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dilema crucial da edu- EDUCAR,


cação nos dias de hoje
- a violência -, proble-
matizando qual seria o
papel da escola - um
UMA PROFISSÃO
dos últimos redutos do
conviver, nesta socieda-
de marcada pelo indivi-
dualismo - na produção
IMPOSSÍVEL
da violência ou na ten-
tativa de pacificação das
relações humanas. A
- DILEMAS ATUAIS
autora destaca que a ra-
cionalidade, na qual a
educação tenta se apoiar
cada vez mais para ne-
gar-se como profissão
impossível, fracassa em Mireille Cifali
governar as almas e as
relações subjetivas, não
podendo prever inteira-
mente o destino huma-
no, entregue sempre ao
acaso e aos encontros.
Educação; violência;
escola; individualis-
m o ; racionalidade;
encontro
111 LI a e d u c a ç ã o , confrontamos inelutavelmente
c o m dilemas. Acreditamos ter resolvido u m a dificul-
TO EDUCATE, AN dade, e a solução encontrada cria efeitos n ã o previstos.
IMPOSSIBLEJOB. A violência é combatida, mas uma radical não-violên-
CONTEMPORARY
DILEMMAS cia revela-se p o r certos a s p e c t o s n o c i v a . Prega-se o
This article touches amor, mas este, às vezes, sufoca a vida. O respeito está
on a crucial problem re-
garding education no- na o r d e m d o dia, m a s ele p o d e acarretar paralisias na
wadays: violence. It relação c o m o outro. O abuso de poder de u m adulto é
questions what the role denunciado, designa-se a vítima q u e se torna a criança,
of the school- one of
the last havens of com- e s e o encerra n u m estatuto e m q u e suas forças vivas
munity life -, would be, s ã o engolidas. Muitos profissionais refletem a respei-
in a society where indi- to, q u e r e m "fazer b e m " , e n ã o a s s u m e m mais o mal
vidualism reigns - ei-
ther by producing vio- inelutável q u e decorre de alguns de seus gestos. Perse-
lence or by attempting to guimos uma certa racionalidade c o m o garantia da jus-
bring peace into people's
relations. The author re- teza d e nossos atos, esta racionalidade p o d e s e tornar
marks that rationality, loucura. E, m e s m o se c o n h e c e m o s certos males, temos
on which education tri- dificuldade e m p r e v e n i - l o s . U m t r a b a l h o d e Sísifo
es increasingly to rest as
a way of denying itself c a r a c t e r i z a e s s a s p r o f i s s õ e s " i m p o s s í v e i s " (Cifali,
as an impossible profes- Enriquez & Cornut, 1987), nas quais estamos s e m p r e
sion, fails to govern the
soul and the subjective certos, d e alguma maneira, de fracassar. Talvez deva-
relations. It cannot enti- m o s então, principalmente, aceitar q u e o s dilemas fa-
relyforecast human z e m parte de toda profissão, e é v ã o procurar coerên-
destiny which is always
vulnerable to chance cia e não-contradição.
and encounters.
Education, violence,
(shcool) (school); in- • a
ProP dr da Faculdade de Psicologia e Ciências da
dividualism; rationa-
lity; encounter Educação da Universidade de Genebra - Suiça.
• • T r a d u ç ã o : Renata Petri
NO LIMITE DA VIOLÊNCIA
Nos dias de hoje, ganhamos nossa individualidade (Taylor,
1994), sentimo-nos ser sujeitos c o m direitos e, sobretudo, te-
m o s a n e c e s s i d a d e d e forjar n o s s a própria vida. E e n t ã o v e -
m o s despontar u m problema crucial, c o m o conseqüência des-
sas individualidades às vezes tão imbuídas d e si mesmas: viver
c o m o outro, n o s s o v i z i n h o . S e e s t e individualismo v e m s e
acentuar, o laço entre o s indivíduos corre o risco d e se atenuar
mais ainda; as relações d e proximidade perderão seu brilho, e
os direitos d e cada u m serão regulados p e l o jurídico. Esta ten-
dência tem certamente seus benefícios: cada u m será livre para
viver p o r si, p o d e s e esperar m e n o s confrontações c o m o ou-
tro, m e n o s conflitos. E v i t a r e m o s assim talvez as t e n s õ e s d o
conviver individualizando-nos cada vez mais, protegendo cada
u m de nós, m a s perderemos a riqueza de nossa relação c o m o
outro, u m a vez q u e até aqui n ã o h o u v e vida s e m coletividade,
n ã o houve trabalho s e m colaboração, n e m aprendizagem s e m
e m u l a ç ã o dos outros.
A escola é u m a das últimas instituições q u e confrontam o
sujeito c o m o viver junto. S e a família, desinstitucionalizada,
tornou-se u m n e g ó c i o privado, c o m o o constatam alguns histo-
riadores, a escola poderia igualmente tornar-se privada. A crise
da autoridade afetando a escola p o r sua vez, a dificuldade e m
trabalhar c o m u m grupo, o s processos de desidentificação n o s
levarão na direção de u m a individualização dos procedimentos
de aprendizagem e uma evitação d o conviver. Se a classe desa-
parece c o m o e s p a ç o c o m u m , então triunfará este individualis-
mo, q u e se teme possa tornar difícil toda relação c o m o outro, e
nos faça perder uma constante d o humano: aquela na qual "eu"
n ã o existe s e m o outro. Entraremos n u m reino da auto-sufici-
ência, enquanto a intersubjetividade foi até o presente o funda-
m e n t o de nossa subjetividade.
U m dos desafios futuros será resistir a u m a tal e v o l u ç ã o e
articular essas individualidades à necessidade de viver, criar e ser
responsável e m conjunto. Poderíamos assim contar c o m a libera-
ção da potência do sujeito e conjuntamente c o m sua aceitação de
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ser, n o entanto, "um entre os outros" . A partir de uma tal tomada
de posição filosófica, decorrerão as finalidades da escola, as con-
dições do exercício da profissão de ensinar e da experiência de
aprender. Falaremos ainda amanhã de liberdade, de autonomia,
d e capacidade de pensar, de espírito crítico, d e tensão entre o
m e s m o e o diferente? O u estes termos n ã o terão mais sentido,
pois o humano será feliz na sua suficiência, nessa bolha protetora
e segura q u e se terá construído para protegê-lo d o outro?
Se a sociedade evolui n o sentido d e u m regime social n o
qual cada cidadão é chamado a exercer sua virtude política, e m
q u e o conviver é possível, cada indivíduo s e n d o responsável
p o r si m e s m o e p e l o s outros, e n t ã o a tar n a o r d e m d o dia. É, aliás, u m d e
e s c o l a s e r á u m a " e s c o l a d o sujeito" n o s s o s sofrimentos profissionais atu-
(Touraine, 1997) e s e m a n t e r á c o m o ais: a confrontação à insubmissão, à vi-
espaço comum. Senão, ela desaparece- olência passiva e ativa, à ineficácia das
rá, dando lugar a procedimentos adap- punições e ameaças habituais. O adul-
tados a c a d a um, m a s t a m b é m a u m a to p o d e até c h e g a r a s o n h a r e m acal-
normalização dos comportamentos, mar a criança, dando-lhe u m a camisa-
u m a c o n f o r m i z a ç ã o , q u e seria, p o r de-força química, q u e a manterá tran-
exemplo, medicamentosa; a sociedade qüila, n ã o amorfa demais para q u e ela
escorregará na direção d e u m totalita- seja ainda capaz de pensar. A medicina
rismo inédito, que n ã o engendrará mais nos dará os meios, a ética impedirá, tal-
uma educação e uma repressão de mas- vez, q u e se resolva assim o problema.
sa, m a s u m c o n t r o l e das intimidades Mas a vontade de trabalhar c o m alguém
b a s e a d o n u m a ausência de relação re- pacificado, regularizado, conforme, exa-
cíproca, e p o d e m o s n o s perguntar o tamente espelho de nós mesmos, corre
q u e será feito d o amor. o risco de ser tenaz.
C o m o não retornaremos a uma
pedagogia repressiva, na qual se alter-
PACIFICADO n a m humilhação e ternura, inventare-
A e d u c a ç ã o criou u m ponto de m o s redes de vigilância, meios de con-
honra, d e pacificar as relações h u m a - trolar a intimidade e o s pensamentos,
nas, isto foi u m de seus credos. O s his- influências nos comportamentos
toriadores mostram q u e efetivamente a ( E n r i q u e z , 1997). A c r e d i t a m o s t e r
relação c o m a violência entre os civis e conquistado u m e s p a ç o de intimidade
n o cotidiano evoluiu (Lagrange, 1995). q u e escaparia a o controle social, m a s
A maioria d e n ó s t e m horror à violên- n o s mantivemos n u m a ilusão. O c o n -
cia e m atos, n ã o s a b e m o s mais nos de- t r o l e d a s i n t i m i d a d e s n u n c a foi t ã o
fender, o corpo-a-corpo dá m e d o . Sa- forte, a invasão na vida privada nunca
b e m o s também q u e banalizamos a vio- foi tão l o n g e . A aliança entre a medi-
lência na imagem, e q u e a pacificação cina, a telemática e o jurídico poderia
vai junto c o m as e x p l o s õ e s d e violên- muito b e m ter o resultado e s p e r a d o :
cia: q u a n t o mais alguns s e pacificam, u m a vigilância das condutas, u m a
mais outros t ê m s o m e n t e a v i o l ê n c i a normatividade dos comportamentos e
c o m o recurso para existir (Cifali, 1998). u m a obediência às regras editadas. Es-
Não falo da violência estatizada, aque- taríamos n u m a sociedade q u e e n c o n -
la entre as nações, mas da violência n o trou u m m e i o d e controlar o s p e n s a -
cotidiano das relações. Esta foi a espe- mentos e os comportamentos. E um
rança de u m a pedagogia psicanalítica: adulto n ã o terá mais d e s e p r e o c u p a r
impedir o advento da guerra. Hoje, per- c o m a disciplina: é o s o n h o totalitário
d e m o s n o s s a s ilusões, a e d u c a ç ã o s e q u e está e m cada u m de nós.
tornou u m projeto dos mais realistas. Se tivermos discernimento, c o n -
Se a e s c o l a se m a n t é m c o m o u m f r o n t a r e m o s s e m p r e as q u e s t õ e s d e
lugar e m q u e as diferenças se confron- ontem e de hoje: c o m o derrotar nossas
tam, se a medicina n ã o encontrou u m a agressividades, c o m o permitir que cada
pílula da obediência e u m a outra para humano regule seus atos, ultrapasse seu
tratar a agressividade, se alguns conti- e g o í s m o , g u i e s e u agir s e g u n d o u m
n u a m a ser excluídos, o controle entre princípio de responsabilidade, trabalhe
as crianças continuará n o futuro a es- pelo b e m comum, e n ã o somente pelo
s e u b e m , r e n u n c i e a certos prazeres,
u m a v e z q u e s ã o destrutivos p a r a o
outro, exista s e m precisar desvalorizar
o outro e m e s m o rejeitá-lo. Hoje a ques-
tão da referência à lei é crucial. N o do-
m í n i o da e d u c a ç ã o , c o m o e m outros
domínios, nos esforçamos a fim de pas-
sar da moral para a ética, da obediência
à responsabilidade, da s u b m i s s ã o a o
e s p a ç o para u m a discussão crítica, da
aplicação de uma lei à colocação e m ato
d e u m a lei que, às vezes, na singulari-
dade de uma situação, deva ser
transgredida para conservar seu espí-
rito, e n ã o sua letra; tentamos n ã o n o s
esquivar quando é preciso escolher en-
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tre u m respeito à regra ou à pessoa .

ENCONTRO
Vemos atualmente se desenhar
u m a corrente q u e considera a criança
c o m o u m a minoria e q u e tenta diante
desse escândalo outorgar-lhe direitos.
Na corrente de n o s s o século X X , c o m -
preendemos c o m o uma criança se tor-
n a vítima d e v i o l ê n c i a , d e a b u s o , d e
maus-tratos, de exploração, apesar dos
discursos gerais que se s u c e d e m
(Gavarini & Petitot, 1998). Estes a b u -
sos repetidos, n o lugar e m q u e deverí-
a m o s estar obrigados diante deles, lá
o n d e reside n o s s a r e s p o n s a b i l i d a d e
fundamental, são denunciados, e é m e -
lhor assim. Procura-se proteger a cri-
ança das conseqüências às vezes noci-
vas d e sua d e p e n d ê n c i a . Mas, e m s e
fazendo isso - e este é o d e b a t e atual
a c e r c a dos direitos da criança - ,
e s t a m o s lhe d a n d o direitos, instituin-
do-a c o m o r e s p o n s á v e l e a u t ô n o m a
antes da hora, e q u e b r a n d o sua legíti-
m a d e p e n d ê n c i a ( E l i a c h e f f , 1996).
Estamos, p o r causa d o abuso, p o n d o
e m p e r i g o u m a d e p e n d ê n c i a funda-
mental, a de u m h u m a n o e m relação a
outro h u m a n o , e e s t a m o s instalando
relações nas quais o intersubjetivo re-
sume-se n o afrontamento de u m direi- Muitas críticas s o b r e o t r a b a l h o
to contra u m outro. Pode-se imaginar dos psicólogos mostram que a
que, se essa tendência prossegue, as cri- vitimização d o s indivíduos é u m a ar-
anças logo serão clientes q u e será pre- madilha, rentável para esses profissio-
ciso servir, q u e poderão nos denunciar nais. O h u m a n o n ã o se reduz a seu es-
se n ã o gostarem d e alguma coisa, q u e tado de vítima, afirma, c o m veemência,
usarão o s adultos c o m o objetos e p o - Alain B a d i o u (1993), q u a n d o fala d o
d e r ã o j o g á - l o s fora s e n ã o s e r v i r e m mal e da ética. Designar a l g u é m p e l o
mais. D e fato, teríamos somente inver- seu trauma v e m novamente impedir de
tido a c e n a ; s e r ã o as c r i a n ç a s q u e s e integrá-lo numa evolução e o impele a
tornarão tirânicas, suficientes, cruéis, fundar sua identidade sobre ele. O dis-
destruidoras, c o m aqueles q u e se apro- curso psicológico n ã o é s e m ressonân-
ximarem, e isso c o m a força de estarem cia s o b r e o social e s o b r e a e v o l u ç ã o
confortáveis e m seus direitos. d o sujeito, n o seu desejo de u m a segu-
T o d a inversão é nociva. É n e c e s - rança a qualquer preço, na sua queixa
sário q u e o s adultos, tanto pais c o m o contínua e m face d o sofrimento encon-
professores, a s s u m a m suas responsa- trado na vida. C o m o dizer a identidade
bilidades e suas obrigações, e n ã o uti- s e m bloqueá-la? C o m o trabalhar para
lizem a fraqueza da criança d e manei- d e s c e n t r a r o sujeito d o l o r o s o d e si
ra ruim. Mas seria dramático s e o p o - mesmo?
der d a d o às crianças s o b r e o s adultos A clínica daqueles q u e sofreram o
levasse a isso. Entre estas duas cultu- mal é o terreno dos terapeutas. A repa-
ras, iríamos na direção d e u m c o m b a - ração lhes c o m p e t e . O trabalho de clí-
te, u m face-a-face de violência. C o m o n i c o se m a n t é m na b o r d a deste enig-
respeitar a d e p e n d ê n c i a , mobilizar a ma: c o m o este acontecimento - o mal
responsabilidade d o adulto e trabalhar sofrido - p o d e n ã o s e repetir, c o m o
s o b r e o s abusos? Tal é a perspectiva, esse sofrimento p o d e n ã o s e incrustar,
o u seja, a o m e s m o t e m p o permitir à c o m o a vida p o d e integrá-lo, o n d e es-
criança q u e sua palavra seja escutada, tão as fontes, as forças d e vida d e uma
m a s q u e e l a n ã o seja m a i s p o d e r o s a pessoa, c o m o d e vítima ela p o d e n ã o
q u e a dos outros. se tornar carrasco? É nosso papel, uma
vez o mal feito, mas este trabalho é de
prevenção, pois trabalhamos para q u e
CONFRONTADAS
o sofrimento n ã o recaia sobre outros,
AO MAL q u e a vítima n ã o engendre outras víti-
Podemos retornar a nossa posição mas. Às vezes, n o entanto, vemos essas
de profissionais, u m a vez q u e aqueles profissões denunciar o mal e p o r sua
q u e estão sofrendo c o m aquilo q u e o s ação repetir o mal sofrido, usar o outro
fez sofrer v ê m tentar integrar nas suas mais uma vez para seu narcisismo e seu
vidas o q u e foi insuportável. Muitas b o m direito. Assim a c o n t e c e às v e z e s
questões se p õ e m . C o m o ajudar a víti- c o m o m a u trato sexual, e c o m a m a -
m a a n ã o s e identificar c o m seu trau- neira c o m q u e certos psicólogos e as-
ma, c o m o , e n q u a n t o profissional, n ã o sistentes s o c i a i s f a z e m u s o disso n o
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repetir o trauma já sofrido? Nossa s o - debate social e na caça a o monstro .
ciedade deu legitimamente existência A partir d e s s a clínica da vítima,
àqueles q u e sofreram o mal. Mas podem-se tomar posições sociais, q u e
t r a n s f o r m á - l o s e m vítimas p o d e s e c o r r e m o risco d e desvios. S o m o s as
mostrar nocivo. testemunhas d o sofrimento de u m des-
tino q u e b r a d o pela violência, d o into- m o s convidados a fazer u m a reflexão
lerável de uma violência atualizada so- sobre a ética de nossos gestos, e a ser-
b r e u m a criança, u m a m u l h e r o u u m m o s atentos aos q u e estão e m extrema
h o m e m , da paixão destruidora de u m fragilidade social.
casal, da a g r e s s ã o s e l v a g e m d e u m a
pessoa velha, e podemos medir as con-
seqüências enquanto clínicos. Podería- RESPEITO INIBIDOR
mos optar por uma posição extrema que Nas nossas profissões, c h e g a m o s
consistiria e m sustentar q u e nossa pro- a u m tal respeito pelo outro, que n ã o se
fissão intervém uma vez o mal feito, que ousa mais quase n e m tocá-lo. "Respei-
n ã o s o m o s responsáveis pela socieda- t e - m e " transforma-se e m " a c e i t e - m e
de, pelos erros humanos e pelas condi- c o m o e u sou", " n ã o m e p e ç a nada",
ç õ e s q u e causam o mal. Nossa profis- " n ã o m e empurre", " d e i x e - m e o n d e
s ã o é ligada a o mal, e nossa existência estou c o m aqueles q u e se parecem c o -
social também. Poderíamos ficar nisso, migo", " a m e - m e , m a s c o m o e u sou".
esperando até m e s m o que o mal não se "Você m e deve respeito" p a r e c e final-
atenue, pois isto nos lançaria na impos- m e n t e significar: "Eu sou suficiente, e
sibilidade de exercer. m e u e n c o n t r o c o m v o c ê n ã o mudará
O discurso é clínico, n ã o podemos nada d o q u e eu sou". Se lhe d e v e m o s
mantê-lo. E m n o m e das vítimas, n o s respeito, p o d e m o s então exigir dele al-
associamos aos movimentos q u e que- g u m a coisa, impor-lhe o q u e e l e n ã o
rem que o mal cesse, que a violência se quer à primeira vista? Se sentimos c o m o
a t e n u e , q u e o outro s e t o r n e m e n o s violência tudo aquilo q u e n ã o entra n o
ameaçador. Saímos d e nossa reserva. n o s s o m u n d o , e vice-versa, e n t ã o é o
Saberemos, n o entanto, c o m p r e e n d e r fim d o encontro. Mas n o fundo o q u e
q u e nossa p o s i ç ã o n ã o p o d e resolver permite crescer, aprender? É o fato d e
sozinha o problema da violência, e que ser empurrado, de^ncaminhado, puxa-
nós contribuímos, c o m o outras profis- d o para fora de si mesmo, ser seduzido
sões, indiretamente, para fabricar a des- p e l o q u e n ã o s e é? Ora, u m r e s p e i t o
confiança? Eu subscrevo a p o s i ç ã o d e t o m a d o a o p é d a letra n o s interdita
Antoine Garapon e Denis Salas (1996), empurrar este outro, d e q u e r e r outra
q u e sustentam q u e o problema d o mal coisa dele; tem-se e m conta seu "eu não
n ã o se revolve unicamente c o m o dis- quero" emitido primeiramente porque
curso psicológico. Enquanto profissio- ele tem medo, pois o esforço demanda
nais, t e m o s d e n o s i n t e r r o g a r s o b r e a saída de sua tranqüilidade. Desta for-
nossa participação nessa vitimização e ma, os gestos d o encontro, os disposi-
n o fato d e que, cada vez mais, n o s to- tivos p r o p o s t o s p o d e m s e r s e n t i d o s
m a m o s a n ó s m e s m o s c o m o vítimas c o m o violência.
detentoras de direitos. A vida é u m ris- O q u e é u m encontro? Ele a c o n -
co, feita de encontros b o n s e ruins, d e tece entre dois seres, s e m poder ser pro-
sofrimento, n o qual devemos e m segui- gramado. Ele transforma, c o m o n u m
da encontrar forças e fontes para q u e verdadeiro diálogo q u e n o s deixa ou-
n ã o seja tão destrutivo. Nossas profis- tros depois que nossas palavras tenham
s õ e s consistem minimamente e m n ã o sido trocadas (Gadamer, 1995). T o d o s
acrescentar destrutividade àquela ine- o s profissionais p o d e m s e r s e r e s d e
rente à vida, e m permitir q u e se tirem encontro. Muitos biógrafos relatam es-
dos inevitáveis acidentes negativos for- ses e n c o n t r o s s e m o s quais n ã o tería-
ças d e vida, e n ã o forças d e morte. S o - m o s nos tornado o q u e somos: Camus
(1994) e seu professor, por exemplo. precisa e que não é constituído de ou-
Temos uma dívida a honrar, não a dí- tra coisa senão materialidade, mas tam-
vida impagável, mas a dívida em rela- bém de imaterialidade. Certamente exis-
ção a alguns outros. Pode-se desejar a tem encontros destrutivos. Um huma-
cada um na sua vida a possibilidade de no pode ser nocivo para outro. Em
ter encontros. Os adolescentes que vol- nome dessa nocividade, poderíamos
taram de suas derivas o fizeram proteger cada um e impedir que a par-
freqüentemente porque alguém esteve tir de então os encontros tenham lu-
lá, não os deixando onde estavam, ten- gar, tomados na armadilha de um pen-
do confiança neles, empurrando-os, samento que, sempre partindo do no-
chacoalhando-os. Não é teorizável nem civo, quer extirpar o mal.
racionável. Isso pertence ao que esca-
pa, e deveria escapar a toda programa-
ção. Estamos lá e alguma coisa irrompe. CONSEQÜÊNCIAS
A presença do outro não nos deixa tran- Falando do terapeuta, Winnicott
qüilos. Ele nos disse: "Você poderá", (1988) escrevia que acontecia de ele
enquanto tudo enunciava o contrário. referenciar-se na crueldade que é for-
Esse encontro pertence ao humano; çosamente a sua própria, a fim de não
desde a noite dos tempos, faz-se a nar- atualizá-la sobre um outro. Isto retorna
rativa; amanhã ele deverá sempre po- à sua responsabilidade de profissional.
der ter lugar. Estamos postos, no en- Eu diria mesmo para toda profissão do
tanto, num enigma. Quais particulari- humano, quer se trate de curar, de ins-
dades psíquicas ou quais circunstâncias truir ou de educar. Nossa crueldade
permitem tomar tal ou qual elemento a deve ser trabalhada, tomando consci-
fim de mobilizá-lo para sua própria ência de que ela pode se atualizar tanto
vida? Se estruturas exteriores dadas são mais f a c i l m e n t e q u a n t o f o m o s
indispensáveis para que um aconteci- fragilizados, que não compreendemos
mento advenha, em seguida é preciso mais que um outro não é mais nosso
que outra coisa aconteça para que esta espelho, e nos surpreende com seus
estrutura desempenhe a função de uma atos. Só a trabalharemos se chegarmos
possível passagem. a falar do que se passa conosco, quan-
Tocamos aqui na oposição das hi- do somos tomados pelo outro, que
póteses entre determinismo socioló- nossas defesas habituais não funcionam
gico e poética humana. Enquanto pro- mais. Freqüentemente temos vergonha
fissionais, se não devemos negar a in- de nossas reações excessivas, no entan-
fluência dos determinismos psíquicos to, não podemos ser diferentes. Ter ver-
e sociais, temos também de contar com gonha é se esconder, se calar. Ora, se
a exceção que sela justamente o encon- não falamos, não podemos pensar o
tro. Importa que tenha estruturas, téc- que acontece, nem nos distanciar, nem
nicas, possibilidades, para que um hu- tomar a medida.
mano possa aí encontrar o que será Cada profissão tem sua ideologia
uma parte de sua vida. As ocasiões nos defensiva, na qual se constrói uma ma-
permitem nos enxertar e descobrir o neira de se defender do medo. O medo
que vai nos mobilizar. Um outro, de nossa fraqueza, de falar de nossas
tornamo-lo possível não respeitando dificuldades, pertence a este registro.
o que somos, nossos hábitos, nosso Isto ultrapassa um indivíduo. O medo
ensimesmamento. Isto se chama cultu- estrutura as profissões. Uma lei do si-
ra, sistema simbólico, do qual cada um lêncio atravessa-o nos lugares de sua
fragilidade, lá o n d e para alguns existe
perigo de morte e, para outros, perigo
psíquico. Não se brinca n e m c o m o
m e d o , n e m c o m os sistemas de defesa
postos e m ação; não se ridiculariza, mas
n ã o s e deixa t a m p o u c o funcionar e m
silêncio. Existem sistemas de defesa que
cumprem seu ofício, mas que
obstaculizam, p o r q u e eles mobilizam
n o s s a energia, r e d u z e m o c a m p o d e
nossa ação e de nosso pensamento.
Tanto o m e d o c o m o a angústia p o d e m
ser tratados diferentemente, c o m u m
mínimo custo psíquico, uma maior flui-
dez e inventividade. É aí q u e a palavra
e a compreensão p o d e m substituir cer-
tas defesas. Mantendo o silêncio, aca-
ba-se morrendo de solidão, e pode-se
permanecer cego quanto ao nosso pior.

OBRIGADO A SER BOM


Gostaríamos hoje q u e o profissio-
nal fosse consciente de seus atos e refle-
tisse sobre eles. Pensamos que assim po-
deremos encontrar o gesto "justo". Re-
fletir para sair da ignorância ou dos pre-
conceitos; sair de si para pensar a rela-
ç ã o c o m o outro: tal seria a responsabi-
lidade do autor para que seus gestos não
fossem nocivos o u o fossem o m e n o s
possível; ideal de u m humano reflexivo,
distanciando-se de certos a priori reve-
lando u m a psicologia ou u m a sociolo-
gia inocente, ideal do pensamento ou do
ato pensado. Não posso afirmar que este
ideal de h o m e m e de mulher reflexivos
não seja aquele a que eu gostaria que cada
um tendesse. Mas não contribuímos para
a ilusão de q u e o h o m e m q u e pensa é
necessariamente b o m , racional, e n ã o
destruidor? Por outro lado, uma vez que
eu lido c o m seres que pensam seus atos,
q u e têm consciência de suas responsa-
bilidades, da vulnerabilidade d o outro,
eles q u e r e m - e é legítimo - estar n o
bem, n o b o m . Não suportam então se-
r e m "maus".
P o r u m lado, c e r t o s professores p o d e pensar. Não se p o d e dizer "seja-
provocam - quase inconscientemen- m o s negativos", p o r q u e este negativo
te, t ã o certos e s t ã o d e s e u s atos - c a - p o d e n ã o ser destrutivo, m a s constru-
tástrofes, bloqueios, recusa d e apren- tivo. E c o m o s a b e r s e ele é destrutivo
der, humilhação, rejeição de u m outro. o u não? C o m o pensar e m ser "negati-
Eles t a m b é m n ã o t ê m a impressão d e v o " para q u e o outro p o s s a sair d e si
s e r e m destruidores. Se o outro se des- m e s m o ? Existiria u m a n e g a t i v i d a d e
trói, é n o fundo sua culpa. Eles supor- construtiva e uma negatividade
t a m o m a l q u e fazem, p o r q u e e l e s o destrutiva... Avançar nisso n ã o é into-
justificam pela m á e s s ê n c i a d o outro. lerável, i r r e s p o n s á v e l , aventureiro?
A q u e l e s q u e refletem, b u s c a n d o nas Imediatamente t e m o fazer a apologia
ciências h u m a n a s aquilo e m q u e fun- d o inconsciente, da destruição e d o ir-
damentar seus atos, têm a obsessão de racional. Não é isso, mas é fina a borda
fazer o mal. E, e m o f a z e n d o , parali- na qual a báscula entre o construtivo e
sam-se. Paralisam suas ações humanas. o destrutivo se dá. Sinto q u e t o c a m o s
Por outro lado, t e n h o a impressão d e u m limite, n o entanto, estou persuadi-
q u e u m a criança s ó c r e s c e s e ela e n - da de que não se chega a si m e s m o sem
contra a o m e s m o t e m p o a solicitude, ter experimentado esta negatividade. É
m a s t a m b é m alguma coisa d e negati- claro q u e existem gestos a se banir de-
v o c o m a qual deve se haver. Tanto n o finitivamente, c o m o a h u m i l h a ç ã o , a
nível d o s pais, q u a n t o n o d o s profes- rejeição, o assujeitamento. Existe u m a
s o r e s "reflexivos", tenta-se e x p u l s a r pacificação que eu quis: levar e m conta o
todo o mal para n ã o estar n u n c a neste outro, n ã o o esmagar c o m nossa pre-
lugar, m a s p a r a o o u t r o , e s t e " b o m sença ou nossas intenções. E n o entan-
demais", q u e p o d e tornar-se mau. to esta pacificação p o d e ir até impedir
Numa palavra: c o m o , n o ideal d o um encontro, e m que, enquanto encon-
profissional p e n s a n t e , p o d e - s e inte- tro, existe u m afrontamento. Tenho difi-
grar essa parte q u e c h a m a r e i "negati- culdade e m exprimir esta contradição.
va", mais d o q u e má? T e n h o a impres- D e f e n d o u m a pacificação, u m a c o n s -
s ã o d e q u e e s s a negatividade n ã o s e c i ê n c i a d e n o s s o s atos, e a o m e s m o
realiza s e n ã o n o i n c o n s c i e n t e , e q u e tempo sinto que é preciso restaurar uma
e n t ã o ela p o d e s e verificar destruido- cultura d o conflito e da negatividade.
ra. Existe u m a parte d e negatividade Esta contradição, c o m o p o s s o tratá-la?
q u e é necessária a o encontro humano, Existe também a suspeita de que toma-
e esta parte de negatividade n ã o é mos freqüentemente umafalsa racionali-
"racionalizável", ela é recalcada da zação, que nossos atos comportam a ar-
idéia d o profissional p e n s a n t e . E c a - bitrariedade e q u e nossas decisões n ã o
minha-se na direção d e profissionais são senão posteriormente racionais, que
q u e têm tanto m e d o de serem "maus", buscamos sentidos demais.
q u e n ã o o u s a m m a i s arriscar-se n o Toda evolução significa q u e exis-
encontro, na confrontação, a o risco d e te um choque, afrontamento, oposição.
tirar o outro dali o n d e ele está. Hoje, enquanto profissionais, aceitamos
Eu m e d e b a t o contra u m a este choque? Evita-se o conflito, faz-se
destrutividade c o m respeito a u m ou- o outro passar primeiro, poderia ser um
tro, por d e s c o n h e c i m e n t o , p o r recusa desvio. Não a cada vez, m a s u m a ten-
e m escutar o q u e se passa na dência, que - é uma intuição - nos con-
intersubjetividade (Cifali, 1994). E m e v é m , pois o c u p a m o s o lugar d o b o m
escoro numa negatividade q u e n ã o se objeto, mas que deixa o outro sem con-
frontação. O q u e a c o n t e c e u para q u e pelo outro, e n ã o manter distância, pro-
hoje, efetivamente, tenhamos tornado tegido por n o s s o saber.
positivos o s valores c o m o a escuta, o S o m o s convidados a mobilizar o s
altruísmo, e t e n h a m o s d e s e r t a d o o contrários, e n ã o q u e r e r expulsar u m
afrontamento, o conflito s e n d o vivido deles e m proveito d o outro. A relação
c o m o negativo? S a b e m o s , n o entanto, c o m o outro, u m a v e z q u e s e trata d e
q u e nenhum termo é positivo ou nega- crescer ou evoluir, n ã o p o d e ser e x e m -
tivo, m a s o p e r a m o s s e m p r e e s s a plo de afrontamento, de combate, e d e
clivagem. explosão. A partir disso, n ã o p o d e m o s
N ã o há clivagem entre o b e m e o n o s esquivar n e m da escuta, n e m d o
mal, mas uma coisa, u m gesto, u m ato, conflito, n e m da questão lancinante d o
uma palavra p o d e m conter u m e outro, "quando s o m o s b e n é f i c o s , e q u a n d o
tornar-se o u u m o u outro, s e g u n d o o n ã o o s o m o s mais?" N ã o n o s livrare-
c o n t e x t o n o qual eles s e desenrolam. m o s j a m a i s d e tais q u e s t õ e s , e feliz-
N a d a n o s p õ e a o a b r i g o das c o n s e - mente. É preciso navegarmos, renun-
qüências nefastas que engendram nos- ciando a u m instrumento q u e n o s tor-
sos atos, nossas posturas, nossas posi- naria forçosamente bons, m e s m o se ele
ções, nossas teorias. A única medida e m contiver todas as virtudes humanas. É
relação à qual p o d e m o s n o s guiar nos aí q u e m e encontro: u m a busca de ins-
é dada pelas conseqüências d o q u e fa- trumentos, m a s q u e n ã o nos livrem de
z e m o s . N ã o p o d e m o s m a i s ficar n a u m a reflexão cotidiana s o b r e as c o n -
quietude d o b o m . s e q ü ê n c i a s d e n o s s o s g e s t o s (Cifali,
Assim, existe algo d e negativo n o inédito - a ) .
positivo, e x i s t e a l g o d e n e g a t i v o n o
amor, n o respeito. Paul Virilio (1996)
nomeia isso "acidente", os acidentes de RACIONALIDADE
nossa positividade. Aceitá-lo talvez seja Seja na medicina o u nas ciências,
u m avanço. Assim, termos c o m o c o n - na filosofia o u n a política, a n o ç ã o d e
frontação, violência, conflito, oposição, p r o g r e s s o é atualmente interrogada.
dependência, frustração, falta n o s pa- Na borda d o s é c u l o X X I , vivemos u m
r e c e m d e v e r ser e x p u l s o s , utilizá-los período n o qual duvidamos fortemen-
seria quase d e mau gosto. Sofrimento, te q u e n o s s o s p r o g r e s s o s científicos
doença são certamente nossos prêmios, nos ofereçam a perspectiva de dias me-
mas q u e n ã o trazem nada além de sua lhores. A filosofia é convocada, p e d e -
dor. Não lhes deveríamos nada de nos- se q u e ela dialogue c o m o s cientistas,
sa humanidade, de nossa evolução, de para ajudar n a s d e c i s õ e s a s e r e m to-
nossas qualidades. Sabemos q u e n ã o é madas, diante das o p ç õ e s abertas p e -
assim q u e acontece. Tornamo-nos frio- los "progressos cia ciência". Fala-se de
rentos, t o m a d o s d e u m a lógica d e se- revolução numérica, de m u d a n ç a nas
gurança. Mas n ã o existe vida s e m ris- relações e na c o m u n i c a ç ã o entre os
c o , vida s e m morte, n ã o existe si m e s - humanos, de subversão na nossa rela-
m o s e m o outro, n ã o e x i s t e p a z s e m ç ã o c o m o t e m p o e a v e l o c i d a d e . Al-
confrontação. Não existe vida s e m es- guns alertam para transformações psí-
cuta arriscada, c o m o a define Dejours quicas q u e isso imporá. Cada impulso
(1993), ou seja, uma escuta na qual cor- d e técnica gerou alarmes, c o m ou s e m
remos riscos também, o de nos encon- razão. Interroga-se a ciência, eles de-
trar outro, q u e nossa identidade rache. n u n c i a m a influência da técnica. Evo-
Correr riscos para si é se deixar afetar cam-se as grandes figuras imaginárias
da ética, c o m o Fausto, Frankenstein e tar. Nosso s o n h o de q u e nossas crian-
P r o m e t e u (Lecourt, 1996). T e r í a m o s ças n ã o tragam mais n e n h u m proble-
n o s t o r n a d o tão p o d e r o s o s n o n o s s o ma, n e m de crescer, n e m de aprender,
agir e na n o s s a c a p a c i d a d e d e trans- poderia ser desta forma realizado.
formar, q u e p o d e r í a m o s trazer a o g ê - Numa tal eventualidade, q u e m determi-
n e r o h u m a n o tanto a "felicidade", nará o c r e s c e r "direito e c o n f o r m e " ,
quanto sua destruição. s e m sofrimento? O s cientistas, m a s e m
O q u e é feito da e d u c a ç ã o e da qual verdade descoberta e designada do
transmissão de saberes? D e v e m o s sujeito? Não sei se s e deveria regozijar
igualmente t e m e r u m a racionalidade c o m u m tal sucesso, a diversidade so-
galopante? Q u a l é o futuro d e n o s s o frerá, e o poder de uns sobre o s outros
progresso? O n d e está nossa evolução? será diabolicamente reforçado.
A escola está essencialmente e m crise: O q u e fazer, contudo, n a educa-
uma queixa c o n e n t e . As condições da ção, c o m essa esperança de que se pos-
profissão degradam-se, as crianças mal sa, graças à ciência, ter u m agir racio-
v ê m a o e s p a ç o da sala de aula, incapa- n a l m e n t e "justo"? U m paralelo p o d e -
zes às v e z e s d e aprender, de se ria ser traçado c o m o s d e b a t e s atuais
referenciar, d e ser "um entre outros". e m torno da tecnocracia. Tivemos tam-
U m a formidável aposta foi feita: q u e o b é m n o s s a Hiroxima? V i v e m o s e s s e
saber seja acessível a todos. Traduzimo- instante e m q u e o c o n h e c i m e n t o fun-
la e m termos d e diplomas, e n ã o tanto damental ultrapassa o h o m e m e traz a
e m termos de gosto ou paixão pelo sa- destruição, m e s m o s e e m outro lugar
b e r e m todos o s lugares da vida: reco- esse m e s m o conhecimento desemboca
nhecimento para cada u m de sua capa- e m descobertas q u e aliviam nossos so-
cidade d e ser inteligente nas situações frimentos? Na e d u c a ç ã o s e m p r e exis-
da vida e da profissão. A e s c o l a sofre, tiu o que causa loucura ou m e s m o mor-
então, d o colégio a o maternal. Mas ela te. A ciência poderá ser mais u m a lou-
n ã o sofre tanto p o r causa d e u m pro- cura, se ela n ã o tomar cuidado, a o lado
gresso científico, q u a n t o d e certas re- de outras racionalizações baseadas e m
caídas sociais. delírios mais pessoais. O ato p e d a g ó -
No entanto, o papel cia racionalidade gico e educativo, n o entanto, até aqui
na determinação da aprendizagem e d o escapou de uma determinação científi-
crescer poderia ser a questão d e n o s s o ca sistemática, e sua a p l i c a ç ã o n ã o se
progresso. Alguns desejam q u e o de- t r a n s f o r m o u e m l o u c u r a mortífera,
senvolvimento das ciências h u m a n a s c o m o o s o c i a l i s m o científico. Mas o
nos dê u m controle sobre esses pro- s o n h o d e u m controle ronda sempre;
cessos q u e ainda nos escapam. Se con- para alguns, o e s p a ç o da educação ga-
trolamos a procriação, por que n ã o che- nharia e m ser mais cercado de certezas
garíamos a controlar o crescer e o e controlado por u m a razão, p o d e m o s
aprender? Estaríamos assim livres d e então ter algumas inquietudes e m rela-
n o s s a s i n c e r t e z a s , evitaríamos sofri- ç ã o a o futuro.
mentos psíquicos. O s adultos saberiam A p o s t a m o s q u e a racionalidade
c o m o fazer racionalmente. O proble- progredirá certamente, m a s n o s man-
m a da "educação" seria e n t ã o resolvi- teremos sempre na incerteza. Compre-
do. E m decorrência disso, ser pai, edu- endemos talvez que a racionalidade fra-
cador ou professor n ã o dependeria se- cassa e m governar as almas e as rela-
não de uma aplicação de preceitos cien- ç õ e s intersubjetivas, q u e ela n ã o p o d e
tíficos, maneiras registradas d e se por- prever inteiramente o destino humano,
o sofrimento que advirá, o s erros, suas Eliacheff, C. (1996). Viesprivées. Del'enfant
solidoes e suas desordens; que não po- roial'enfantvictime. Paris: Odile Jacob.
d e m o s clarear definitivamente e s s a s Enriquez, E. (1997). Lesjeuxdupouvoiret
zonas de sombra; não podemos, e mes- du désirdans Ventreprise. Desclée de
m o não o desejaríamos, para salvaguar- Brouwer.
dar a poética do sujeito. O h u m a n o n o Gadamer, H. G. (1995). L'inaptitude au dia-
seu devir será sempre entregue à con- logue. \cvLangageetvérité. Paris: Gallimard.
tingência, a o a c a s o e aos encontros... Garapon, A. & Salas, D. ( 1 9 9 6 ) . La
E m c o m p e n s a ç ã o , n o s ocorre preser- Republiquepénalisée. Paris: Hachette, p.74.
var a inteligência de n o s s o s atos, esta Gavarini, L. & Petitot, F. (1998). La fabri-
inteligência d o m o m e n t o q u e n o coti- que del'enf ant maltraité. Toulouse: Eres.
diano realiza uma prática da alteridade Lagrange, H. (1995). La civilitéà Vépreuve,
e cia singularidade. Nossa responsabi- Paris: PUF.
lidade será a de construir incansavel- Lecourt, D. (1996). Promethée, Faust,
mente nosso saber e transmiti-lo, n u m Frankenstein. Fcmdemmtsimaginairesde
passo clínico (Cifãli, inédito - b ) que liga Véthique. Col. Les Empécheurs de Penser
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