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Conta-se que, numa ilha longínqua, vivia um povo singular que tinha por

elegante coxear e gaguejar. Certo dia apareceu nessa ilha um homem de


outras terras onde não reinavam esses costumes, andando normalmente com
as duas pernas. Enorme foi a gargalhada com que os ilhéus receberam esse
"homem anormal". E, quando ele quis explicar a esses "homens normais" que o
modo de andar dele era natural e o coxear deles é que era desnatural, foi pior a
vaia, porque, além de não saber coxear, nem sabia gaguejar... E o "homem
anormal" deu-se pressa em abandonar a ilha dos "homens normais", porque
tinha amor à sua vida...
Quem é, nesta pequenina ilha cósmica do nosso planeta, homem normal:
aquele que considera o mundo material como fenômeno principal ou único —
ou aquele que admite como suprema realidade um mundo espiritual?

Conclusão: é necessário crer, mesmo que, humanamente, não se possa


ter plena certeza das realidades invisíveis de que fala a fé. Vale a pena arriscar
o finito pelo Infinito. O intelecto, (que Pascal chama razão) só atinge o finito,
mas o coração adivinha o Infinito. E as razões do coração que a razão ignora
não são menos razoáveis que as que a razão conhece. E, ainda que fossem
irracionais ou suprarracionais, nem por isto devia o homem deixar de se guiar
por essas razões do coração, porquanto a razão (o intelecto) não é a suprema
instância nesse eterno litígio em torno dos problemas centrais da vida humana.

(1) Dizemos "arrisca" porque Pascal não concebe o monstruoso paradoxo


do homem que crê na vida eterna e vive como se vida eterna não
houvesse. Pascal é de uma sinceridade absoluta consigo mesmo, de uma
lógica retilínea que não pactua com a política curvilínea de certos cristãos
penumbristas e acomodatícios. "Ou se é cristão — ou se é pagão", diz
ele. Não se pode ser semicristão e semipagão. Ou crer e viver a sua fé —
ou então não crer! Esse totalitarismo espiritual o levou ao tremendo
conflito com os "casuístas" contra os quais escreveu as suas "Lettres
Provinciales".

Mas, por que é bom decidir-se pela luz, e mau decidir-se pelas trevas?
Por que o crer é bom, e o descrer é mau?
É porque o crer subordina a parte ao todo - e o descrer sacrifica o todo pela
parte. É esta a razão ontológica da crença e descrença. Sendo o crer mais do
coração que da inteligência, é algo de panorâmico, total, compreensivo — ao
passo que o descrer, inspirado pela inteligência, é algo de parcial, estreito,
unilateral. Sacrificar o todo pela parte é desordem e insinceridade - subordinar
as partes ao todo é ordem e retitude. Por isto mesmo, os frutos naturais do crer
são harmonia, justiça, bondade, caridade, paz felicidade - ao passo que os
filhos do descrer são geralmente, injustiça, violência, crueldade, exploração,
desassossego.

Já era conhecida nesse tempo a grande obra teológica de Cornélio Jansênio


intitulada "Augustinus", obra que, após a morte do autor, encontrou no abade
de Saint-Cyran um dinâmico divulgador e apóstolo.
Em 1636 fora o dito abade nomeado diretor espiritual do convento das monjas
cistercienses em Port-Royal, nos arrabaldes de Paris. Quem diria que entre os
silenciosos muros desse mosteiro encontrassem as ideias do fundador do
Jansenismo tão poderoso eco que repercutissem pelo mundo inteiro,
mantendo, por muito tempo, em suspensão o catolicismo da França'? Não
caísse a mensagem rigorista do bispo de Ypres no meio de uma França
profundamente anarquizada e espiritualmente depauperada, talvez que não
despertasse tão vasta ressonância em milhares de almas sinceramente cristãs
que não se conformavam com o laxismo reinante, suspirando por uma
espiritualidade mais profunda e uma regeneração moral dentro do seio da
Igreja.
Não tardou que, a certa distância do mosteiro cisterciense, se
organizassem diversas ermidas de homens atraídos por esse poderoso foco
de espiritualidade cristã, bebendo avidamente, dos lábios de Saint-Cyran, as
grandes ideias de Jansênio.

O poderoso cardeal Richelieu, que era tudo, menos o que devia ser, um
verdadeiro ministro de Deus, não via com bons olhos esse movimento e o
insistente brado de cristianização que de Port-Royal reboava pela sociedade
profana do seu tempo. Quem, mais que outro qualquer, necessitava de uma
reforma era o hábil Ministro de Estado, que do seu munus sacerdotal tinha
apenas a veste talar. No intuito de fazer calar a Saint-Cyran, ofereceu-lhe
sucessivamente de cinco Bispados, iscas que o abade recusou
sucessivamente com toda a firmeza e polidez, continuando a clamar pela
reforma dos costumes dentro do catolicismo e do clero.

Em 1638 acabou a paciência de Richelieu, e, a exemplo de seu patrono


Herodes, mandou lançar ao cárcere o importuno pregador da moralidade
pública, e ordenou às monjas e aos eremitas de Port-Royal que abandonassem
Paris. Saint-Cyran, porém, mesmo na prisão, continuou o seu apostolado por
meio de uma vasta correspondência com grande número de pessoas
desejosas de espiritualidade cristã. Os seus discípulos, por seu turno, foram
estabelecer-se fora da capital, no velho convento de Chevreuse, que, daí por
diante, passou a chamar-se "Port-Royal dês Champs".

Dia a dia, crescia o número dos eremitas. Entre eles apareceu também o
célebre Antoine Arnauld, lente da Universidade de Paris e um dos grandes
defensores das ideias de Jansênio. Arnauld, tomando por base o "Augustinus",
fez como que cristalizar em alguns pontos nitidamente definidos o objetivo do
movimento, que, em resumo, consistia num retorno ao fervor religioso dos
tempos apostólicos, à simplicidade da vida pobre e à concretização do
Evangelho na vida quotidiana. Tudo isto queriam Jansênio e seus discípulos
realizar de acordo com a hierarquia e as tradições da Igreja Católica; não
pretendiam de forma alguma fundar uma seita, mas trabalhar por uma reforma
religiosa e moral da vida católica e do clero. Eles mesmos, os Jansenistas,
davam, por meio de uma vida de grande austeridade e prolongadas
meditações, exemplo vivo do que ensinavam.
O que, antes de tudo, horrorizava aos severos ascetas de Port-Royal era o
laxismo da teologia moral da época patrocinado pelos famigerados "casuístas".
Sendo que os mais célebres desses "casuístas" eram sacerdotes da
Companhia de Jesus, dirigiu-se o centro da ofensiva jansenista contra a Ordem
dos Jesus.
Na opinião de Saint-Cyran, Arnauld e seus correligionários, era essa
"casuística" um corrosivo traiçoeiro que ia destruindo insensivelmente, na
alma do povo católico, a ética do Evangelho, acabando, assim, por adulterar o
próprio espírito do Cristianismo. Até que ponto tinham eles razão, poderá o
leitor depreendê-lo dos tópicos que, mais abaixo reproduziremos, tirados de
alguns desses livros impugnados.
Tivessem os Jansenistas limitado o seu zelo reformador a esse terreno
propriamente moral, talvez que prestassem ao Cristianismo maior serviço do
que prestaram. Lançaram-se, porém, a um terreno dogmático semeado de
princípios. Quiseram perscrutar o modo como a graça de Deus se compadece
com a liberdade humana. Davam à operação da graça divina tanta margem
que, na opinião de seus adversários, punham em risco o livre-arbítrio do
homem. Mais amigos da linha mística Platão-Agostinho do que da linha
intelectual Aristóteles-Tomaz d'Aquino, faziam de todo homem um
"predestinado", ou então um "condenado", por conta da graça divina, sem
papel decisivo da parte da liberdade humana.
Ingente polêmica travou-se em torno dessa questão, que, no fundo, será
sempre insondável mistério. É certo que graça divina é compatível com a
liberdade humana; mas nunca teólogo algum desvendará o íntimo como dessa
harmonia entre dois fatores aparentemente antagônicos.

Depois dessa grande iluminação interior, de que o "Memorial" não é senão


pálido reflexo, dirigiu-se Pascal para Port-Royal, onde se associou aos
eremitas lá estabelecidos, sob a direção do Mestre de Sacy, filho de uma irmã
do célebre Jansenista Arnauld. "Fugi do mundo — escreve ele — e espero que
o mundo fugirá de mim." E, de fato, o mundo o abandonou — para depois
correr atrás dele por todos os séculos. Pois, é este, como dizíamos, o mistério
de todas as coisas creadas: quando as procuramos, fogem de nós; mas,
quando as abandonamos por amor de Deus, correm ao nosso encalço e
prendem-se a nós, como se estivessem convencidas de que um homem
desprendido das creaturas pode conduzir a Deus todas as coisas. A natureza
só tem confiança num homem que dela não se enamora, guardando absoluta
liberdade de espírito e de coração, para se elevar a. Deus — e elevar a Deus a
natureza.
Começou com isto o período da grande introspecção de Pascal, a sua
cristalização interior, que, mais tarde, deixou incomparáveis vestígios nos
fragmentos da sua planejada apologia do Cristianismo, a que os editores
deram o nome de "Pensées". Nesse livro aparecem muitas vezes alusões a
Epicteto e Montaigne, ou mais exatamente, às ideologias características que
esses filósofos, um grego o outro francês, personificavam: enquanto o estóico
frisa a grandeza do homem, o epicureu faz ver a miséria do ser humano. Entre
os dois está o Cristianismo, que não super-humaniza nem infra-humaniza o
homem, mas soluciona esse enigma ambulante, esse animal-anjo, esse
satânico serafim ou seráfico satã, invocando o dualismo interno do homem
introduzido pelo despertar do Lúcifer do intelecto e solvido pelo advento do
Logos ou Cristo.

Equidistante do materialismo animal e do intelectualismo luciferino, conquistou


Pascal, nesses anos de solidão dinâmica, uma espiritualidade panorâmica e
integral das supremas realidades. Viveu ele o Cristo vivo, o Rei imortal dos
séculos. O Cristo de Pascal não é o "Senhor morto" de tantos cristãos dos
nossos dias - é um Cristo vivo, sempre vivo, aquele Cristo que está conosco
todos os dias até a consumação dos séculos.
Com os olhos nesse Cristo de todos os séculos é que Pascal escreveu os seus
"Pensées". "É um prazer, diz ele, achar-se alguém a bordo de um navio agitado
pela tempestade, quando sabe que o barco não pode naufragar. As
perseguições de que a Igreja é alvo oferecem esta satisfação."

Escreveu Keyserling que os grandes homens da história não são grandes pelos
problemas que solveram nem pelos pensamentos que definiram, mas, sim,
pelas direções cósmicas que deram, pelas vastas perspectivas que rasgaram a
humanidade de todos os tempos.

E siga cada qual a esplêndida máxima de Agostinho: “In dubüs libertas, in


necessariis unitas - in omnibus charitas”- “Haja nas coisas duvidosas liberdade,
nas necessárias, unidade — e em todas, caridade!"

No tempo de que nos ocupamos, arvoraram-se os Jansenistas em estrênuos


advogados da graça, ao passo que os Jesuítas defendiam valentemente a
liberdade. E, como sói acontecer em toda polêmica, cada um exagera a
questão a seu favor, a tal ponto que, no fim, parecem inconciliáveis duas coisas
que podiam andar de mãos dadas.

Os Jansenistas - que poderíamos chamar os "calvinistas católicos" —


eram adeptos de uma moral cristã austera, pregando a fuga completa do
mundo, dando a toda a vida cristã um colorido lúgubre de renúncia, penitência,
abnegação. E não paravam em simples palavras e bons conselhos para os
outros; eles mesmos davam com a pureza e austeridade da sua vida exemplo
concreto da possibilidade de sua doutrina. Mère Angélique; a abadessa do
mosteiro de Port-Royal, conseguira restabelecer entre as monjas cistercienses
o antigo rigor do espírito do grande místico Bernardo de Clairvaux. E os
eremitas que viviam a certa distância do convento, levavam a mesma vida de
oração e austeridade. Neste ponto mostraram-se os Jansenistas
irrepreensíveis, nem jamais pessoa alguma sincera os acusou de não levarem
a sério a moral cristã. O ponto de controvérsia era a concepção da doutrina
sobre a graça e a predestinação.
Os Jesuítas, por outro lado, não simpatizavam com essa espécie de
Cristianismo, que mais parecia a religião de um João Batista no deserto da
Judeia, do que o Evangelho de Jesus Cristo a andar no meio de homens e
igualando-se aos outros homens em tudo que não fosse pecado. Achavam
eles que o Cristianismo não era apenas para um grupo de homens piedosos
segregados do mundo, mas para toda e qualquer pessoa da sociedade que
quisesse seguir a Cristo. E, na intenção paulina de "ganhar a todos para
Cristo", reduziam ao mínimo as exigências da moral cristã, porque só assim
lhes parecia possível a cristianização do mundo, pela qual trabalhavam
incessantemente. Não queriam criar mosteiros cheios de ascetas, mas, sim,
um mundo cheio de cristãos. Por mais que Pascal e outros tenham dito contra
os filhos espirituais de Inácio de Loiola, ninguém, de reta consciência, negará
que eles, tomados em conjunto (não há regra sem exceção!), estivessem
animados das melhores intenções, embora, como veremos mais abaixo, muito
dos seus membros tenham espalhado doutrinas que uma consciência
intensamente cristã, como a de Pascal, não podia considerar como reflexo do
espírito de Jesus Cristo.

Do louvável intuito dos Jesuítas, e outros, de levar todo o mundo aos pés do
Cristo e facilitar-lhe o mais possível o Cristianismo, nasceu uma teologia moral
que veio tornar-se tristemente célebre sob o nome de "casuística". Os livros de
casuística, escritos geralmente em latim, procuravam dar aos confessores e
diretores espirituais normas pelas quais pudessem conduzir os seus penitentes
e as almas a eles confiadas. Infinitamente várias são as condições e
circunstâncias da vida humana; sem conta as cores e cambiantes dos pecados
que os homens cometem. E, para cada situação moral, tem o confessor ou
diretor de almas de ter uma norma que salvaguarde os princípios eternos da
moral cristã, por um lado, e, por outro, respeite a liberdade do penitente e não o
repila da igreja. Navegar entre tantos escolhos sem naufragar, não é fácil tarefa
para o piloto espiritual... Nada mais difícil do que estabelecer normas éticas.
Cravam-se as balizas ou muito para a direita, ou muito para a esquerda,
provocando colisão com uma de duas coisas que devem ser, ambas,
intangíveis...
Os Jansenistas eram, neste particular, simplesmente "direitistas", exigindo
dos cristãos os mais pesados sacrifícios — ao passo que os Jesuítas, muitos
deles, praticavam um "esquerdismo" tão largo e liberal que, segundo a opinião
dos adversários, destruíam o próprio Cristianismo. Em vez de converter os
pecadores, negavam os próprios pecados, tendência essa que pôs nos lábios
de um dos amigos de Pascal esta observação sarcástica: "Eis aí os homens
que tiram os pecados do mundo!" Estas palavras incisivas, parafraseando
conhecido texto evangélico, reproduzem bem a mentalidade de Pascal, embora
não sejam da sua descoberta.
Foi assim que dois partidos católicos, ambos, certamente, com as melhores
intenções, se digladiavam reciprocamente e se cobriam de injúrias nada
cristãs.

Para que o leitor não formado em teologia compreenda essa traficância


sagrada, patrocinada por Escobar e seus 24 insignes doutores, convém saber
que, segundo a doutrina católica romana, há na celebração da Missa um mérito
chamado ex opere operato, e outro denominado ex opere operantis. O
primeiro, dizem os moralistas, cabe sempre, integralmente, ao dono da Missa
(para usar de linguagem pitoresca e intuitiva do nosso povo), àquele que a
encomendou e pagou; este valor é considerado como algo inteiriço e
indivisível, razão por que deve ser cedido inteiramente a quem adquiriu direito
sobre a Missa mediante pagamento. Do outro valor, porém, pode o celebrante
dispor livremente, pode ficar com ele e pode também cedê-lo a outrem,
gratuitamente, ou contra pagamento, isto é, pode vender esse quinhão sagrado
que lhe toca. Para ilustrar e concretizar a idéia de Escobar e seus exímios
moralistas, diríamos que eles consideram a Missa como constante de duas
partes distintas: uma espécie de medula ou caroço (ex opere operato), e uma
espécie de polpa ou casca (ex opere operantis). O caroço é sempre indivisível,
ao passo que a casca pode ser dividida à vontade, e podem os seus
fragmentos ser vendidos a fregueses diversos. Se lá em cima, no reino de
Deus, é ratificada semelhante diplomacia comercial — isto é outra questão! Em
todo o caso, cá embaixo ela é válida — e é o que interessa aos ditos
moralistas.
Pascal, como fervoroso católico, desencadeou sobre essa caricatura de
catolicismo as vagas salgadas da mais tremenda sátira do seu grande Espírito.

Por outro lado, queremos também mostrar que a atitude de Pascal não nasceu
de nenhum espírito de insubmissão ou revolta, mas, sim, da pureza e da
sacralidade do seu Cristianismo. Como católico, foi Pascal de uma conduta
exemplar e de grande fervor religioso, amigo da pobreza, da penitência, da
caridade, da oração. E foi precisamente essa sua acendrada Catolicidade
cristã que o lançou a tão tremendo conflito com numerosos representantes do
Catolicismo romano.

Pascal sofreu cruel perseguição por causa da sua atitude desassombrada, mas
nunca revogou o que dissera nem modificou sua tempera espiritual. Muitas
vezes se repetiu, através da história, essa tragédia espiritual dos grandes
gênios religiosos da humanidade, postos em face do doloroso dilema: ou
serem infiéis à própria consciência — ou incompatibilizar-se com a
religiosidade da época!

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