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Educar, Uma Profissão Impossível PDF
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ENCONTRO
Vemos atualmente se desenhar
u m a corrente q u e considera a criança
c o m o u m a minoria e q u e tenta diante
desse escândalo outorgar-lhe direitos.
Na corrente de n o s s o século X X , c o m -
preendemos c o m o uma criança se tor-
n a vítima d e v i o l ê n c i a , d e a b u s o , d e
maus-tratos, de exploração, apesar dos
discursos gerais que se s u c e d e m
(Gavarini & Petitot, 1998). Estes a b u -
sos repetidos, n o lugar e m q u e deverí-
a m o s estar obrigados diante deles, lá
o n d e reside n o s s a r e s p o n s a b i l i d a d e
fundamental, são denunciados, e é m e -
lhor assim. Procura-se proteger a cri-
ança das conseqüências às vezes noci-
vas d e sua d e p e n d ê n c i a . Mas, e m s e
fazendo isso - e este é o d e b a t e atual
a c e r c a dos direitos da criança - ,
e s t a m o s lhe d a n d o direitos, instituin-
do-a c o m o r e s p o n s á v e l e a u t ô n o m a
antes da hora, e q u e b r a n d o sua legíti-
m a d e p e n d ê n c i a ( E l i a c h e f f , 1996).
Estamos, p o r causa d o abuso, p o n d o
e m p e r i g o u m a d e p e n d ê n c i a funda-
mental, a de u m h u m a n o e m relação a
outro h u m a n o , e e s t a m o s instalando
relações nas quais o intersubjetivo re-
sume-se n o afrontamento de u m direi- Muitas críticas s o b r e o t r a b a l h o
to contra u m outro. Pode-se imaginar dos psicólogos mostram que a
que, se essa tendência prossegue, as cri- vitimização d o s indivíduos é u m a ar-
anças logo serão clientes q u e será pre- madilha, rentável para esses profissio-
ciso servir, q u e poderão nos denunciar nais. O h u m a n o n ã o se reduz a seu es-
se n ã o gostarem d e alguma coisa, q u e tado de vítima, afirma, c o m veemência,
usarão o s adultos c o m o objetos e p o - Alain B a d i o u (1993), q u a n d o fala d o
d e r ã o j o g á - l o s fora s e n ã o s e r v i r e m mal e da ética. Designar a l g u é m p e l o
mais. D e fato, teríamos somente inver- seu trauma v e m novamente impedir de
tido a c e n a ; s e r ã o as c r i a n ç a s q u e s e integrá-lo numa evolução e o impele a
tornarão tirânicas, suficientes, cruéis, fundar sua identidade sobre ele. O dis-
destruidoras, c o m aqueles q u e se apro- curso psicológico n ã o é s e m ressonân-
ximarem, e isso c o m a força de estarem cia s o b r e o social e s o b r e a e v o l u ç ã o
confortáveis e m seus direitos. d o sujeito, n o seu desejo de u m a segu-
T o d a inversão é nociva. É n e c e s - rança a qualquer preço, na sua queixa
sário q u e o s adultos, tanto pais c o m o contínua e m face d o sofrimento encon-
professores, a s s u m a m suas responsa- trado na vida. C o m o dizer a identidade
bilidades e suas obrigações, e n ã o uti- s e m bloqueá-la? C o m o trabalhar para
lizem a fraqueza da criança d e manei- d e s c e n t r a r o sujeito d o l o r o s o d e si
ra ruim. Mas seria dramático s e o p o - mesmo?
der d a d o às crianças s o b r e o s adultos A clínica daqueles q u e sofreram o
levasse a isso. Entre estas duas cultu- mal é o terreno dos terapeutas. A repa-
ras, iríamos na direção d e u m c o m b a - ração lhes c o m p e t e . O trabalho de clí-
te, u m face-a-face de violência. C o m o n i c o se m a n t é m na b o r d a deste enig-
respeitar a d e p e n d ê n c i a , mobilizar a ma: c o m o este acontecimento - o mal
responsabilidade d o adulto e trabalhar sofrido - p o d e n ã o s e repetir, c o m o
s o b r e o s abusos? Tal é a perspectiva, esse sofrimento p o d e n ã o s e incrustar,
o u seja, a o m e s m o t e m p o permitir à c o m o a vida p o d e integrá-lo, o n d e es-
criança q u e sua palavra seja escutada, tão as fontes, as forças d e vida d e uma
m a s q u e e l a n ã o seja m a i s p o d e r o s a pessoa, c o m o d e vítima ela p o d e n ã o
q u e a dos outros. se tornar carrasco? É nosso papel, uma
vez o mal feito, mas este trabalho é de
prevenção, pois trabalhamos para q u e
CONFRONTADAS
o sofrimento n ã o recaia sobre outros,
AO MAL q u e a vítima n ã o engendre outras víti-
Podemos retornar a nossa posição mas. Às vezes, n o entanto, vemos essas
de profissionais, u m a vez q u e aqueles profissões denunciar o mal e p o r sua
q u e estão sofrendo c o m aquilo q u e o s ação repetir o mal sofrido, usar o outro
fez sofrer v ê m tentar integrar nas suas mais uma vez para seu narcisismo e seu
vidas o q u e foi insuportável. Muitas b o m direito. Assim a c o n t e c e às v e z e s
questões se p õ e m . C o m o ajudar a víti- c o m o m a u trato sexual, e c o m a m a -
m a a n ã o s e identificar c o m seu trau- neira c o m q u e certos psicólogos e as-
ma, c o m o , e n q u a n t o profissional, n ã o sistentes s o c i a i s f a z e m u s o disso n o
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repetir o trauma já sofrido? Nossa s o - debate social e na caça a o monstro .
ciedade deu legitimamente existência A partir d e s s a clínica da vítima,
àqueles q u e sofreram o mal. Mas podem-se tomar posições sociais, q u e
t r a n s f o r m á - l o s e m vítimas p o d e s e c o r r e m o risco d e desvios. S o m o s as
mostrar nocivo. testemunhas d o sofrimento de u m des-
tino q u e b r a d o pela violência, d o into- m o s convidados a fazer u m a reflexão
lerável de uma violência atualizada so- sobre a ética de nossos gestos, e a ser-
b r e u m a criança, u m a m u l h e r o u u m m o s atentos aos q u e estão e m extrema
h o m e m , da paixão destruidora de u m fragilidade social.
casal, da a g r e s s ã o s e l v a g e m d e u m a
pessoa velha, e podemos medir as con-
seqüências enquanto clínicos. Podería- RESPEITO INIBIDOR
mos optar por uma posição extrema que Nas nossas profissões, c h e g a m o s
consistiria e m sustentar q u e nossa pro- a u m tal respeito pelo outro, que n ã o se
fissão intervém uma vez o mal feito, que ousa mais quase n e m tocá-lo. "Respei-
n ã o s o m o s responsáveis pela socieda- t e - m e " transforma-se e m " a c e i t e - m e
de, pelos erros humanos e pelas condi- c o m o e u sou", " n ã o m e p e ç a nada",
ç õ e s q u e causam o mal. Nossa profis- " n ã o m e empurre", " d e i x e - m e o n d e
s ã o é ligada a o mal, e nossa existência estou c o m aqueles q u e se parecem c o -
social também. Poderíamos ficar nisso, migo", " a m e - m e , m a s c o m o e u sou".
esperando até m e s m o que o mal não se "Você m e deve respeito" p a r e c e final-
atenue, pois isto nos lançaria na impos- m e n t e significar: "Eu sou suficiente, e
sibilidade de exercer. m e u e n c o n t r o c o m v o c ê n ã o mudará
O discurso é clínico, n ã o podemos nada d o q u e eu sou". Se lhe d e v e m o s
mantê-lo. E m n o m e das vítimas, n o s respeito, p o d e m o s então exigir dele al-
associamos aos movimentos q u e que- g u m a coisa, impor-lhe o q u e e l e n ã o
rem que o mal cesse, que a violência se quer à primeira vista? Se sentimos c o m o
a t e n u e , q u e o outro s e t o r n e m e n o s violência tudo aquilo q u e n ã o entra n o
ameaçador. Saímos d e nossa reserva. n o s s o m u n d o , e vice-versa, e n t ã o é o
Saberemos, n o entanto, c o m p r e e n d e r fim d o encontro. Mas n o fundo o q u e
q u e nossa p o s i ç ã o n ã o p o d e resolver permite crescer, aprender? É o fato d e
sozinha o problema da violência, e que ser empurrado, de^ncaminhado, puxa-
nós contribuímos, c o m o outras profis- d o para fora de si mesmo, ser seduzido
sões, indiretamente, para fabricar a des- p e l o q u e n ã o s e é? Ora, u m r e s p e i t o
confiança? Eu subscrevo a p o s i ç ã o d e t o m a d o a o p é d a letra n o s interdita
Antoine Garapon e Denis Salas (1996), empurrar este outro, d e q u e r e r outra
q u e sustentam q u e o problema d o mal coisa dele; tem-se e m conta seu "eu não
n ã o se revolve unicamente c o m o dis- quero" emitido primeiramente porque
curso psicológico. Enquanto profissio- ele tem medo, pois o esforço demanda
nais, t e m o s d e n o s i n t e r r o g a r s o b r e a saída de sua tranqüilidade. Desta for-
nossa participação nessa vitimização e ma, os gestos d o encontro, os disposi-
n o fato d e que, cada vez mais, n o s to- tivos p r o p o s t o s p o d e m s e r s e n t i d o s
m a m o s a n ó s m e s m o s c o m o vítimas c o m o violência.
detentoras de direitos. A vida é u m ris- O q u e é u m encontro? Ele a c o n -
co, feita de encontros b o n s e ruins, d e tece entre dois seres, s e m poder ser pro-
sofrimento, n o qual devemos e m segui- gramado. Ele transforma, c o m o n u m
da encontrar forças e fontes para q u e verdadeiro diálogo q u e n o s deixa ou-
n ã o seja tão destrutivo. Nossas profis- tros depois que nossas palavras tenham
s õ e s consistem minimamente e m n ã o sido trocadas (Gadamer, 1995). T o d o s
acrescentar destrutividade àquela ine- o s profissionais p o d e m s e r s e r e s d e
rente à vida, e m permitir q u e se tirem encontro. Muitos biógrafos relatam es-
dos inevitáveis acidentes negativos for- ses e n c o n t r o s s e m o s quais n ã o tería-
ças d e vida, e n ã o forças d e morte. S o - m o s nos tornado o q u e somos: Camus
(1994) e seu professor, por exemplo. precisa e que não é constituído de ou-
Temos uma dívida a honrar, não a dí- tra coisa senão materialidade, mas tam-
vida impagável, mas a dívida em rela- bém de imaterialidade. Certamente exis-
ção a alguns outros. Pode-se desejar a tem encontros destrutivos. Um huma-
cada um na sua vida a possibilidade de no pode ser nocivo para outro. Em
ter encontros. Os adolescentes que vol- nome dessa nocividade, poderíamos
taram de suas derivas o fizeram proteger cada um e impedir que a par-
freqüentemente porque alguém esteve tir de então os encontros tenham lu-
lá, não os deixando onde estavam, ten- gar, tomados na armadilha de um pen-
do confiança neles, empurrando-os, samento que, sempre partindo do no-
chacoalhando-os. Não é teorizável nem civo, quer extirpar o mal.
racionável. Isso pertence ao que esca-
pa, e deveria escapar a toda programa-
ção. Estamos lá e alguma coisa irrompe. CONSEQÜÊNCIAS
A presença do outro não nos deixa tran- Falando do terapeuta, Winnicott
qüilos. Ele nos disse: "Você poderá", (1988) escrevia que acontecia de ele
enquanto tudo enunciava o contrário. referenciar-se na crueldade que é for-
Esse encontro pertence ao humano; çosamente a sua própria, a fim de não
desde a noite dos tempos, faz-se a nar- atualizá-la sobre um outro. Isto retorna
rativa; amanhã ele deverá sempre po- à sua responsabilidade de profissional.
der ter lugar. Estamos postos, no en- Eu diria mesmo para toda profissão do
tanto, num enigma. Quais particulari- humano, quer se trate de curar, de ins-
dades psíquicas ou quais circunstâncias truir ou de educar. Nossa crueldade
permitem tomar tal ou qual elemento a deve ser trabalhada, tomando consci-
fim de mobilizá-lo para sua própria ência de que ela pode se atualizar tanto
vida? Se estruturas exteriores dadas são mais f a c i l m e n t e q u a n t o f o m o s
indispensáveis para que um aconteci- fragilizados, que não compreendemos
mento advenha, em seguida é preciso mais que um outro não é mais nosso
que outra coisa aconteça para que esta espelho, e nos surpreende com seus
estrutura desempenhe a função de uma atos. Só a trabalharemos se chegarmos
possível passagem. a falar do que se passa conosco, quan-
Tocamos aqui na oposição das hi- do somos tomados pelo outro, que
póteses entre determinismo socioló- nossas defesas habituais não funcionam
gico e poética humana. Enquanto pro- mais. Freqüentemente temos vergonha
fissionais, se não devemos negar a in- de nossas reações excessivas, no entan-
fluência dos determinismos psíquicos to, não podemos ser diferentes. Ter ver-
e sociais, temos também de contar com gonha é se esconder, se calar. Ora, se
a exceção que sela justamente o encon- não falamos, não podemos pensar o
tro. Importa que tenha estruturas, téc- que acontece, nem nos distanciar, nem
nicas, possibilidades, para que um hu- tomar a medida.
mano possa aí encontrar o que será Cada profissão tem sua ideologia
uma parte de sua vida. As ocasiões nos defensiva, na qual se constrói uma ma-
permitem nos enxertar e descobrir o neira de se defender do medo. O medo
que vai nos mobilizar. Um outro, de nossa fraqueza, de falar de nossas
tornamo-lo possível não respeitando dificuldades, pertence a este registro.
o que somos, nossos hábitos, nosso Isto ultrapassa um indivíduo. O medo
ensimesmamento. Isto se chama cultu- estrutura as profissões. Uma lei do si-
ra, sistema simbólico, do qual cada um lêncio atravessa-o nos lugares de sua
fragilidade, lá o n d e para alguns existe
perigo de morte e, para outros, perigo
psíquico. Não se brinca n e m c o m o
m e d o , n e m c o m os sistemas de defesa
postos e m ação; não se ridiculariza, mas
n ã o s e deixa t a m p o u c o funcionar e m
silêncio. Existem sistemas de defesa que
cumprem seu ofício, mas que
obstaculizam, p o r q u e eles mobilizam
n o s s a energia, r e d u z e m o c a m p o d e
nossa ação e de nosso pensamento.
Tanto o m e d o c o m o a angústia p o d e m
ser tratados diferentemente, c o m u m
mínimo custo psíquico, uma maior flui-
dez e inventividade. É aí q u e a palavra
e a compreensão p o d e m substituir cer-
tas defesas. Mantendo o silêncio, aca-
ba-se morrendo de solidão, e pode-se
permanecer cego quanto ao nosso pior.