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Ensaio Psicológico/Filosófico

A RELAÇÃO ENTRE ASSASINO E ASSASSINATO EM


CRIME E CASTIGO DE DOSTOIEVSKI

Jose Ravanelli Neto


Piracicaba 2016

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Seria possível chegar esse dia? O dia em que se pudesse deixar
para lá crime e castigo? O dia em que a sociedade seria capaz de
deixar impunes seus ofensores, e deixar prosperar seus parasitas?
Sou forte o bastante para isso?

Introdução
Uma das perguntas capitais em ‘Crime e castigo’ de Dostoievski
é:
Qual relação possível entre assassino – Ródian – e assassinado
– velha usuária e sua irmã – e que esta reflexão diga algo sobre
essa estranha unidade, um estranho conhecimento.
O herói de ‘Crime e castigo’ está experimentando seu ponto
limite quando necessita se socorrer de uma velha agiota, a fim de
continuar se mantendo, ou seja, não tem mais como retroceder
nem ir adiante em sua vida. É o início de sua crise – sem
diagnóstico – pois ninguém sabe ao certo o que Ródian tem, do
que padece esse jovem que cursa uma faculdade de Direito, ás
custas do dinheiro suado da mãe e irmã.
Na primeira ida de Ródian ao prédio onde residia uma certa
velhota, ele leva consigo o relógio de prata do pai, ou seja, o
único e último objeto que o liga ao pai morto. Tanto o pai como
seu objeto de lembrança, valem pouco aos olhos da usuária. Um
pai, como o próprio herói sonha – num sonho de sua infância –
incapaz de lidar de lidar com vida. Um bem material, de prata que
diante dos juros cobrados, de nada servem a não ser ficar fixado
na roda da pobreza. Ródian tem de lidar mais especificamente
com as dores e injustiças sociais, mas ainda mais com o
sofrimento que vem do coração.

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No sonho, a incapacidade do homem de lidar com o trágico da
vida, pois se trata de uma visita ao irmão pequeno morto e
enterrado num cemitério afastado e perto dali, brotando da terra,
uma turba embriagada de bestas humanas - mujiques – que ferem
uma égua a chibatadas até a exaustão, por não conseguir levar o
peso de uma dezena de bêbados que se divertem com a cena. Uma
cena que impressionara até Nietzsche, que repete o gesto em
Turim, a mesma do menino tentando proteger a égua e é retirado
de cena pelo pai. Impotência, raiva, vontade mais potência.
Um pai nem um pouco poderoso ou sábio, covarde, que lhe
desaponta. O desligamento de Ródian com o pai se dá quando
criança, bem antes de sua morte física. De um lado seu irmão
criança morte em plena inocência, sem ter vivido ainda e nem se
quer ter merecido tal destino, e de outro um pai decadente. A
inscrição deste pai fraco no funcionamento psíquico da criança
que foi Ródian sinalizam logo de cara que, a representação
simbólica deixada por ele, que a lei é dos mais fores, pois os
fracos recuam. A escrita freudiana sobre o pai indicam que para
além do desejo de morte do pai (Édipo), o menino Ródian
constata que a morte do pai, não é suficiente para adquirir sua
liberdade, pois cai nas redes familiares e tem de substituir o pai,
prometendo inconscientemente a mãe e irmã que irá cuidar das
duas. Isso se repete no romance russo, pela via de Marmieladov
que promete cuidar da viúva e seus filhos, que por sua vez é
assumido por Sônia, que se prostitui para continuar a saga
prometeica.
Assassinar o pai como forma de lidar coma castração e instaurar
a lei interna, fundante simbólico da cultura, é uma leitura de
Freud realizada em ‘Totem e tabu’ (1933), mas em Ródian, surge
o desejo de assassinar uma velha usuária, ou seja, uma parte da
cultura que ela representa, que une barbárie – o que toma e usa o
que tomou para seu gozo de morte - e o pior tipo que é o
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utilitarista - o que calcula e toma seu cálculo como gozo de morte
- Uma vez que o pai não cumpriu nem uma função pacificadora,
ao contrário, fez Ródian carregar um duplo para trás –
ressentimento do tipo utilitarista e do pai fraco – a tal ponto que o
único pai possível era imaginado como um mais potente em vida,
ou seja, um Napoleão, um tipo forte o suficiente para passar por
cima de tudo e de todos. Um tipo que, para além da função
simbólica mediadora do pai, declinada em sua imago, não barra
seu gozo, ao contrário, repete-o em cada nova conquista.
A liberdade tão sonhada de Ródian passa então por duas vias: 1)
tornar a si mesmo mais potente 2) livrar-se de quaisquer
promessas. Para tornar a si mesmo mais potente era preciso
retomar a conexão com o sonho infantil, ou seja. Enfrentar os
mojiques, tomar para si essa mesma força bruta e instintual que
ele presenciou nesses tipos embriagados e isso só se daria na
passagem ao ato que era quanto a ideia de concretizar um
assassinato, seguido de só fazer o que fosse engendrado como ato
forte, sem nenhuma ligação a promessas de quaisquer espécie.
Mas não era assassinar qualquer pessoa, e sim uma que
simbolizasse seu passado fraco, sua impotência tornado motivo de
fazer a passagem ao ato, ou seja, assassinar um exemplar do tipo
utilitarista.
Quanto vale uma ideia? Se aferrar a uma delas, a ponto de tentar
colocá-la em prática, por mais absurda que possa parecer? Uma
ideia tem raízes profundas, como vimos acima. Não se trata
apenas de uma das muitas fantasias de um doente dos nervos.
Aqui temos o início da ideia, ou seja, seu nascedouro: o mundo do
espírito. Antes de ser realidade, uma ideia nasce antes no mundo
dos sonhos, da fantasia que o gesta e acalenta em cada passo.
Uma ideia é acompanhada de sentimentos: Ródian sentia nojo
de seus semelhantes peteburguenses. Não tinha mais medo de sua
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ideia bizarra e que soaria estranha aos demais. A fantasia costuma
se deter e esbarrar ante a impotência e a vacilação, ou seja, num
não acreditar em si mesmo. A mesma e velha impotência já
conhecida sua em sonhos de criança.
Mesmo que tudo parecesse vil e abjeto, e que o sentimento de
asco o possuísse, Ródian não podia mais abdicar da sua ideia,
pois ela vinha de seu coração. Tomado de melancolia após uma
visita de reconhecimento ao apartamento da velha usuária, ele
desce a taberna, e ali reconhece os mesmos tipos que saiam do
subsolo de seu sonho infantil. Ali ele incorpora seu lado bestial,
nômade, uma sede infindável de Dionísio.
A sua excitação obscura já durava um mês, sua escolha e
ligação psicológica com a vítima já se efetivara, e sua ideia já
ganha corpo e peso. Ao descer na taberna, e ali escutar a estória
de um bêbado, tem de lidar com coisas cada vez mais fundas, que
chegam até as misérias do espírito, para além da pobreza, lá nos
tipos que não sonham mais, apenas bebem e na bebida retiram sua
dose diária de dor, na procura desesperada de compaixão e pena.
A mesma pena que Zeus teve de Íxion, ao matar seu sogro
queimado e vagar por ai, sem rumo e com a loucura na cabeça.
Mesma situação simbólica de Ródian e do bêbado Marmieladov.
Todos tomados pelo caos dionisíaco.
Todos retornando ao mesmo lugar, o mesmo ponto e só
repetindo as mesmas coisas. Mas Ródian decidiu-se a fazer algo
novo. A sua ideia teceria de forma diferente os fios de seu destino
e o levariam a um lugar novo de sua destinação. Destinação
reservada a tipos fortes e potentes. Tipos sonhadores, que não tem
medo de realizar suas passagens ao ato, por mais estranhas e
bizarras que possam parecer.

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- O plano de consecução de Ródian

Após duvidar da pureza de coração de Sônia, filha do bêbado


Marmieladov, Ródian chega a uma profunda reflexão sobre os
tipos que aproveitam do demais não são canalhas contumazes,
mas que isso seria mero preconceito, ou seja, o homem é assim
mesmo, ‘e que é assim que deve ser’ (Dostoievski, Crime e
castigo: 43). Esse pensamento diante do humano trágico leva
Ródian ao gérmen de seu futuro artigo sobre os tipos, e é essa
impressão forte retirada da família de Marmieladov que vai
imprimir nele, em seus nervos, aquele impulso final para o
caminho sem volta do assassinato.
Retirado de seu olhar o obstáculo de um ser humano que não
julga nem condena, ou seja, a visão de uma Sônia pura de
coração, mesmo se prostituindo para garantir a promessa do pai
beberrão (cuidar daquela família), a noção do crime perfeito vai
ganhando contornos perigosos em Ródian.
O movimento de realização do crime, e que seria melhor dito
como assassinato, pois desde a publicação de ‘O assassinato de
Cristo’ de W Reich, sabemos que quem assassinou Cristo foi o Zé
Ninguém, ou seja, os fracos e ressentidos de todo tipo, cuja
biopatia é a de terem medo da vida e do viver.
Ródian está diante de uma ideia estrangeiro, como que lhe não
pertencendo, como se alguém pensasse nele e por ele, e o
conduzisse até o que não queria fazer, pois se tratava de uma ação
que seria valorada como vil, mas contudo esses motivos em jogo,
algo pensa nele com e sem a consciência no comando.
Encadeamento do instante: 1- doença indeterminada 2- o
trabalho de pensar de Ródian começa no mundo dos sonhos e da
imaginação 3 – a fantasia quer uma ação 4 – o plano de
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consecução de Ródian passa por alguns momentos críticos: ele é
notado na rua com seu chapéu, ele é conduzido a taberna por um
impulso desconhecido, após visitar a velha usuária, em seu apto,
conhece a estória de Marmieladov, conhece a suposta pureza de
coração de Sônia, um tipo incomum, incapaz de valorar as ações
do pai, 5 – ignora os signos e sinais desse encontro e conclui seu
pensamento que ante a pureza – coisa improvável – é melhor
pensar que o humano em geral é o que é, ou seja, sem coração (da
mesma forja que os mujiques eram feitos).
Ródian sabe que algo está fervilhando dentro dele, em suas
tentativas de apaziguamento, recua em seu quartinho ‘cabine de
navio’ e em estado alterado de consciência tenta saber destes seus
processos inconscientes indo aqui e acolá, andando sem rumo, se
deparando com olhares e pessoas estranhas, ignorando muitas das
vezes os signos e sinais de Dionísio.
Isolara-se completamente, mas para além de sua possível
doença (monomania, paranoia?), confessa a criada que faz um
trabalho: ‘Penso’ (Dostoievski: 45). Este trabalho árduo e duro do
pensar de Ródian revela o que? Qual é a sua forma de pensar,
pensa o que? C G Jung distingue basicamente duas forma s de
pensar: 1) pensar cognitivo, racional da parte da consciência e 2)
pensar intuitivo, por imagens ou sonhos, feito por analogias.
Ródiam pensa da forma simbólica, ainda mais quando recebe a
carta da mãe que fala sobre um tal Svidrigáilov, que sob a
influência de Baco – Dionísio – pensa e faz coisas extravagantes
sob a sombra dessa paixão. O velho casado nutria uma paixão
violenta e avassaladora por Dúnia, sua irmã e governanta da casa.
Sob os auspícios do deus, se ia longe, muito mais longe do que
qualquer mortal podia divisar. Esta impressão se impregnou na
mente de Ródian, um sentimento marcado no psiquismo a ‘ferro e
fogo’, como diria Nietzsche.

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A raiva e o ódio de Ródian aumentavam e o conduziam ao seu
ponto limite. Um tipo ressentido assim, aspira e pode o que? Já
vira os mujiques, do que eram capazes, agora enveredava sobre o
pensamento de um velho utilitarista apaixonado. Em ambos a
mesma imagem forte da telega. Na primeira, o sonho da éguinha
impotente levando a multidão de bêbados, na segunda um bêbado
que se investe sobre a moça inocente e é humilhada pela patroa e
conduzida de volta a casa da mãe numa telega ao lado de um
mujique (a telega que no dia do crime estava na porta do edifício
e entravava a subida de Ródian até o apto da velhota). Estava por
um fio. Homens úteis e destinos decididos. Essa união parecia
perigosa em demasia a Ródian, mesmo em seu estado de alma
doentio, sabia que isso era pura dinamite. Para finalizar, sua irmã
aceitara se casar com um tipo utilitarista, com negócios em
Petersburgo. Sua vida e de sua família corriam extremo perigo,
era preciso agir. ‘O coração batia com intensidade, e com
intensidade agitavam-se os pensamentos’ (idem: 55).
Agora mais isso ainda, ou seja, a mãe e a irmã contratam um
mujique, embarcam numa telega e ambas se sacrificando uma vez
mais por ele, Ródia, anjo que arregimenta em seu redor a auréola
de toda a esperança e toda a certeza delas.
Entre a natureza indomável, guerreira, que passa por cima de
tudo e de todos e de outro, aqueles que se deixam sacrificar ou
aceitar o destino docilmente, Rodian tenta processar seu próprio
tornar-se. Ele mesmo o que seria, a qual dos lados se
identificaria? e ainda mais, o que faria para se aproximar não dos
tipos utilitaristas (depenadores de toda espécie, na qual se
incluía), mas dos fortes, cuja missão estava em outro patamar, ou
seja, para além das promessas, dos ressentimentos, da culpa, dos
valores locais, e decidir-se a algo da esfera do agir, do viver e
amar, ou renunciar a vida e morrer.

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Errante pelas ruas da cidade, Dionísio oferece a Ródian um
novo experimento, uma espécie de teste de seu coração já
dividido: tomba-lhe em sua direção, uma moça loirinha de 16
anos aproximadamente, embebedada e seguida por um canalha
gordo, que ele chama de Svidrigailov, o que se apaixonara pela
sua irmã, e tomado de compaixão a defende desse sujeito
aproveitador (almofadinha), mas é picado pelo pensamento outro,
de que tudo é assim mesmo, tudo é porcentagem, ou seja,
condenadas ao crime e prostituição. Uma coisa é estar condenada
ao crime e isso na esfera de um sacrifício (vide O mal estar na
cultura de Freud), outra coisa bem diferente é querer o crime,
tomar o crime não como valor cultural, mas como potência.
A questão da pureza em Crime e castigo
De que tipo de pureza estamos falando?
O livro em seus capítulos iniciais e decisivos na compreensão
do tema traz:
1- A pureza de uma filha com relação ao pai (Marmieladov). É
o relato dessa pureza – vinda do pai bêbado – que encanta
Ródian. É ele que ele elege como parceira, amiga,
confidente, amante, ou melhor, companheira de viagem. Ele
vai confessar o crime primeiramente a ela, e depois a toma
como a mulher que vai ajudá-lo a convalescer e ele a ela,
retirando-a da complexidade das promessas feitas. Ele quer
sair das promessas que mãe e irmã fizeram com relação ao
destino dele, e ele fez promessas de cuidar da prole de
Catierina, as quais o pai não pode nunca cumprir. Então a
tecitura das promessas feitas direta ou indiretamente na rede
familiar tem de ser desfeitas, desatadas de vez.
2- A pureza da moça que cambaleia na praça e cai nos braços
de Ródian, vítima inocente de adultos inescrupulosos e
utilitaristas da pior espécie, que esperam, como animais,
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pacientemente as melhores oportunidades de desonrar a
pureza de uma adolescente alcoolizada propositalmente
(espécie de boa noite cinderela).
3- A pureza de Sônia, a filha que assume a promessa do pai,
mesmo às custas de se tornar prostituta, está a ponto de
pegar o bastão da promessa empenhada quando após a
morte do pai, e o enlouquecimento de Catierina, diz que é
ela quem deve cuidar de tudo agora. Sônia e Dúnia (irmã de
Ródian), se aproximam em comunhão sacrificial, pois
ambas deixam de se tornar-se em prol de outrem. Se anulam
em prol de uma causa aparententemente nobre, pois o fazem
com o coração. Essa conexão de Sônia e Dúnia, nos diz que
as coisas do coração é que mais importam a Ródian, e são o
critério de aproximação e vínculo para se estabelecer um
processo de convalescimento de ambos – Ródian e Sônia.

Tipos sacrificiais

Dostoiévisk descreve a psicologia dos tipos sacrificiais


(Sônia e Dúnia):
- não julgam, tem o coração piedoso.
- fazem o que tem de ser feito – arrumam uma espécie de
coragem.
- se anulam em corpo, mas não completamente em coração.
- desejam no fundo do coração, mantê-lo integro e intacto,
como o coração do deus Dionísio destroçado em ato
sacrificial pelo(s) Titã(s).
- suportam de perto, o tipo que lhe é mais difícil se
aproximar e formar um pathos de convivência, ou seja, o
tipo utilitarista, que lhes querem salvar de alguma desgraça
do destino, e por isso as humilham e desonram ainda mais.

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Então o que temos até agora? Temos algumas indicações
muito significativas a respeito daquilo que Nietzsche
chamou de conhecimento trágico. A presença dionisíaca em
Dostoievski se faz sentir em seu personagem de Crime e
castigo da seguinte forma:
1) O diagnóstico: Ródian sofre de que? Qual o seu mal, a
sua doença? A sua doença é aquele mesma que Nietzsche
diagnosticou como sintomática de uma cultura, senão
utilitarista, ao menos formada por tipos fracos que se
ressentem. Ródian se encaixa perfeitamente nessa
‘tipologia ressentida’ e perspectiva niilista.
2) O tipo ressentido: é aquela pessoa que, Como Ródian,
está preso em promessas as quais não pode mais se
manter unido, e querem se rebelar de alguma forma. Para
se rebelarem, para quebrar as correntes de Prometeu, é
preciso trazer do fundo do psiquismo, um algo
dionisíaco, ou seja, a doença impõe um recuo e uma
solidão necessárias ao início de um processo que chamo
de convalescimento.
Para convalescer é necessário sentir potência, e isso Ródian
não sabe resolver, ele se prende a sua ideia salvadora: cometer um
crime especial, um crime que faça subir essa potência
adormecida. Portanto Rodian, como todo tipo ressentido, tem um
problema dionisíaco, ou seja, como fazer uma conexão com o
coração que deve se manter integro e intacto diante do combate,
diante do enfrentamento a ser feito. Principalmente por que esse
combate e esse enfrentamento são da ordem da quebra de
promessas, e como Nietzsche já sinalizou: O homem é um animal
que sabe fazer promessas.
A perspectiva trágica contida em ‘Crime e castigo’ é, como
vimos, um olhar novo sobre a obra de Dostoievski, pois para além
do ideal socialista, niilista, temos o fio condutor de um tipo
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continuado, através de um ponto fundamental, eternamente
presente, a saber: ‘o entusiasmo dessas pessoas pelo bem e sua
pureza de coração’ (Dostoievski, os anos milagrosos: 89).
O desejo de auto-sacrifício presente no pathos do olhar mais
próximo de Ródian, que é processado entre o olhar que ele dirige
a irmã Dúnia e a gora a Sônia, compõem uma estética trágica que
só pode ser efetivada como convalescimento de todos se esse
acontecimento – vir a convalescer – se der enquanto um processo
de tornar-se o que se é, em conexão com esse coração puro e
inocente e com essa conatus a descoberta de como promover
psicologicamente em cada um dos personagens, um ‘mais poder’.
Dostoievski, em seu tempo de prisão, conheceu assassinos
(Orlov), que se orgulhavam de sua força (de vontade), sem sinal
de qualquer arrependimento. É o mesmo sentimento que Ródian
buscava em sua ideia de se tornar um tipo extraordinário, ou seja,
capaz de destruir todo e qualquer sentimento moral.
Antes do crime, o que temos?
O psiquismo de Ródian estava alternando períodos de recuo e
solidão e saída a rua a esmo, ou seja, sem destino especial. Fala-se
em delírio, mas o que temos é uma tentativa exaustiva do herói de
‘Crime e castigo’ em usar toda a sua capacidade intelectiva,
astucia e razão em prol de uma ideia, seja ela qual for, delirante
ou não. Seria delírio ousar? Seria delírio agir de seu âmbito
doméstico, conhecido e querer aniquilar seu inimigo ou opressor?
Mas existia uma diferença neste querer, pois um tipo
extraordinário agiria sem um para trás, enquanto que ele Ródian,
estava preso no ódio e no espírito de vingança. Ele odiava os
utilitaristas, ele odiava os almofadinhas, e agora odiava o noiva da
irmã. A embriaguez é um delírio? Ródian se embriagava não com
o álcool de Marmieladóv, mas com a possibilidade de sair dos
limites da promessa, ou seja, ultrapassar o que existe de mais
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sagrado: ir contra a família, de se desembaraçar do que é dito em
tom de promessa, de inverter esse valor, transvalorar o sagrado, a
promessa em ensinamento trágico.
Rodian embriagado, perde sua identidade anterior, de bom filho,
de estudante intelectual, de alguém que não processa mais as
ideias na tipologia e formatividade anterior. Agora suas ideias são
dionisíacas, deformadas, fora da ciência, da serenidade e do bom
senso. São ideias de morte, de caos que habitam o recuo e a
solidão do jovem ‘delirante’, doente, que quer ultrapassar o limite
do acordado socialmente e prestes a cometer um crime.
Qual a consequência disso?
Todo o seu ressentimento aflora, como esse algo escondido e
que o seu movimento dionisíaco de recuo e solidão faz regurgitar:
raiva e ódio de quase tudo e quase todos, incluindo ‘amigos’ e
família. Esse seu processo de tornar-se diferente, é o que chamo
de tentativa de abertura de um convalescimento, mas, como já
dissemos, ele não pode fazer isso sozinho, em seu recuo e solidão,
pois é necessário sair da cabine de navio, de sua toca, para fazer
um enfrentamento e achar companheiros de viagem para tão
difícil e delicada jornada, lá no ponto limite onde tantos falham,
tias como Marmieladov, a sua mãe, Catierina, e por pouco, muito
pouco (já quase entrando no rol das estatísticas) sua irmã e Sônia.
No ponto limite, as ilusões caem e a força deve aparecer. O
demônio da ideia de Ródian o faz saltar da aparente contradição
entre sentir a dor do coração (remorso, sentir-se apartado do
social) e nada sentir e nada querer (niilista), para outra condição
bem mais relevante para a perspectiva do convalescimento: de
que entre o nobre e o fraco, o que usa a razão e a astúcia e o que é
bruto igual a um mujique, o que mais importa pensar é o
convalescer abrindo o portal de algo completamente novo, uma
saúde outra, em que a vida estava embelezada outra vez de vigor e
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plenitude, de que a vida é boa para ser vivida, mesmo diante do
trágico. O trágico pressupõe a ideia de um eterno retorno.
A ideia de um ‘eterno retorno’ do mesmo está presente na
obra de Dostoiévski, especialmente em ‘Crime e Castigo’.
Quando o herói de Crime e Castigo – Ródian – adoece, toda a
trajetória não linear do livro aponta para a presença de um
dionisíaco no centro do pensamento torto do herói e as situações
onde aquilo que mais importava pensar passa, como um raio,
como um vislumbre, uma sombra, a frente dele mesmo. O retorno
do mesmo para Ródian, não cessa de se mostrar como um olhar
novo, um piscar de olhos onde ele percebe o no livro é o resto
delirante, o algo embriagador. Algo novo que não de cansa de
tentar se mostrar. É Dionísio que quer ser reconhecido e sua
máscara mais eficaz é sempre retornar. O retorno do mesmo é o
que dá a Ródian, a oportunidade de pensar diferente, pensar o seu
desejo via Dionísio – o excessivo – e neste excessivo chegar ao
ponto limite, fulcral, onde realidade e ilusão se confundem, se
mesclam e se unem para formar não uma nova realidade, mas a
mesma e eterna realidade de sempre – o mesmo - que é estar no
meio, entre a mínima consciência e o a ideia que parece tocar o
delírio.
Esta insistência em ser reconhecido – Dionísio -, não é na forma
de um deus estrangeiro que se exaspera pelo não reconhecimento
e culto a sua altura, mas porque se Ródian não o olhar, ele não vai
convalescer, ou seja, não servirá de ponte de passagem para uma
nova saúde. Então eterno retorno do mesmo e convalescença sob
a máscara dionisíaca de um drama que se dá no meio da razão e
da loucura servem a um propósito estelar, a uma meta cósmica,
que é a de sair de onde se está (seja de um ressentimento, de uma
paralisia qualquer), e se lançar, ou seja, abrir para si e para seus
pares um devir.

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A ideia redentora presente em ‘crime castigo’ atinge seu ápice
na cena dramática do assassinato da velha usuária e a chegada
inesperada da irmã que guarda os traços da domesticação e da
inocência, ou seja, ela se deixou dominar pela irmã, mas renasceu
em inocência no próprio assassino, que incorporou esse poder
nele mesmo. Assim como Hércules incorporava as qualidades de
seus inimigos derrotados, Ródian, o assassino de crime e castigo
convalesce após o assassinato, da maneira de como todos os
cristãos que carregam a culpa pelo assassinato do Cristo pelo
povo descrito como os zé-ninguéns rechianos, só que sem a culpa
que paralisa e cristaliza o convalescer e o retorno do mesmo. A
partir do crime que é e revela particularidades míticas do
assassinato de Dionísio criança pelos Titãs, o herói toma a sua
força aberta pelo poder de maquinação de um plano perfeito de
assassinato, e no miolo mole e plástico dessa tentativa de mais
potencia de vida, e instala a partir da presença feminina de Sônia,
que doravante é seu eterno retorno do que deve fazer e como agir,
e que sob a máscara dionisíaca da puta e do olhar apolíneo, lhe
lembra constantemente o experimento aberto de um convalescer.
Esse convalescimento dele e dela, abre-se a potencia redentora do
espírito. Salva o herói a heroína, e a memória do que somos, em
meio ao sangue derramado.
A ideia dionisíaca que a razão e a astucia se equivocam em
interpretar em fazer passagem ao ato em crime, é a de todo
homem que deseja convalescer, ou seja, para além do niilismo, do
nada querer, existe uma vitória que é a de querer continuar
sonhando um pouco mais, que é a fórmula grega ante o trágico,
desvendada por Nietzsche em seu ‘O nascimento da tragédia’.
Convalescer é tornar o espírito livre, mas sem perder a conexão
com o coração dionisíaco. Não se trata apenas de não aceitar a
derrota pessoal, de cumprir uma pena na Sibéria ‘minha vida não
acabou com a morte da velha’, mas de pensar um convalescer,
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como um processo longo e pesado. Não podendo se contemplar
sozinho, o seu próprio espetáculo, necessita ele uma companheira
de viagem, de repetir com ela o diapasão dostoieviskiano por
excelência: No limite, ou se mata, ou se morre, enlouquece, e
algumas vezes, convalesce.

O conflito entre o bom coração e o tipo frio e extraordinário

C. G. Jung em sua jornada ao inferno diz sobre os mortos que


não aceitaram sua sombra em como essa aceitação agora, após a
descida ao Hades lhe é cara: ‘Sua vida é bela e rica, pois ele é ele
mesmo. Repugnante, porém, é aquele que sempre deseja apenas, a
felicidade do outro, pois ele atrofia a si mesmo. Assassino é
aquele que deseja forçar o outro a bem-aventurança, pois ele mata
seu próprio crescimento. Louco é aquele que elimina por amor
seu amor. Este está pessoalmente no outro. Seu além é cinzento e
impessoal’ (Jung, O livro vermelho: 383).

É de Jung também a reflexão sobre a relação entre assassino e


assassinado, na perspectiva de que tudo o que parecia morto
revive em cada um de nós, e como serpentes venenosas, essa
recordação retoma um para trás cheio de medo e pavor. É desse
sofrimento, diz Jung, que nascerá uma nova vida. (Jung, o livro
vermelho in Descida ao inferno futuro).

Rodian, experimentava todas essas contradições e conflitos em


seu coração, pois a problemática toda é a do coração dionisíaco, e
não da psicopatologia convencional, trata-se de um tornar-se o
que se é, mas antes é necessário um convalescer. Para convalescer
é preciso não imitar Cristo ou se aliar a um utilitarismo qualquer,
pois para adentrar ao pátio de Dionísio, atravessar seus pórticos, o
coração, para além da verdade moral, do desejo do Bem do outro,
é preciso avessar e destruir seu Eu, morrer nesta única vida para

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que outros eus floresçam, tornando sua vida bela e rica. Uma
riqueza vinda do fundo dionisíaco, ao qual Ródian queria acessar
a qualquer custo, mesmo ao cálculo de um assassinato.

Rodian é uma representação complexa da personalidade russa,


soma de inúmeras observações de Dostoievski, por isso prefiro
dizer que este personagem representa um tipo. Enquanto tipo,
Ródian é um fantasma vivo do que foi e do que o povo russo
estava se torando. Ele mesmo em seu recuo e solidão encenava a
sua descida até o inferno e morria para tentar renascer em outra
tipologia (a extraordinária). Seu melhor amigo dizia que parecia
um fantasma ressuscitado do mundo dos mortos. Na verdade
Ródia e Sônia estavam mortos, por isso ela tinha a passagem
bíblica de Lázaro como a sua predileta e a lia para Lizavieta
(também morta em vida) e a elegeu para ler quando da confissão
do crime. Nesse momento da confissão, após a leitura do texto
cristão, algo se deu entre ambos, ou seja, abriu-se para ambos, um
convalescimento, uma espécie de possibilidade de ressurreição,
em vida, para aqueles que se sentiam mortos e enterrados vivos.

A questão do delírio vai ficando cada vez maus longe da


patologia, quando a perspectiva dionisíaca se impõe, ou seja, o
inicio do convalescer é uma abertura a embriaguez não só dos
sentidos, mas das percepções, as antigas imagens e seus valores
correspondentes se desintegram, formando uma espécie de caos
no eu, que já não sabe mais distinguir o que é verdade e o que é
mentira. Daí toda a alternância de Ródian em sua busca de uma
outra saúde, onde recua e fica sozinho e as saídas pra fazer seus
enfrentamentos.

Um novo rumo, eis o que as andanças ao acaso conduziam


Ródian a destinos e rumos incertos a conversas que remetiam a
ideias que eram suas pessoais, ou coletivas. Não se trata mais de
se tornar um niilista ou religioso, mas que a marca da inocência

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embriagada (a moça da praça), lhe caiu no colo, o que fazer com
ela? Caiu em 3 versões possíveis: 1) A inocência de Sônia –
prostituta santa 2) A inocência de Dúnia – pensar fazer um bem a
si, mas o faz a outrem 3) Inocência perdida das jovens – como
cálculo utilitarista em prol de um social maior.

O mundo injusto com as crianças, jovens e doentes expõe o fio


condutor de Ródian: sua necessidade interior, ou seja, como
convalescer, como tornar-se o que se é? E como complicador:
sem saber de fato o que se é (qual natureza?). A natureza de seus
sonhos o revelam. Revelavam o profundo e abissal desacordo
entre vida e pensamento, coração e razão.

O sonho medonho de Ródian

É aqui, no ponto limite, em que tudo se decido: ou se mata, ou


se morre, se enlouquece, e ainda, algumas vezes, se convalesce.

Aquilo, a ideia, iria mesmo acontecer? No limite de seu nojo, de


seu asco, de seu tremor nervoso, seu inconsciente – Dionísio – o
conduziu a uma necessidade interior maior, ou seja, sonhar.

A taberna, o cálice de vodka, e o sono o toma, ali mesmo, em


meio a sua caminhada sem rumo. O sonho estético de Ródian (a
maneira de um quadro de Púchkin ou Turguiêniev), transportam-
no a infância, em sua cidadezinha natal. Forte impressão.

Um dia de festa – Dionísio – passeio ao entardecer com o pai


nos arredores, ou seja, caminhos outros, destinações inusitadas,
sujeito aos acasos e elementos extraordinários. É a mesma ação de
Ródian que sai de sua cabine de navio sem destinação, febril,
delirante, sem rumo ou destinação pré-concebida.

É a loucura dionisíaca, em ação, processos inconscientes que o


fazem ir daqui a ali e acolá. Em busca de signos e sinais do deus.

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Presença do pai – aquele que deveria saber conduzir,
encaminhar os destinos, explicar as razões e os porquês. Pai fraco,
medroso, o que evita a todo custo, fazer os enfrentamentos
necessários da vida e do viver.

Ao fundo do caminho sinuoso, negreja um bosque. Bosque


escuro, de onde podem sair todo tipo de coisa. Os fantasmas do
inconsciente, já estão lá, e causam medo e horror a criança, que se
segura na mão paterna. No livro de Saint- Exauspery – O pequeno
príncipe – o menino, também aproximadamente desta idade,
enfrenta a selva sozinho, e desenha a jiboia comendo um monstro,
ou seja, elabora artisticamente (esteticamente), seu medo, sua
solidão na forma de uma jiboia que digere lentamente sua presa e
lida com seus primeiros temores de forma nobre. O processo
estético do convalescimento, já o apontamos pedagogicamente:
recuo, solidão, seguidos de enfrentamentos. O recuo e a solidão,
como Jung já apontou em seu ‘O livro vermelho’, faz um recuo
da libido até a infância, e para além dela.

Do bosque, da taverna, emergem em bandos, o que nos faz


tremer: as figuras de Dionísio. Em ‘Temor e tremor’, temos
Kierkegaard (em seu recuo e solidão voluntária), que viveu sua
primeira infância ao lado do pai, que insistia na devoção religiosa,
do lado da fé, igual ao pai de Ródia, que insistia na explicação do
que os mujiques faziam: Eles estão bêbados, não sabem o que
fazem.

A angustia e o medo não digerido, nem pela fé, nem pelos


valores morais, permaneceram no coração de Ródian como um
resto, uma sombra inconsciente que se arrasta e esconde dentro do
peito da criança e que agora, adulto, se rasga como um abcesso
‘como se o abcesso, que o mês inteiro se formava em seu coração,
tivesse estourado subitamente’ (Dostoievski, Crime e castigo: 75).

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Para o inconsciente, não existe diferença entre o sonhado,
imajado e o vivido, e a separação entre o vivido e o sentido estão
na base do pensamento moral. A visão grega do mundo e do
tempo retomada por Nietzsche, supõe o eterno retorno do mesmo,
ou seja, de tudo o que Ródian irá experimentar como um
acontecimento: a ideia – a criação dela – seu surgimento
vertiginoso, o pecado contido nela, a redenção, o fim dos tempos,
ou seja, de seu tempo mítico interior, onde irá fazer suas
passagens ao ato (largar a faculdade, quebrar a promessa familiar,
o que quer para si, tomar isso como exigência, imperativo, depois
como necessidade, cometer o crime, encontrar Sônia, a passagem
da redenção de Lázaro, estabelecer um vínculo com Sônia, ir a um
novo recuo e solidão na Sibéria, olhar para além da prisão, o povo
nômade que canta e a esperança de renascimento ao lado de
Sônia).

A reconciliação de Ródian não é com o pai, nem com a religião


e sim com o seu coração dionisíaco. O bando de figuras e
máscaras sinistras do deus o faziam tremer. Ao lado do bosque e
da taverna poeirenta, o cemitério, a capela com abóboda
esverdeada. A contraposição entre Dionísio e Apolo (O deus
cristão elevado em luz e fé, como no quadro de Rafael – O
menino endemoniado), faz alusão aos conflitos do menino
Ródian, que vai em direção a missa em homenagem a avó, mas
também ao irmãozinho morto aos 6 meses, que nunca chegara a
conhecer. Meandro enigmático que não pode passar
desapercebido, pois a criança que morre sem motivo, é o fio
condutor do pensamento de Ródian, as perguntas sem respostas
que giram em sua mente inquieta. A criança que também foi
Dionísio, despedaçada pelo Titã, que só deixa o coração de lado,
como um resto perdido, e que permanece integro e intacto.
Ródian quer cometer o crime, mas ainda assim, permanecer com
o coração integro e intacto. Este olhar abissal encontra seus

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reflexos na irmã, em Lisavieta, em Sônia, e agora no sonho do
irmão morto sem justificativa alguma.

O olhar de Ródian uma vez mais se volta e se prende em


direção a taverna, a festividade dionisíaca que se desenhava,
como um quadro festivo a moda de Baco. Vida e morte num
mesmo prisma, dentro de uma só perspectiva, alegria e dor juntos,
formando uma estética de difícil compleição e aceitação. Estamos
dentro do que se chama ‘sabedoria trágica’.

Todos bêbados, cantando e dançando, até que uma barulheira se


faz notar, camponeses grandalhões saem do subsolo, um grita,
obriga os demais a sentarem numa carroça, grande, puxada por
uma única égua baia, em pele e osso, velha e já cansada da vida e
do viver, pelos trabalhos forçados a que era submetida. Ela terá de
puxar a todos. Acena é dolorosa, magistralmente descrita por
Dostoievski e seu sonhador. A égua é o espelho do que é, do que
estaria se tornando, um tipo fraco (igual ao pai) e dominado pelo
mais forte.

‘- É minha’ grita o mujique utilitarista, ou seja, pode dispor da


égua como quiser. O menino, ‘fora de si’, tenta fazer algo, mas se
sente e é impotente, não tem ajuda do pai, e ao final não entende
isso, pergunta ao pai porque mataram a égua e ele reponde: -
‘Estão bêbados, estão fazendo travessuras, não é da nossa conta,
vamos’ (idem: 74).

A sensação que fica é algo como: na embriaguês, algo se dá,


para além dos mujiques utilitaristas, um algo maior, mais amplo e
complexo, que é uma espécie de nobreza em ser forte, não
necessariamente utilitarista – um bem que se pode dispor como
quiser - mas uma volta a uma ideia mais abissal, mais profunda,
em que os mujiques seriam só a ponta do iceberg: a ideia de força,

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de vontade, de uma aliança coma vida, a vida em meio a morte e
o morrer. Sabedoria trágica por excelência.

Essa estranha conexão entre vida e morte, assassino e vítima,


nos dá a dimensão de como o coração cansado e fraco tenta
reagir, como a éguinha do sonho, em seu desespero de arrancar,
de conduzir e puxar a turba, mas constrangida pelo arreio, e a
contrapelo de um cansaço enorme, de um nada querer, de um
esforço em vão.

O retorno do sonho, da mesma sensação vivida lá trás – tremor.


Sangue espirrado do cavalo em suas faces, ou seja, o mesmo olhar
que agora se vislumbrava na ideia de assassinar a velhota, ver sair
seu sangue viscos e quente, só que uma diferença, um retorno não
da mesma cena impotente e diante da pergunta sem reposta, mas
agora fortalecido, renascido das cinzas como o Titã em um
coração inocente, onde matar não é crime e sim extravasamento
de força de vida.

Um ensaio, um experimento de se conduzir as alturas, não as do


deus cristão (quadro de Rafael), mas de fazer nascer um tipo
novo, que aguenta, que se torna forte (o que não me mata me
fortalece), e retira o aguilhão sem cair doente ou tombar no meio
da batalha.

Um tipo nobre, que retira o fardo das promessas e valores


fantasiosos das costas e caminha em direção a um construir-se a si
próprio, passo a passo, com o espírito tornado mais leve.

Não mais renegar o sonho seu, mas fazer a passagem ao ato.


Uma outra coragem, uma outra saúde, em busca de caminhos que
não sejam mais sempre retos e curtos. Trazer a diferença a
repetição.

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Uma outra sabedoria: tudo o que é decisivo e mais definitivo em
seu destino, acontece ao acaso, em caminhos outros, em signos e
sinais inesperados do deus, ‘Como se ali estivesse de propósito á
sua espera’.

Ródian é pego pela sensação estranha – Dionísio – a uma


surpresa profunda, como o encontro na praça com Lisavieta e
amigos, que mencionavam que a velha usuária – Aliena – estaria
sozinha num determinado tempo em seu apartamento.

Silêncio, pavor, arrepio, a velha estaria sozinha em casa. Tudo


tinha já se reolvido, para além de seu aparente desejo de não
cometer o crime. De repente, não mais que de repente...

Fim e começo de um possível convalescer... tudo junto e


misturado.

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