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Resenha Do Livro - Pascal
Resenha Do Livro - Pascal
Mas, por que é bom decidir-se pela luz, e mau decidir-se pelas trevas?
Por que o crer é bom, e o descrer é mau?
É porque o crer subordina a parte ao todo - e o descrer sacrifica o todo pela
parte. É esta a razão ontológica da crença e descrença. Sendo o crer mais do
coração que da inteligência, é algo de panorâmico, total, compreensivo — ao
passo que o descrer, inspirado pela inteligência, é algo de parcial, estreito,
unilateral. Sacrificar o todo pela parte é desordem e insinceridade - subordinar
as partes ao todo é ordem e retitude. Por isto mesmo, os frutos naturais do crer
são harmonia, justiça, bondade, caridade, paz felicidade - ao passo que os
filhos do descrer são geralmente, injustiça, violência, crueldade, exploração,
desassossego.
O poderoso cardeal Richelieu, que era tudo, menos o que devia ser, um
verdadeiro ministro de Deus, não via com bons olhos esse movimento e o
insistente brado de cristianização que de Port-Royal reboava pela sociedade
profana do seu tempo. Quem, mais que outro qualquer, necessitava de uma
reforma era o hábil Ministro de Estado, que do seu munus sacerdotal tinha
apenas a veste talar. No intuito de fazer calar a Saint-Cyran, ofereceu-lhe
sucessivamente de cinco Bispados, iscas que o abade recusou
sucessivamente com toda a firmeza e polidez, continuando a clamar pela
reforma dos costumes dentro do catolicismo e do clero.
Dia a dia, crescia o número dos eremitas. Entre eles apareceu também o
célebre Antoine Arnauld, lente da Universidade de Paris e um dos grandes
defensores das ideias de Jansênio. Arnauld, tomando por base o "Augustinus",
fez como que cristalizar em alguns pontos nitidamente definidos o objetivo do
movimento, que, em resumo, consistia num retorno ao fervor religioso dos
tempos apostólicos, à simplicidade da vida pobre e à concretização do
Evangelho na vida quotidiana. Tudo isto queriam Jansênio e seus discípulos
realizar de acordo com a hierarquia e as tradições da Igreja Católica; não
pretendiam de forma alguma fundar uma seita, mas trabalhar por uma reforma
religiosa e moral da vida católica e do clero. Eles mesmos, os Jansenistas,
davam, por meio de uma vida de grande austeridade e prolongadas
meditações, exemplo vivo do que ensinavam.
O que, antes de tudo, horrorizava aos severos ascetas de Port-Royal era o
laxismo da teologia moral da época patrocinado pelos famigerados "casuístas".
Sendo que os mais célebres desses "casuístas" eram sacerdotes da
Companhia de Jesus, dirigiu-se o centro da ofensiva jansenista contra a Ordem
dos Jesus.
Na opinião de Saint-Cyran, Arnauld e seus correligionários, era essa
"casuística" um corrosivo traiçoeiro que ia destruindo insensivelmente, na
alma do povo católico, a ética do Evangelho, acabando, assim, por adulterar o
próprio espírito do Cristianismo. Até que ponto tinham eles razão, poderá o
leitor depreendê-lo dos tópicos que, mais abaixo reproduziremos, tirados de
alguns desses livros impugnados.
Tivessem os Jansenistas limitado o seu zelo reformador a esse terreno
propriamente moral, talvez que prestassem ao Cristianismo maior serviço do
que prestaram. Lançaram-se, porém, a um terreno dogmático semeado de
princípios. Quiseram perscrutar o modo como a graça de Deus se compadece
com a liberdade humana. Davam à operação da graça divina tanta margem
que, na opinião de seus adversários, punham em risco o livre-arbítrio do
homem. Mais amigos da linha mística Platão-Agostinho do que da linha
intelectual Aristóteles-Tomaz d'Aquino, faziam de todo homem um
"predestinado", ou então um "condenado", por conta da graça divina, sem
papel decisivo da parte da liberdade humana.
Ingente polêmica travou-se em torno dessa questão, que, no fundo, será
sempre insondável mistério. É certo que graça divina é compatível com a
liberdade humana; mas nunca teólogo algum desvendará o íntimo como dessa
harmonia entre dois fatores aparentemente antagônicos.
Escreveu Keyserling que os grandes homens da história não são grandes pelos
problemas que solveram nem pelos pensamentos que definiram, mas, sim,
pelas direções cósmicas que deram, pelas vastas perspectivas que rasgaram a
humanidade de todos os tempos.
Do louvável intuito dos Jesuítas, e outros, de levar todo o mundo aos pés do
Cristo e facilitar-lhe o mais possível o Cristianismo, nasceu uma teologia moral
que veio tornar-se tristemente célebre sob o nome de "casuística". Os livros de
casuística, escritos geralmente em latim, procuravam dar aos confessores e
diretores espirituais normas pelas quais pudessem conduzir os seus penitentes
e as almas a eles confiadas. Infinitamente várias são as condições e
circunstâncias da vida humana; sem conta as cores e cambiantes dos pecados
que os homens cometem. E, para cada situação moral, tem o confessor ou
diretor de almas de ter uma norma que salvaguarde os princípios eternos da
moral cristã, por um lado, e, por outro, respeite a liberdade do penitente e não o
repila da igreja. Navegar entre tantos escolhos sem naufragar, não é fácil tarefa
para o piloto espiritual... Nada mais difícil do que estabelecer normas éticas.
Cravam-se as balizas ou muito para a direita, ou muito para a esquerda,
provocando colisão com uma de duas coisas que devem ser, ambas,
intangíveis...
Os Jansenistas eram, neste particular, simplesmente "direitistas", exigindo
dos cristãos os mais pesados sacrifícios — ao passo que os Jesuítas, muitos
deles, praticavam um "esquerdismo" tão largo e liberal que, segundo a opinião
dos adversários, destruíam o próprio Cristianismo. Em vez de converter os
pecadores, negavam os próprios pecados, tendência essa que pôs nos lábios
de um dos amigos de Pascal esta observação sarcástica: "Eis aí os homens
que tiram os pecados do mundo!" Estas palavras incisivas, parafraseando
conhecido texto evangélico, reproduzem bem a mentalidade de Pascal, embora
não sejam da sua descoberta.
Foi assim que dois partidos católicos, ambos, certamente, com as melhores
intenções, se digladiavam reciprocamente e se cobriam de injúrias nada
cristãs.
Por outro lado, queremos também mostrar que a atitude de Pascal não nasceu
de nenhum espírito de insubmissão ou revolta, mas, sim, da pureza e da
sacralidade do seu Cristianismo. Como católico, foi Pascal de uma conduta
exemplar e de grande fervor religioso, amigo da pobreza, da penitência, da
caridade, da oração. E foi precisamente essa sua acendrada Catolicidade
cristã que o lançou a tão tremendo conflito com numerosos representantes do
Catolicismo romano.
Pascal sofreu cruel perseguição por causa da sua atitude desassombrada, mas
nunca revogou o que dissera nem modificou sua tempera espiritual. Muitas
vezes se repetiu, através da história, essa tragédia espiritual dos grandes
gênios religiosos da humanidade, postos em face do doloroso dilema: ou
serem infiéis à própria consciência — ou incompatibilizar-se com a
religiosidade da época!