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Merleau-Ponty e o Inconsciente Prismas Fenomenológicos
Merleau-Ponty e o Inconsciente Prismas Fenomenológicos
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Cf.: Garcia-Roza, 1984
terminológica entre filosofia e psicanálise, criando entre elas um ‘diálogo de surdos’, é o
objeto novo que a segunda se deu por tarefa compreender e que a primeira oculta: o
inconsciente”. Para este mesmo autor, o obstáculo epistêmico posto pela filosofia dominante é
o “consciencialismo” abordado por esta, visto que a filosofia “põe o inconsciente fora do
estado de pensar” (ASSOUN, 1978, p.23).
Em “O inconsciente” Freud, a propósito das várias contestações, afirma que é
possível provar a existência do inconsciente, sendo ela “necessária e legítima” (FREUD,
2010, p.75), uma vez que na observação, tanto de pessoas sadias como em doentes, é possível
verificar a manifestação de atos psíquicos que pressupõem a existência de outros atos, os
quais a consciência não apresenta testemunhos.
Embora só possamos atestar o inconsciente através de materiais psíquicos que
chegam à consciência, segundo o psicanalista, seria inegável que manifestações como os
sonhos, os sintomas histéricos ou mesmo os lapsos de linguagem denunciam a existência de
um sistema do qual a lógica consciente não dá conta.
Neste sentido, Freud se principia a mostrar o equívoco da tradição filosófica ao
afirmar que apenas o que faz parte da consciência é psíquico. Aos seus olhos, a consciência se
trata de apenas uma pequena parte do psiquismo e, portanto, a maior porção deste é
constituída por conteúdos dos quais não estamos conscientes. A utilização da hipnose, muito
antes do desenvolvimento da psicanálise, já teria mostrado a existência do material
inconsciente no sistema psíquico.
É justo destacar que mesmo para a psicanálise, não há como negar a existência de
atos psíquicos que são inconscientes apenas temporariamente, de maneira latente, mas que em
muito se assemelham àquilo que é consciente. Contudo, há também outros, muito distintos,
que fazem parte do inconsciente sistemático.
No intuito de diferenciar, ao menos na escrita, o que se entende por inconsciente de
forma apenas descritiva e o inconsciente como sistema, Freud optou pela utilização das
abreviações: Cs (sistema consciente), Ics (sistema inconsciente) e ainda o Pcs (sistema pré-
consciente), este último agrega conteúdos provenientes do Ics e também do Cs; muito do
material que se encontra inconsciente no Pcs, poderá, em algum momento, emergir na
consciência. O sistema Pcs, portanto, faz parte do sistema Cs. Logo, o inconsciente freudiano
trata-se de um sistema próprio, com leis próprias e que não obedecem à mesma lógica da
consciência.
Pode-se dizer do sistema Ics, que se constitui, em grande medida, de um montante de
impulsos de desejos que são também representantes instintuais, sem concorrência entre eles;
ou seja, forças contrárias continuam atuando sem que haja subtração de energia de um
representante ao outro. Atua como um sistema de organização própria e muito diferente do
Cs, mas o fato de serem diferentes não significa que não existam leis regulamentadoras do Ics.
Se quisermos compreender como esse sistema funciona, é imprescindível considerar
que elementos como a temporalidade, negações ou certezas, nele não existem. Não há
interpretação de realidade no inconsciente, sendo ele regido pelo princípio do prazer. Uma vez
que nos estados de sonho e de neurose ocorre uma transposição de processos do sistema Pcs
para o Ics mediante a regressão, é através destes estados que podemos conhecer os processos
inconscientes.
O sistema Pcs trata-se de uma organização diferente, e a ele atribui-se as funções de
atuar como um regulador do afeto e da motilidade, regular a comunicação entre os conteúdos
das ideias, ativar a ordenação temporal, introduzir a censura e fazer a prova da realidade.
É perceptível, através dessa breve descrição, o quão distintos se apresentam esses
dois sistemas psíquicos e nos é possível, a partir desse ponto, observar como ocorrem as
relações entre ambos.
Ao descrever as relações entre os sistemas Pcs(Cs) e Ics Freud mostra a atuação da
censura na passagem dos conteúdos do sistema Ics para o sistema Pcs, inicialmente. A
censura2 é uma espécie de exame que deve permitir ou não a passagem do ato psíquico para o
novo sistema. Como mostra Freud
Fazer parte, contudo, do sistema Pcs não significa que o ato psíquico já possa ser
considerado consciente; é possível que haja a ação de uma nova censura para que se efetue
essa nova passagem ao Cs. Essa é uma questão que, em um primeiro momento, não é
assegurada por Freud, mas que vem a ser afirmada ao final do mesmo trabalho3.
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É importante aqui ressaltar que a censura atua somente naqueles impulsos instituais que partem do Ics em
direção ao Pcs e ao Cs. Os traços da percepção externa que se dirigem ao Ics, encontram, portanto, livre
passagem, sem ter que se submeter ao crivo da censura.
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Para ilustrar essa ideia, atentemo-nos à afirmação de Freud a respeito do Pcs e do Cs: “Para a consciência, a
inteira soma dos processos psíquicos aparece como o reino do pré-consciente. Uma parte enorme desse pré-
consciente se origina do inconsciente, tem o caráter dos derivados deste e submete-se a uma censura antes de
poder se tornar consciente. Uma outra parte do Pcs, é capaz de consciência, sem censura.” (FREUD, 2010, p.97).
Para o médico vienense, a constatação desses três sistemas psíquicos demonstra,
mais uma vez, o distanciamento da psicologia descritiva da consciência, visto que manifesta
uma nova colocação de problemas e um novo conteúdo, pois “até então ela se diferenciava da
psicologia sobretudo pela compreensão dinâmica dos processos anímicos; agora ela pretende
considerar igualmente a topologia da psique, e indicar, acerca de um ato psíquico qualquer, no
interior de qual sistema ou entre quais sistemas ele se passa.” (FREUD, 2010, p.82).
A compreensão dinâmica dos processos anímicos está relacionada com a interação
entre as energias psíquicas. A topologia passa a indicar em quais sistemas ocorre o
relacionamento entre essas energias.
Ao se perguntar acerca desta questão de ordem topológica, Freud admite que haja
relação entre o aparelho psíquico e a anatomia, especialmente com o cérebro; contudo, elas
não são suficientes no sentido de intencionar encontrar localizações anatômicas para os
processos anímicos, uma vez que fracassaram as tentativas de compreender as ideias como
algo possível de ser armazenado em células nervosas ou de percorrer as fibras dos nervos. Tal
limite é o que também se manifesta em uma teoria que se propusesse a encontrar regiões
cerebrais que correspondessem aos sistemas Cs. e Ics..Trata-se, portanto, de uma lacuna que o
autor claramente admite; não almeja preencher.
Esse ponto merece destaque porque vai ao encontro dos propósitos de nosso trabalho,
especialmente porque em seguida, Freud tacitamente parece manifestar certo “ar
fenomenológico” ao afirmar que “provisoriamente, nossa topologia psíquica nada tem a ver
com a anatomia; ela se refere a regiões do aparelho psíquico, onde quer que se situem no
corpo, e não a locais anatômicos.” (FREUD, 2010, 83).
Ao fazer essa distinção entre o corpo e os locais anatômicos, o neurologista vienense
parece oferecer uma perspectiva mais ampla à noção de corpo, admitindo-o, inclusive, como
uma possível região de acolhimento do aparelho psíquico de modo mais generalista, o que
também é possível observar em seus estudos mais específicos acerca da histeria, estudos esses
que não passaram despercebidos por Merleau-Ponty, para quem o corpo assume um arranjo
central no posicionamento acerca do estatuto do sujeito.
Retomando agora as observações sobre a topologia psíquica, destacamos a
importante questão, assumida por Freud: Quando há a transposição de um ato psíquico do
sistema Ics para o sistema Cs (ou Pcs) deve-se supor que há uma nova fixação, uma espécie
de um segundo registro da ideia em questão, contido em uma nova localidade psíquica,
possibilitando a permanência do registro inconsciente original? Ou deve-se supor, ainda, outra
hipótese; a de que a transposição é apenas uma mudança de estado produzida no mesmo
material e na mesma localidade?
Ao longo do artigo sobre o inconsciente, ao tratar deste questionamento, Freud
parece lentamente apontar o caminho para uma terceira possibilidade que é finalmente
apresentada na seção VII e que, como bem lembra Monzani (1989, p.259) “essa análise
também teve como precondição o isolamento do conceito de narcisismo e a consequente
possibilidade de abordagem das psicoses. A análise da esquizofrenia leva Freud a postular
uma distinção entre ‘representação de coisa’ e ‘representação de palavra’”. Essa posição,
contudo, será mais bem explorada em momento posterior.
Antes de retornarmos a ela, há outro elemento que precisa ser debatido: o afeto e os
sentimentos. Compreender a atuação do afeto nessa relação entre os sistemas Pcs (Cs) e Ics
significa também compreender alguns motivos pelos quais a mera informação do analista ao
paciente sobre as ideias inconscientes relacionadas ao sintoma não surtem, por si só, nenhum
efeito. Ora, aqui já poderíamos supor a presença de dois registros psíquicos em dois sistemas
diferentes: a ideia original, mantida no inconsciente e a interpretação do psicanalista,
mediante a qual a ideia é introduzida no sistema consciente, por meio do aparelho auditivo do
paciente.
Essa mera reprodução não seria suficiente para a supressão da repressão ou a
apresentação da cura porque as palavras, ou interpretação, não recebem o investimento do
afeto que deveria ligar-se a essa nova ideia que agora é também parte do sistema consciente.
Nas palavras de Freud (2010, p.84) “a repressão não é suprimida enquanto a ideia consciente,
após a superação das resistências, não entrou em ligação com o traço de memória
inconsciente. Apenas tornando consciente esta última se alcança o êxito”. Neste sentido,
compreende-se que “ter ouvido e ter vivido são coisas bem diversas em sua natureza
psicológica, mesmo quando têm o mesmo conteúdo.” (FREUD, 2010, p.84).
Como bem podemos observar, é neste ponto que o afeto entra em jogo, pois até este
momento o discurso esteve centrado em torna das ideias e representações que podem ser tanto
conscientes como inconscientes. O que acontece, portanto, no que diz respeito aos afetos? É
possível aceitar a ideia de afetos inconscientes?
Ocorre que em relação aos afetos, o que é reprimido ou não, é a ideia ou a
representação, com a qual o afeto está ligado, uma vez que este só pode se manifestar estando
relacionado a uma representação. Diante disso, é possível que um afeto seja percebido de
maneira equivocada, pois mediante o mecanismo da repressão, ele pode ter surgido como
manifestação consciente através de um deslocamento4 da ideia original, inconsciente, para
outra ideia presente no sistema consciente. Como bem mostra o pai da psicanálise
Ele [o afeto] é obrigado, devido à repressão de sua verdadeira
representação, a unir-se com outra ideia, e passa a ser tido, pela
consciência, como manifestação dessa última. Se restabelecemos o
vínculo correto, chamamos o impulso afetivo original de
“inconsciente”, embora seu afeto jamais tenha sido inconsciente,
apenas sua ideia sucumbiu à repressão. (FREUD, 2010, p.85).
A angústia surge a partir de uma carga de afeto que não se encontra ligado a
nenhuma representação, sendo, portanto, impossibilitado de ser nomeado. O verdadeiro
objetivo da repressão é a supressão do desenvolvimento do afeto5. Nas palavras de Freud
(2010, p. 87) “é possível que o desenvolvimento do afeto proceda diretamente do sistema Ics;
nesse caso tem sempre o caráter da angústia, pela qual são trocados todos os afetos
‘reprimidos’. Mas frequentemente o impulso instintual tem que esperar até achar uma ideia
substitutiva no sistema Cs.”.
A repressão, portanto, se trata de um processo situado na fronteira entre os sistemas
Ics e Cs (Pcs), atuante sobre as ideias. A questão agora gira em torno de explicar se há
investimento ou desinvestimento de libido na repressão, e de qual sistema ela parte. Nesse
ponto, Freud acaba privilegiando uma descrição dinâmica, abandonando a concepção
topológica de haver dois registros da mesma ideia em sistemas diferentes. Levanta
brevemente três hipóteses para descrever o processo da repressão: a) a de haver uma retirada
de libido do sistema Pcs na ideia; b) de haver um investimento de libido na ideia a partir do
sistema inconsciente e, por último, c) a substituição de um investimento pré-consciente para o
investimento inconsciente.
Tais hipóteses passam a ser descartadas na medida em que opta por considerar que,
nos dois primeiros casos, após haver um investimento ou uma retirada de libido, a ideia
supostamente deveria permanecer atuando no sentido de tentar tornar-se consciente, o que
então, não originaria a repressão propriamente dita, visto que o mesmo processo de
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Ao descrever as “características especiais do sistema Ics”, Freud relata dois importantes processos que são
também desenvolvidos nos estudos sobre os sonhos. São eles o deslocamento e a condensação. O primeiro é um
processo em que “uma ideia pode ceder a outra todo o seu montante de investimento” (FREUD, 2010, p.93), ao
passo em que através da condensação, uma ideia pode “acolher o investimento de várias outras” (FREUD, 2010,
p.93).
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A título de efetuarmos um melhor esclarecimento acerca das diferenças entre as ideias e os afetos, faz-se
importante notar que para Freud, as ideias correspondem a investimentos de traços mnemônicos enquanto os
sentimentos e afetos são processos de descarga que são percebidos como sensações no sistema Pcs (Cs). Assim
sendo, o afeto, em seu estado inconsciente, corresponde a “uma possibilidade incipiente, que não pode se
desenvolver” e, neste sentido, só é possível dizer de um “afeto inconsciente” após o trabalho de restauração, na
correção do trabalho de repressão, quando esta não consegue inibir o desenvolvimento do afeto.
investimento ou retirada teria que continuar indefinidamente. No último caso, se
considerarmos as ideias originariamente inconscientes, temos que supor que não há
investimento pré-consciente, o que não possibilitaria uma substituição de libido de um
sistema para o outro. Percebe-se, portanto, que explicar o processo da repressão requer um
estudo mais cuidadoso e detalhado do que se supunha.
A partir dessas considerações iniciais Freud admite que “temos aqui necessidade,
então, de outro processo, que no primeiro caso sustente a repressão, e no segundo cuide de sua
produção e continuidade, e só podemos enxerga-lo na suposição de um contraivestimento,
através do qual o sistema Pcs se proteja do assalto da ideia inconsciente.” (FREUD, 2010,
p.88).
A hipótese agora é da atuação de um contrainvestimento no sistema Pcs que
“representa o gasto permanente de uma repressão primordial, mas que também garante a
permanência dela” (FREUD, 2010, p.89). Neste caso, o investimento Pcs que é retirado à
ideia é o mesmo aplicado no contraivestimento. Estamos agora situados em uma terceira
perspectiva; após a exposição dos pontos de vista topológico e dinâmico, encontramo-nos no
terreno de uma concepção econômica, onde a libido6 é “reaproveitada” no sentido de, após o
seu desmembramento inicial de uma determinada ideia, atuar na realização de outras metas
como, neste caso, o contraivestimento, impedindo que a ideia se manifeste no sistema
Cs(Pcs). A essa descrição dos processos psíquicos em suas relações topológicas, dinâmicas e
econômicas, Freud chamou de “metapsicologia”.
Tomemos como exemplo as neuroses de transferência, como a histeria de angústia, e
vejamos como o processo de repressão poderia atuar neste caso: Supostamente, um impulso
de amor, presente no Ics, poderia apresentar demanda de transpor-se para o sistema Pcs;
contudo, o investimento libidinal que foi enviado pelo Pcs recolheu-se, numa tentativa de
fuga, ocasionando a rejeição da ideia original a qual o impulso demandava ligar-se. Em
consequência, tal impulso poderia ser descarregado como angústia. Supondo ainda que
houvesse uma nova tentativa de repetição do processo, poderia ocorrer o primeiro passo para
frear a evolução da angústia ao conduzir o investimento em fuga à ligação a uma ideia
substituta, que estivesse de alguma forma, associada à ideia original e que ao mesmo tempo
pudesse escapar à repressão, por manter também, certo distanciamento da primeira ideia,
possibilitando assim, uma racionalização do desenvolvimento da angústia, que não pode ser
inibida.
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Freud esclarece que o que ele chama de “investimento” pode ser claramente substituído por libido, uma vez que
se trata “dos destinos dos instintos sexuais” (2010, p.89).
Neste caso, percebemos que a ideia substituta, que consiste no contrainvestimento,
assume aqui uma dupla função: por um lado, garante a não emergência da ideia reprimida no
Cs e, por outro, age como se fosse o ponto de partida mediante o qual o afeto de angústia pode
se ligar e, consequentemente, se manifestar.
Se tomarmos o exemplo citado por Freud, no caso de uma fobia de algum animal, o
impulso amoroso inicial pode estar originariamente direcionado ao pai que, não tendo
condições de se ligar à representação original, acaba sendo descarregado pela primeira vez em
forma de angústia. Em um segundo momento, esse impulso se manifestaria ligado a um
contrainvestimento proveniente do sistema consciente – a apresentação do animal – que age
como um substituto da primeira ideia – o pai. Após essa segunda etapa, o processo de
repressão continua seu desenvolvimento a partir do substituto da seguinte maneira:
É esse contexto que propicia, aos olhos de Freud, a distinção de uma representação
consciente para uma inconsciente e a conclusão de que nenhuma das duas hipóteses acima
mencionadas sobre o que ocorre com as representações no processo de repressão pode ser
identificada como correta. Neste caso, como bem explica o autor
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Aqui, Freud supõe que os resíduos de memória estão “contidos em sistemas adjacentes ao sistema
Perceptivo-Consciente, de forma que os seus investimentos podem, com facilidade, prosseguir nos
elementos desse sistema a partir do interior” (FREUD, 2010b, p.18).
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Sistema perceptivo.
Neste ponto de nossa explanação já se faz possível sinalizar o que Freud compreende
por Eu e por Id. Nas palavras mesmas do autor, pode-se dizer que o Eu é “a entidade que parte
do sistema Pcp e é inicialmente pcs, e de Id [...] a outra parte da psique, na qual ela prossegue,
e que se comporta como ics” (FREUD, 2011, p.21).
A totalidade, então, do indivíduo pode ser compreendida como a união de um algo
psíquico, ou um Id, inconsciente, que apresenta, em sua superfície um Eu, desenvolvido com
base no sistema Pcp.
Percebamos neste ponto, a importância desta afirmação para a compreensão de
grande parte das críticas dirigidas a Freud, em especial aquelas que lhe conferem o título de
dualista, pois, ao dividir o sistema psíquico entre o Id e o Eu, teria inculcado, no interior da
vida do sujeito consciente, um outro sujeito, inconsciente e desconhecedor. Essa cisão,
inclusive, abre espaço para que Freud seja compreendido como um determinista, ao propor
que as ações do Eu sejam influenciadas por impulsos e ideias inconscientes.
É importante ainda ressaltar que esse texto, escrito em 1922, embora considerado por
Freud como um trabalho de cunho mais psicanalítico do que biológico, ao compará-lo com o
conteúdo de seu estudo anterior “Além do princípio do prazer” (1920), o autor não deixa de
mencionar a importância e influência da biologia e das questões filogenéticas para a
compreensão da dinâmica do psiquismo, sobretudo no que se refere ao fenômeno do
Complexo de Édipo, que ele descreve ao embasar a formação do Ideal de Eu.
Retornando à tentativa de compreensão do Id, podemos descrevê-lo como
comportando não apenas os aspectos reprimidos a partir do Eu, mas de forma mais
abrangente, o conjunto dos impulsos eróticos e de satisfação das necessidades unidos aos
impulsos de morte. Pode-se afirmar ainda que o Id é irrestritamente regido pelo princípio do
prazer.
O Eu é formado a partir do Id, configura-se como uma parte deste, modificada a
partir das influências do mundo externo sob mediação do sistema Pcp-Cs9. Uma das funções
principais do Eu é a tentativa de assegurar o ajustamento entre os impulsos voltados à
obtenção irrestrita de prazer, oriundos do Id, com os limites impostos pelo mundo exterior, ou
seja, o Eu atua como um regulador do Id, confrontando-o com o princípio da realidade.
Vejamos a tentativa de Freud ao exemplificar essa relação entre o Eu e o Id:
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“O Eu representa o que se pode chamar de razão e circunspecção, em oposição ao Id, que contém as
paixões” (FREUD, 2011, p.23).
A importância funcional do Eu se expressa no fato de que
normalmente lhe é dado o controle dos acessos à motilidade. Assim,
em relação ao Id ele se compara ao cavaleiro que deve por freios à
força superior do cavalo, com a diferença de que o cavaleiro tenta
fazê-lo com suas próprias forças, e o Eu, com forças emprestadas. Este
símile pode ser levado um pouco adiante. Assim como o cavaleiro, a
fim de não se separar do cavalo, muitas vezes tem de conduzi-lo
aonde ele quer ir, também o Eu costuma transformar em ato a vontade
do Id, como se ela fosse a sua própria (FREUD, 2011, p.23).
REFERÊNCIAS
_____. (1923). O Eu e o Id. In: _____. O eu e o id, “autobiografia” e outros textos. Trad.
Paulo César Lima de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 16-25.