Você está na página 1de 11

~ Ajahn Chah ~

[1] Todas as coisas exatamente como são mostram a verdade. Mas temos inclinações e
preferências sobre como nós queremos que as coisas sejam. Lokavidū significa conhecer
o mundo claramente. O mundo residindo nesses fenômenos (sabhāva) como eles são.
Para simplesmente resumir, o mundo é arom [2]. Essa é uma forma fácil de colocar. O
mundo é arom. Se dizemos “mundo”, fica muito amplo. “Arom é o mundo” é muito
mais simples. O mundo é arom. Ser iludido pelo mundo é ser iludido por arom; ser
iludido por arom é ser iludido pelo mundo. Lokavidū, conhecer o mundo claramente, do
jeito que ele é, é isso que precisamos saber. Ele existe de acordo com suas condições.
Então devemos ter consciência completa e presente sobre isso.

Assim como o ensinamento que deveríamos conhecer sankhāras como eles são,
desenvolver sabedoria que conhece sankhāras. Seja qual for a verdade dos sankhāras,
seja como for que eles sejam, essa é a verdade que precisamos saber. Isso se chama a
sabedoria que aceita e conhece sem obstáculos.

Precisamos desenvolver uma mente que tenha tranquilidade e sabedoria no controle das
coisas juntas. Falamos sobre sīla, samādhi, paññā, e sobre meditação samatha e
meditação vipassanā. Mas são todos realmente o mesmo. Eles são o mesmo, mas nós os
dividimos em diferentes categorias e ficamos confusos. Tenho feito muitas vezes uma
simples analogia sobre isso – há coisas com que comparar – o que pode facilitar a
contemplação e a compreensão.

Uma pequena manga torna-se depois numa grande manga madura. A manga pequena é
a mesma fruta que a grande? Desde o momento em que é apenas um botão florindo na
árvore, é a mesma manga. À medida que cresce para uma manga pequena e, em
seguida, fica cada vez maior, quase madura, e finalmente fica madura, está apenas
passando por mudanças.

Os aspectos da prática de que falamos são os mesmos. Sīla simplesmente significa


desistir do mal. Uma pessoa sem sīla está numa condição quente. Quando alguém
renuncia ao fazer o mal e ao mal, isso traz frescor. Legal, sem efeitos nocivos ou
prejudiciais. A benção que vem dessa liberdade de efeitos nocivos é uma mente
tranquila – isso é samādhi. Quando a mente está em samādhi, limpa e pura, verá muitas
coisas. É como a água quieta e imperturbada. Você pode ver seu rosto nela. Você pode
ver as coisas mais longe refletidas também. Você pode ver o telhado do edifício lá
longe. Se um pássaro pousar no telhado, você pode vê-lo.

Esses fatores são realmente um só, assim como a manga é única. A fruta minúscula é a
mesma manga. O crescimento do fruto é a mesma manga. A fruta madura é a mesma
manga. Do verde ao amarelo, é a mesma manga; está ocorrendo mudanças, e é por isso
que vemos a diferença.

Ter esse tipo de entendimento simples pode nos ajudar. As dores diminuirão. Se, em vez
disso, confiarmos em textos e buscarmos explicações detalhadas, é provável que
acabemos nos confundindo. Então, temos que observar nossas próprias mentes.
“Bhikkhus! Vocês deveriam estar cuidando de suas mentes. Aqueles que cuidam de
suas mentes escaparão das armadilhas de Māra”. Tanto Māra quanto suas armadilhas. E
depende da nossa própria investigação.
Meu modo de praticar era um pouco estranho. Depois que me ordenei e comecei a
praticar, tive muitas dúvidas e perguntas. Mas eu não gosto de perguntar a qualquer um.
Mesmo quando conheci Ajahn Man, não lhe fiz muitas perguntas. Eu queria perguntar,
mas não o fiz. Sentei e ouvi seus ensinamentos. Tive perguntas, mas não perguntei.
Perguntar a outra pessoa é como emprestar a faca de alguém para cortar algo. Nunca
chegamos a ter nossa própria faca. Era assim que eu sentia. Então, não fiz muitas
perguntas aos outros. Se eu ficasse com um professor por um ano ou dois, eu escutaria
seus discursos e tentaria resolver as coisas para mim. Eu procuraria minhas próprias
respostas. Eu era diferente de outros discípulos, mas eu consegui desenvolver a
sabedoria; dessa forma, me tornei engenhoso e inteligente. Eu não me tornei negligente,
ao invés disso, eu contemplava ascoisas até eu poder ver por mim mesmo, aumentando
minha compreensão e removendo minhas dúvidas.

Meu conselho é para que vocês não se deixem enredar em dúvidas e questões. Deixem
que elas sigam, e contemplem diretamente o que vocês estiverem experimentando.
Qualquer que seja o prazer físico ou dor que estejam sentindo, não façam disso uma
grande questão. Quando vocês se sentarem em meditação e começarem a se sentir
cansados ou desconfortáveis, ajustem sua posição. Aguentem o máximo que puderem e
só depois se movimentem. Não exagerem. Desenvolvam muita vigilância – esse é o
ponto. Fazendo a sua meditação sentada ou andando, o máximo que puderem, o
objetivo é desenvolver a vigilância o máximo que puderem, conhecendo as coisas
completamente. Isso é o bastante.

Por favor, contemplem minhas palavras. Seja qual for o tipo de prática que vocês
estejam fazendo, quando surgirem objetos mentais, sejam eles interna ou externamente,
esses são chamados de arom. Aquilo que está consciente do arom é chamado … bem, o
que quer que vocês queiram chamar está OK; vocês podem chamá-lo de “mente”. O
arom é uma coisa, e aquele que reconhece o arom é outra. É como o olho e os objetos
que ele vê. O olho não é os objetos, e os objetos não são o olho. O ouvido ouve os sons,
mas o ouvido não é o som e o som não é o ouvido. Quando há contato entre os dois,
então as coisas acontecem.

Todos os estados mentais, felizes ou infelizes, são chamados de arom. Sejam quais
forem, não importa – devemos constantemente nos lembrar de que: “Isto é incerto”.

Isso é algo que as pessoas não consideram muito, que “isto é incerto”. Esse é o
único fator vital que gerará sabedoria. É realmente importante. Para cessar nosso ir e
vir, e descansar, precisamos apenas dizer: “Isto é incerto”. Às vezes, podemos estar
perturbados por algo a ponto de as lágrimas estarem escorrendo; isso não é certo.
Quando os sentimentos de desejo ou aversão chegam até nós, devemos nos lembrar
somente disto: Seja parado, andando, sentado ou deitado, o que quer que apareça é
incerto. Você não consegue fazer isso? Continue com isso, não importa o que aconteça.
Dê uma chance. Você não precisa de muito – apenas isso vai funcionar. Isso é algo que
traz sabedoria.

A maneira como eu pratico a meditação não é muito complicada – apenas isso. Tudo se
resume a: “É incerto”. Tudo se encontra nesse ponto.

Não acompanhe as várias instâncias da experiência mental. Quando você se senta, pode
haver várias condições mentais surgindo, vendo e sabendo todo tipo de coisas,
experimentando diferentes estados. Não fique atento a esses estados [3] e não se
envolva com eles. Você só precisa se lembrar de que eles são incertos. Isso é o bastante.
É fácil de fazer. É simples. Então você pode parar. O conhecimento virá, mas então não
faça disso muita coisa ou fique apegado a isso.

Investigação real, investigação da maneira correta, não implica pensar. Assim que algo
entrar em contato com o olho, orelha, nariz, língua ou corpo, isso imediatamente ocorre
por conta própria. Você não precisa pegar nada para ver – as coisas apenas se
apresentam e a investigação acontece. Falamos sobre vitakka, “pensamento inicial”. Isso
significa levantar algo. O que é vicāra, “pensamento discursivo”? É investigação, vendo
os planos da existência (bhūmi) que surgem.

Na análise final, o caminho do Buddha floresce através da impermanência. É sempre


atual e relevante, se no tempo do Buddha, em outros tempos passados, na era presente
ou no futuro. Em todos os tempos, é a impermanência que regula. Isso é algo que você
deve meditar a respeito.

As verdadeiras e corretas palavras dos sábios não irão deixar de mencionar a


impermanência. Essa é a verdade. Se não há menção de impermanência, não é o
discurso dos sábios. Não é o discurso do Buddha ou dos nobres discípulos; é chamado
de discurso que não aceita a verdade da existência.

Todas as coisas precisam de uma forma de se soltar. A contemplação não é uma questão
de se segurar e se grudar às coisas. É uma questão de se soltar. Uma mente que não
pode soltar os fenômenos está em estado de intoxicação. Na prática, é importante não
estar intoxicado. Quando a prática realmente parece ser boa, não se intoxique com esse
bem-estar. Se você se intoxicar por isso, isso tornar-se-á algo prejudicial e sua prática
não estará mais correta. Fazemos o melhor que podemos, mas é importante não
ficarmos embriagados com nossos esforços, caso contrário, estaremos fora de harmonia
com o Dhamma. Esse é o conselho do Buddha. Mesmo o bom não é algo para se
intoxicar. Esteja ciente disso quando essa situação acontecer.

Um dique precisa de um duto para que a água possa correr. É o mesmo para nós na
prática. Usar a força de vontade para nos esforçarmos e controlarmos a mente é algo que
podemos fazer às vezes, mas não fique inebriado por isso. Nós queremos ensinar a
mente, não somente controlá-la, para que ela se torne atenta. Forçar as coisas
excessivamente vai torná-lo louco. O que é vital é manter uma atenção e sensitividade
crescentes. Nosso caminho é assim. Há muitos pontos de comparação. Poderíamos falar
sobre os trabalhos de construção e retornar ao modo como treinamos a mente.

Existem muitos benefícios de estar praticando meditação, de observar sua mente. Esta é
antes de tudo a primeira coisa. Os ensinamentos que você pode estudar em escrituras e
comentários são verdadeiros e valiosos, mas eles são secundários. Eles são explicações
da verdade por outras pessoas. Mas há uma real verdade que supera as palavras. Às
vezes as exposições que são derivadas parecem desniveladas ou não são tão acessíveis,
e com o passar do tempo elas se tornam confusas. Mas as reais verdades que são
fundamentadas permanecem iguais e não são afetadas pelo que alguém disse ou fez. É o
original, natural estado das coisas que não muda ou deteriora. As explicações que
pessoas compõem são secundárias ou terciárias, um ou dois passos afastados, e embora
elas possam ser boas, benéficas e prósperas por algum tempo, elas estão sujeitas a
deterioração [4].

É semelhante à forma como a população continua crescendo e os problemas crescem


com ela. Isso é bastante natural. Quanto mais pessoas existem, mais problemas para
lidar vão existir. Então, líderes e professores tentarão nos mostrar a forma correta de
viver, fazer o bem e resolver os problemas. Isso pode ser válido e necessário, mas ainda
não é o mesmo do que a realidade na qual essas boas ideias se baseiam. O verdadeiro
Dhamma, que é a essência de todo bem, não entra em declínio ou deteriora, porque é
imutável. É a fonte, saccadhamma, existindo tal como é. Todos os seguidores do
caminho do Buddha que praticam o Dhamma devem esforçar-se para perceber isso.
Então eles podem encontrar diferentes formas para ilustrá-lo. Ao longo do tempo as
explicações perdem sua potência, mas a fonte permanece a mesma.

Então, o Buddha ensinou a focar sua atenção e investigar. Praticantes em busca da


verdade, não se apeguem a suas opiniões e ao seu conhecimento. Não se apeguem ao
conhecimento dos outros. Não se apeguem ao conhecimento de ninguém. Em vez disso,
desenvolvam um conhecimento especial; permita que o saccadhamma seja revelado em
sua grandiosidade.

Ao treinar a mente, investigando o saccadhamma, nossas mentes estão onde podem ser
vistas. Quando há dúvida sobre qualquer coisa, deveríamos prestar atenção aos
pensamentos e aos sentimentos, nossos processos mentais. Isso é que deveríamos
conhecer. Todo o resto é superficial.

Na prática do Dhamma, vamos conhecer diversos sentimentos diferentes, como o medo.


Como podemos confiar neles? Quando a mente está coberta por medo, não encontramos
nada em que confiar. Isto é algo pelo qual já passei, a mente iludida e presa pelo medo,
incapaz de encontrar um local seguro. Então, como isso pode ser resolvido? Resolve-se
exatamente onde aparece. Independente de onde aparecer, acaba ali. Não importa onde
o medo apareça na nossa mente, pode ser terminado ali mesmo. De maneira simples,
quando a mente está coberta por medo, não há para onde ir, não há para onde fugir, mas
o medo pode acabar aí mesmo. O único local livre de medo é onde o medo está.
Qualquer estado pelo qual a mente passe, se experimentar o nimitta, visões ou o
conhecimento meditativo, isso não importa – nos é ensinado a focar a vigilância e a
mente no presente. Esse é o padrão. Não busque fenômenos externos. Todas as coisas
que contemplamos alcançam sua conclusão na fonte, o local de onde aparecem. Esse é o
local onde as causas estão. Isso é importante.

Um bom exemplo, fácil de ver, é o medo. Se nos abrirmos ao medo até ele não ter mais
para onde ir, deixaremos de ter medo, porque ele se esgotará. O medo perde seu poder e
não o sentimos mais. Não sentir medo significa que o medo se esvaziou. Passamos a
aceitar tudo o que acontece na nossa vida e o medo perde seu poder sobre nós.

Buddha nos recomendou que confiássemos nessa verdade e que nos desapegássemos
dos nossos pontos de vista e dos pontos de vista alheios. É importantíssimo aprender a
fazer isso. Queremos o conhecimento resultante da constatação dessa verdade, para não
ficarmos apegados ou presos a pontos de vista e opiniões, tanto os nossos quanto os das
pessoas. Mas, quando temos as nossas próprias opiniões e pontos de vista ou
interagimos com as pessoas, pode ser muito esclarecedor observar tudo isso entrar em
contato com a mente. É esse tipo de vivência e experiência que pode levar ao
conhecimento.

Ao observarmos a mente e cultivarmos a meditação, pode haver muitos pontos de


entendimento errôneos ou desvios. Algumas pessoas se concentram em condições da
mente e querem analisá-las excessivamente, então suas mentes estão sempre ativas. Ou
talvez examinemos os cinco khandhas, ou entremos mais detalhadamente nas trinta e
duas partes do corpo – há muitas dessas classificações que são ensinadas para a
contemplação. Então, ponderamos e analisamos. Ao olharmos para os cinco primeiros,
parece que isso não nos leva a nenhuma conclusão, então podemos entrar nas trinta e
duas partes, sempre analisando e investigando. Mas a maneira com que eu vejo isso,
nossa atitude em relação a esses cinco khandhas, esses amontoados que vemos aqui,
deve ser de cansaço e desencanto, porque eles não seguem nossos desejos. Eu acho que
isso provavelmente é o suficiente. Se eles sobrevivem, não devemos ficar
excessivamente alegres até o ponto de nos esquecer. Se eles se rompem, não devemos
ficar excessivamente abatidos por isso. Reconhecer esta situação deve ser o suficiente.
Não precisamos rasgar a pele, a carne e os ossos.

Isto é algo de que tenho falado constantemente. Algumas pessoas devem analisar de tal
maneira. Aqueles que estudam querem saber o que é mérito e demérito, que forma tem,
com o que eles se parecem. Eu explico que essas coisas não tem forma. Mérito está em
termos conduta correta, atitude correta. Mas, eles querem saber tudo tão claramente em
tantos detalhes.

Então, eu tenho usado o exemplo de uma árvore. Aqueles que estudam olham para a
árvore, e desejam saber tudo sobre as partes da árvore. Bem, uma árvore tem raízes, ela
tem folhas. Ela sobrevive por causa da raiz. Os que estudam tem que saber quantas
raízes ela tem? Raízes maiores, raízes menores, galhos, folhas, eles querem saber todos
os detalhes e números. Então eles pensarão ter claro conhecimento sobre a árvore. Mas,
o Buddha disse que uma pessoa que almeje tal conhecimento é, na verdade, tola. Não é
necessário saber dessas coisas. Somente saber que há raízes e folhas é o suficiente. Você
quer contar quantas folhas em uma árvore? Se você olhar para uma única folha, você
deveria ser capaz de compreender o panorama completo.

É o mesmo com as pessoas. Se nos conhecemos, então entendemos todas as pessoas no


universo sem ter que ir observá-las. O Buddha queria que olhássemos para nós mesmos.
Assim como somos, os outros também são. Todos somos sāmaññalakkhana, todos seres
com as mesmas características. Todos os sankhāras são assim.

Então, praticamos samādhi para poder desistir das impurezas, dar nascimento ao
conhecimento e à visão e largar os cinco khandhas. Às vezes as pessoas falam sobre
samatha. Às vezes elas falam sobre vipassanā. Eu sinto que isso pode se tornar confuso.
Aqueles que praticam samādhi vão louvar samādhi. Mas isso é apenas para tornar a
mente tranquila, então, eles podem conhecer as coisas sobre as quais estamos falando.

Então há aqueles que dirão: “Eu não preciso praticar samādhi tanto assim. Este prato vai
se quebrar um dia no futuro. Não é o suficiente? Vai funcionar, não vai? Não sou muito
habilidoso com samādhi, mas já sei que o prato deve quebrar algum dia. Sim, eu tenho
cuidado com ele, pois tenho medo que ele se quebre, mas eu sei que este é o seu futuro,
quando ele se quebrar, não sofrerei com isso. Minha visão não é correta? Eu não preciso
praticar muito samādhi, porque eu já tenho esse entendimento. Você apenas pratica
samādhi para desenvolver esse entendimento. Depois de treinar sua mente através do
sentar, você chega a essa visão. Eu não sento muito, mas já estou confiante que é assim
que funcionam os fenômenos”.

Essa é uma questão para nós, praticantes. Existem muitas facções de professores que
promovem os seus diferentes métodos de meditação. Pode ser confuso. Mas o
verdadeiro ponto de tudo isso é ser capaz de reconhecer a verdade, ver as coisas como
realmente são e estar livre de dúvidas.

Eu vejo isso assim, uma vez que tenhamos conhecimento correto, a mente ficará sob
nosso comando. O que é esse comando? O comando está em anicca, saber que tudo é
impermanente. Tudo cessa aqui quando vemos claramente, e torna-se a causa para nós
soltarmos. Então, deixamos que as coisas sejam, de acordo com a sua natureza. Se nada
está ocorrendo, nós permanecemos na equanimidade, e se algo surgir, nós
contemplamos. Isso nos causa sofrimento? Nós nos agarramos a isso com apego ávido?
Há algo lá? Isso é o que apoia e sustenta a nossa prática. Se praticarmos e chegarmos a
esse ponto, penso que todos nós realizaremos paz genuína.

Quer se trate de meditação vipassanā ou de meditação samatha, é só disso de que se


trata. Mas hoje em dia, parece-me que, quando os buddhistas falam sobre essas coisas
de acordo com as explicações tradicionais, isso se torna vago e confuso. Mas a verdade
(saccadhamma) não é vaga ou confusa. Ele permanece como ela é.

Então, sinto que é melhor procurar a fonte, olhando para o modo como as coisas se
originam na mente. Não há muito além disso.

Nascimento, envelhecimento, doença e morte: é breve, mas é uma verdade universal.


Então veja-os claramente e reconheça esses fatos. Se você reconhecer, você será capaz
de desapegar. Ganho, posição, louvor, felicidade e seus opostos – você pode deixá-los
ir, porque você os reconhece pelo que eles são.

Se alcançarmos este lugar de “reconhecer a verdade”, seremos pessoas descomplicadas,


pouco exigentes, contentes com alimentos simples, habitação e outros requisitos para a
vida, fáceis de conversar e despretensiosos em nossas ações. Sem dificuldades ou
problemas, viveremos à vontade. Quem medita e alcança uma tranquilidade na mente
será assim.

Neste momento, estamos tentando praticar como o Buddha e seus discípulos


praticavam. Esses seres alcançaram o despertar, embora ainda mantivessem sua prática
enquanto viveram. Eles agiram para o benefício de si mesmos e para o benefício dos
outros e, mesmo assim, depois de terem alcançado tudo aquilo que podiam, eles ainda
mantiveram sua prática, buscando seu próprio bem-estar e o bem-estar dos outros de
várias maneiras. Eu acho que devemos tê-los como o modelo para nossa prática. Isso
significa não se tornar complacente – essa foi sua natureza profundamente enraizada.
Eles nunca reduziram seus esforços. Esforço era o seu caminho, seu hábito natural.
Assim é o caráter dos sábios, dos praticantes genuínos.

Podemos compará-lo com pessoas ricas e pessoas pobres. Os ricos são especialmente
diligentes, muito mais do que os pobres. E quanto menos esforço as pessoas pobres
fazem, menos chances elas têm de se tornarem ricas. Os ricos têm conhecimento e
experiência a respeito de muitas coisas, então eles mantêm o hábito da diligência em
tudo o que fazem.

E por falar em fazer uma pausa ou descansar um pouco, encontramos descanso na


própria prática. Uma vez que praticamos para chegar ao objetivo, conheça o objetivo e
seja o objetivo, então, quando estamos ativos, não há como incorrer em perda ou ser
prejudicado. Quando estamos sentados, não há como nos prejudicarmos. Em todas as
situações, nada pode nos afetar. A prática amadureceu até a realização e chegamos ao
destino. Talvez hoje não tenhamos a chance de nos sentarmos e praticarmos samādhi,
mas estamos OK. Samādhi não significa apenas sentar-se. Pode haver samādhi em todas
as posturas. Se realmente estivermos praticando em todas as posturas, desfrutaremos
samādhi assim. Não haverá nada que possa interferir. Palavras como “Eu não estou bem
espiritualmente agora, então eu não posso praticar” não serão ouvidas. Não teremos tais
ideias; jamais nos sentiremos assim. Nossa prática está bem desenvolvida e completa –
é assim que deveria ser. Livre de dúvida e perplexidade, paramos neste ponto e
contemplamos.

Você pode olhar para isto: visão de si, dúvida cética, apego supersticioso a ritos e
rituais. O primeiro passo é se libertar dessas coisas. Seja qual for o tipo de
conhecimento que você ganhe, essas são as coisas das quais a mente precisa se libertar.
Como são agora? Em que medida ainda as temos? Nós somos os únicos que podemos
conhecer isso; temos que saber por nós mesmos. Quem mais pode conhecer melhor do
que nós? Visão de si, dúvida, superstição: se estamos presos em apegos, tendo dúvidas,
ainda estamos tateando, então essa é a concepção de eu aqui. Mas, agora apenas
pensamos, se não há um eu, então, quem é o que tem interesse e pratica?

Todas essas coisas vão juntas. Se nós as entendermos através da prática e darmos um
fim nelas, então viveremos de uma forma comum. Exatamente como o Buddha e os
aryas. Eles viveram exatamente como seres do mundo (puthujjana). Eles usaram a
mesma linguagem como os seres do mundo. A existência cotidiana deles era
completamente diferente. Eles usaram muitas das mesmas convenções. Onde eles
diferiam era que eles não criaram sofrimento para eles mesmos com as próprias mentes.
Eles não tinham sofrimento. Este é o ponto crucial, ir além do sofrimento, exterminar o
sofrimento. Nibbāna significa “extinguir”. Extinguir sofrimento, extinguir calor e
tomento, extinguir dúvida e ansiedade.

Não há necessidade de ter dúvida sobre a prática. Sempre que houver dúvida sobre
alguma coisa, não tenha dúvida sobre a dúvida – olhe diretamente e a suprima.

No início, treinamos para pacificar a mente. Isso pode ser difícil de ser feito. Você deve
encontrar uma meditação que se adapte ao seu próprio temperamento. Isso tornará mais
fácil ganhar tranquilidade. Mas, na verdade, o Buddha queria que retornássemos a nós
mesmos, que assumíssemos a responsabilidade e olhássemos pra nós mesmos.

Quente é raiva. Muito frio é prazer, o extremo da indulgência. Se está quente, é o


extremo do auto-tormento. Não queremos nem quente nem frio. Conheça o quente e o
frio. Conheça todas as coisas que aparecerem. Elas nos fazem sofrer? Nós nos
apegamos a elas? Tal o ensinamento de que o nascimento é sofrimento: não significa
somente morrer nesta vida e renascer na próxima. Isto está muito longe. O sofrimento
do nascimento acontece agora. Diz-se que o tornar-se é a causa do sofrimento. O que é
esse “tornar-se”? Qualquer coisa a que nos apeguemos e atribuamos significância é
tornar-se. Quando quer que vejamos algo como eu ou outro ou pertencente a nós, sem
um sábio discernimento para saber que se trata apenas de uma convenção, tudo isso é
tornar-se. Quando quer que nos agarremos a algo como nós ou nosso e isso sofre
mudança, a mente é abalada por isso. É abalada por uma reação positiva ou negativa.
Esse sentido de eu experimentando felicidade ou infelicidade é nascimento. Quando há
nascimento, vem sofrimento junto. Envelhecer é sofrimento, doença é sofrimento, morte
é sofrimento.

Agora mesmo, estamos tendo um vir-a-ser? Estamos atentos a este vir-a-ser? Por
exemplo, tome as árvores no monastério. O abade do monastério pode nascer como uma
larva em todas árvores no monastério se ele não estiver atento a si mesmo, se ele sentir
que isso é realmente seu monastério. Esse apego ao “meu” monastério, “meu” jardim e
“minhas” árvores é o verme que coloca as larvas lá. Se existe milhares de árvores, ele
virá a ser uma larva milhares de vezes. Isso é vir-a-ser. Quando as árvores são cortadas
ou encontram com algum dano, as larvas são afetadas; a mente é balançada e nasce com
isso toda essa ansiedade. Então, isso é o sofrimento do nascer, o sofrimento do
envelhecimento, e assim em diante. Você está atento ao jeito que isso acontece?

Bem, esses objetos em nossas casas ou em nossos pomares ainda estão um pouco
distantes. Olhemos diretamente para nós mesmos sentados aqui. Nós somos compostos
dos cinco agregados e dos quatro elementos. Esses sankhāras são designados como o
eu. Você vê esses sankhāras e essas suposições da forma como realmente são? Se você
não vê a verdade a respeito deles, então há surgimento, há contentamento ou
desapontamento em relação aos cinco khandhas, e assumimos o nascimento, com todos
os sofrimentos resultantes. Esse renascimento acontece agora mesmo, no presente. Esse
copo se quebra agora mesmo, e nós nos desapontamos nesse mesmo momento. Esse
copo não está quebrado agora, e nós nos sentimos felizes com isso agora. É assim que
acontece, estar desapontado ou alegre sem nenhuma sabedoria no comando. Dessa
forma alguém encontra somente ruína. Você não precisa olhar muito longe para
entender isso. Quando você foca sua atenção aqui, você pode saber se há ou não
surgimento. Então, quando está acontecendo, você está consciente dele? Você está
consciente das convenções e das suposições? Você as compreende? É o apego
ganancioso que é o ponto vital, quer você esteja realmente acreditando nas designações
de eu e meu ou não. Essa ganância é o verme, e é o que causa nascimento.

Onde está esse apego? Ao agarrar à forma, à sensação, à percepção, aos pensamentos e
à consciência, apegamo-nos à felicidade e à infelicidade, ficamos ofuscados e nascemos.
Isso acontece quando fazemos contato através dos sentidos. Os olhos veem formas e
isso acontece no presente. É isso o que o Buddha quer que observemos para
reconhecermos transformação e nascimento enquanto eles acontecem através dos nossos
sentidos. Se os reconhecermos, podemos desapegar, interna e externamente, os sentidos
interiores e os objetos externos. Isso pode ser visto no presente. Não é algo que acontece
quando morremos desta vida. É o olho vendo forma agora, o ouvido ouvindo sons
agora, o nariz sentindo cheiros agora, a língua sentindo gostos agora. Você está
nascendo com eles? Fique atento e reconheça o nascimento exatamente quando ele
acontece. Assim é melhor.
Fazer isso requer sabedoria a fim de aplica de modo constante a vigilância e a clara
compreensão. Então, você pode ficar consciente de si mesmo e saber quando está
passando pelo vir-a-ser e pelo nascimento. Você não precisará de uma cartomante.

Tenho um amigo no Dhamma que vive no centro da Tailândia. Nos velhos tempo
praticávamos juntos, mas faz tempo que seguimos por caminhos separados.
Recentemente o encontrei. Ele pratica as quatro fundações da vigilância, recitando o
sutta e dando discursos a seu respeito. Mas ele ainda não resolveu suas dúvidas. Ele se
prostrou a mim e disse: “Ó, Ajahn, estou tão faliz em vê-lo”. Perguntei-lhe porquê. Ele
me disse que havia visitado um lugar onde as pessoas faziam adivinhações. Ele segurou
a estátua do Buddha e disse: “Se eu já tiver atingido o estado de pureza, que eu possa
levantar esta estátua. Se ainda não tiver atingido o estado de pureza, que eu não possa
levantá-la”. E, então, ele foi capaz de levantá-la, o que o fez muito feliz. Esse simples
ato, realmente sem base em coisa alguma, significou tanto para ele e o fez pensar que
era puro. Então ele fez com que se inscrevesse o seguinte em uma pedra: “Levantei a
estátua do Buddha e, assim, atingi o estado de pureza”.

Os praticantes do Dhamma não devem agir desse modo. Meu amigo se mostrou
simplesmente incapaz de ver a si mesmo. Limitou-se a olhar para fora e ver objetos
externos feitos de pedra e cimento, incapaz de enxergar as intenções e os movimentos
de sua própria mente no presente momento. Quando a nossa meditação se volta ao
ponto certo, não há espaço para dúvida. Pensando assim, podemos dizer que a nossa
prática pode ser boa, mas não temos ninguém para comprovar isso, para testemunhar em
nosso favor. É como esta capela onde estamos. Ela foi construída por um homem que só
tem o ensino fundamental. Ele fez um excelente trabalho, mas não tem um diploma para
dar qualquer garantia ou responsabilizar-se por seu próprio trabalho, como um arquiteto
formado e qualificado. Mesmo assim, ele faz um bom trabalho. O saccadhamma é
parecido, nesse sentido. Embora não tenhamos muito estudo e desconheçamos as
explicações detalhadas, somos capazes de reconhecer o sofrimento, de reconhecer o que
causa o sofrimento, e somos capazes de nos desapegar disso. Não precisamos investigar
as explicações ou qualquer outra coisa. Só precisamos nos voltar à nossa mente,
examinar essas questões.

Não torne sua prática confusa. Não crie um monte de dúvidas para você. Quando você
tiver dúvida, controle-a vendo isso meramente pelo que é, e deixe passar. Realmente,
não há nada. Criamos a sensação de que existe algo, mas, na verdade, não há nada – há
anattā. Nossas mentes duvidosas pensam que há algo, e então há attā. Então, a
meditação torna-se difícil porque achamos que temos que conseguir algo e nos tornar
algo. Você vai praticar a meditação para obter ou ser algo? Esta é a maneira correta? É
só tanhā envolvido em ter e se tornar. Não há fim visível se você praticar assim.

Aqui, estamos falando de cessação, extinção. Tudo extinto, cessando por causa do
conhecimento, não em um estado de ignorância indiferente. Se podemos praticar assim
e atestar nossa própria experiência, então não se importe com o que os outros dizem.

Então, por favor, não se perca em dúvidas sobre a prática. Não se prenda a seus pontos
de vistas. Não se prenda a pontos de vistas de outros. Permanecendo no meio, a
sabedoria pode nascer, corretamente em toda sua grandeza. Eu tenho, com frequência,
usado a simples analogia de comparar a relação ao lugar onde vivemos. Por exemplo, há
telhado e há chão, os pisos superiores e inferiores. Se alguém está no piso de cima, ele
sabe que está lá [5]. Se ele desce, ele sabe que está no piso de baixo, de pé sobre o chão.
Isso é tudo que podemos saber. Podemos sentir onde estamos, quer seja lá em cima ou
aqui embaixo. Quanto ao espaço no meio, não estamos cientes a respeito, pois não há
meio de identificá-lo ou medi-lo, é somente espaço. Não compreendemos o espaço no
meio. Mas continua como é, quer queira alguém desça a escada ou não. O
saccadhamma é isso, não ir a lugar algum, não mudar. Quando dizemos não “tornar-se”,
esse é o meio do caminho, não marcado, não identificado com o que quer que seja. Não
pode ser descrito.

Por exemplo, nos dias de hoje, os jovens que estão interessados no Dhamma querem
saber sobre Nibbāna. Como lá é? Mas se lhes falamos sobre um lugar sem se vir-a-ser,
eles não querem ir. Eles dão um passo para trás. É cessação, é paz, mas eles querem
saber como viverão, o que eles comerão e apreciarão lá. Então, não há fim para isso. As
perguntas reais para aqueles que querem saber a verdade são perguntas sobre como
praticar.

Havia um ājīvaka que encontrou o Buddha. Ele perguntou: “Quem é seu professor?”. O
Buddha respondeu: “Eu fui iluminado por meus próprios esforços. Eu não tenho
professor”. Mas sua resposta era incompreensível para aquele viajante. Era muito direta.
Suas mentes estavam em lugares diferentes. Mesmo que o viajante perguntasse o dia
inteiro e a noite inteira, não haveria nada sobre isso que ele pudesse entender. A mente
iluminada é imutável e, portanto, não pode ser reconhecida. Podemos desenvolver a
sabedoria e remover nossas dúvidas somente através da prática, nada mais.

Então, não deveríamos escutar o Dhamma? Deveríamos, mas então deveríamos colocar
em prática o conhecimento que adquirimos. Mas isso não significa que estamos
seguindo a pessoa que nos ensina: seguimos a experiência e a consciência que surgem
quando praticamos o ensinamento. Por exemplo, nós sentimos: “Eu realmente gosto
disto. eu gosto de fazer as coisas deste jeito”. Mas o Dhamma não permite tal gosto e
apego. Se realmente estamos comprometidos com o Dhamma, então nós abrimos mão
do objeto da atração quando vemos que ele está em desacordo com o Dhamma. É para
isso que serve o conhecimento.

Teve muita conversa – provavelmente vocês já devem estar cansados. Vocês têm
perguntas? Bom, vocês provavelmente têm… Você deveria ter consciência ao abrir
mão. As coisas fluem e você abre mão, mas não de forma tediosa, indiferente, sem ver o
que está acontecendo. Deve haver vigilância. Todas as coisas que tenho dito estão
apontando na direção de ter a vigilância lhe protegendo a todo tempo. Significa praticar
a sabedoria, não a ilusão. Então, vamos adquirir o verdadeiro conhecimento, à medida
que a sabedoria se torna densa e continua aumentando.

Notas de rodapé:

[1] Uma grande parte dessa palestra foi previamente publicada sob o título “Buscando a
Origem”

[2] arom: (tailandês) – Todos os estados ou objetos da mente, sejam felizes ou infelizes,
internos ou externos.

[3] literalmente “contar”


[4] Porque eles ainda estão no âmbito dos conceitos.

[5] Com seus pés sobre algo sólido.

Traduzido pelo Grupo de Tradução do Centro Nalanda


com a permissão dos detentores do copyright
© 2017 Edições Nalanda

Nota: “Os Ensinamentos de Ajahn Chah” consiste de uma coletânea de ensinamentos


dados por um dos mais importantes mestres da tradição das florestas da linhagem
Theravada da Tailândia.

Você também pode gostar