos sobre o Brasil, concedendo, Grécia Antiga, mas também tinha interesse pela
conferencista e deputado federal. Colaborou em nessa oportunidade, uma entrevista à IHU On História Contemporânea, particularmente pela
revistas e jornais brasileiros. Foi professor convi- -Line, publicada na edição nº 58, de 5-5-2003, Guerra da Argélia (1954-1962) (durante a qual se
dado da Universidade de Stanford (EUA). Rece- disponível em http://bit.ly/152MP1v. Sobre Sérgio posicionou contra à prática de tortura do exército
beu vários prêmios por sua obra, entre os quais, Buarque de Holanda, confira, ainda, a edição 205 francês), assim como pela História Judaica. Pro-
em 1967, o prêmio Aspen, do Instituto Aspen de da IHU On-Line, de 20-11-2006, intitulada Raízes nunciou-se contra a guerra do Vietnam, e as su-
Estudos Humanísticos (EUA), e o Prêmio Interna- do Brasil, disponível para download em http://bit. cessivas guerras no Iraque foram também objeto
cional La Madoninna, em 1969. Entre seus livros, ly/SMypxY, e a edição 498, de 28-11-2016, “Raízes de sua crítica e condenação. Criticou também a
destaca-se Casa grande & Senzala e Sobrados e do Brasil” – 80 anos. Perguntas sobre a nossa sani- situação dos palestinos em Gaza e na Cisjordânia,
Mocambos. Sobre Freyre, confira o Cadernos IHU dade e saúde democráticas, disponível em http:// e a atitude do governo de Ariel Sharon, a quem
nº 6, de 2004, intitulado Gilberto Freyre: da Casa- bit.ly/2nDmdFE. (Nota da IHU On-Line) qualificava de criminoso e racista. (Nota da IHU

EDIÇÃO 503
ENTREVISTA

Marcel Detienne9 sempre usavam a alemão e depois redescobriu um ro- ceitos que parecem óbvios, mas tal-
literatura e a arte como fontes para a mance totalmente diferente em por- vez não o sejam.
reconstrução do contexto histórico. tuguês. Ela achou muito fraco o Gui-
Acredito que Rosa tinha noção dessa
Esse treinamento me familiarizou marães Rosa em alemão e virou sua
diferença interior que permite e obri-
com os modos ardilosos como narra- grande admiradora depois de relê-lo
ga a traduzir os conteúdos universais
tivas aparentemente simples – con- em português. Recolhi a mesma im-
tos, lendas, vidas de santos, mitos sempre de novo em diferentes formas
pressão de leitores na França e na In-
indo-europeus ou cristãos etc. – são de expressão. Cada indivíduo pode fa-
glaterra. O impacto grande fica para o
sempre de novo reutilizados para ex- zer a experiência de que sua angústia
estrangeiro que está disposto a entrar
pressarem reflexões cada vez mais existencial não é a mesma aos 18 e aos
na cultura Brasileira.
complexas. É claro que isso, e o fato 28 anos, que as esperanças e os medos
de eu não conhecer ainda muito bem físicos-e-metafísicos requerem sempre
o Brasil, aguçaram meu olhar para a novas traduções ao longo da história da
IHU On-Line – Como a se- filosofia e segundo o lugar geográfico.
complexidade da obra rosiana. nhora caracteriza a linguagem Rosa emancipou o sertanejo, eviden-
que constitui a obra de Gui- ciando que ele pensa – e pensa muito
marães Rosa? bem –, embora numa linguagem que
IHU On-Line – Que atributos
Kathrin Rosenfield – A maior não tem o mesmo refinamento for-
mais lhe encantam ou tensio-
inovação linguística de Rosa foi ver mal (mas tampouco os defeitos) das
nam nesta obra de Guimarães
que a língua portuguesa do Brasil é linguagens intelectuais formalizadas.
Rosa? Por quê?
particularmente apta a dialogar com Rosa reencontra as grandes verdades
Kathrin Rosenfield – A primeira outras línguas e culturas. Ele pesqui- religiosas e filosóficas, tanto nas falas
característica que me chamou aten- sou e anotou todos os tipos de vo- sertanejas, como na poesia popular, ou
ção era a musicalidade da obra. Ela cabulários de origem africana, tupi, nos mitos tupis e africanos, germânicos
me encantou antes mesmo de eu falar cabocla, portuguesa, estudando suas ou gregos. Ele criou um idioma novo,
português, ela me seduziu a continu- misturas locais, ampliando assim o mas ao mesmo tempo autenticamente
ar lendo o que eu mal compreendia português habitual com uma imen- brasileiro. Os aparentes “neologismos”
64 (Grande Sertão: Veredas). O segun- sa grama de modos de expressão que e as estranhezas fizeram com que os
do fator que tornou esse encanto um mostram a engenhosa criatividade leitores brasileiros redescobrissem a
fascínio durável foi a descoberta de linguística, a beleza e a agilidade inte- riqueza da sua própria língua (mui-
que esse romance pode ser um guia lectual daquilo que então era conside- to do que parece ser alheio é, de fato,
para o incauto se orientar no Brasil, rado (e depreciado como) Hinterland, autenticamente brasileiro). Assim, ele
ou, pelo menos, aceitar a desorien- rusticidade provinciana e inculta. Não integrou as experiências vanguardistas
tação que é o choque cultural para contente com esse feito, ele enxertou nos hábitos próprios, unindo as formas
o forasteiro recém-chegado. Eu me nesse linguajar tão típico para o Bra- de expressão mais regionais com um
senti um tanto “perdida” como Rio- sil reflexões e sentimentos que vêm de português da cidade e com as línguas
baldo, que em certo momento refere uma tradição universal milenar e que de outros mundos. Desta maneira, a
a si mesmo como “pobre menino do foram, ao longo do tempo, refinados sabedoria milenar de outras culturas
destino...” e se compara àqueles cãe- como monumentos da altíssima cul- e as conquistas literárias mais recentes
zinhos vira-lata “que esperam viajan- tura espiritual e literária. (a livre-associação freudiana e o fluxo
te em ponta de rancho”. Então peguei de consciência) conservam o sabor au-
carona no romance de Rosa e desen- Em outras palavras, a linguagem tenticamente brasileiro.
veredei o sertão. rosiana é uma precursora do mul-
ticulturalismo – mas de um multi-
culturalismo que não se fecha, não
IHU On-Line – A aura estética
IHU On-Line – A senhora nas- hostiliza as outras culturas, nem
de Guimarães Rosa é um entra-
ceu na Áustria e fez sua formação promove uma cultura reivindican-
ve para tradutores?
em Salzburg e Paris. Quão impac- do direitos contra as outras. O dom
tante Grande Sertão: Veredas poético e a simpatia humana de G. Kathrin Rosenfield – Sem dú-
pode ser para um estrangeiro? Rosa certamente sensibilizaram o vida, a riqueza estética da linguagem
autor pelo fato de que se mover en- rosiana é um problema. Maior proble-
Kathrin Rosenfield – Depende. tre línguas e culturas, ter que fazer ma, porém, é o contexto. Poucos bra-
Quem lê em outra língua, talvez não o esforço de repensar e traduzir o sileiros conhecem o sertão e o cerrado
fique nada impressionado – lembro que se pensa numa para uma outra é e precisam de certo preparo literário
de minha mãe, que tinha lido em um riquíssimo aprendizado – talvez e intelectual para apreciar essa reali-
o único que nos obrigue a realmen- dade mental e geográfica não urbana,
On-Line)
9 Marcel Detienne (1935): professor universitário te pensar-e-sentir o que é “natural” não globalizada. O mundo além-Brasil
francês de origem belga, estudioso grego e antro- numa língua, mas não na outra, e, pouco sabe das realidades básicas, e
pólogo comparativa, é especialista em fala e au-
toctonia na Grécia antiga. (Nota da IHU On-Line) com isso, a revisar os valores e con- muito menos desse Hinterland que

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nós brasileiros tivemos que aprender Kleist11, Nietzsche12, Kafka13, Robert nação do pensamento poético com
ao longo das últimas décadas. Portan- Musil14 – uma tradição que Rosa co- os “livros sagrados” do oriente e do
to, faltam certos registros estilísticos nhecia e apreciava. ocidente, “bebendo água de todos os
e sentimentais para os quais pudés- Sendo brasileiro, ele despoja essa rios” – da Bíblia, dos Vedanta e Upa-
semos traduzir essa outra realidade tradição de toda a sua superestru- nishades, dos mitos indígenas, euro-
brasileira. Precisaria de um grande tura complicada – ele suprime o lin- peus e hindus, de escritos místicos e
poeta-pensador que tivesse de recriar guajar abstrato do idealismo alemão, reflexões morais. O importante é que
na língua de chegada o registro exato que sentimos, apesar das tentativas essa filosofia não fica na abstração
no qual as andanças de Riobaldo pu- de superação, em Nietzsche e Hei- conceitual, mas renasce, de modo
dessem fazer sentido. degger15. Ele prefere fazer a miscige- concreto, vivo, das experiências
dos personagens. Assim, a pedra, o
burrinho, o boi ou o jacaré podem
“A obra ro-
poetas germânicos. Para saber mais da obra do
poeta, acesse a edição 475, de 19-10-2015, da re- aparecer, repentinamente, como re-
vista IHU On-Line, intitulada Hölderlin. O trágico
velações da eternidade, do absoluto.
siana é um
na noite da Modernidade, disponível em http://bit.
ly/2oZLJHM. (Nota da IHU On-Line)
11[11] Bernd Heinrich Wilhelm von Kleist (1777- Rosa idealiza o sertanejo como um
1811): foi um poeta, romancista, dramaturgo e potencial mestre Zen: seus sábios (e
monumento contista alemão. É conhecido por sua comédia
O Jarro Quebrado, pela tragédia Pentesileia bem
como por seu conto Michael Kohlhaas. (Nota da
loucos) têm uma peculiar aptidão de

único, quase IHU On-Line) pensar a partir da concretude pre-


12 Friedrich Nietzsche (1844-1900): filósofo ale- sente – por exemplo, daquilo que diz
mão, conhecido por seus conceitos além-do-ho-

inexplicável mem, transvaloração dos valores, niilismo, vonta-


de de poder e eterno retorno. Entre suas obras,
figuram como as mais importantes Assim falou
a postura do corpo no espaço, a coisa
corporal concreta. É isso que modi-

e incompará- Zaratustra (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,


1998), O anticristo (Lisboa: Guimarães, 1916) e A
genealogia da moral (São Paulo: Centauro, 2004).
fica a pessoa, não ideias abstratas,
mas a atitude existencial e moral, o
vel na literatu-
Escreveu até 1888, quando foi acometido por um sofrimento e o prazer de estar vivo.
colapso nervoso que nunca o abandonou até o
dia de sua morte. A Nietzsche foi dedicado o tema A linguagem artística torna palpá-
ra brasileira”
de capa da edição número 127 da IHU On-Line,
de 13-12-2004, intitulado Nietzsche: filósofo do veis de novo conceitos abstratos
martelo e do crepúsculo, disponível para down- como “o infinito” – pensemos ape-
load em http://bit.ly/Hl7xwP. A edição 15 dos Ca-
dernos IHU em formação é intitulada O pensa- nas nas grandes imagens rosianas 65
mento de Friedrich Nietzsche, e pode ser acessada
em http://bit.ly/HdcqOB. Confira, também, a en- –, “o sertão está dentro da gente”, o
IHU On-Line – Que questões trevista concedida por Ernildo Stein à edição 328 corpo visto como “raiz da alma” ou a
da revista IHU On-Line, de 10-5-2010, disponível
filosóficas estão presentes em em http://bit.ly/162F4rH, intitulada O biologismo identificação do autor-narrador com
Grande Sertão: Veredas? radical de Nietzsche não pode ser minimizado, na
qual discute ideias de sua conferência A crítica de o jacaré ou o burrinho. Não se trata
Heidegger ao biologismo de Nietzsche e a ques- de símbolos ou alegorias das abstra-
Kathrin Rosenfield – Nas ru- tão da biopolítica, parte integrante do Ciclo de
Estudos Filosofias da diferença — Pré-evento ções filosóficas, mas de convites para
minações de Riobaldo, são evidentes do XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo
o leitor sentir o que deve ser pensa-
biopolítico da vida humana. Na edição 330 da re-
as questões do bem e do mal, do ser vista IHU On-Line, de 24-5-2010, leia a entrevista do. É claro que esse convite também
e da aparência, do diálogo socrático Nietzsche, o pensamento trágico e a afirmação da
totalidade da existência, concedida pelo professor exige da parte do leitor ou do inter-
em busca da clarificação dos enganos Oswaldo Giacoia e disponível para download em locutor uma disponibilidade, uma
https://goo.gl/zuXC4n. Na edição 388, de 9-4-
– todo o arco que leva das mitologias 2012, leia a entrevista O amor fati como resposta abertura para entrar na experiência
mais antigas aos filósofos pré-socrá- à tirania do sentido, com Danilo Bilate, disponível
vivida de estar no espaço de outro
em http://bit.ly/HzaJpJ. (Nota da IHU On-Line)
ticos, e de Platão ao neoplatonismo 13 Franz Kafka (1883-1924): escritor tcheco, de modo: ler Rosa é aprender a viver
cristão. Mas todas essas ideias filosó- língua alemã. De suas obras, destacamos: A me-
tamorfose (1916), que narra o caso de um homem menos mecanicamente – viver sen-
ficas aparecem através de uma lente que acorda transformado num gigantesco inseto,
tindo e dando sentido à vida.
e O processo (1925), cujo enredo conta a história
poética que desfoca, instabiliza as de um certo Josef K., julgado e condenado por
certezas, ironiza as abstrações e opõe um crime que ele mesmo ignora. (Nota da IHU É claro que Rosa leu muito, mui-
On-Line)
às convicções exageradas um ceticis- 14 Robert Musil: escritor austríaco, autor do céle- ta filosofia também. Mas ele é um
bre O homem sem qualidades (2. ed. Rio de Janei- pensador poético – mais poético
mo sério e um humor amável. ro: Nova Fronteira, 1989). (Nota da IHU On-Line)
15 Martin Heidegger (1889-1976): filósofo ale- que Thomas Mann16, por exemplo:
Renovando a língua dessa ma- mão. Sua obra máxima é O ser e o tempo (1927). A
problemática heideggeriana é ampliada em Que jamais ele interromperia a errância
neira, pensava Rosa, poderíamos re- é Metafísica? (1929), Cartas sobre o humanismo
novar todo o nosso modo de estar no (1947) e Introdução à metafísica (1953). Sobre
Heidegger, confira as edições 185, de 19-6-2006,
mundo. Com essa esperança, ele se intitulada O século de Heidegger, disponível em clo de estudos Filosofias da diferença, pré-evento
http://bit.ly/ihuon185, e 187, de 3-7-2006, inti- do XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo
vincula com a filosofia poética inau- tulada Ser e tempo. A desconstrução da metafísi- biopolítico da vida humana. (Nota da IHU On-Li-
gurada no final do século 18 por po- ca, disponível em http://bit.ly/ihuon187. Confira, ne)
ainda, Cadernos IHU em formação nº 12, Mar- 16 Thomas Mann (1875-1955): romancista ale-
etas-pensadores como Hölderlin10 e tin Heidegger. A desconstrução da metafísica, que mão, considerado como um dos maiores do sé-
pode ser acessado em http://bit.ly/ihuem12, e a culo XX. Recebeu o prêmio Nobel da Literatura
entrevista concedida por Ernildo Stein à edição em 1929. Foi o irmão mais novo do romancista
10 Johann Christian Friedrich Hölderlin (1770- 328 da revista IHU On-Line, de 10-5-2010, dis- Heinrich. Ganhou repercussão internacional, aos
1843): foi um poeta lírico e romancista alemão. ponível em https://goo.gl/dn3AX1, intitulada O 26 anos, com sua primeira obra, Os Buddenbrooks
Conseguiu sintetizar na sua obra o espírito da biologismo radical de Nietzsche não pode ser mini- (Buddenbrooks), romance que conta a história de
Grécia antiga, os pontos de vista românticos mizado, na qual discute ideias de sua conferência uma família protestante de comerciantes de ce-
sobre a natureza e uma forma não ortodoxa de A crítica de Heidegger ao biologismo de Nietzsche reais de Lübeck ao longo de três gerações. (Nota
cristianismo, alinhando-se hoje entre os maiores e a questão da biopolítica, parte integrante do ci- da IHU On-Line)

EDIÇÃO 503
ENTREVISTA

labiríntica do seu personagem Rio- roso o ponto de vista condescendente esperança de tornar o discurso eficaz
baldo para deixar outros persona- do observador “de fora”, superando no mundo real. Mas, com certeza,
gens começarem um debate filosó- o humanismo sentimental e autoin- o pendor metafísico-contemplativo
fico, como se cantassem uma arieta dulgente. Von Uexküll influenciou de Rosa tem a ver com os perigos
no meio da ação – como isso acon- pensadores como Cassirer21 e Heide- da recuperação prática e ideológica
tece na Montanha mágica17, quando gger, que Rosa conhecia, e sem dúvi- do potencial poético da linguagem.
Mann opõe ao humanismo esclareci- da tem afinidades com a ideia mestra Por isso, Rosa atribui aos “sertane-
do de Settembrini o jesuitismo faná- do famoso ensaio de Heidegger sobre jos” (à gente do sertão mineiro e a
tico de Naphta (ironizando o marxis- Ser e Tempo. Menciono Heidegger si mesmo, mas também a Goethe22,
mo de G. Lukacs18). apenas para salientar a diferença Dostoïevski23 etc.) o pendor valoriza-
imensa entre o pensamento poético do da “especulação” contemplativa.
Rosa entra a tal ponto no universo
e a formalização filosófica. Rosa fazia Cuidar poeticamente da linguagem
dos seus personagens que inúmeras
muita questão de esconder e negar já é, para Rosa, um engajamento sé-
ideias filosóficas retornam metaboli-
os conteúdos filosóficos que leitores rio com a verdade e a ética da vida.
zadas pelo idioma sertanejo nos seus
identificam na sua obra. Ele refere-se Não precisa mais outro engajamento
mundos vividos. Talvez não seja um
à abstração filosófica com a metáfo- intelectual ou ideológico. As últimas
acaso que as primeiras pesquisas so-
ra da “megera cartesiana”, a preten- linhas sem dúvida frisam os excessos
bre o meio ambiente, iniciadas pelo
são do pensamento formalizado, res estilísticos da filosofia de Heidegger,
biólogo alemão von Uexküll19, te-
cogitans, subjugando a concretude a estranha mistura de lucidez e mis-
nham modificado profundamente os
que deve ser pensada, a res exten- tificação quase litúrgica que dissolve
hábitos de percepção e o antropocen-
sa. Quando ele fala da metafísica do em aura pseudorreligiosa a concre-
trismo da cultura ocidental. Rompen-
sertão ou do gosto especulativo dos tude de conceitos forjados com me-
do com o privilégio do ponto de vista
sertanejos, está se referindo ao pen- táforas palpáveis.
do observador, Uexküll familiarizou
samento dentro das coisas concretas.
o público culto das primeiras décadas Acredito que essas balizas são inte-
do século 20 com a ideia que diferen- O distanciamente da filosofia en- ressantes para avaliar o engajamen-
tes seres vivos têm modos de estar no quanto linguagem abstrata e for- to de Rosa, sua afirmação de escre-
66 mundo muito diversos e que é preciso malizada pode, às vezes, ser bem ver “contos críticos”, por exemplo. O
aprender a apreendê-los na sua ma- explícita, como, por exemplo, na en- que está em jogo é a rejeição de todo
neira de ver, viver e construir seus trevista com G. Lorenz: tipo de dogmatismo e, em particular,
mundos (Welt) internos e externos a doutrinária recuperação da arte em
(Innenwelt, Umwelt), sua própria nome de ideologias da “mudança”.
história e temporalidade20. Essa rup- Como escritor eu devo prestar
tura com o privilégio do ponto de vis- conta de cada palavra, pensan-
ta universal do observador objetivo e do-a eté o ponto em que ela se
torna novamente vida. A lingua-
IHU On-Line – A ambivalên-
o deslocamento do interesse para as cia de gênero é um tema central
gem é a porta para a infinitude,
coordenadas subjetivas e contextuais mas ela está, infelizmente, sob em Grande Sertão: Veredas.
têm muita afinidade com o modo de uma montanha de cinzas. Devo
ver, sentir e escrever de Rosa. Pois remover este entulho. Uma vez 22 Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832):
ninguém aboliu de modo mais vigo- que a linguagem é a expressão foi um autor e estadista alemão que também
da vida, eu devo constantemen- fez incursões pelo campo da ciência natural.
Goethe também era formado em Direito e che-
17 Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. (Nota da te “cuidá-la” (umsorgen). Aí gou a atuar como advogado por pouco tem-
IHU On-Line) tem um eco de Heidegger. Este po. Como sua paixão era a literatura, resolveu
18 MacIntyre, Alasdair. Against the self-images of dedicar-se a esta área. Fez parte de dois mo-
the age: Essays on ideology and philosophy, Duck- erigiu sobre sua sensibilidade vimentos literários importantes: romantismo
worth, 1971, pp. 60–69. (Nota da entrevistada) pela linguagem toda uma filo- e expressionismo. Como escritor, Goethe foi
19 Jacob Johann von Uexküll (1864-1944): bió- uma das mais importantes figuras da literatu-
logo e filósofo estoniano de origem alemã. Foi sofia estranha, mas, eu acho, ele ra alemã e juntamente com Friedrich Schiller,
um dos pioneiros da etologia. Como biólogo, deveria ter ficado com a lingua- foi um dos líderes do movimento literário ro-
fez grandes realizações nos campos da fisiologia gem. (p. 516) mântico alemão Sturm und Drang. Apresentou
muscular e cibernética da vida. Sua realização mais ainda um grande interesse pela pintura e dese-
notável foi a noção de Umwelt, o mundo subjetivo nho. (Nota da IHU On-Line)
da percepção dos organismos vivos, dos animais 23 Fiódor Mikhailovich Dostoiévski (1821-1881):
e do homem em relação ao seu meio ambiente e um dos maiores escritores russos e tido como um
de como eles o compreendiam. Para Uexküll, cada Não sei se essa observação alude, dos fundadores do existencialismo. De sua vasta
animal tem seu mundo próprio e cada um deles para além da filosofia, também à obra, destacamos Crime e castigo, O Idiota, Os
tem que ser entendido no seu habitat (meio em Demônios e Os Irmãos Karamázov. A esse autor a
que vive). Interessava ao pesquisador o compor- malograda tentativa heideggeriana IHU On-Line edição 195, de 11-9-2006, dedicou a
tamento dos organismos vivos e suas interações, matéria de capa, intitulada Dostoiévski. Pelos sub-
por exemplo, as células e órgãos do corpo ou dos de transformar o impacto estético terrâneos do ser humano, disponível em http://bit.
sujeitos no seio das famílias, dos grupos nas co- da linguagem em pensamento, na ly/ihuon195. Confira, também, as seguintes entre-
munidades etc. (Nota da IHU On-Line) vistas sobre o autor russo: Dostoiévski e Tolstoi:
20 Umwelt: mundo interno, ou seja, o vetor inter- exacerbação e estranhamento, com Aurora Ber-
no da experiência orientado para o próprio indi- nardini, na edição 384, de 12-12-2011, disponível
víduo; e a Umgebung, o vetor orientado para o 21 Ernst Cassirer (1874-1945): filósofo alemão de em http://bit.ly/ihuon384; Polifonia atual: 130
mundo externo. Na sua constante coordenação, origem judaica que pertenceu a Escola de Mar- anos de Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski, na
esses dois vetores dão acesso ao ponto de vis- burg. Foi um dos mais importantes representan- edição 288, de 6-4-2009, disponível em http://bit.
ta subjetivo do indivíduo, seu modo peculiar de tes da tradição neokantiana de Marburg. Desen- ly/ihuon288; Dostoiévski chorou com Hegel, entre-
estar presente, que é diverso do ponto de vista volveu uma filosofia da Cultura como uma teoria vista com Lázló Földényi, edição nº 226, de 2-7-
objetivo e universal do observador externo. (Nota dos símbolos, baseada na Fenomenologia do Co- 2007, disponível em http://bit.ly/ihuon226. (Nota
da entrevistada) nhecimento. (Nota da IHU On-Line) da IHU On-Line)

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Neste sentido, pode-se dizer cantar. Mas são instigantes tam- castigando Fernando.
que Guimarães Rosa foi ousado bém Nhorinhã, Maria da Luz e
ao compor Riobaldo-Diadorim Hortênsia – essas últimas podem Papéis do Brasil rural antigo: pro-
há 60 anos? ser imaginadas como mulheres prietário de terras, padre, agrega-
muito além da imaginação sertane- dos, jagunços, políticos como Zé
Kathrin Rosenfield – “Ousado” Bebelo perturbam a ordem estática,
ja (no Sertão, elas somente pode-
seria o amor de Riobaldo e Diadorim o “mulheril” reduzido a esquemas:
riam subsistir como divindades);
somente para quem acredita dogmáti-
para fazerem sentido no imaginá- a moça casamenteira, virgem pura,
ca e radicalmente numa ordem hete-
rio urbano culto, temos que vin- mulher-esposa-mãe ora feliz, ora
rossexual. Sentimentos fortes e amiza-
culá-las com mulheres muito mais infeliz e infiel, ou então as mulhe-
des apaixonadas entre homens eram
modernas: elas têm algo das lésbi- res de costumes duvidosos e pros-
muito comuns em sociedades que ad-
cas de Baudelaire24 com o espírito titutas. Vemos esses esquemas se
miravam a valentia viril e dependiam da liberação feminina londrina e repetir avançando pelo século 20
da força guerreira para sustentar seu parisiense dos anos 1970.
modo de vida. Até hoje, tem culturas adentro – de Mario de Andrade26
nas quais homens (heterossexuais) (Amar, verbo intransitivo, 1927) a
expressam sua atração pelo amigo Lucio Cardoso27 (Crônica da Casa
masculino de modo bastante aberto,
inclusive com carinhos físicos. É claro
“Ler Rosa é Assassinada, 1959), até Osman
Lins28 (Avalovara, 1973).
que esse tipo de amizade evidencia o
lastro da bissexualidade potencial da
aprender a vi- A imagem da feminidade tem na
literatura brasileira um leque muito
natureza humana, que conhecemos
bem desde Freud. Ao longo do século
ver menos me- pequeno de facetas. É muito seme-

19 e do 20, assistimos a diversas on- canicamente lhante à imagem feminina na lite-


ratura alemã dos tempos de Goethe,
das de grande tolerância e intolerân-
cia quanto às demonstrações abertas – viver sentindo na qual a mulher aparece em papéis
muito convencionais como: virgem,
e dando sen-
desses afetos. É apenas natural e con-
esposa, prostituta, virago. Os fran-
sequente que Rosa tenha identificado
ceses já criticaram essa “pobreza”
67
uma constelação tão comum também
aqui no sertão brasileiro. E se as fanta- tido à vida” do “eterno tricô” (paródia do “eterno
feminino” goetheano). A androginia
sias de Riobaldo com o corpo de Dia-
de Diadorim, como também a aura
dorim podem parecer ousadas para o IHU On-Line – A senhora es-
machismo um tanto bruto que ainda quase mítica das damas, ou deuses,
creveu que Guimarães Rosa da libertinagem Hortênsia e Maria
reina em certas camadas do Brasil, tem o mérito de mostrar que o
Rosa tomou o cuidado de fechar seu da Luz, são lances muito felizes que
imaginário amoroso é bastante permitem a Guimarães Rosa escapar
romance com a revelação do nome acanhado no Brasil e que se dá
Deodorina. Talvez uma cautela neces- de um imaginário erótico e femini-
um jeito para flexibilizá-lo. Co-
sária nas circunstâncias... no bastante estreito. É importante
mente sua afirmação.
destacar que ele “escapa” dentro das
Kathrin Rosenfield – Mulher possibilidades – e dos limites – tipi-
IHU On-Line – No seu enten- encantadora e sofredora – camente brasileiros, e nisso consiste
dimento, qual personagem de raramente, como em Alencar25, a verdade de sua arte. ■
Grande Sertão: Veredas é o uma figura autônoma como
26 Mário de Andrade [Mário Raul de Morais An-
mais instigante ou elaborado e Aurélia, espirituosa, forte, cheia de drade] (1893-1945): poeta, romancista, musicólo-
por quê? recursos, que consegue impor sua go, historiador, crítico de arte e fotógrafo brasilei-
ro. Um dos fundadores do modernismo brasileiro,
vontade e quebrar as convenções, praticamente criou a poesia moderna brasileira
Kathrin Rosenfield – Seria com a publicação de seu livro Paulicéia Desvai-
rada, em 1922. Exerceu uma influência enorme na
mais fácil responder qual é o per- 24 Charles-Pierre Baudelaire (1821-1867): poeta literatura moderna brasileira e, como ensaísta e
sonagem menos instigante e ela- e teórico da arte francês. É considerado um dos estudioso (foi um pioneiro do campo da etnomu-
precursores do Simbolismo e reconhecido inter- sicologia) sua influência transcendeu as fronteiras
borado – Otacília, evidentemente. nacionalmente como o fundador da tradição mo- do Brasil. Andrade foi a figura central do movi-
derna em poesia, juntamente com Walt Whitman, mento de vanguarda de São Paulo por vinte anos.
O mais elaborado é Riobaldo – o embora tenha se relacionado com diversas esco- (Nota da IHU On-Line)
personagem-narrador. Não preciso las artísticas. Sua obra teórica também influenciou 27 Lúcio Cardoso [Joaquim Lúcio Cardoso Filho]
profundamente as artes plásticas do século XIX. (1912-1968): foi um escritor, dramaturgo e poeta
insistir que Diadorim é um perso- Em 1857 lança As flores do mal, contendo 100 brasileiro. (Nota da IHU On-Line)
poemas. O livro é acusado de ultrajar a moral pú- 28 Osman Lins [Osman da Costa Lins] (1924-
nagem muito instigante – pois ele blica. (Nota da IHU On-Line) 1978): foi um escritor brasileiro. Natural de Per-
é o grande enigma andrógino, que 25 José Martiniano de Alencar (1829-1877): jor- nambuco, é autor de contos, romances, narrativas,
nalista, político, advogado, orador, crítico, cronis- livro de viagens e peças de teatro. O projeto lite-
nem no final revela-se bem como ta, polemista, romancista e dramaturgo brasileiro. rário de Osman Lins mescla-se com sua biografia,
Formou-se em Direito, iniciando-se na atividade e fatos que marcaram sua história pessoal apare-
mulher, mas como algo que “era”, literária no Correio Mercantil e Diário do Rio de cem de maneira recorrente em sua obra. Um des-
um encanto que se “desencanta” Janeiro. Escreveu inúmeras obras, das quais des- ses fatos, e talvez o mais importante, foi a perda
tacamos O guarani, Iracema e Senhora. (Nota da da mãe logo após seu nascimento. (Nota da IHU
apenas para de imediato se reen- IHU On-Line) On-Line)

EDIÇÃO 503
ENTREVISTA

Leia mais
- Sertão é do tamanho do mundo. 50 anos da obra de João Guimarães Rosa. Revista IHU
On-Line, número 178, de 2-5-2006, disponível em http://bit.ly/2paqcdE
- Machado de Assis e Guimarães Rosa: intérpretes do Brasil. Revista IHU On-Line, número
275, de 29-9-2008, disponível em http://bit.ly/2pt1Cre.
- A fundição do bem e do mal em Guimarães Rosa. Entrevista com Eliana Yunes, publicada
na revista IHU On-Line, número 292, de 11-5-2009, disponível em http://bit.ly/2q7oE3h.
- Uma carta a Guimarães Rosa. Texto de Marcus Alexandre Motta, publicada na revista IHU
On-Line, número 275, de 29-9-2008, disponível em http://bit.ly/2oEPejV.
- Guimarães Rosa, um amante do saber. Entrevista com Luiz Rohden, publicada na revista
IHU On-Line, número 275, de 29-9-2008, disponível em http://bit.ly/2oEaV2T.
- Tradição e ruptura na obra de Guimarães Rosa, artigo de Eduardo F. Coutinho, publicado
no Cadernos IHU Ideias número 73, disponível em http://bit.ly/2oE0L2c.
- O Universal e o Particular. Cadernos IHU em Formação, número 36, disponível em http://
bit.ly/2paCW41.
- A exploração do conhecimento racional até seu limite. Entrevista com Kathrin Rosenfi-
led, publicada na revista IHU On-Line número 475, de 19-10-2015, disponível em http://bit.
ly/2pWT20V.

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REVISTA IHU ON-LINE

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EDIÇÃO 503
LIVRO

Uma volta a Gramsci para pensar


na política de nosso tempo
Guido Liguori recupera conceitos do pensador italiano em sua gênese
e propõe reflexões que atualizam suas perspectivas como forma
de tentar compreender o contexto do mundo hoje
João Vitor Santos | Tradução: Juan Luis Hermida

A
ntonio Gramsci foi uma figu- equívoco é apostar num mesmo remé-
ra importante do Partido Co- dio que a direita usa para enfrentar as
munista da Itália, mas, além crises. É “curar um sistema doente (o
de seu legado para a construção des- capitalismo), embora com diferentes
sa perspectiva política, é interessante medicamentos”. As-
observar seus movimentos de revisão sim, o professor des-
do pensamento sobre o Partido e dos taca que o partido o
próprios conceitos. É mais ou menos o qual Gramsci “pensa
que faz quando produz suas anotações está de mãos dadas
na prisão, vítima do regime de Benito com os movimen-
Mussolini. “Gramsci desde dentro de tos”, pois “sabe que
uma prisão fascista tinha visto melhor não deve apenas ‘en-
e mais longe, e o movimento comunista sinar’ para as mas-
70 sas, mas também
internacional e também o seu partido
tiveram, no final, que lhe dar a razão, aprender com elas”.
pelo menos parcialmente”, destaca o E aponta: “hoje a
professor de História do Pensamen- política e os partidos
to Político, o italiano Guido Liguori. me parecem pouco
“A Internacional Comunista teve que dispostos a fazê-lo”.
abandonar a política sectária e extre- Guido Liguori é
mista do final dos anos ‘20 e do início professor de Histó-
dos anos 30’, reavaliar a questão do ria do Pensamento
consentimento, das alianças, da de- Político na Univer-
mocracia, reaproximando-se assim do sidade da Calábria,
pensamento gramsciano”, explica. Itália e, atualmente, presidente da In-
Tal movimento pode ser interessante, ternational Gramsci Society Italia (IGS
por exemplo, para pensar o papel e o Italia). Juntamente com Pasquale Voza,
lugar da esquerda no mundo de hoje. organizou Dicionário Gramsciano (São
“A esquerda perdeu, em muitos países, Paulo: Boitempo, 2017), recentemente
a capacidade de uma proposta inde- lançado no Brasil. Liguori também é
pendente, cultural, bem como econô- autor de Gramsci conteso. Storia di um
mica, distintamente diferente daquela dibattito 1922-1996 (Editori Riuniti,
das classes dominantes”, aponta Ligu- 1996) e Sentieri gramsciani (Carocci,
ori, em entrevista concedida por e-mail 2006).
à IHU On-Line. Para ele, o maior Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o pen- pode inspirar-nos a pensar so-


samento de Antonio Gramsci1 Partido Comunista Italiano (1924), foi preso em bre as crises do nosso tempo?
1926 e só foi libertado em 1937, dias antes de
falecer. Nos seus Cadernos do cárcere, substituiu Guido Liguori – Há certas cate-
1 Antonio Gramsci (1891-1937): foi um filósofo o conceito da ditadura do proletariado pela “he-
marxista, jornalista, crítico literário e político ita- gemonia” do proletariado, dando ênfase à direção
liano. Escreveu sobre teoria política, sociologia, intelectual e moral em detrimento do domínio do
antropologia e linguística. Com Togliatti, criou Estado. Sobre esse pensador, confira a edição 231 ci, 70 anos depois, disponível para download em
o jornal L’Ordine Nuovo, em 1919. Secretário do da IHU On-Line, de 13-8-2007, intitulada Grams- http://bit.ly/ihuon231. (Nota da IHU On-Line)

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REVISTA IHU ON-LINE

gorias de Cadernos do Cárcere2 que – e dissociações – podemos fa- força no tempo em que vivemos?
são muito úteis para ler a realidade zer entre o que hoje chamamos
Guido Liguori – Entre essas cate-
contemporânea. As categorias de de crise da esquerda no mundo
gorias, a de sociedade civil não é exa-
“Estado Expandido”, de “revolução com o enfraquecimento do mo-
tamente gramsciana. Gramsci pensa
passiva”, bem como a de “hegemo- vimento comunista e o fracasso
no Estado e na sociedade civil como
nia”, a mais conhecida entre as ca- da revolução Ocidental analisa-
um todo não indiferenciado, e sim in-
tegorias de Gramsci, e outras, pare- dos – e vividos – por Gramsci?
timamente relacionado. Ele diz explici-
cem-me as mais úteis atualmente.
Guido Liguori – Eles são, sem tamente que o Estado-sociedade civil é
A categoria gramsciana que hoje dúvida, diferentes períodos históri- uma dicotomia liberal, que ele critica.
tem mais necessidade de “tradução” cos: Gramsci, apesar de escrever em
Resta sempre atual a categoria de
(outra palavra que faz parte do vo- uma prisão fascista, tinha imaginado
revolução passiva, mas lembrando
cabulário de Gramsci) é aquela de a superação do fascismo, mas não o
que ela descreve os processos a par-
“príncipe moderno”, ou seja, a sua fim da União Soviética. Nós, especial-
tir de cima, que neutralizam a inicia-
ideia de um partido político, que me mente na Europa, temos em comum
tiva das massas, mas têm conteúdo
parece em crise. Mas talvez até mes- com Gramsci o ponto de partida:
progressivo. Hoje, no entanto, as
mo por este aspecto, penso que Gra- viemos de uma derrota histórica. De-
classes dominantes neoliberais agem
msci não estaria errado: o partido o vemos ter, como ele, a capacidade de
brutalmente, pelos seus próprios in-
qual ele pensa está de mãos dadas repensar toda a situação e, como con-
teresses, sem fazer avançar a socie-
com os movimentos, com as classes sequência, as nossas categorias.
dade como um todo. A hegemonia da
mais baixas: ele sabe que não deve
categoria continua a ser o mais co-
apenas “ensinar” para as massas, mas
mum, porque os processos culturais,
também aprender com elas. E hoje a IHU On-Line – A ideia de ideológicos, de produção de sentido
política e os partidos me parecem classe de Gramsci nos ajuda a comum, portanto de consenso, estão
pouco dispostos a fazê-lo. Obviamen- entender a ascensão e a queda se tornando mais penetrantes. Muita
te sobre o significado desses concei- de governos progressistas na sorte teve, nos últimos anos, a cate-
tos, dos quais não posso estender-me América Latina (como na Ar- goria das classes mais baixas, uma
aqui, referencio o Dicionário Grams- gentina e até mesmo no Bra- 71
vez que é mais rica do que a do pro-
ciano (São Paulo: Boitempo, 2017), sil)? Por que e como? letariado clássico: a subordinação
que fiz com Pasquale Voza, e que aca-
Guido Liguori – A meu ver, a não é só econômica, ou em termos
ba de ser traduzido no Brasil.
categoria gramsciana que nos ajuda de força, mas é também cultural, e
a este respeito é a de classes baixas às vezes psicológica.
e classes hegemônicas: não meras
IHU On-Line – Que associações
aglomerações socioeconômicas de
tipo sociológico, mas um conjunto IHU On-Line – A leitura não
2 Cadernos do Cárcere: são um conjunto de 29
de interesses e ideias, valores, aspi- determinista do marxismo, de
cadernos de tipo escolar escritos por Antonio rações, mesmo mitos. Gramsci em diante, é importante
Gramsci no período em que esteve preso na Itá-
lia, entre 1926 e 1937. Na verdade, os Cadernos para entender e atualizar o pen-
começaram a ser redigidos em fevereiro de 1929, A esquerda perdeu em muitos pa-
no cárcere de Turi, nas imediações de Bari, pouco samento de Karl Marx3? E quais
íses a capacidade de uma proposta
depois de Gramsci ter obtido autorização para es- são os desafios para pensar o
tudar e escrever. Durante este período prisional, independente, cultural, bem como
Gramsci foi assistido pela cunhada, Tatiana (Tania) marxismo na pós-modernidade?
Schucht, que morava já há vários anos na Itália, econômica, distintamente diferen-
onde sua família se refugiara do czarismo, antes te daquela das classes dominantes. Guido Liguori – Com Marx, Gra-
de voltar gradualmente à Rússia nos anos da Re-
volução. A cunhada e o economista Piero Sraffa, Não é que não há diferenças entre msci é hoje o pensador marxista mais
professor em Cambridge, constituíram os elos
principais da corrente que permitiu a preservação as receitas anticrise de direita e de
e o salvamento dos Cadernos, depois da morte esquerda, mas elas permanecem no 3 Karl Marx (Karl Heinrich Marx, 1818-1883): fi-
de Gramsci. É também a Tatiana que se dirige a lósofo, cientista social, economista, historiador e
maioria das Cartas do cárcere, que, junto com os mesmo recinto: curar um sistema revolucionário alemão, um dos pensadores que
Cadernos, constituem o legado mais significativo doente (o capitalismo), embora com exerceram maior influência sobre o pensamen-
do político e pensador sardo. A primeira edição to social e sobre os destinos da humanidade no
dos Cadernos, datada do segundo pós-guerra, é diferentes medicamentos. Nas clas- século XX. Leia a edição número 41 dos Cader-
dita “temática”, uma vez que seus organizadores, nos IHU ideias, de autoria de Leda Maria Paulani,
Palmiro Togliatti e Felice Platone, optaram por ses populares, só temos desprezo, que tem como título A (anti)filosofia de Karl Marx,
fazer uma seleção em seis volumes, de acordo protestos e, em seguida, a derrota. disponível em http://bit.ly/173lFhO. Também so-
com os grandes temas estudados por Gramsci: bre o autor, confira a edição número 278 da IHU
a filosofia de Benedetto Croce, a questão dos in- On-Line, de 20-10-2008, intitulada A financeiriza-
telectuais e da educação, Maquiavel e a política ção do mundo e sua crise. Uma leitura a partir de
moderna, o passado e o presente, o Risorgimento Marx, disponível em http://bit.ly/ihuon278. Leia,
italiano, a literatura e a vida nacional. Em 1975, igualmente, a entrevista Marx: os homens não são
surge a edição dita crítica, organizada pelo estu- IHU On-line – Como os con- o que pensam e desejam, mas o que fazem, con-
dioso Valentino Gerratana. Nela, os 29 cadernos ceitos de hegemonia, sociedade cedida por Pedro de Alcântara Figueira à edição
são apresentados na sua ordem material. Em 327 da IHU On-Line, de 03-05-2010, disponível
2007, a Fundação Instituto Gramsci deu início à civil, classes mais baixas, revo- em http://bit.ly/ihuon327. A IHU On-Line pre-
chamada “edição nacional” de todos os escritos parou uma edição especial sobre desigualdade
de Gramsci, antes e depois da prisão. No Brasil, lução passiva e consenso são inspirada no livro de Thomas Piketty O Capital no
a editora Civilização Brasileira, do Grupo Editorial atualizados hoje? E que outros Século XXI, que retoma o argumento central da
Record, tem uma edição de 2014 dos seis volumes obra de Marx O Capital, disponível em http://bit.
dos Cadernos. (Nota da IHU On-Line) conceitos gramscianos ganham ly/IHUOn449. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 503
conhecido no mundo, porque o seu sentido das palavras e dos escritos, Gramsci faz crítica
marxismo não é economicista, não vê a conceitos presentes nos Ca- do seu próprio pensamento?
economia como seu único fator deter- dernos do Cárcere? Quais são Por quê? E como fazer esses
minante. Por isso, eu diria que o único os maiores desafios para en- movimentos?
marxismo à altura do nosso tempo é o tender o léxico gramsciano?
marxismo de Gramsci. Não esquecen- Guido Liguori – Eu acredito
Guido Liguori – Os Cadernos
do, claro, que ele parte especificamente que em Gramsci há um desenvol-
do Cárcere não são um livro bo-
de Marx, de alguns dos seus escritos, de vimento, um progresso, não uma
nito e acabado, entregue pelo au-
uma leitura dos seus escritos, de fato autocrítica. Porque os fatos lhe
tor para impressão. Eles são um
uma leitura antieconomicista. davam a razão: a Internacional Co-
laboratório, um work in progress
(trabalho em andamento), um con- munista4 teve que abandonar a po-
junto de notas tomadas no decurso lítica sectária e extremista do final
IHU On-Line – Que conceitos de seis a sete anos. É importante dos anos ‘20 e do início dos anos
de Gramsci são adotados de datar, tanto quanto possível, as 30’ (que Gramsci desde a prisão re-
forma errada? A que o senhor reflexões individuais de Gramsci, jeitou), reavaliar a questão do con-
atribui estes desvios interpre- conectando-as com o desenvolvi- sentimento, das alianças, da demo-
tativos? mento histórico; isto é, com o que cracia, reaproximando-se assim do
Guido Liguori – Como eu disse, estava acontecendo fora da prisão, pensamento gramsciano. Gramsci
o conceito de “príncipe moderno” com o que refletiu Gramsci, re-
desde dentro de uma prisão fascis-
que Gramsci teve é, hoje, o menos construir o desenvolvimento e evo-
ta tinha visto melhor e mais longe,
próximo de nós entre os seus gran- lução dos termos e conceitos. Para
e o movimento comunista interna-
des conceitos. Porque a forma par- as condições em que foram escritos
tido está em crise em toda parte. (da prisão, a supervisão fascista, a cional e também o seu partido tive-
Devemos perguntar-nos se a con- incapacidade de dispor de livros e ram, no final, que lhe dar a razão,
fiança excessiva no sistema parla- cadernos para escrever sem limi- pelo menos parcialmente.■
mentar (que Gramsci não despre- tação), os Cadernos do Cárcere
72 zava, mas não absolutizava) não é são textos aparentemente simples, 4 Internacional Comunista: é o nome dado a
vários movimentos comunistas de cunho multi-
uma das causas que levaram a esta mas, na verdade, muito difíceis de nacional. O mais famoso foi a chamada “Terceira
Internacional” também chamado de “Comintern”.
crise. entender corretamente. A história da Internacional Comunista remonta a
1864, quando foi criada a Associação Internacio-
nal dos Trabalhadores (AIT), integrada por orga-
nizações operárias de diversos países europeus.
O mentor e principal líder da AIT era Karl Marx.
IHU On-Line – Como foi o IHU On-Line – O senhor pode A repressão e as crescentes divergências internas
enfraqueceram a organização, que acabou sendo
trabalho da reconstrução do afirmar que, em seus últimos extinta em 1876. (Nota da IHU On-Line)

Leia mais
- Gramsci, 70 anos depois. Revista IHU On-Line, número 231, de 13-8-2007, disponível em
http://bit.ly/2oofZgf.
- Daniel Blake encontra Antonio Gramsci. Artigo de Tarso Genro, ex-governador do Rio
Grande do Sul – PT, em artigo publicado por Sul21, reproduzido nas Notícias do Dia de 28-
3-2017, Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2paE4Ev
- A revanche de Gramsci. As derrotas da esquerda e batalha cultural. Reportagem publica-
da pela revista francesa La Vie, reproduzida nas Notícias do Dia de 5-11-2015, no sítio do
Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível http://bit.ly/2oE3rwJ.
- Iglesias: Hegemonia, Gramsci e eleições na Espanha. Texto de Achille Mbembe, publi-
cado pelo sítio Outras Palavras, reproduzido nas Notícias do Dia de 21-5-2015, no sítio do
Instituto Humanitas Unisinos – IHU, disponível em http://bit.ly/2pYrmM3.
- O Brasil no interregno de Gramsci. Artigo de Célio Turino, publicado por Outras Palavras,
reproduzido nas Notícias do Dia de 21-6-2016, no sítio do Instituto Humanitas Unisinos –
IHU, disponível em http://bit.ly/2oosgBm.

24 DE ABRIL | 2017
CRÍTICA INTERNACIONAL REVISTA IHU ON-LINE

A guerra e o uso do poder militar


no subcomplexo de segurança do
Levante no Pós-11 de setembro
Carla A. R. Holand Mello

O
Oriente Médio tem sido a região mais militarizada
do mundo em termos de esforços básicos de defesa;
gasta muito mais do que qualquer outra do mun-
do em forças militares como um percentual do PIB, como
uma percentagem das despesas dos governos centrais, e em
termos de armas como um percentual do total das impor-
tações.
Carla A. R. Holand Mello é mestre em Estudos
Estratégicos Internacionais e graduada em Relações In-
ternacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul – UFRGS. Atualmente é doutoranda no mesmo tema
na mesma instituição. É professora do curso de Relações
Internacionais da Unisinos, tendo atuado também no cur-
so de Relações Internacionais da Universidade Federal de
Santa Maria – UFSM.
Eis o artigo. 73

No Pós-11 de setembro, a retórica da guerra global ao terror passou a fazer parte do discur-
so, tanto dos EUA para o Oriente Médio, quanto de Israel em relação a seu conflito doméstico
e fronteiriço na região do Levante. A percepção árabe da presença norte-americana no CRS1
desgastou-se cada vez mais, colocando os EUA em um dilema de luta contra o terror e, ao mes-
mo tempo, pela “liberdade” dos países da região de grupos não-estatais como a Al-Qaeda. As
negociações sírio-israelenses pelas Colinas de Golã também fazem parte deste contexto.
Também, é importante ressaltar a parceria estratégica entre Israel e Turquia, com a Jordânia
como parceira secundária. Desde 1996, ambos os países desenvolveram uma ampla gama
de cooperações militares manifestas, incluindo trocas entre suas inteligências, treinamento
conjunto, e extensivo comércio de armamentos. Suas necessidades e capacidades militares
são complementares em um amplo espectro. Juntos eles também conseguem aumentar sua
presença e apelo em Washington.

Na atualidade está ocorrendo uma mudança na base dos conflitos na região. Onde antes
prevaleciam conflitos interestatais, como nos casos das guerras árabe-israelenses, o que se nota
hoje é a presença do elemento de ameaça doméstica nos países através de grupos extremistas e/
ou terroristas dentro dos próprios Estados. Sendo assim, muito dos gastos militares que antes
eram utilizados em melhorias e em disputas em corridas armamentistas entre os países da re-
gião como forma de contenção de conflitos, passaram hoje a ser deslocados para provimento de
capacidades internas para o combate a estes grupos, caso, por exemplo, de Israel e do Líbano.
Seja qual for a dimensão internacional da causa pela qual os conflitos na região ocorrem
(cultural, religiosa, etc.), é importante salientar que a militarização dos Estados, por conta
destes conflitos, também vem a agravar os conflitos no interior destes mesmos Estados,

1 Este conceito foi cunhado para analisar diferentes regiões do mundo em termos securitários. Mais detalhes acerca do termo
podem ser consultados na obra “Regions and Powers: the structure of International Security” (2003). Adotaremos a sigla CRS (com-
plexo regional de segurança) ao longo do texto como forma de abreviar a expressão. (Nota da autora)

EDIÇÃO 503
“Os Estados do Oriente Médio vieram a ser
controlados pelos militares e elites de segu-
rança cujas preocupações e modos de gover-
no dominaram a sociedade como um todo”

visto que grupos e atores não-estatais se valem do aparato militar já formado, e que é
repassado de país para país, para realizarem suas ações (HALLIDAY, 2005).

Halliday (2005) afirma que o Oriente Médio se manteve uma área onde assuntos mili-
tares, e também aquilo que está incluído no termo vago “militarismo”, tiveram um impacto
preponderante: os orçamentos militares tomaram grande parte das despesas de Estado, e
as compras de armas foram, durante décadas, as mais elevadas para os países do mundo
não desenvolvido. Os Estados, portanto, vieram a ser controlados pelos militares e elites de
segurança cujas preocupações e modos de governo dominaram a sociedade como um todo.
O Egito, no Levante, é um bom exemplo dessas sociedades militarizadas.
É importante salientar também que os conflitos regionais além de desenvolverem ainda
mais as capacidades militares, em particular, ocasionaram uma corrida armamentista na região.
No início de 2004, nenhum Estado da região, com exceção de Israel, havia adquirido capacidade
nuclear, mas se sabia, com base nas provas recolhidas pelos inspetores da ONU depois de 1991,
74 que o Iraque já havia procurado desenvolver essa capacidade. Uma década mais tarde, e na
véspera do ataque dos EUA em março de 2003, o país ainda possuía teoricamente, segundo os
especialistas, a capacidade financeira para fazê-lo. Em outros Estados, nomeadamente o Irã e a
Arábia Saudita, acreditava-se que tivessem mostrado interesse em longo prazo para a aquisição
de tal capacidade. Isso foi em ambos os casos, não apenas em resposta à força nuclear israelense,
mas também por causa da preocupação sobre o que, no futuro, o Iraque poderia fazer. Ressalta-
-se que esta incipiente nuclearização da região não foi encorajada por potências externas.

Assim, o Oriente Médio tem sido a região mais militarizada do mundo em termos de
esforços básicos de defesa. A região gasta muito mais do que qualquer outra do mundo
em forças militares como um percentual do PIB, como uma percentagem das despesas dos
governos centrais, e em termos de armas como um percentual do total das importações.
Entretanto, atualmente nenhum Estado do Oriente Médio tem tido a capacidade de mo-
dernizar suas forças armadas nos termos do uso da força e tecnologia adotados por países
como os EUA. Nenhum país tem gastado o necessário para manter o tamanho total de suas
estruturas de força, nem para modernizá-las de forma competitiva com a modernização mi-
litar no Ocidente, e nem para trazê-las para o nível adequado de preparação e sustentação
(CORDESMAN, 2004).
O papel das forças militares está mudando. O equilíbrio militar convencional está
mudando de uma base em guerra convencional entre Israel e seus vizinhos árabes
para um equilíbrio baseado na paz e na dissuasão. Há pouca perspectiva no curto e
médio prazos de que Israel lutará uma grande guerra contra todos ou a maioria de seus
vizinhos árabes.

Assim, através do exemplo do Levante, o apelo à guerra e ao uso do poder militar fazem
parte da dinâmica política do Oriente Médio e isto, ao que parece, não tem ainda uma data
para mudar. ■

24 DE ABRIL | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

Referências
BUZAN, Barry & WÆVER, Ole. (2003). Regions and Powers: the structure of International Se-
curity. Cambridge-UK, Cambridge University Press. ISBN 0521891116. 564 páginas
CORDESMAN, Anthony (2004). The Military Balance in the Middle East, an Analytic Over-
view: Military Expenditures and Arms Transfers, Major Arms by Country and Zone, and Qua-
litative Trends. Arleigh A. Burke Chair in Strategy. Center for Strategic and International Stu-
dies - CSIS. Washington, DC.
HALLIDAY, Fred (2005). The Middle East in International Relations: Power, Politics and Ideo-
logy. Cambridge-UK, Cambridge University Press. ISBN 978 – 0 – 511 – 10365 – 2

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EDIÇÃO 503
PUBLICAÇÕES

Reflexões sobre os espaços


urbanos contemporâneos: Quais
as nossas cidades?

O
Cadernos IHU ideias número 253 traz o artigo Reflexões sobre
os espaços urbanos contemporâneos: Quais as nossas cidades?,
assinado por Vinícius Nicastro Honesko, professor da Universidade
Federal do Paraná – UFPR.
No texto, a partir dos problemas
em torno da governabilidade, o autor
“pretende desenvolver alguns aspec-
tos relacionados à localização – de
um ponto de vista teórico – do gover-
no nos espaços urbanos contemporâ-
neos”. Assim, recupera ideias de pen-
sadores do governo e da cidade, como
Michel Foucault, Jean-Luc Nancy,
Giorgio Agamben, Massimo Cacciari,
76 entre outros, para “demonstrar como
as concepções de cidade e política
passaram, com as mudanças na sis-
temática capitalista recente, por alte-
rações fundamentais. Assim, propõe
uma abordagem que visa a apresentar
outras chaves de leitura aos possíveis
modos de composição de uma forma
de espaço de habitação – espaço de
compartilhamento da vida – para os
viventes humanos”.
Esta e outras edições do Cader-
nos IHU ideias podem ser obtidas
diretamente no Instituto Huma-
nitas Unisinos – IHU, no campus
São Leopoldo da Unisinos (Av. Unisi-
nos, 950), ou solicitadas pelo endere-
ço humanitas@unisinos.br. Informa-
ções pelo telefone (51) 3590-8213.

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Renovação do espaço público:


pentecostalismo e missão em
perspectiva política

E
m sua edição de número 120, o Cadernos Teologia Pública pu-
blica artigo de Amos Yong, teólogo pentecostal e diretor do Centro
de Pesquisas Missiológicas, professor de Teologia e Missão no Fuller
Theological Seminary, intitulado Renovação do espaço público: pentecos-
talismo e missão em perspectiva política. O texto foi proferido no Fuller
Theological Seminary, realizado em Pasadena, Estados Unidos.
Na apresentação do texto, o au-
tor destaca que “atualmente, é co-
mum pensar em missão e missiologia
quando o pentecostalismo aparece no
discurso acadêmico. Já a expectativa
de que se leve em consideração a re-
lação com o político e com a teologia
política ou pública é menor”. Yong se-
gue afirmando que “gostaria de con- 77
siderar, ainda que muito brevemente,
o que acontece missiologicamente
quando pensamos no pentecostalis-
mo e no espaço público”. Sua tese é
de que “a espiritualidade pentecostal,
particularmente suas práticas de ora-
ção, profecia e louvor, fomenta postu-
ras políticas que são relevantes para a
missão cristã no século XXI”.
Esta e outras edições do Cader-
nos Teologia Pública podem ser
obtidas diretamente no Instituto
Humanitas Unisinos – IHU, no
campus São Leopoldo da Unisinos
(Av. Unisinos, 950), ou solicitadas
pelo endereço humanitas@unisinos.
br. Informações pelo telefone (51)
3590-8213.

EDIÇÃO 503
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Outras edições em www.ihuonline.unisinos.br/edicoes-anteriores

A organização do mundo do trabalho e a


modelagem de novas subjetividades

Edição 416 | Ano XIII | 29-4-2013

“As novas configurações do mundo do trabalho, seus impactos na vida


dos trabalhadores e das trabalhadoras e seus desafios para a organiza-
ção e a luta da classe trabalhadora pautaram a edição de abril de 2013
da IHU On-Line, alusiva ao Dia do Trabalhador e da Trabalhadora.
Temas como as novas tecnologias que atravessam as lógicas do dito
mundo produtivo já estavam na pauta.”

O mundo do trabalho e a crise sistêmica do


capitalismo globalizado 79

Edição 291 | Ano IX | 4-5-2009

“A Organização Internacional do Trabalho estimou em 2009, no rela-


tório “Global Employment Trends”, que a recessão global poderia gerar
neste mesmo ano, um contingente adicional de desempregados entre 18
milhões e 30 milhões de pessoas. Depois de ter tratado, em várias edições
anteriores, a crise sistêmica do capitalismo flexível, financeirizado e glo-
bal, nesta edição a IHU On-Line busca descrever o seu impacto sobre o
mundo do trabalho.”

As obras coletivas e seus impactos no


mundo do trabalho
Edição | Ano V | 24-10-2016

“As novas tecnologias têm permitido desenvolver obras coletivas, de livre


acesso, sem direitos autorais. A Wikipéia é um exemplo disso. Exemplos
como esse serviram de alerta para abrirmos o debate na edição atual da
IHU On-Line. Qual a importância dessas obras e do trabalho imaterial que
elas demandam? Como controlar a qualidade? Que transformações o tra-
balho cognitivo induz na vida do trabalhador e da trabalhadora? Como é
entendida a questão dos direitos autorais em produções coletivas? Essas e
outras questão são o norte para o debate desse número.”

EDIÇÃO 503
80

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