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MERLEAU-PONTY E O INCONSCIENTE: PRISMAS FENOMENOLÓGICOS

1. A RECEPÇÃO CRÍTICA FENOMENOLÓGICA DO INCONSCIENTE

Por se tratar, o pensamento freudiano, de um movimento - um caminho longo de


modificações e amadurecimento - trataremos, neste primeiro momento, de descrever o
pensamento psicanalítico acerca do conceito basilar introduzido por seu fundador: o
inconsciente.
Não há dúvidas de que o nome de Freud, ainda nos tempos atuais, circula nos meios
filosóficos, e mesmo dentre os próprios psicanalistas, como uma figura polêmica,
emblemática, e alvo de constantes críticas.
Com o intuito de apresentar um panorama inicial acerca da concepção freudiana a
respeito do inconsciente, nossa atenção se voltará nesta etapa, para a apresentação de um
importante trabalho presente na obra do autorvirgula intitulado “O inconsciente”, escrito em
1915, após produções significativas em relação ao tema, como “A interpretação dos sonhos”
(1900) e o “Caso Dora” (1905). Nomes de obras, em itálico?!
Em seguida, pretendemos uma breve discussão acerca da reformulação do modelo
metapsicológico, a partir da apresentação da segunda tópica, onde despontam o Eu, Id e
Super-eu como instâncias psíquicas que embasam um novo entendimento acerca das relações
entre consciência e inconsciente.
Além de mostrar o movimento sistemático presente no inconsciente, pensamos que
esses escritos freudianos apresentam uma concepção ainda bastante marcada, não apenas pela
influência dos estudos da física, mas também pela biologia e o ancoramento nas questões
filogenéticas, o que talvez, nos possibilite justificar a disposição de certos autores, em grande
parte filósofos, em constatar que a pedra angular do pensamento freudiano trata-se,
sumariamente, de um “recipiente interno”, um “baú” ou “quarto escuro”, onde conteúdos
assombrosos repousam. Soma-se a isso, a compreensão segundo a qual a teoria freudiana seria
essencialmente de ordem naturalista e determinista, sendo, portanto, de pouco valor para a
compreensão ontológica e fenomenológica do homem.
Com o intuito de apontar algumas dessas importantes críticas à psicanálise de Freud,
intentamos, após a exposição inicial acerca do inconsciente, apresentar o pensamento de
importantes expoentes da fenomenologia transcendental.
Assim, procuramos introduzir as ideias de Husserl acerca da consciência intencional,
mostrando em que medida, pode aproximar-se ou distanciar-se do modelo psíquico freudiano,
para em seguida, apresentar algumas críticas dirigidas por Sartre e Heidegger à
metapsicologia de Freud.

1.1 O inconsciente freudiano: a primeira tópica

É em seu trabalho de 1915, intitulado “O inconsciente” que o pai da psicanálise traça


a diferenciação entre os sistemas pré-consciente e consciente - perceberemos que Freud
encontra-se, ainda nesta fase, no terreno do que chamou de primeira tópica. Apenas em 1923,
com a publicação de “O ego e o id”, é possível visualizar com maior clareza a introdução de
outros elementos na dinâmica do psiquismo – o ego e o id – como o próprio título do trabalho
já bem ilustra. A este segundo momento do desenvolvimento da metapsicologia, chamamos
de segunda tópica.
É importante aqui ressaltar que antes dos estudos de Freud, o termo “inconsciente”
era empregado para designar puramente aquilo que não era consciente, mas, como esclarece
Garcia-Roza (1984, p.170) “jamais para designar um sistema psíquico distinto dos demais e
dotado de atividade própria” e, prossegue o comentador, “qualquer que tenha sido, porém, a
noção de inconsciente elaborada antes de Freud, o fato é que ela não designava nada de
importante ou de decisivo para a compreensão da subjetividade” (GARCIA-ROZA, 1984,
p.170).
Diante da vigência da discussão de cunho cartesiano em torno da consciência,
tematizar o inconsciente enquanto um sistema próprio de saberes, que em muito contraria a
primazia das ideias “claras e distintas” da razão, significa, antes de tudo, retirar da figura do
sujeito racional, a responsabilidade pela produção da verdade, visto que a questão a partir de
Freud se inverte: da pergunta acerca do “sujeito da verdade” para uma “verdade do sujeito” 1.
O inconsciente denuncia a possibilidade de se admitir a existência de uma espécie de
“desrazão” humana; a coexistência entre os contraditórios.
É importante destacar ainda, que o início da produção freudiana ocorre na área da
medicina, mais especificamente da neurologia, com os estudos sobre a histeria. Tais estudos,
voltados inicialmente ao método da hipnose, passaram a demarcar o corpo como sede, ou
fonte, de saberes acerca da história do sujeito, o que novamente coloca em questão o
posicionamento cartesiano acerca da primazia do espírito sobre o corpo.
Diante desse contexto, o próprio pai da psicanálise alega certa oposição entre esta e a
filosofia. Assoun (1978, p.26) afirma que “o que opera toda a defasagem lógica e

1
Cf.: Garcia-Roza, 1984
terminológica entre filosofia e psicanálise, criando entre elas um ‘diálogo de surdos’, é o
objeto novo que a segunda se deu por tarefa compreender e que a primeira oculta: o
inconsciente”. Para este mesmo autor, o obstáculo epistêmico posto pela filosofia dominante é
o “consciencialismo” abordado por esta, visto que a filosofia “põe o inconsciente fora do
estado de pensar” (ASSOUN, 1978, p.23).
Em “O inconsciente” Freud, a propósito das várias contestações, afirma que é
possível provar a existência do inconsciente, sendo ela “necessária e legítima” (FREUD,
2010, p.75), uma vez que na observação, tanto de pessoas sadias como em doentes, é possível
verificar a manifestação de atos psíquicos que pressupõem a existência de outros atos, os
quais a consciência não apresenta testemunhos.
Embora só possamos atestar o inconsciente através de materiais psíquicos que
chegam à consciência, segundo o psicanalista, seria inegável que manifestações como os
sonhos, os sintomas histéricos ou mesmo os lapsos de linguagem denunciam a existência de
um sistema do qual a lógica consciente não dá conta.
Neste sentido, Freud se principia a mostrar o equívoco da tradição filosófica ao
afirmar que apenas o que faz parte da consciência é psíquico. Aos seus olhos, a consciência se
trata de apenas uma pequena parte do psiquismo e, portanto, a maior porção deste é
constituída por conteúdos dos quais não estamos conscientes. A utilização da hipnose, muito
antes do desenvolvimento da psicanálise, já teria mostrado a existência do material
inconsciente no sistema psíquico.
É justo destacar que mesmo para a psicanálise, não há como negar a existência de
atos psíquicos que são inconscientes apenas temporariamente, de maneira latente, mas que em
muito se assemelham àquilo que é consciente. Contudo, há também outros, muito distintos,
que fazem parte do inconsciente sistemático.
No intuito de diferenciar, ao menos na escrita, o que se entende por inconsciente de
forma apenas descritiva e o inconsciente como sistema, Freud optou pela utilização das
abreviações: Cs (sistema consciente), Ics (sistema inconsciente) e ainda o Pcs (sistema pré-
consciente), este último agrega conteúdos provenientes do Ics e também do Cs; muito do
material que se encontra inconsciente no Pcs, poderá, em algum momento, emergir na
consciência. O sistema Pcs, portanto, faz parte do sistema Cs. Logo, o inconsciente freudiano
trata-se de um sistema próprio, com leis próprias e que não obedecem à mesma lógica da
consciência.
Pode-se dizer do sistema Ics, que se constitui, em grande medida, de um montante de
impulsos de desejos que são também representantes instintuais, sem concorrência entre eles;
ou seja, forças contrárias continuam atuando sem que haja subtração de energia de um
representante ao outro. Atua como um sistema de organização própria e muito diferente do
Cs, mas o fato de serem diferentes não significa que não existam leis regulamentadoras do Ics.
Se quisermos compreender como esse sistema funciona, é imprescindível considerar
que elementos como a temporalidade, negações ou certezas, nele não existem. Não há
interpretação de realidade no inconsciente, sendo ele regido pelo princípio do prazer. Uma vez
que nos estados de sonho e de neurose ocorre uma transposição de processos do sistema Pcs
para o Ics mediante a regressão, é através destes estados que podemos conhecer os processos
inconscientes.
O sistema Pcs trata-se de uma organização diferente, e a ele atribui-se as funções de
atuar como um regulador do afeto e da motilidade, regular a comunicação entre os conteúdos
das ideias, ativar a ordenação temporal, introduzir a censura e fazer a prova da realidade.
É perceptível, através dessa breve descrição, o quão distintos se apresentam esses
dois sistemas psíquicos e nos é possível, a partir desse ponto, observar como ocorrem as
relações entre ambos.
Ao descrever as relações entre os sistemas Pcs(Cs) e Ics Freud mostra a atuação da
censura na passagem dos conteúdos do sistema Ics para o sistema Pcs, inicialmente. A
censura2 é uma espécie de exame que deve permitir ou não a passagem do ato psíquico para o
novo sistema. Como mostra Freud

Na primeira fase, ele [o ato psíquico] é inconsciente e pertence ao


sistema Ics; se no exame ele é rejeitado pela censura, não consegue
passar pela segunda fase; então ele é “reprimido” e tem que
permanecer inconsciente. Saindo-se bem no exame, porém, ele entra
na segunda fase e participa do segundo sistema, a que denominamos
sistema Cs. (FREUD, 2010, p.81).

Fazer parte, contudo, do sistema Pcs não significa que o ato psíquico já possa ser
considerado consciente; é possível que haja a ação de uma nova censura para que se efetue
essa nova passagem ao Cs. Essa é uma questão que, em um primeiro momento, não é
assegurada por Freud, mas que vem a ser afirmada ao final do mesmo trabalho3.

2
É importante aqui ressaltar que a censura atua somente naqueles impulsos instituais que partem do Ics em
direção ao Pcs e ao Cs. Os traços da percepção externa que se dirigem ao Ics, encontram, portanto, livre
passagem, sem ter que se submeter ao crivo da censura.
3
Para ilustrar essa ideia, atentemo-nos à afirmação de Freud a respeito do Pcs e do Cs: “Para a consciência, a
inteira soma dos processos psíquicos aparece como o reino do pré-consciente. Uma parte enorme desse pré-
consciente se origina do inconsciente, tem o caráter dos derivados deste e submete-se a uma censura antes de
poder se tornar consciente. Uma outra parte do Pcs, é capaz de consciência, sem censura.” (FREUD, 2010, p.97).
Para o médico vienense, a constatação desses três sistemas psíquicos demonstra,
mais uma vez, o distanciamento da psicologia descritiva da consciência, visto que manifesta
uma nova colocação de problemas e um novo conteúdo, pois “até então ela se diferenciava da
psicologia sobretudo pela compreensão dinâmica dos processos anímicos; agora ela pretende
considerar igualmente a topologia da psique, e indicar, acerca de um ato psíquico qualquer, no
interior de qual sistema ou entre quais sistemas ele se passa.” (FREUD, 2010, p.82).
A compreensão dinâmica dos processos anímicos está relacionada com a interação
entre as energias psíquicas. A topologia passa a indicar em quais sistemas ocorre o
relacionamento entre essas energias.
Ao se perguntar acerca desta questão de ordem topológica, Freud admite que haja
relação entre o aparelho psíquico e a anatomia, especialmente com o cérebro; contudo, elas
não são suficientes no sentido de intencionar encontrar localizações anatômicas para os
processos anímicos, uma vez que fracassaram as tentativas de compreender as ideias como
algo possível de ser armazenado em células nervosas ou de percorrer as fibras dos nervos. Tal
limite é o que também se manifesta em uma teoria que se propusesse a encontrar regiões
cerebrais que correspondessem aos sistemas Cs. e Ics..Trata-se, portanto, de uma lacuna que o
autor claramente admite; não almeja preencher.
Esse ponto merece destaque porque vai ao encontro dos propósitos de nosso trabalho,
especialmente porque em seguida, Freud tacitamente parece manifestar certo “ar
fenomenológico” ao afirmar que “provisoriamente, nossa topologia psíquica nada tem a ver
com a anatomia; ela se refere a regiões do aparelho psíquico, onde quer que se situem no
corpo, e não a locais anatômicos.” (FREUD, 2010, 83).
Ao fazer essa distinção entre o corpo e os locais anatômicos, o neurologista vienense
parece oferecer uma perspectiva mais ampla à noção de corpo, admitindo-o, inclusive, como
uma possível região de acolhimento do aparelho psíquico de modo mais generalista, o que
também é possível observar em seus estudos mais específicos acerca da histeria, estudos esses
que não passaram despercebidos por Merleau-Ponty, para quem o corpo assume um arranjo
central no posicionamento acerca do estatuto do sujeito.
Retomando agora as observações sobre a topologia psíquica, destacamos a
importante questão, assumida por Freud: Quando há a transposição de um ato psíquico do
sistema Ics para o sistema Cs (ou Pcs) deve-se supor que há uma nova fixação, uma espécie
de um segundo registro da ideia em questão, contido em uma nova localidade psíquica,
possibilitando a permanência do registro inconsciente original? Ou deve-se supor, ainda, outra
hipótese; a de que a transposição é apenas uma mudança de estado produzida no mesmo
material e na mesma localidade?
Ao longo do artigo sobre o inconsciente, ao tratar deste questionamento, Freud
parece lentamente apontar o caminho para uma terceira possibilidade que é finalmente
apresentada na seção VII e que, como bem lembra Monzani (1989, p.259) “essa análise
também teve como precondição o isolamento do conceito de narcisismo e a consequente
possibilidade de abordagem das psicoses. A análise da esquizofrenia leva Freud a postular
uma distinção entre ‘representação de coisa’ e ‘representação de palavra’”. Essa posição,
contudo, será mais bem explorada em momento posterior.
Antes de retornarmos a ela, há outro elemento que precisa ser debatido: o afeto e os
sentimentos. Compreender a atuação do afeto nessa relação entre os sistemas Pcs (Cs) e Ics
significa também compreender alguns motivos pelos quais a mera informação do analista ao
paciente sobre as ideias inconscientes relacionadas ao sintoma não surtem, por si só, nenhum
efeito. Ora, aqui já poderíamos supor a presença de dois registros psíquicos em dois sistemas
diferentes: a ideia original, mantida no inconsciente e a interpretação do psicanalista,
mediante a qual a ideia é introduzida no sistema consciente, por meio do aparelho auditivo do
paciente.
Essa mera reprodução não seria suficiente para a supressão da repressão ou a
apresentação da cura porque as palavras, ou interpretação, não recebem o investimento do
afeto que deveria ligar-se a essa nova ideia que agora é também parte do sistema consciente.
Nas palavras de Freud (2010, p.84) “a repressão não é suprimida enquanto a ideia consciente,
após a superação das resistências, não entrou em ligação com o traço de memória
inconsciente. Apenas tornando consciente esta última se alcança o êxito”. Neste sentido,
compreende-se que “ter ouvido e ter vivido são coisas bem diversas em sua natureza
psicológica, mesmo quando têm o mesmo conteúdo.” (FREUD, 2010, p.84).
Como bem podemos observar, é neste ponto que o afeto entra em jogo, pois até este
momento o discurso esteve centrado em torna das ideias e representações que podem ser tanto
conscientes como inconscientes. O que acontece, portanto, no que diz respeito aos afetos? É
possível aceitar a ideia de afetos inconscientes?
Ocorre que em relação aos afetos, o que é reprimido ou não, é a ideia ou a
representação, com a qual o afeto está ligado, uma vez que este só pode se manifestar estando
relacionado a uma representação. Diante disso, é possível que um afeto seja percebido de
maneira equivocada, pois mediante o mecanismo da repressão, ele pode ter surgido como
manifestação consciente através de um deslocamento4 da ideia original, inconsciente, para
outra ideia presente no sistema consciente. Como bem mostra o pai da psicanálise
Ele [o afeto] é obrigado, devido à repressão de sua verdadeira
representação, a unir-se com outra ideia, e passa a ser tido, pela
consciência, como manifestação dessa última. Se restabelecemos o
vínculo correto, chamamos o impulso afetivo original de
“inconsciente”, embora seu afeto jamais tenha sido inconsciente,
apenas sua ideia sucumbiu à repressão. (FREUD, 2010, p.85).

A angústia surge a partir de uma carga de afeto que não se encontra ligado a
nenhuma representação, sendo, portanto, impossibilitado de ser nomeado. O verdadeiro
objetivo da repressão é a supressão do desenvolvimento do afeto5. Nas palavras de Freud
(2010, p. 87) “é possível que o desenvolvimento do afeto proceda diretamente do sistema Ics;
nesse caso tem sempre o caráter da angústia, pela qual são trocados todos os afetos
‘reprimidos’. Mas frequentemente o impulso instintual tem que esperar até achar uma ideia
substitutiva no sistema Cs.”.
A repressão, portanto, se trata de um processo situado na fronteira entre os sistemas
Ics e Cs (Pcs), atuante sobre as ideias. A questão agora gira em torno de explicar se há
investimento ou desinvestimento de libido na repressão, e de qual sistema ela parte. Nesse
ponto, Freud acaba privilegiando uma descrição dinâmica, abandonando a concepção
topológica de haver dois registros da mesma ideia em sistemas diferentes. Levanta
brevemente três hipóteses para descrever o processo da repressão: a) a de haver uma retirada
de libido do sistema Pcs na ideia; b) de haver um investimento de libido na ideia a partir do
sistema inconsciente e, por último, c) a substituição de um investimento pré-consciente para o
investimento inconsciente.
Tais hipóteses passam a ser descartadas na medida em que opta por considerar que,
nos dois primeiros casos, após haver um investimento ou uma retirada de libido, a ideia
supostamente deveria permanecer atuando no sentido de tentar tornar-se consciente, o que
então, não originaria a repressão propriamente dita, visto que o mesmo processo de

4
Ao descrever as “características especiais do sistema Ics”, Freud relata dois importantes processos que são
também desenvolvidos nos estudos sobre os sonhos. São eles o deslocamento e a condensação. O primeiro é um
processo em que “uma ideia pode ceder a outra todo o seu montante de investimento” (FREUD, 2010, p.93), ao
passo em que através da condensação, uma ideia pode “acolher o investimento de várias outras” (FREUD, 2010,
p.93).
5
A título de efetuarmos um melhor esclarecimento acerca das diferenças entre as ideias e os afetos, faz-se
importante notar que para Freud, as ideias correspondem a investimentos de traços mnemônicos enquanto os
sentimentos e afetos são processos de descarga que são percebidos como sensações no sistema Pcs (Cs). Assim
sendo, o afeto, em seu estado inconsciente, corresponde a “uma possibilidade incipiente, que não pode se
desenvolver” e, neste sentido, só é possível dizer de um “afeto inconsciente” após o trabalho de restauração, na
correção do trabalho de repressão, quando esta não consegue inibir o desenvolvimento do afeto.
investimento ou retirada teria que continuar indefinidamente. No último caso, se
considerarmos as ideias originariamente inconscientes, temos que supor que não há
investimento pré-consciente, o que não possibilitaria uma substituição de libido de um
sistema para o outro. Percebe-se, portanto, que explicar o processo da repressão requer um
estudo mais cuidadoso e detalhado do que se supunha.
A partir dessas considerações iniciais Freud admite que “temos aqui necessidade,
então, de outro processo, que no primeiro caso sustente a repressão, e no segundo cuide de sua
produção e continuidade, e só podemos enxerga-lo na suposição de um contraivestimento,
através do qual o sistema Pcs se proteja do assalto da ideia inconsciente.” (FREUD, 2010,
p.88).
A hipótese agora é da atuação de um contrainvestimento no sistema Pcs que
“representa o gasto permanente de uma repressão primordial, mas que também garante a
permanência dela” (FREUD, 2010, p.89). Neste caso, o investimento Pcs que é retirado à
ideia é o mesmo aplicado no contraivestimento. Estamos agora situados em uma terceira
perspectiva; após a exposição dos pontos de vista topológico e dinâmico, encontramo-nos no
terreno de uma concepção econômica, onde a libido6 é “reaproveitada” no sentido de, após o
seu desmembramento inicial de uma determinada ideia, atuar na realização de outras metas
como, neste caso, o contraivestimento, impedindo que a ideia se manifeste no sistema
Cs(Pcs). A essa descrição dos processos psíquicos em suas relações topológicas, dinâmicas e
econômicas, Freud chamou de “metapsicologia”.
Tomemos como exemplo as neuroses de transferência, como a histeria de angústia, e
vejamos como o processo de repressão poderia atuar neste caso: Supostamente, um impulso
de amor, presente no Ics, poderia apresentar demanda de transpor-se para o sistema Pcs;
contudo, o investimento libidinal que foi enviado pelo Pcs recolheu-se, numa tentativa de
fuga, ocasionando a rejeição da ideia original a qual o impulso demandava ligar-se. Em
consequência, tal impulso poderia ser descarregado como angústia. Supondo ainda que
houvesse uma nova tentativa de repetição do processo, poderia ocorrer o primeiro passo para
frear a evolução da angústia ao conduzir o investimento em fuga à ligação a uma ideia
substituta, que estivesse de alguma forma, associada à ideia original e que ao mesmo tempo
pudesse escapar à repressão, por manter também, certo distanciamento da primeira ideia,
possibilitando assim, uma racionalização do desenvolvimento da angústia, que não pode ser
inibida.

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Freud esclarece que o que ele chama de “investimento” pode ser claramente substituído por libido, uma vez que
se trata “dos destinos dos instintos sexuais” (2010, p.89).
Neste caso, percebemos que a ideia substituta, que consiste no contrainvestimento,
assume aqui uma dupla função: por um lado, garante a não emergência da ideia reprimida no
Cs e, por outro, age como se fosse o ponto de partida mediante o qual o afeto de angústia pode
se ligar e, consequentemente, se manifestar.
Se tomarmos o exemplo citado por Freud, no caso de uma fobia de algum animal, o
impulso amoroso inicial pode estar originariamente direcionado ao pai que, não tendo
condições de se ligar à representação original, acaba sendo descarregado pela primeira vez em
forma de angústia. Em um segundo momento, esse impulso se manifestaria ligado a um
contrainvestimento proveniente do sistema consciente – a apresentação do animal – que age
como um substituto da primeira ideia – o pai. Após essa segunda etapa, o processo de
repressão continua seu desenvolvimento a partir do substituto da seguinte maneira:

Tudo o que circunda e está associado à ideia substituta é investido de


particular intensidade, de modo a poder demonstrar uma grande
sensibilidade à excitação. Uma excitação de qualquer ponto dessa
estrutura exterior deve inelutavelmente, graças à conexão com a ideia
substituta, dar ocasião a um pequeno desenvolvimento da angústia,
que então é utilizado como sinal para inibir, mediante nova fuga do
investimento, o desenvolvimento ulterior da angústia. (FREUD, 2010,
p.91).

Percebe-se, portanto, que esses contrainvestimentos que vão circundando a ideia


substituta operam com a função de inibir o desenvolvimento da angústia e isolar a ideia
substituta; porém, essa inibição é direcionada à percepção dos elementos exteriores, como por
exemplo, algum indício de proximidade do animal temido; mas, eles não operam diretamente
no impulso instintual, que se relaciona com a ideia substituta a partir de sua ligação com a
ideia reprimida. É por esse motivo que “a cada aumento da excitação instintual, o baluarte de
proteção em torno da ideia substituta tem que ser colocado um pouco adiante” (FREUD,
2010, p.91).
Essa terceira fase da repressão ilustra como ela vem repetindo a segunda etapa em
uma escala maior, aumentando o sistema de defesas no meio exterior que sustentam a
evitação do contato com a representação substituta, nesse caso, com o animal temido. Nas
palavras de nosso autor

Desse modo prosseguiu a formação substitutiva por deslocamento. É


preciso acrescentar que antes o sistema Cs possuía tão só um pequeno
lugar por onde podia irromper o impulso instintual reprimido, ou seja,
a ideia substituta, mas que afinal toda a estrutura fóbica exterior
corresponde a um tal enclave da influência inconsciente. Além disso,
podemos sublinhar o ponto de vista interessante de que através do
mecanismo de defesa posto em ação foi alcançada uma projeção do
perigo instintual para fora. O Eu se comporta como se o perigo do
desenvolvimento da angústia não partisse de um impulso instintual,
mas de uma percepção, o que lhe permite reagir a esse perigo externo
com as tentativas de fuga das evitações fóbicas. (FREUD, 2010, p.91).

Há que se esclarecer que embora a repressão e a formação do sintoma amorteçam a


manifestação do impulso instintual, isso não ocorre senão a partir de um elevado esforço
psíquico e de renúncias da liberdade pessoal para o indivíduo, causando assim, sofrimento.
O processo repressivo descrito para os casos de fobia é muito semelhante na
formação dos sintomas das outras neuroses de transferência, como a histeria conversiva e a
neurose obsessiva, motivo pelo qual estas últimas não serão aqui detalhadas.
Anteriormente mencionamos a inicial dúvida de Freud acerca da transposição de um
ato psíquico do sistema inconsciente para o pré-consciente e se tal evento se daria mediante a
ocorrência de um novo registro da ideia original no segundo sistema, ou se trataria de uma
modificação funcional de investimento, apenas, no mesmo local. A suposição de uma terceira
hipótese entrou em pauta a partir da análise da esquizofrenia, que será mais bem detalhada
neste momento de nossa exposição.
Na última parte do trabalho sobre o inconsciente, de 1915, o autor relata que é a
partir do estudo das psiconeuroses narcísicas que o Ics pode ser mais extensamente
conhecido; isso porque, não apenas Freud, como também outros autores, reconheceu que
doenças como a esquizofrenia estão relacionadas com a oposição Eu-objeto, fato que ocorre
em menor grau e, portanto, menos passível de observação nas neuroses de transferência.
Nestas últimas, percebeu-se que mesmo após a repressão a energia libidinal do sistema
inconsciente continua a investir-se em outros objetos, possibilitando, desta forma, o
aparecimento da transferência.
Já nas psiconeuroses narcísicas, não há busca por novo objeto por parte da libido, o
que acarreta no direcionamento desta energia libidinal para o Eu, estabelecendo um “estado
primitivo de narcisismo sem objeto” (FREUD, 2010, p.101) e uma incapacidade para a
transferência que acarreta em uma impossibilidade de dar entrada ao processo terapêutico
psicanalítico. Essa característica surge acrescida de outras como a “rejeição do mundo
externo, o surgimento de sinais de um sobreinvestimento do próprio Eu, o desfecho na
completa apatia, todos esses traços clínicos parecem condizer perfeitamente com a hipótese de
um abandono dos investimentos objetais” (FREUD, 2010, p.102).
As alterações na linguagem dos esquizofrênicos em conjunto com as observações de
que esses pacientes expressam muitos conteúdos, em nível consciente, que nos neuróticos só
se pode observar que existem inconscientemente, levaram a aceitar a possibilidade da atuação
dos processos primários de deslocamento e condensação também ao nível da fala.
Há características peculiares nos pacientes esquizofrênicos em relação à maneira
“rebuscada” como se expressam ou ainda, para utilizar outro termo de Freud, uma forma
“afetada” de expressão. Há ausência de organização na formação das frases, o que as tornam
ininteligíveis para os outros e caracterizam como absurdas as manifestações dos doentes.
Frequentemente, tais manifestações apresentam relações com os órgãos do corpo e as
inervações, que aparecem em primeiro plano nos conteúdos trazidos pelos doentes. Em
relação aos sintomas da esquizofrenia que se assemelham às formações substitutivas histéricas
ou neurótico-obsessivas, a relação entre a ideia substituta e o reprimido apresenta
particularidades que causariam surpresa em se tratando das outras duas neuroses
mencionadas.
É, portanto, as alterações na fala desses pacientes, o que “salta aos olhos” de Freud,
uma vez que se apresentam muitas vezes ininteligíveis, sem que haja um processo
organizador da linguagem anterior à sua manifestação. Tal fator acontece porque na
esquizofrenia os mesmos processos ocorridos na formação onírica, de condensação e
deslocamento de energia para as ideias, ocorrem com as palavras. Isso significa que “elas [as
palavras] são condensadas e transferem umas para as outras seus investimentos por inteiro,
através do deslocamento” (FREUD, 2010, p.104), desta maneira “uma única palavra, tornada
apta para isso mediante múltiplas relações, assume a representação de toda uma cadeia de
pensamentos” (FREUD, 2010, p.104).
Uma importante diferença entre a formação da ideia substituta dos neuróticos para os
esquizofrênicos encontra-se no fato de que para os primeiros, há semelhanças entre palavras e
coisas; melhor dizendo, há semelhanças entre a ideia original e a ideia substituta, como no
caso do animal que surge como um substituto para a fobia em relação ao impulso amoroso
que não pode ser direcionado ao pai. Nos casos de psicoses, não encontramos relações
plausíveis de semelhanças entre as coisas; o que encontramos, contudo, são apenas
semelhanças entre palavras, como no exemplo em que o doente relaciona o “buraco”
provocado pelo ato de espremer uma espinha com o “buraco” do órgão genital. A hipótese,
então, levantada acerca desse fato é a de que
Na esquizofrenia os investimentos de objeto são abandonados. Então
teremos que fazer uma modificação: o investimento nas
representações verbais dos objetos é mantido. Agora o que
poderíamos chamar de representação consciente do objeto se
decompõe para nós em representação da palavra e em representação
da coisa, que consiste no investimento, senão das imagens
mnemônicas diretas das coisas, ao menos de traços mnemônicos mais
distantes e delas derivados. (FREUD, 2010, p.105).

É esse contexto que propicia, aos olhos de Freud, a distinção de uma representação
consciente para uma inconsciente e a conclusão de que nenhuma das duas hipóteses acima
mencionadas sobre o que ocorre com as representações no processo de repressão pode ser
identificada como correta. Neste caso, como bem explica o autor

Acreditamos saber agora como uma representação consciente se


distingue de uma inconsciente. As duas não são, como achávamos,
diferentes registros do mesmo conteúdo em diferentes locais
psíquicos, e tampouco diferentes condições funcionais de
investimentos no mesmo local. A representação consciente abrange a
representação da coisa mais a representação da palavra
correspondente, e a inconsciente é apenas a representação da coisa. O
sistema Ics contém os investimentos de coisas dos objetos, os
primeiros investimentos objetais propriamente ditos; o sistema Pcs
surge quando essa representação da coisa é sobreinvestida mediante a
ligação com as representações verbais que lhe correspondem.
(FREUD, 2010, p.105-106).

Tomando por base essa constatação, é possível compreender que é esse


sobreinvestimento das representações de coisas junto às representações verbais, que “levam a
uma mais alta organização psíquica” (FREUD, 2010, p.106) e que é, ainda, esse elemento que
falta nas neuroses de transferência, como, por exemplo, a histeria e a fobia.
Já vimos que nos psicóticos a libido que permanece reprimida no Ics não é ligada às
representações objetais, mas volta-se para o próprio Eu, ocasionando que apenas as
representações de palavras é que acabam por receber investimento libidinal. Nas neuroses de
transferência, quando há a rejeição de uma representação através da repressão, o que é
recusado a essa representação reprimida é a representação de palavra, que a impossibilita de
tornar-se pré-consciente.
Freud ainda coloca em questão a estranheza que pode causar o fato de que na
esquizofrenia a parte da representação Pcs, ou seja, a representação de palavras receba mais
investimento do que a parte reprimida, ou a representação de coisa, referente à mesma ideia
em estado inconsciente. Ora, o que pareceria, em um primeiro momento, mais razoável de se
esperar, era de que havendo a repressão até a representação de coisas inconscientes, a parcela
relativa ao Pcs não recebesse tão significativo investimento. Contudo, a explicação para esse
fator, como Freud bem esclarece é de “o investimento da representação verbal não pertencer
ao ato de repressão, mas constituir a primeira das tentativas de restabelecimento ou cura que
tão claramente dominam o quadro da esquizofrenia” (FREUD, 2010, p.108).
É bem provável, então, que o sistema psíquico do doente esquizofrênico permaneça
na constante tentativa de recuperar os objetos perdidos, através da parte verbal deles, tendo
que se contentar, dessa forma, com as palavras, ao invés das coisas.

1.2 A segunda tópica freudiana: O Eu e o Id


A propósito de a experiência clínica ter revelado insuficiente a teoria da primeira
tópica, que dividiu o aparelho psíquico em três sistemas: consciente, pré-consciente e
inconsciente; Freud publica, em 1923 o trabalho intitulado “O Eu e o Id” onde trata do
funcionamento de sua segunda tópica. Aqui, encontramos o desenvolvimento dos conceitos
de Eu, Id e Ideal de Eu ou Super-eu e a inter-relação entre essas três instâncias.
Freud procura mostrar que o desenvolvimento humano desde o nascimento configura
a formação de um Eu no sistema psíquico, que se efetua como uma organização coerente e
que, estando ligado à consciência, domina os acessos à motilidade, ou seja, “a descarga de
excitações no mundo externo” (FREUD, 2011, p.14). O Eu é também responsável por regular
as repressões, excluindo certas tendências psíquicas da consciência.
Contudo, embora possamos perceber sem dificuldades certa relação entre o Eu e a
consciência, ocorre que há muitos elementos inconscientes que também estão presentes no
Eu, fazem parte dele e causam-lhe influências. Aqui está um dos motivos pelos quais o pai da
psicanálise se deparou com a necessidade de reformulação da primeira tópica.
A resistência é um exemplo que pode ser reconhecido na análise como algo que se
opõe à emergência dos conteúdos reprimidos à consciência e da qual o paciente não consegue
falar, pois parece não possuir o conhecimento deste fenômeno; contudo, trata-se, a resistência,
de um fenômeno produzido pelo Eu, um fenômeno que, poderíamos dizer, faz parte do Eu e
permanece inconsciente para o indivíduo. A consequência, então, da descoberta de elementos
inconscientes no Eu “é que deparamos com inúmeras obscuridades, se mantemos a nossa
habitual forma de expressão e, por exemplo, fazemos derivar a neurose de um conflito entre o
consciente e o inconsciente” (FREUD, 2011, p.15).
Acontece que o que se procurava compreender através da oposição entre os sistemas
consciente e pré-consciente, deve agora ser substituído pela oposição entre o Eu coerente e
aquilo que dele se separou, devido ao processo de repressão.
Mesmo ao tratar da segunda tópica, a consciência continua sendo o ponto de
partida para o conhecimento do sistema psíquico e devemos aqui, compreender
por consciência, todas as percepções que partem do mundo exterior, como as
percepções sensoriais, e do interior, as quais denominamos sensações e
sentimentos.
Em relação ao inconsciente, embora nele caiba todo o material psíquico oriundo da
repressão, não se pode afirmar que ele abarca apenas o que foi reprimido, sendo este, apenas
parte dele. Há, neste ponto, a proposição de uma nova descoberta, a de que apenas pode se
tornar consciente o material, ou ideias, que alguma vez já tenham sido percepção Cs e que,
exceto os sentimentos, o que busca tornar-se consciente a partir do mundo interno deve buscar
converter-se em percepções externas. O que possibilita essa conversão seriam os traços
mnemônicos7, em especial aqueles oriundos do sistema auditivo, que permeiam o âmbito das
palavras.
Em relação aos sentimentos, estes não necessitam da intermediação através das
representações verbais para se tornarem conscientes, uma vez que possuem livre acesso de
um sistema ao outro, e “mesmo ao serem ligados a representações verbais, não devem a elas o
fato de tornar-se conscientes, mas fazem-no diretamente” (FREUD, 2011, p.20). Ainda para
Freud,

O papel das representações verbais é agora perfeitamente claro. Pela


sua intermediação, processos de pensamento internos, são
transformados em percepções. É como se fosse demonstrada a
proposição de que todo saber tem origem na percepção externa. Num
superinvestimento do pensar, todos os pensamentos são percebidos
realmente – como de fora – e por isso tido como verdadeiros
(FREUD, 2011, p.21).

A partir dessas considerações iniciais, o Eu pode então ser concebido como um


elemento psíquico a partir do sistema Pcp8, abarcando o Pcs e os resíduos mnemônicos.
Ocorre que, como já mencionado anteriormente, uma parcela significativa do Eu é, também,
inconsciente.

7
Aqui, Freud supõe que os resíduos de memória estão “contidos em sistemas adjacentes ao sistema
Perceptivo-Consciente, de forma que os seus investimentos podem, com facilidade, prosseguir nos
elementos desse sistema a partir do interior” (FREUD, 2010b, p.18).
8
Sistema perceptivo.
Neste ponto de nossa explanação já se faz possível sinalizar o que Freud compreende
por Eu e por Id. Nas palavras mesmas do autor, pode-se dizer que o Eu é “a entidade que parte
do sistema Pcp e é inicialmente pcs, e de Id [...] a outra parte da psique, na qual ela prossegue,
e que se comporta como ics” (FREUD, 2011, p.21).
A totalidade, então, do indivíduo pode ser compreendida como a união de um algo
psíquico, ou um Id, inconsciente, que apresenta, em sua superfície um Eu, desenvolvido com
base no sistema Pcp.
Percebamos neste ponto, a importância desta afirmação para a compreensão de
grande parte das críticas dirigidas a Freud, em especial aquelas que lhe conferem o título de
dualista, pois, ao dividir o sistema psíquico entre o Id e o Eu, teria inculcado, no interior da
vida do sujeito consciente, um outro sujeito, inconsciente e desconhecedor. Essa cisão,
inclusive, abre espaço para que Freud seja compreendido como um determinista, ao propor
que as ações do Eu sejam influenciadas por impulsos e ideias inconscientes.
É importante ainda ressaltar que esse texto, escrito em 1922, embora considerado por
Freud como um trabalho de cunho mais psicanalítico do que biológico, ao compará-lo com o
conteúdo de seu estudo anterior “Além do princípio do prazer” (1920), o autor não deixa de
mencionar a importância e influência da biologia e das questões filogenéticas para a
compreensão da dinâmica do psiquismo, sobretudo no que se refere ao fenômeno do
Complexo de Édipo, que ele descreve ao embasar a formação do Ideal de Eu.
Retornando à tentativa de compreensão do Id, podemos descrevê-lo como
comportando não apenas os aspectos reprimidos a partir do Eu, mas de forma mais
abrangente, o conjunto dos impulsos eróticos e de satisfação das necessidades unidos aos
impulsos de morte. Pode-se afirmar ainda que o Id é irrestritamente regido pelo princípio do
prazer.
O Eu é formado a partir do Id, configura-se como uma parte deste, modificada a
partir das influências do mundo externo sob mediação do sistema Pcp-Cs9. Uma das funções
principais do Eu é a tentativa de assegurar o ajustamento entre os impulsos voltados à
obtenção irrestrita de prazer, oriundos do Id, com os limites impostos pelo mundo exterior, ou
seja, o Eu atua como um regulador do Id, confrontando-o com o princípio da realidade.
Vejamos a tentativa de Freud ao exemplificar essa relação entre o Eu e o Id:

9
“O Eu representa o que se pode chamar de razão e circunspecção, em oposição ao Id, que contém as
paixões” (FREUD, 2011, p.23).
A importância funcional do Eu se expressa no fato de que
normalmente lhe é dado o controle dos acessos à motilidade. Assim,
em relação ao Id ele se compara ao cavaleiro que deve por freios à
força superior do cavalo, com a diferença de que o cavaleiro tenta
fazê-lo com suas próprias forças, e o Eu, com forças emprestadas. Este
símile pode ser levado um pouco adiante. Assim como o cavaleiro, a
fim de não se separar do cavalo, muitas vezes tem de conduzi-lo
aonde ele quer ir, também o Eu costuma transformar em ato a vontade
do Id, como se ela fosse a sua própria (FREUD, 2011, p.23).

Assim como podemos perceber nesta citação a relação entre o Eu e a motilidade, o


corpo em sua totalidade adquire também importância especial no processo de emergência do
Eu, uma vez que é impossível negá-lo enquanto um instrumento relacional entre o sistema
Pcp-Cs e os impulsos oriundos do Id. Neste sentido, podemos compreender com Freud que “o
Eu é sobretudo corporal” (FREUD, 2011, p.24).
Contudo, a simplicidade da constituição do Eu é apenas aparente, uma vez que não
devemos esquecer que o Eu é originado do Id e que, portanto, carrega em si, aspectos desse
último; é o que, por exemplo, Freud procura mostrar ao se referir a um sentimento
inconsciente de culpa, presente em grande parte das neuroses.
Tal sentimento de culpa deve-se ao aparecimento, no sistema psíquico, de um Ideal
de eu ou Super-eu, que guarda nítidas relações com o inconsciente, mas que faz parte do Eu,
mostrando, mais uma vez que este último não é apenas um representante do mundo exterior
na psique. Há, portanto, uma gradação no Eu, “uma diferenciação em seu interior que pode
ser chamada de ‘ideal do Eu’ ou ‘Super-eu’ [...]. A novidade que exige explicação é o fato de
essa parcela do Eu ter relação menos estreita com a consciência” (FREUD, 2011, p.25).
Para mostrar como se efetua essa “gradação no Eu” é necessário descrevermos o
fenômeno do Complexo de Édipo que, segundo nosso autor, trata-se de um fenômeno
psíquico que remonta a questões filogenéticas e que está intimamente relacionado às
organizações morais e ao sentimento de culpa, da maneira como se estruturam nos indivíduos.
Na fase primitiva do desenvolvimento psíquico, segundo supõe Freud, não haveria
distinção entre um investimento objetal e a identificação, tendo em vista que não é de se
considerar que o indivíduo, nessa fase, já possui um Eu. O investimento objetal vai
aparecendo aos poucos, conforme o Eu começa a emergir mediante as relações iniciais com as
figuras parentais. Os investimentos objetais são provenientes do Id e tem como objetivo
principal a satisfação das necessidades eróticas, que o Eu, ainda frágil, aprova ou submente à
repressão.
De maneira bastante abreviada, podemos entender o Complexo de Édipo, em sua
ocorrência mais habitual, por um sentimento de admiração e “enamoramento” da criança pelo
genitor do sexo oposto e que, com o intuito de trazê-lo para perto de si, fazê-lo admirá-la e
amá-la, a criança identifica-se com o outro genitor. Vejamos como Freud descreveu esse
processo:

Com o desmoronamento do Complexo de Édipo, o investimento


objetal na mãe [no caso do menino] tem que ser abandonado. Em seu
lugar pode surgir uma identificação com a mãe ou um fortalecimento
da identificação com o pai. Costumamos ver este segundo desfecho
como o mais normal; ele permite conservar, em alguma medida, a
relação terna com a mãe. Graças à dissolução do complexo de Édipo,
a masculinidade no caráter do menino experimentaria uma
consolidação. De modo inteiramente análogo, a postura edípica da
menina pode resultar num fortalecimento (ou no estabelecimento) de
sua identificação com a mãe, que fixa o caráter feminino da criança
(FREUD, 2011, p.29).

Quando ocorre o abandono de um objeto sexual, como no caso da repressão do


desejo pelo genitor, observado na situação edípica, há uma transformação no Eu, que
incorpora o objeto abandonado, sobretudo nas fases iniciais do desenvolvimento. Em outras
palavras, tais objetos sexuais, quando abandonados, passam a fazer parte do caráter do Eu e é
assim que a limitação ao incesto, imposta pelo genitor no Complexo de Édipo, é incorporada
ao Eu através de um sentimento de culpa do qual não temos plena consciência. O desenrolar
do Complexo de Édipo, quando dentro dos moldes considerados normais, permite que se
instaure no interior do Eu, o sentimento de culpa e de limites, que embasam o
desenvolvimento do sentimento de moralidade e de necessidade de respeito às regras sociais.
Acreditamos que essa explanação breve acerca do inconsciente tal qual Freud o
formulou, nos ofereça condições de embasar, ao menos em um primeiro momento, as críticas
de alguns importantes filósofos representantes da fenomenologia sobre o pensamento
freudiano. Não é difícil perceber, a partir dessas colocações iniciais, os traços de um
pensamento naturalista e científico que, ainda que revolucionário, parece carregar as marcas
da dualidade entre sujeito e objeto e, ainda mais, apresenta, ao menos aparentemente, certo
resquício substancial direcionado à consciência e também àquilo que chamou de inconsciente.
Vejamos então, agora, as manifestações contrárias à sustentação freudiana do
inconsciente de alguns importantes representantes da fenomenologia transcendental antes de
adentrarmos mais propriamente ao pensamento de Merleau-Ponty, autor central de nossa
discussão.

1.3 Husserl e a consciência intencional


1.4 A crítica de Sartre ao inconsciente
1.5 A crítica heideggeriana ao inconsciente psicanalítico

REFERÊNCIAS

ASSOUN, P. L. Freud, a filosofia e os filósofos. Trad. Hilton Japiassu. Rio de Janeiro:


Francisco Alves Editora, 1978.

FREUD, S. (1915). O Inconsciente. In: _____. Introdução ao narcisismo, ensaios de


metapsicologia e outros textos. Trad. Paulo César Lima de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 2010. p. 74-112.

_____. (1923). O Eu e o Id. In: _____. O eu e o id, “autobiografia” e outros textos. Trad.
Paulo César Lima de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 16-25.

GARCIA-ROZA, L. A. Freud e o inconsciente. 2.ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.

MONZANI, L. R. Freud: o movimento de um pensamento. Campinas: Editora da


UNICAMP, 1989.

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