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Ora se tudo que comunica é uma forma de texto, nossos corpos também o são (Preciado,
2013); escritos numa semântica transubjetiva, conectados por uma sintaxe social. Para além do
discurso (e em nosso enquadre específico, do sintoma) cada gesto porta também sentido, é
comunicante de significados que transitam no diálogo entre dois corpos que se encontram.
Em causa no centro de nossa questão está o corpo que sofre, sobre o qual nos “inclinamos”2,
e ao qual nos dirigimos, em um primeiro movimento, pelos sentidos e pela linguagem. Se o “olhar
clínico” que capta e quantifica os sinais dos órgãos já tem para nós a naturalidade da córnea, nos cabe
agora expandir o campo da ótica – em que pode nos ajudar a multifocalidade do olhar “de dentro” e
“de fora” – e extravazá-lo rumo à sinestesia de uma nova sensibilidade. Percebendo e reunindo a
policromia das nuances, a tonalidade e as texturas do contínuo entre experiência de doença, esperança
de cuidado e potenciais curativos que traz cada um, compor uma impressão3 que abra caminho à
nossa abordagem.
1 Como nos ensinam os estudos do psiquismo e da filosofia (Balint, Canguilhem), da cultura ou do ordenamento
social (Loyolla, Boltanski, Kleinmann) que se debruçam sobre a questão da saúde e da doença.
2 Do grego klinos, que significa inclinação, reverência e respeito diante do sofrimento do doente (Pessini, 2010).
3 Formalmente a “impressão diagnóstica” designa o momento de construção da hipótese que subsidia a
abordagem, tanto semiológica quanto terapêutica.
como se propõe a ser a análise de vídeo-gravação de consultas – pode propiciar à sensibilidade do
sujeito?
E por outro lado, qual papel do gesto no encontro com o outro – o reforço do verbal e a
condução, a manipulação do corpo doente? A leitura das traduções que se fazem entre a gramática do
sentimento e a do discurso, uma fonte de conhecimento? Ou ainda um veículo entre a intenção
consciente, o desejo de cura e os efeitos simbólicos?
Para nos conduzir nessa reflexão, contamos com a ajuda de convidados que estudam, ensinam,
pesquisam e trabalham a imagem, o corpo, a fotografia e o vídeo para somar perspectivas e ampliar
nosso repertório conceitual e nossa sensibilidade prática na construção de um pequeno caleidoscópio
perante nossos “olhos de ver”. As questões estão postas, mas há espaço para muitas outras; a fala é
livre e a partilha aberta ao ânimo de cada um. Nosso objetivo geral é situar o exercício da análise em
grupo da videogravação de consultas no campo dos dispositivos reflexivos sobre a prática clínica, em
particular os que enfatizam a comunicação entre médica e paciente; e a partir daí conversar não apenas
sobre qual o papel da linguagem e das categorias estéticas na mediatização e efetivação do encontro
clínico, mas como é possível (ou impossível) integrar essas facetas da experiência ao estudo, pesquisa
e ensino da boa prática.