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A performance clínica:

A imagem e a palavra no encontro/confronto com a pessoa.

Abrindo o ciclo de estudos em comunicação clínica da residência de medicina de família e


comunidade, o convite é para aguçar o olhar, aprofundar a escuta e multiplicar as sensibilidades em
direção ao ponto de partida da clínica, que é a busca de conhecimento do, para e através do outro.
A constante “crise da saúde” - que é uma crise das coisas, das estruturas e organizações
(Vilaça, 2012), mas também é uma crise das pessoas, dos vínculos e dos sentidos (Schraiber, 2008) –
vem nos ensinando algumas lições. Por um lado, que o conhecimento científico objetivo, que há quase
três séculos abriu cadáveres e incorporou lentes de aumento para descobrir os mecanismos secretos
das doenças (Foucault, 1963) é condição necessária mas não suficiente para a intervenção técnica
eficaz do profissional da cura (e talvez menos ainda se pensarmos no imperativo do cuidado); a
relação que se estabelece entre aquele que assiste e a pessoa adoecida é ao mesmo tempo o espaço e
a ferramenta imprescindíveis da boa terapêutica (Merhy, 2002); e dessa forma também a médica e o
médico são um medicamento essencial de sua clínica (Balint, 1957).
Por outro lado, aprendemos que a experiência subjetiva de se sentir doente não se restringe ao
íntimo de cada indivíduo, mas envolve pensamentos e ideias, sensações e sentimentos que assumem
modos e sentidos muito próprios, (mas nem por isso arbitrários1), nos dando mais jeitos de entender,
e assim também de agir em benefício de quem busca alguma forma de acolhida ao seu sofrimento.
Do confronto entre o saber e o sentir (Clavreul, 1978), surge a possibilidade – e o imperativo – de
refundar um encontro.

Ora se tudo que comunica é uma forma de texto, nossos corpos também o são (Preciado,
2013); escritos numa semântica transubjetiva, conectados por uma sintaxe social. Para além do
discurso (e em nosso enquadre específico, do sintoma) cada gesto porta também sentido, é
comunicante de significados que transitam no diálogo entre dois corpos que se encontram.
Em causa no centro de nossa questão está o corpo que sofre, sobre o qual nos “inclinamos”2,
e ao qual nos dirigimos, em um primeiro movimento, pelos sentidos e pela linguagem. Se o “olhar
clínico” que capta e quantifica os sinais dos órgãos já tem para nós a naturalidade da córnea, nos cabe
agora expandir o campo da ótica – em que pode nos ajudar a multifocalidade do olhar “de dentro” e
“de fora” – e extravazá-lo rumo à sinestesia de uma nova sensibilidade. Percebendo e reunindo a
policromia das nuances, a tonalidade e as texturas do contínuo entre experiência de doença, esperança
de cuidado e potenciais curativos que traz cada um, compor uma impressão3 que abra caminho à
nossa abordagem.

Se a impressão é formada pela integração de elementos da sensibilidade dos sentidos e da


experiência de adoecer traduzidos no discurso, é justo dizer que a investigação semiológica é também
uma experiência estética; e por outro lado, que a intervenção terapêutica, agenciada pelo corpo da
médica ou médico na interação com o corpo que adoeceu e na interface do encontro clínico, é também
uma performance.
A partir dessa perspectiva, propomos esse encontro de olhares, de múltiplos saberes e fazeres
para nos interrogar: o que o olhar para si (e para os outros), na imagem destacada da experiência –

1 Como nos ensinam os estudos do psiquismo e da filosofia (Balint, Canguilhem), da cultura ou do ordenamento
social (Loyolla, Boltanski, Kleinmann) que se debruçam sobre a questão da saúde e da doença.
2 Do grego klinos, que significa inclinação, reverência e respeito diante do sofrimento do doente (Pessini, 2010).
3 Formalmente a “impressão diagnóstica” designa o momento de construção da hipótese que subsidia a
abordagem, tanto semiológica quanto terapêutica.
como se propõe a ser a análise de vídeo-gravação de consultas – pode propiciar à sensibilidade do
sujeito?
E por outro lado, qual papel do gesto no encontro com o outro – o reforço do verbal e a
condução, a manipulação do corpo doente? A leitura das traduções que se fazem entre a gramática do
sentimento e a do discurso, uma fonte de conhecimento? Ou ainda um veículo entre a intenção
consciente, o desejo de cura e os efeitos simbólicos?

Para nos conduzir nessa reflexão, contamos com a ajuda de convidados que estudam, ensinam,
pesquisam e trabalham a imagem, o corpo, a fotografia e o vídeo para somar perspectivas e ampliar
nosso repertório conceitual e nossa sensibilidade prática na construção de um pequeno caleidoscópio
perante nossos “olhos de ver”. As questões estão postas, mas há espaço para muitas outras; a fala é
livre e a partilha aberta ao ânimo de cada um. Nosso objetivo geral é situar o exercício da análise em
grupo da videogravação de consultas no campo dos dispositivos reflexivos sobre a prática clínica, em
particular os que enfatizam a comunicação entre médica e paciente; e a partir daí conversar não apenas
sobre qual o papel da linguagem e das categorias estéticas na mediatização e efetivação do encontro
clínico, mas como é possível (ou impossível) integrar essas facetas da experiência ao estudo, pesquisa
e ensino da boa prática.

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